Princípios Fundamentais dos Recursos Cíveis Daniel Arévalo Nunes da Cunha 1. O que é um princípio? Os princípios constituem espécie do gênero norma jurídica. Segundo Nelson Nery Júnior: “Norma é o sentido atribuído a qualquer disposição. Disposição é parte de um texto ainda a interpretar. Norma é parte de um texto interpretado.” (Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 9ª edição, pág. 22) Os princípios podem ser explícitos ou implícitos. Os primeiros são aqueles que estão expressamente consagrados em um texto normativo (constitucional ou legal), enquanto os segundos decorrem da análise de um determinado sistema jurídico. 2. Princípio do duplo grau de jurisdição O princípio do duplo grau de jurisdição “consiste em estabelecer a possibilidade de a sentença definitiva ser reapreciada por órgão de jurisdição, normalmente de hierarquia superior à daquele que a proferiu, o que se faz de ordinário pela interposição de recurso. Não é necessário que o segundo julgamento seja conferido a órgão diverso ou de categoria hierárquica superior à daquele que realizou o primeiro exame.” (Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 5ª edição, pág. 43) O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar questão envolvendo a constitucionalidade da exigência de depósito para a interposição de recurso administrativo, afirmou que o princípio do duplo grau de jurisdição não havia sido contemplado pela Constituição (RE nº 356.287-8). Posteriormente, o STF entendeu inválida a exigência de depósito para a interposição de recurso administrativo. O fundamento invocado não foi a ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição (ADI nº 1976) . 2. Princípio do duplo grau de jurisdição O princípio do duplo grau de jurisdição decorre do fato de que a Constituição prevê tribunais que possuem competência para julgar os recursos interpostos contra as decisões proferidas pelos juízes de 1º grau. O princípio do duplo grau de jurisdição não é absoluto, pois o próprio texto constitucional prevê algumas hipóteses em que as causas não são recorríveis. 3. Princípio da taxatividade Pelo princípio da taxatividade, adotado pelo sistema recursal brasileiro, somente são recursos os meios de impugnação assim considerados por lei federal. O artigo 22, inciso I, da Constituição da República, estabelece que compete exclusivamente à União legislar sobre processo civil, de forma que os recursos não podem ser legitimamente instituídos por leis estaduais. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “O agravo regimental, não sendo recurso, mas meio de promover-se a integração do colegiado que o relator representa, não é inconstitucional sob o fundamento de ofensa à competência da União Federal para legislar sobre processo.” (AgR no AI 247.591-RS, rel. Min. Moreira Alves) 4. Princípio da singularidade O princípio da singularidade, também conhecido com princípio da unicidade ou da unirrecorribilidade, estabelece que para cada ato judicial há um recurso correspondente no ordenamento. O princípio da singularidade decorre da interpretação sistemática que se faz do artigo 496, que enumera os recursos admissíveis pelo Código, e da correlação que deve existir entre o artigo 162 e os artigos 504, 513 e 522. Ou seja, para que seja possível saber o recurso cabível contra determinada decisão é preciso identificar qual foi ato praticado pelo juiz (despacho de mero expediente, decisão interlocutória ou sentença). Não obstante a alteração realizada pela Lei 11.232/2005, que modificou o conceito de sentença, ainda permanece válido para fins de identificação do recurso cabível o entendimento segundo o qual sentença constitui ato que põe termo ao processo. 4. Princípio da singularidade Quando houver uma decisão complexa, que tenha apreciado de uma só vez diversas questões, somente caberá um único recurso da parte prejudicada, dependendo do fato da decisão extinguir ou não o processo. Por isso, a sentença que julga procedente a demanda e concede um pedido de tutela antecipada somente pode ser impugnada por meio de recurso de apelação. A decisão que, no saneamento do processo acolhe a preliminar de ilegitimidade passiva, excluindo um dos réus da relação processual, e indefere a produção de provas periciais, deve ser impugnada por agravo de instrumento pelas partes sucumbentes. O artigo 541 do Código prevê hipótese que excepciona o princípio da singularidade, ao estabelecer que o recurso especial e extraordinário, quando presentes os respectivos pressupostos, devem ser interpostos em petições distintas perante o presidente ou vice-presidente do Tribunal recorrido. 5. Princípio da fungibilidade O princípio da fungibilidade estabelece que um recurso pode ser admitido no lugar de outro quando houver dúvida objetiva e inexistência de erro grosseiro. A dúvida objetiva ocorre quando existe divergência jurisprudencial e na doutrinária sobre o recurso cabível contra determinado tipo de decisão. O erro grosseiro fica caracterizado quando a parte interpõe recurso impertinente, em lugar daquele expressamente previsto em lei. O princípio da fungibilidade decorre do princípio da instrumentalidade das formas, que está previsto no artigo 250 do Código. 5. Princípio da fungibilidade A inexistência de previsão expressa do princípio da fungibilidade decorreu do fato de que o atual Código simplificou o sistema recursal até então existente, ao se estabelecer que cada ato deve ser impugnado pelo recurso correspondente. Ocorre que em certas ocasiões não é simples identificar a natureza do ato que se pretenda impugnar. As principais fontes de incertezas decorrem (i) de imprecisões terminológicas do próprio Código, que designa uma decisão interlocutória como sentença e vice-versa; (ii) a doutrina e a jurisprudência divergem quanto a classificação de determinados atos; e (iii) o juiz profere um pronunciamento em lugar de outro. 5. Princípio da fungibilidade O procedimento a ser adotado pelo juízo de 1º grau: 1.indicar, de forma fundamentada, por que entende que o recurso cabível é agravo e não apelação; 2.indicar, de forma fundamentada, se estão presentes no caso os requisitos necessários ao reconhecimento da fungibilidade; 3.aferir a tempestividade do recurso; 4.determinar que a parte apresente os documentos que irão formar o instrumento, bem como facultar emenda para que a parte formule pedido próprio e pertinente ao recurso cabível; 5.encaminhar ao tribunal competente o instrumento com o recurso, emenda, documentos e decisão que reconheceu a existência da fungibilidade. 