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O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL NO ÂMBITO
PROCESSUAL CIVIL
MICHEL SODRÉ AZEVEDO1
RESUMO: O princípio da fungibilidade tem suas raízes no Direito Alemão, subdividindo-se
em duas correntes. Segundo tal princípio, um recurso pode ser recebido por outro, sob certas
condições. As condições para a incidência do princípio da fungibilidade, de acordo com o art.
810 do Código de Processo Civil de 1939, se centravam na ausência do erro grosseiro ou da
má-fé. O erro grosseiro poderia ser auferido em situações que demonstrassem, de forma clara
e inequívoca, qual seria o recurso cabível, não havendo espaço para qualquer dúvida razoável.
O segundo requisito, de problemática confirmação, deveria ser observado nas situações
concretas. O Código de Processo Civil de 1973, visando instituir um sistema recursal
simplificado, deixou de reproduzir tal norma expressamente, afirmando, através de seu autor,
que o art. 810 deixaria de ser inserido, exatamente para retirar do sistema a possibilidade de se
receber o recurso inadequado. Ainda que não esteja prevista expressamente no Código de
Processo Civil em vigor, é inegável a existência e a importância da fungibilidade recursal. A
Fungibilidade, então, significa a “qualidade de poder ser substituída por outra coisa da mesma
espécie, qualidade, quantidade e valor”. Em termos técnicos, especialmente no que concerne à
sistemática recursal processual civil, conceitua Nelson Nery Júnior, “É o princípio pelo qual
se permite a troca de um recurso por outro: o tribunal pode conhecer do recurso erroneamente
interposto.” O princípio da fungibilidade recursal, ainda que não previsto de maneira expressa
no atual Código de Processo Civil, é aplicável aos casos concretos, eis que se tratando de
princípio implícito não necessita de disciplinamento normativo. Atualmente, percebe-se uma
forte inclinação dos tribunais em aplicar a fungibilidade dos recursos de maneira a
salvaguardar os interesses do recorrente de boa-fé.
Palavras chave: Código de Processo Civil – Recursos – Princípio da Fungibilidade.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO;2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA; 3 A FUNGIBILIDADE
RECURSAL COMO PRINCÍPIO IMPLÍCITO; 4 CONCEITO; 5 REQUISITOS: 6
PROCEDIMENTO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
1
Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério
Público do Estado do Paraná – FEMPAR Londrina
8
Em regra, o erro na interposição de um recurso acarreta o seu não conhecimento,
pelo Princípio na unirrecorribilidade das decisões judiciais.
Como veremos no decorrer deste trabalho, o Princípio da Fungibilidade Recursal
possibilita o conhecimento de um recurso interposto de maneira equivocada, desde que
obedecidos alguns requisitos.
A aplicação deste princípio, ademais, propicia o conhecimento da plenitude da
lide, ou seja, oferece ao recorrente o gozo da garantia constitucional de acesso à justiça.
Ademais, ameniza o formalismo, fazendo com que o conteúdo e os fins a serem atingidos
sejam priorizados em detrimento da forma do recurso.
Insta salientar, entretanto, que a utilização da fungibilidade recursal provém da
interpretação estrutural das normas jurídicas, e não visa favorecer o profissional que age de
maneira inábil, nem mesmo o recorrente munido de má-fé. Ao contrário, pretende minimizar
os efeitos nefastos que um recurso não conhecido causa às partes, atingindo a relação
processual de forma irremediável.
2
EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O princípio da fungibilidade tem suas raízes no Direito Alemão, subdividindo-se
em duas correntes. A primeira delas, de cunho objetivo, prega que não importa o erro
cometido pelo julgador, mas sim a interposição do recurso cabível contra a decisão proferida,
estando ela correta ou não. Percebe-se então a relevância dada ao conteúdo decisório.
