ABORDAGEM CULTURAL DO TEXTO LITERÁRIO: UMA PROPOSTA DE LEITURA
LITERÁRIA1
Jairton Mendonça de Jesus (Mestre/UFS/IFS)
Formar um leitor capaz de perceber criticamente as nuances que um texto
literário traz, não só em sua estrutura, mas também em sua concepção ideológica, pode
ser um dos caminhos seguidos na escola. Nesse caso, estaríamos concebendo um
leitor apto a assimilar as informações que um texto, implícita ou explicitamente, passa
para seu receptor. Vale dizer que esse já seria um excelente trabalho desempenhado
no seio da escola, se considerarmos o nível de aptidão leitora que comumente são
verificados em testes que avaliam os estudantes brasileiros, a exemplo do Programa
Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa2) e do Indicador de Alfabetismo Funcional
(Inaf3), que refletem a ineficiência do ensino de leitura.
Propomos, entretanto, que a leitura não deve se limitar aos níveis da
compreensão e da assimilação textuais tão somente, mas ir além, colocando o leitor
como partícipe da construção do sentido do texto literário. Nesse sentido, ao
assumirmos tal postura, não defendemos que seja uma solução inquestionável para os
problemas que atingem a escola no que se refere ao ensino de leitura e de literatura.
Ao contrário, esse é apenas um dos possíveis caminhos para atingir o objetivo de formar
leitores críticos e participativos.
Contudo, a formação de um leitor crítico e participativo passa inevitavelmente
pela prática das aulas de literatura, já que esta não se manifesta em sua completude
sem que seu ensino esteja alicerçado na prática de leitura. Isso não quer dizer que o
aluno só deva ler textos literários, ao contrário, a leitura deve ser estimulada em todas
as outras disciplinas do currículo. Contudo, chamamos a atenção para as aulas de
literatura por ser foco de nosso trabalho.
1 Este trabalho traz algumas das ideias da dissertação de mestrado Leitura cultural no ensino de literatura, que foi
desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Magno Santos Gomes, que é professor do Departamento de Letras
do Campus Professor Alberto Carvalho/UFS.
2 Os resultados de 2006 apresentaram os estudantes brasileiros como de nível de entendimento textual dos piores
do mundo. Em 2009, o resultado mostrou uma leve melhoria, embora distante do desejável.
3 O Inaf é um indicador que mede os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira adulta. Seus resultados
informam a sociedade brasileira a respeito das habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática dos brasileiros
entre 15 e 64 anos de idade. Em 2011, de cada quatro brasileiros apenas um dominava plenamente as habilidades de
leitura, escrita e matemática. Dos graduados, 38% foram classificados como analfabetos funcionais, ou seja, somente
62% das pessoas com ensino superior são classificadas como plenamente alfabetizadas. No ensino médio, esse
número era apenas 35%.
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Sendo assim, vale destacar os resultados de algumas pesquisas que analisam
como são praticadas essas aulas. Uma delas, a de Cereja (2005), aponta para uma
prática que mais afasta do que aproxima o aluno da leitura. Segundo ele, “embora
circule nas aulas de literatura um discurso didático sobre o literário, quase sempre nelas
o texto literário propriamente dito é pouco trabalhado e vivenciado pelos alunos” (p. 11).
Um fato muito comum é a presença da literatura na sala de aula de forma
indireta. O texto literário parece ter perdido seu espaço. “O aluno não entra em contato
com a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com
alguma forma de crítica, de teoria ou de história da literatura. Isto é, seu acesso à
literatura é mediado pela forma ‘disciplinar’ e institucional” (MEIRA, 2009, p. 10). Para o
jovem que tem acesso à literatura dessa maneira, ela é antes uma “matéria escolar que
deve ser aprendida em sua periodização do que um agente de conhecimento sobre o
mundo, os homens, as paixões, enfim sobre a vida íntima e pública” (MEIRA, 2009, p.
10).
Na mesma direção, já tinham sido os argumentos apresentados por Cosson
(2006), segundo o qual, no ensino médio, o ensino de literatura limita-se à historiografia
da literatura brasileira em seu sentido mais tradicional. “Os textos literários, quando
aparecem, são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características
dos períodos literários” (p. 21).
A metodologia de leitura pela qual optamos não descarta a historiografia como
método de leitura. Como método de leitura, a historiografia pode nos ajudar a entender
um texto literário dentro de um contexto histórico e de um estilo de época. Entretanto,
não podemos nos limitar a essas informações, pois o texto literário, antes de ser um
objeto de estudo que se encaixe em determinada categoria, deve refletir a vida em
sociedade. Nesse sentido, a interação do aluno-leitor com o texto pode levá-lo a
discussões socioculturais que estão o tempo todo ao seu redor e faz parte, inclusive, de
sua vida pessoal.