5. Princípio da fungibilidade O procedimento a ser adotado perante o tribunal: 1.quando a parte apelar ao invés de agravar, o tribunal não precisará adotar providências com vistas à formação de instrumento, de forma que bastará indicar, de forma fundamentada, o recurso cabível e a existência dos requisitos da fungibilidade; 2. caso a parte agrave em vez de apelar, o tribunal, presentes os requisitos da fungibilidade recursal, determinará a conversão do agravo em apelação e encaminhará os autos ao juízo de 1º grau para que efetue o processamento do recurso; 3.O tribunal também deverá facultar a possibilidade de emenda, a fim de que parte possa adequar o recurso ao procedimento da apelação, notadamente no que se refere ao pedido de efeito suspensivo quando necessário. 6. Princípio da dialeticidade O princípio da dialeticidade estabelece que a parte deve expor as razões pelas quais a decisão impugnada deve ser reformada ou anulada. A exigência de motivação se encontra nos artigos 514, II e III, quanto à apelação; 524 II, relativamente ao agravo; 523, § 3º, quanto ao agravo retido; 536, no que tange aos embargos de declaração; 540 quanto ao recurso ordinário; 541 quanto aos recursos especial e extraordinário. As razões do recurso não só demarcam a extensão da insurgência (total ou parcial), como ainda constituem elemento indispensável para que o tribunal possa aferir a existência de error in judicando ou error in procedendo. 6. Princípio da dialeticidade As razões recursais devem apontar o motivo pelo qual a decisão impugnada deve ser reformada ou anulada, motivo pelo qual não se admite que a parte simplesmente reitere os argumentos expendidos na petição inicial ou contestação, deixando-se de rebater os fundamentos expendidos na decisão recorrida. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que “é inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada.” (Súmula 182 do STJ). 7. Princípio da voluntariedade Segundo Nelson Nery Júnior “O recurso se compõe de duas partes distintas sob o aspecto de conteúdo: a) declaração expressa sobre a insatisfação com a decisão (elemento volitivo); b) os motivos dessa insatisfação (elemento de razão ou descritivo).” (Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 5ª edição, pág. 152) A insatisfação geradora da vontade de recorrer nada mais é do que uma manifestação do princípio dispositivo na fase recursal (artigo 2º - Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais). 8. Princípio da irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias O princípio irrecorribilidade em separado das interlocutórias estabelece que os recursos interpostos contra estas decisões não suspendem o curso do processo. O artigo 558 do Código estabelece uma exceção ao princípio da irrecorribilidade em separado das interlocutórias, ao estabelecer as hipóteses em que é possível conferir efeito suspensivo ao agravo. 9. Princípio da complementaridade O princípio da complementaridade estabelece que os recursos devem ser interposto no prazo legal, juntamente com as razões de inconformismo. No processo civil não é permitido o expediente de interpor-se recurso e, em outra oportunidade, apresentar as razões que justificam a reforma ou a anulação da decisão impugnada. Pelo princípio da complementaridade, o recorrente poderá complementar a fundamentação do recurso já interposto, caso a decisão impugnada venha a ser alterada ou integrada em razão de acolhimento dos embargos de declaração apresentados pela outra parte. 10. Princípio da proibição da reformatio in pejus O princípio da proibição da reformatio in pejus impede que o tribunal decida de forma mais desfavorável do que a decisão impugnada pelo recorrente. Segundo Nelson Nery Júnior, “desvantagem trazida pela reforma para pior deverá situar-se no plano prático, o que não ocorrerá se o tribunal apenas modificar a fundamentação da decisão recorrida.” (Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 5ª edição, pág. 157). Tal entendimento não se aplica na ação civil pública e na ação popular. O princípio da proibição da reformatio in pejus é uma decorrência da devolutividade dos recursos, tendo em vista que o tribunal somente pode julgar a questão nos limites da impugnação do recurso. 10. Princípio da proibição da reformatio in pejus O princípio dispositivo também impede que o tribunal decida de forma mais favorável ao recorrente (proibição da reformatio in melius) quando este deixar de impugnar parte da decisão que lhe foi desfavorável. O princípio da proibição da reformatio in pejus não impede que o tribunal conheça de questão de ordem pública, ainda que em prejuízo do recorrente. Nelson Nery Júnior entende que o reexame necessário, por não se tratar de recurso e devolver toda matéria ao conhecimento do tribunal, não impede que seja proferida decisão mais desfavorável à Fazenda Pública (Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, pág. 162/163). Este entendimento não é adotado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, inclusive, editou a súmula nº 45 (No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública). 11. Princípio da consumação O princípio da consumação estabelece que a parte deve recorrer na oportunidade e na forma estabelecida pelo Código, de forma que, decorrido o prazo ou interposto o recurso, a parte não pode mais efetuar nova impugnação do pronunciamento judicial. O recurso adesivo e a possibilidade de complementar o recurso em caso decisão integrativa, aclaradora e modificadora de outra já impugnada (princípio da complementaridade), constituem exceções ao princípio da consumação. Referências Bibliográficas NERY JUNIOR, Nelson. Recursos no processo Civil (Princípios fundamentais – Teoria geral dos recursos). 5. ed., São Paulo: RT, 2000. -Princípios do processo civil na Constituição Federal. 9. ed. São Paulo: RT, 2009. -PAVAN, Dorival Renato. Teoria Geral dos Recursos Cíveis, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004.