A segunda corrente, por sua vez, tem natureza subjetiva, e prega que o indivíduo
perde o direito de recorrer caso interponha recurso cabível à decisão correta que deveria ter
sido dada, mas que não foi proferida de tal maneira. Um exemplo clássico é o do juiz que
profere sentença em vez de decisão interlocutória, e a parte agrava dessa decisão. No presente
caso, se dá importância à forma do ato decisório, não ao seu conteúdo.
Nenhuma das duas teorias conseguiu sanar todos os problemas decorrentes do
vasto sistema recursal alemão, pelo que foram substituídas pelo Princípio do Recurso
Indiferente - Sowol-alsauch-Theorie. Tal princípio preceitua tanto a admissibilidade do
9
recurso interposto contra decisão equivocada rolatada pelo juízo, quanto contra decisão que
deveria ter sido proferida corretamente, mas não o fez. Atualmente, a doutrina alemã
denomina tal regra como Teoria do Maior Favorecimento – Grundstaz der Meitbegünstigung.
Uma breve análise de tais institutos nos permite averiguar que houve apenas uma
junção das teorias, com adaptação e aplicação de seus aspectos mais favoráveis ao recorrente.
No Direito Português arcaico havia preceito semelhante ao princípio ora em
estudo, embora o Código Processual Civil lusitano de 1876 não aludisse à fungibilidade
recursal. Apesar de tal lacuna, as alterações introduzidas no referido Diploma legal permitiam
ao julgador receber um recurso em lugar de outro, quando entendesse possível.
Posteriormente, a teoria do recurso indiferente - também chamada de teoria do
„tanto vale‟ - consagrou-se no Código de Processo Civil português de 1939, em seu art. 688, e
no vigente, como se vê no art. 687, 3, in fine. No Direito brasileiro, este princípio estava
previsto no art. 810 do Código de Processo Civil de 1939, abaixo transcrito:
“Art. 810 – Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será
prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser
enviados à Câmara ou Turma, a que competir o julgamento.”
As condições para a incidência do princípio da fungibilidade, de acordo com o
artigo supra, se centravam na ausência do erro grosseiro ou da má-fé. O erro grosseiro poderia
ser auferido em situações que demonstrassem, de forma clara e inequívoca, qual seria o
recurso cabível, não havendo espaço para qualquer dúvida razoável. O segundo requisito, de
problemática confirmação, deveria ser observado nas situações concretas. Pontes de Miranda2
com o costumeiro brilhantismo, tentou apontar quais seriam as situações indicadoras da máfé: “a) usar do recurso impróprio de maior prazo, por haver perdido o prazo do recurso
cabível; b) valer-se do recurso de maior devolutividade para escapar à coisa julgada formal;
c) protelar o processo se lançar mão do recurso mais demorado; d) provocar apenas
divergência na jurisprudência para assegurar-se, depois, outro recurso”.
O Código de Processo Civil de 1973, visando instituir um sistema recursal
1 Miranda, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil de 1939. 1a. Edição. Rio de Janeiro. 1949. Pág 43,
cit. in. Nery, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5a. Edição. RT. São Paulo. 2000.
Pág. 116.
10
simplificado, deixou de reproduzir tal norma expressamente. Alfredo Buzaid, autor do
anteprojeto do atual Código, afirmou que o art. 810 deixaria de ser inserido, exatamente para
retirar do sistema a possibilidade de se receber o recurso inadequado. Acreditava-se na quase
perfeição do novo sistema recursal, motivo pelo qual não haveria a possibilidade de erro no
momento da interposição do recurso.
Entretanto, hoje não pairam quaisquer dúvidas acerca da existência do princípio
da fungibilidade recursal no âmbito jurídico brasileiro, diante da certeza da imperfeição do
sistema recursal.
3
A FUNGIBILIDADE RECURSAL COMO PRINCÍPIO IMPLÍCITO
Ainda que não esteja prevista expressamente no Código de Processo Civil em
vigor, é inegável a existência e a importância da fungibilidade recursal. Como assinala Thiago
Moraes Bertoldi, “O extremismo em relação à forma pode levar a não entrega da prestação
jurisdicional, em evidente óbice à garantia do acesso à justiça, o que autoriza a aplicação da
fungibilidade recursal.”