Ressaltamos que é por possibilitar essa discussão que esse tipo de leitura pode
fazer com que as ideias, outrora rígidas, se moldem à realidade vivida pelo aluno. Assim,
um dos pontos principais a serem atingidos é permitir, nas aulas de literatura, na escola,
na vida em sociedade, a viabilidade de convivência e respeito à diferença. Isso porque
uma das principais discussões dos estudos culturais é, justamente, a quebra ou
desconstrução de binarismos que se criam socialmente a partir da imposição da
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ideologia de um grupo social sobre os demais – homem/mulher, branco/negro,
heterossexual/homossexual – em que sempre o primeiro elemento se sobrepõe ao
segundo de modo que este não tenha valor. Essa quebra é possível graças às
discussões que podem ser inseridas na sala de aula, tendo como foco de análise o texto
literário.
Por isso, ao optarmos por uma metodologia de leitura do texto literário que leve
em conta as conceituações e ideias dos estudos culturais, entendemos que estamos
mais próximos de uma educação politizada, já que os estudos de cultura podem ser
vistos também como “extensão do campo dos estudos literários” (CEVASCO, 2003, p.
138) e, mesmo antagonicamente, podem trazer uma nova forma de pensar o literário e
a cultura, pois ora são vistos como forma de destruir o valor da literatura, ora como
coadjuvantes da crítica literária.
Pelo primeiro ponto de vista, a exclusão da “alta” literatura traria uma nova
forma de pensar os estudos literários que jamais poderia ser aceita pelos que defendem
a literatura canonizada. Pelo segundo, os conceitos de literatura e de cultura são
repensados. Por esta abordagem, leva-se em consideração uma construção coletiva da
cultura. Portanto, os significados e os valores são construídos por todos os membros de
uma determinada comunidade e não por apenas alguns privilegiados que os constroem
para serem vividos pela maioria.
Na escola, “naturalizou-se” estudar a literatura pelo primeiro viés, em que a
“alta” cultura é vista como “apanágio de uma minoria que vigiaria o campo do humano
e preservaria os valores essenciais da humanidade como estruturados em obras
literárias” (CEVASCO, 2003, 139). Quebrar a dicotomia cultura erudita/cultura popular
não é objetivo deste trabalho, mas poderíamos repensar tais conceitos a partir do
questionamento dos valores que são estabelecidos não por todos, mas por uma minoria
que os impõe à maioria. Sendo assim, não podemos radicalizar afirmando que a cultura
elitista é a “alta cultura”, a “boa cultura”, e a cultura de massa é um “lixo cultural”. Ao
contrário, as dicotomias devem ser problematizadas e repensadas de forma a permitir
o diálogo, pois aquilo que é valioso para um não o é para outro; aquilo que é valioso
numa época, numa outra não o é. Na mesma direção poderíamos discutir os conceitos
de “literatura boa” e “literatura ruim”.
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Sendo assim, utilizar os postulados dos estudos culturais como um suporte
teórico-metodológico de leitura do texto literário pode ser um modo de formar leitores
ativos que leiam o texto não apenas esteticamente, mas também culturalmente.
Avaliar o texto literário dessa maneira possibilita uma dupla habilidade aos
estudantes de literatura: além de aprender sobre a literatura, ao examiná-la
esteticamente, dá-lhe uma formação politizada, ao tratar de assuntos que fazem parte
de sua formação cultural e ao questionar o próprio conceito de literatura.
Ao se falar em ensino de literatura, não podemos deixar de fora os aspectos
sociais que o texto literário traz em seu arcabouço. A partir da estrutura do texto, o leitor
crítico deve desenvolver a habilidade de articular o dentro e o fora do texto, de modo
que não se prenda às construções abstratas da crítica literária como verdades
inquestionáveis.
Como afirmamos, tal forma de estudar o texto literário traz como característica
a politização do leitor. Valores hegemônicos, portanto, em vez de serem tratados como
absolutos, são questionados. Em decorrência disso, o debate se abre para outras
possibilidades de análise que não as tradicionalmente institucionalizadas. “Na
perspectiva dos estudos culturais, o enfoque mudou, a diferença foi para o centro do
debate, deixando de lado o colonialismo cultural. Assim, questões de gênero, de raça,
de orientação sexual e das minorias passaram a fazer parte de uma agenda política”
(GOMES, 2010, p. 330).
Na leitura do texto literário, o leitor crítico deve estar atento não somente às
vozes explícitas, mas principalmente às negadas. Sua tarefa é trazer à tona o projeto
político que cada texto carrega consigo, mesmo que implicitamente. Aqui, sua atuação
é indispensável, pois é a partir de sua leitura cultural que a hibridez entre o estético e o
político se manifestará (cf. GOMES, 2010, p. 331). As especificidades do texto literário
devem ser percebidas pelo leitor de modo que o “como” os elementos culturais são
representados no texto possam aparecer, ficando visível, assim, a relação entre
literatura e aspectos culturais, entre literatura e aspectos sociais.
Por essa proposta de leitura, não há espaço para ideias inquestionáveis, ao
contrário, é preciso que haja uma abertura discursiva que possibilite o diálogo até entre
posturas antagônicas. Por isso, se formar o aluno-leitor levando em consideração
verdades absolutas é difícil, mais difícil ainda se torna quando precisamos questionar
paradigmas já sedimentados na escola sem ter outros para substituí-los. E mesmo que
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os tivéssemos, esse não seria o caminho mais adequado, já que, quando falamos em
educação, estamos falando do próprio ser humano, e, ao fazer isso, não podemos nos
esquecer da mutabilidade que o caracteriza.