Como dito anteriormente, o legislador, de forma prepotente, acreditando que o
sistema recursal instituído no Código de Processo Civil de 1973 beirava a perfeição, deixou
de acrescentar-lhe a norma contida no art. 810 do antigo códex. Contudo, nas palavras de
Marcus Vinicius Rios Gonçalves, “a prática demonstrou que as esperanças do legislador
estavam longe de se realizar. Embora tenha havido uma redução considerável, as
controvérsias não deixaram de existir3.”
O mesmo autor, de forma brilhante, expõe as razões pelas quais o legislador
cometeu tal engano:
“Há uma explicação histórica e sistemática para a omissão da lei atual. No
CPC de 1939 o sistema recursal levava em conta o teor da decisão para
3
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil, vol. II: Processo de
Conhecimento e Procedimentos Especiais.4 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008. P73. 4
11
fixar-lhe a natureza. As que julgavam o mérito eram impugnadas por
apelação, e as que não o faziam, por agravo. Mas eram freqüentes as dúvidas
e controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do recurso
apropriado. O legislador, ciente das dificuldades para a escolha do recurso
cabível, instituiu a fungibilidade, excluindo-a no caso de erro grosseiro.
No CPC de 1973, em sua redação originária, o recurso deixou de considerar
o conteúdo da decisão impugnada para levar em conta sua finalidade de pôr
fim ou não ao processo. Com isso, o legislador imaginou que não estariam
presentes as razões que haviam levado à adoção do princípio da
fungibilidade na lei anterior: não haveria dúvida objetiva a respeito do
recurso apropriado.4”
Em que pese a ausência de norma explícita a respeito do princípio em análise, é
pacífico tanto na doutrina quanto na jurisprudência o reconhecimento de sua existência.
Indaga-se, no entanto, quais os fundamentos jurídicos capazes de amparar a existência da
fungibilidade recursal, tendo em vista a lacuna legal. Neste diapasão, vale lembrar a lição do
mestre Miguel Reale, conceituando os princípios de natureza jurídica:
“(...) são enunciações normativas de valor genérico que condicionam e
orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação
e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo,
tanto o campo de pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização
prática. (...) Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são
princípios, eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando
os consagra, dá-lhes força cogente, mas não lhes altera a substância,
constituindo um jus prévio e anterior à lei5”.
Assim, a hermenêutica estrutural, defendida por célebres doutrinadores, tais como
Rudolf von Jhering, Teixeira
de
Freitas e o próprio Reale, não positivado. Citando
novamente o genial Reale:
“Pois bem, dessa compreensão estrutural do problema resulta, em primeiro
lugar, que o trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva
adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza
4
5
Idem, ibidem, p. 72
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 306/307
12
axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito,
correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se deve ter
presentes os da mesma espécie existentes em outras leis: a sistemática
jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustentava antes, é também
axiológica ou valorativa6”.
Percebe-se, claramente, que, baseando-se na hermenêutica estrutural como forma
de interpretação do direito, torna-se perfeitamente aceitável a existência de princípios não
previstos em lei, pois, como anteriormente explicitado, os princípio são anteriores à atividade
legislativa. A existência de princípios implícitos, como é o caso da fungibilidade recursal,
deduz-se por via a hermenêutica; na internalidade do ordenamento.
Com efeito, cumpre ressaltar ainda a íntima ligação entre o citado princípio e o
princípio da instrumentalidade das formas, que, por seu turno, encontra-se normatizado no art.
244 do atual Código de Processo Civil:
“Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de
nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe
alcançar a finalidade.”
Nas palavras de Humberto Teodoro Júnior: “o ato só se considera nulo e sem
efeito se, além de inobservância de forma legal, não tiver alcançado a sua finalidade7”.
Evidentemente, o Código de Processo Civil privilegia o respeito às formalidades
procedimentais, com vistas a impedir a desordem no processo. Porém, o extremo apego à
solenidade e à legalidade fulminam a própria segurança que se pretende buscar com a
formalidade, pois esta pode levar à ineficiência da prestação jurisdicional. O princípio da
instrumentalidade tem como objetivo a utilidade do processo. Abarca o princípio do "pas de
nullité suns grief" - não haverá nulidade sem prejuízo, bem como o informalismo moderado,
pelo que se o ato, mesmo praticado de uma outra forma, atendeu o objetivo, é válido. A
fungibilidade recursal decorre diretamente do princípio da instrumentalidade das formas, nele
encontrando validade.
Assim julgou o Tribunal de Justiça Paulista:
6
Idem Ibidem, p. 293.5
THEODORO JUNIOR, Humberto. O processo civil brasileiro do limiar do novo século. Rio de Janeiro,
Forense 1999, p.282
7
13
Agravo de instrumento - Ação de reparação de danos - Procedimento
sumário - Recebimento de reconvenção como pedido contraposto - Ausência
de prejuízo - Aplicação dos princípios da fungibilidade e instrumentalidade
das formas - Recurso provido. Apresentada defesa tempestivamente é de se
receber a reconvenção como pedido contraposto, em homenagem aos
princípios da fungibilidade, instrumentalidade das formas, economia e
celeridade processual (TJSP - Relator(a): Reinaldo de Oliveira Caldas
Julgamento: 17/12/2008 Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado
Publicação: 19/01/2009).
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
RESP – PROCESSUAL CIVIL – RECURSO – FUNGIBILIDADE –
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – O processo é instrumento. O judiciário visa
a solucionar o meritum causae. Daí, recomenda-se a fungibilidade dos
recursos, notadamente quando o recorrentese vale da assistência judiciária.
Sabe-se, a instituição, com eficiência, desenvolve seu mister, todavia
oacúmulo de processos, por vezes, não permite atenção mais acurada.
Solução voltada por realização da justiça material. (RESP 118.890 – Rel.
Min. Anselmo Santiago)
Flávio Cheim Jorge expõe as razões para que se aplique a fungibilidade no âmbito
recursal processual civil brasileiro:
“O princípio da fungibilidade dos recursos está ligado ao cabimento recursal,
devendo ser percebido como uma forma de abrandamento do mencionado
requisito, na medida em que se admite a interposição de um recurso pelo
outro, que seria correto contra aquela decisão.O princípio da fungibilidade
consagra, portanto, a possibilidade da parte interpor um recurso que não seja
o adequado para aquela decisão de que se recorre.
[...] Apesar da ausência de previsão legal do princípio da fungibilidade, não
existe dúvida, atualmente, de que o mesmo tem plena incidência em nosso
sistema recursal”8
Destarte, torna-se evidente a aplicabilidade da fungibilidade dos recursos no
8
JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Civeis. 3ª Edição. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2007, p
14
âmbito processual civil.
4
CONCEITO
Fungibilidade significa a “qualidade de poder ser substituída por outra coisa da
mesma espécie, qualidade, quantidade e valor”9. Em termos técnicos, especialmente no que
concerne à sistemática recursal processual civil, conceitua Nelson Nery Júnior, “É o princípio
pelo qual se permite a troca de um recurso por outro: o tribunal pode conhecer do recurso
erroneamente interposto.”10.
Por sua vez, o princípio da fungibilidade indica que um recurso, mesmo sendo
incabível para atacar determinado tipo de decisão, pode ser considerado válido, desde que
exista dúvida, na doutrina ou jurisprudência, quanto ao recurso apto a reformar certa decisão
judicial.
Recurso fungível é aquele que pode ser trocado por outro, em determinadas
hipóteses, desde que ausentes o erro grosseiro e a má-fé. Não se confunde fungibilidade
recursal com mero „escambo‟ de peças. A aplicação do princípio requer boa-fé e tem de se
coadunar com as exigências doutrinárias e jurisprudenciais.
Assim, podemos dizer que o princípio da fungibilidade propicia o aproveitamento
de recurso erroneamente nominado, como se fosse aquele que deveria ter sido interposto.
Entretanto, para que o aludido princípio mereça incidência, é necessária a presença de
determinados requisitos, que passaremos a analisar.
5
REQUISITOS
208
9
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.405
10
NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil
extravagante em vigor. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 953
15
Luiz Guilherme Marinoni11 arrola três requisitos para a aplicação da fungibilidade
recursal. Vejamos:
Presença de dúvida objetiva a respeito do recurso cabível. Como assinala o
autor supra, “A fungibilidade não se destina a legitimar o equívoco crasso,
ou para chancelar o profissional inábil; serve, isto sim, para salvar o ato
que, diante das circunstâncias do caso concreto, decorreu de dúvida
10
objetiva.“ . Deste modo, pode-se perceber que a dúvida não pode, em
nenhuma hipótese, ser de natureza subjetiva, isto é, decorrer das aptidões
pessoais do recorrente. Deve, contudo, emanar do próprio sistema recursal.
Mais uma vez recorrendo às lições de Nery Júnior, temos que a dúvida objetiva
pode ser de três ordens:
O próprio código designa uma decisão interlocutória como sentença, ou
vice-versa, fazendo-o obscura ou impropriamente, como no caso do art. 790
do CPC, revogado pela Lei nº. 11.382/06, que denominava de sentença o ato
do juiz pelo qual decide o pedido de remição de bens na execução; ou
então, como no art. 395 do CPC, ainda em vigor, que designa o ato que julga
incidente de falsidade documental como sendo sentença.
A doutrina e/ou jurisprudência divergem quanto à classificação de determinados
atos judiciais e, conseqüentemente, quanto ao recurso adequado para impugná-los, a exemplo
do art. 318 do CPC, quando se tratar de rejeição
liminar da reconvenção, ou então, na ação declaratória incidental, na forma do art. 325 do
CPC;
O juiz profere um pronunciamento no lugar de outro. Tal hipótese não encontra
guarida no sistema recursal pátrio, que prioriza a finalidade do pronunciamento judicial, e não
sua forma. Entretanto, nos ordenamentos onde a forma prepondera sobre a natureza do ato, o
equívoco do juiz pode, indubitavelmente, ser capaz de gerar dúvida objetiva.
Em todos os casos, como bem observa Marcus Vinicius Rios Gonçalves12, “a
11
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 548
12
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil, Volume II: Processo de
16
dúvida não é de cunho pessoal, confundindo apenas o recorrente, mas geral, o que afasta a
inescusabilidade do erro”.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acompanha o entendimento:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
(LEI N. 1.060/50). CABIMENTO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE
RECURSAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. I – Reconhecida nas
instâncias ordinárias a dúvida objetiva na jurisprudência e na
sistemática processual da época (1993), a respeito do recurso cabível contra
decisão de primeiro grau que indeferiu impugnação de concessão da
assistência judiciária processada em apartado, correta a aplicação do
princípio da fungibilidade recursal, admitindo-se o conhecimento de
agravo de instrumento ao invés da apelação, nos termos do art. 17 da
Lei n. 1.060/50. II – Recurso conhecido e desprovido. (RESP 44.796 –
Rel: Min. Aldir Passarinho Júnior).
Inexistência de erro grosseiro na interposição do recurso. Esse requisito estava
previsto no art. 810 do Código de Processo Civil de 1939, como já explicitado, e veda a
aplicação do princípio da fungibilidade nos casos em que o recurso é interposto em manifesto
desacordo com a lei que determina de maneira expressa qual o recurso cabível. Assim,
configura-se o erro grosseiro a interposição de recurso errado quando o correto encontra-se
expressamente indicado no texto da lei, de maneira clara e inequívoca. Um exemplo clássico
de tal conduta desastrosa é agravar sentença que indefere petição inicial, pois o art. 296 do
CPC refere-se explicitamente à apelação neste caso.
Nessas situações, inerente ao melhor entendimento, é a certeza de que o rigor
extremo na aplicação dos princípios da taxatividade e da singularidade dos recursos
acarretaria uma situação de extrema onerosidade à parte, a qual não poderia ser prejudicada
pelas inevitáveis imprecisões do sistema jurídico vigente. Não assiste razão ao julgador que
castiga o recorrente equivocado, se o equívoco decorre do próprio sistema legal que deveria
ampará-lo.
Conhecimento e Procedimentos Especiais. 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 74
17
Desta forma, vale lembrar mais uma vez as palavras de Marinoni13:
“Assim, embora em certas circunstâncias seja possível admitir a dúvida
objetiva entre algumas espécies recursais (como o agravo e a apelação), não
se pode admitir a incidência da fungibilidade, se o interessado se vale de
recurso completamente incabível na espécie, como seria o caso de algum
recurso constitucional.”
Seguindo este entendimento, o Tribunal do Rio Grande do Sul profere decisão
admitindo apelação em lugar de agravo de instrumento, como se vê:
EMENTA:
APELAÇÃO
EXECUTIVIDADE.
RECURSAL.
CÍVEL.
RECURSO
EXCEÇÃO
CABÍVEL.
ADMISSIBILIDADE.
ÔNUS
DE
PRÉ-
FUNGIBILIDADE
SUCUMBENCIAIS.
INDEVIDOS. 1. A decisão que resolve incidente de exceção de préexecutividade desafia recurso de agravo de instrumento, mas não constitui
erro grosseiro a interposição de recurso de apelação cível. 2. Somente se
admite a condenação relativa à verba honorária diante do acolhimento da
exceção e da conseqüente extinção do feito executivo. No caso dos autos,
prosseguindo a ação executória, tratando-se de mera decisão interlocutória
decidindo incidente processual, é de ser afastada a condenação envolvendo
verba sucumbencial. Recurso provido. Decisão monocrática. (Apelação
Cível Nº 70008854721, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Mario Rocha Lopes Filho, Julgado em 22/06/2004).
De outra banda, a aplicação do princípio em estudo não é unanimemente aceita
em todo o território nacional. Em um mesmo tribunal, percebemos as divergências, conforme
a seguinte decisão:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO FISCAL. EXCEÇÃO DE
PRÉ-EXECUTIVIDADE.
CRÉDITO
IPTU.
TRIBUTÁRIO.
PRESCRIÇÃO
PROSSEGUIMENTO
DE
DO
PARTE
DO
FEITO
EM
RELAÇÃO AOS DEMAIS EXERCÍCIOS. RECURSO CABÍVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. O recurso cabível contra a decisão que
reconhece a prescrição de parte do crédito tributário, determinando o
13
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
18
prosseguimento do feito em relação aos demais exercícios, desafia recurso
de agravo de instrumento. Inaplicável o princípio da fungibilidade
recursal. Apelação não conhecida. (Apelação Cível Nº 70030120331,
Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco
Aurélio Heinz, Julgado em 01/07/2009).
Prazo adequado para o recurso correto. A jurisprudência nacional exige que o
prazo para se interpor o recurso errôneo deve ser aquele do recurso correto, sob pena de ser
configurada má-fé do recorrente. Esta era uma exigência prevista no Código anterior, para que
o recorrente munido de má-fé não se beneficiasse da própria torpeza. Todavia, tal exigência
não mais se configura necessária atualmente, pois, como bem explica Nelson Luiz Pinto14:
“[...] se existe dúvida objetiva a respeito de qual o recurso cabível, parecenos ser o prazo irrelevante, devendo ser obedecido o prazo do recurso
interposto, e não daquele que, segundo o órgão que receberá o recurso,
deveria ter sido interposto. Não se pode, pois, presumir a má-fé do recorrente
que o interpôs dentro do prazo legal para o recurso utilizado.
Na mesma linha de pensamento, Marcus Gonçalves15:
“Não é necessário condicionar a aplicação do princípio da fungibilidade a
que o recurso seja interposto sempre no prazo menor. Se há dúvida objetiva,
é direito da parte optar entre interpor a apelação ou o agravo, no prazo em
que a lei fixa para cada um deles. O juiz, discordando da escolha, poderá
receber um recurso pelo outro, sem temer a má-fé, e inexistirá erro
grosseiro.”
Portanto, não se figura razoável a exigência de tal requisito para a aplicação do
princípio ora em análise.
6
PROCEDIMENTO
Revista dos Tribunais, 2004, p. 548
1414
Manual dos Recursos cíveis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 85
15
GONÇALVES, op. cit., p. 75.
19
A nova sistemática do agravo, ainda que tenha trazido dificuldades práticas à
aplicação do princípio da fungibilidade recursal, não a inviabilizou. Vejamos: é possível que a
parte apele, e que o juízo a quo entenda que o remédio cabível era o agravo. Deve então
determinar que o agravo seja preparado e instruído com as peças necessárias, formando o
instrumento e remetendo-o ao órgão ad quem. Caso o Tribunal receba a apelação como
agravo, não há necessidade de tais providências, visto que o recurso, com a subida dos autos,
já estará devidamente instruído.
O procedimento em instâncias superiores, ainda que mais raro, é passível de
compreensão, mormente quando o prazo dos recursos fungíveis entre si é semelhante. Tal se
percebe claramente na decisão prolatada pelo Ministro Vasco Della Giustina, desembargador
convocado do Tribunal do Rio Grande do Sul:
PROCESSO
CIVIL.
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
FORMAÇÃO
DEFICIENTE. CERTIDÃO DE INTIMAÇÃO. ART. 544, § 1º DO CPC. PEDIDO
DE RECONSIDERAÇÃO. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL.
1. O pedido de reconsideração formulado contra decisão monocrática de relator deve
ser recebido como agravo regimental, tendo em vista a aplicação dos princípios da
fungibilidade recursal, da economia processual e da instrumentalidade das formas. 2.
Não se conhece de agravo de instrumento que não foi devidamente instruído,
ausente a certidão de intimação do acórdão recorrido, peça obrigatória nos termos do
artigo 544, § 1º, do Código de Processo Civil. 3. Agravo regimental a que se nega
provimento. (RCDESP no Ag 1128050/RS RECONSIDERAÇÃO DE DESPACHO
NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2008/0271990-6, Terceira Turma, Superior
Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Vasco Della Giustina, Julgado em
18/06/2009)
Na hipótese de ser interposto agravo, e o relator entender que era cabível
apelação, restituirá os autos ao juízo de primeira instância, para que o recurso seja juntado aos
autos, e processada como tal. Portanto, ainda que tenham surgido alguns óbices à aplicação do
princípio em estudo, são questões práticas de fácil solução, sendo perfeitamente possível sua
aplicação.
CONCLUSÃO
20
O princípio da fungibilidade recursal, ainda que não previsto de maneira expressa
no atual Código de Processo Civil, é aplicável aos casos concretos, eis que se tratando de
princípio implícito não necessita de disciplinamento normativo.
Após a análise dos fundamentos jurídicos ensejadores de tal conclusão,
percebemos que o princípio da instrumentalidade das formas dá condições de existência ao da
fungibilidade recursal, em respeito à lógica e interpretação estrutural do direito.
Destarte, obedecidos os pressupostos doutrinários, imperiosa a aplicação da
fungibilidade recursal, como forma de aplicação de preceitos constitucionais, tais como a
ampla defesa, o contraditório e a celeridade processual.
Atualmente, percebe-se uma forte inclinação dos tribunais em aplicar a
fungibilidade dos recursos de maneira a salvaguardar os interesses do recorrente de boa-fé.
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil, vol. II:
Processo de Conhecimento e Procedimentos Especiais.4 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008.
JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. 3 ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
NERY JÚNIOR, Nelson, WAMBIER, Tereza de Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais
dos recursos cíveis. vol. 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação processual civil
extravagante em vigor. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
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