O que pretendemos fazer não é trocar um modelo teórico-metodológico por
outro, mas levantar discussões a respeito de como o ensino de literatura atrelado à
prática de leitura pode ser feito na sala de aula, por acreditarmos que essa disciplina,
trabalhada dessa forma, pode ajudar a melhorar não só o nível de compreensão textual
dos alunos, como também sua formação enquanto cidadãos politizados e leitores
críticos.
Assim, a partir daqui nos dedicamos a comentar os aspectos teóricos que
fundamentam esse tipo de abordagem, e um dos pontos inicias dessa discussão é,
conforme anteriormente colocado, a quebra ou desconstrução de binarismos que se
criam socialmente a partir da imposição da ideologia de um grupo social sobre os
demais: homem/mulher; branco/negro; heterossexual/homossexual etc..
Defendemos, assim, que a educação tem a função de questionar a forma como
o poder se impõe, mas não de inserir em seu lugar um outro poder sem renovação, pois,
se assim fizesse, não estaria construindo uma nova realidade, mas apenas alternando
a posição dos sujeitos envolvidos na primeira.
No aspecto da formação crítica, ao formar um leitor capaz de desconstruir as
oposições binárias e problematizá-las, entretanto, é necessário, de início, que se inverta
a hierarquia dicotômica, uma vez que, de acordo com os que analisam a relação de
poder presente nos dualismos, há sempre a sobreposição de um dos termos sobre o
outro.
Um bom exemplo de como funcionaria a desconstrução é dado por Jonathan
Culler em seu texto Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo (1997).
Apesar de ser uma reflexão filosófica e não de leitura literária, o exemplo é bem
ilustrativo. De início, segue o princípio de Derrida segundo o qual “desconstruir a
oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia”
(DERRIDA, 2001, p. 48).
Vejamos que, ao fazer isso, não se tenta substituir os conceitos existentes por
conceitos “mais verdadeiros”, como afirma Hall (2000), mas utilizar os mesmos, só que
agora de forma invertida. Assim, para se fazer uma leitura desconstrutiva, é preciso
trabalhar dentro dos termos do sistema, mas de modo a rompê-los, nas palavras de
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Hall, é preciso colocá-los sob “rasura”. Isso significa que os termos, em sua forma
original, não reconstruída, não podem ser utilizados mais para pensar.
Entretanto, já que não tenham sido “dialeticamente superados e que não
existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe
nada a fazer senão continuar a pensar com eles” (Hall, 2000, p. 104), mas agora em
sua forma desconstruída, isto é, não seguindo mais o paradigma em que foram gerados.
O exemplo que Culler dá é o seguinte: Se alguém sente uma dor, procura logo
a causa da dor. Vendo um alfinete, relaciona a dor ao alfinete. Na relação entre os dois
vem primeiro a dor e depois o alfinete; mas a dor, que é o efeito – portanto, posterior na
ordem cronológica – torna-se a causa de procurar a causa da dor. Sendo assim, para
se produzir uma sequência causal alfinete/dor é necessário que o elemento alfinete seja
conhecido como causa apenas depois do efeito produzido, invertendo-se, portanto, a
ordem.
Podemos afirmar, então, que a relação de causa e efeito não é algo dado como
tal, mas resultado de uma retórica precisa ou de reversão cronológica (cf. CULLER,
1997, p. 100-101). De acordo com Derrida, “a necessidade dessa fase de inversão é
estrutural; ela é, pois, a necessidade de uma análise interminável: a hierarquia da
oposição dual sempre se reconstitui” (DERRIDA, 2001, p. 48, grifo nosso).
Linguisticamente falando, Derrida questiona a posição estruturalista de
Saussure e sugere que o significado está presente como um “traço”. A relação que se
estabelece entre significante e significado4 não é fixa, pois o significado é produzido por
um processo de diferimento ou adiamento, ao qual Derrida dá o nome de différance.
Assim, o significado, que, para o estruturalismo, parece determinado, é, na
verdade, fluido, escorregadio, sem nenhum ponto de fechamento. Isso pode ser
verificado quando consultamos o dicionário. Ao encontrar o significado do significante,
não encontramos senão outro significante, que remete a outro e este último a um outro,
numa cadeia interminável. Ao fechamento e à rigidez das oposições binárias, Derrida
4 Para a teoria saussuriana, significante e significado formam o signo linguístico. O significado corresponde ao conceito
que está relacionado ao significante e este corresponde a uma imagem acústica ou gráfica que direciona para o
conceito. Desse modo, pode-se dizer que o signo é uma entidade de duas faces, o significante e o significado,
intimamente ligadas, que se reclamam reciprocamente quando nos comunicamos. Assim, ao falarmos ou
escrevermos o significante galinha, logo criamos a imagem de uma ave de crista carnuda e asas curtas e largas,
frequentemente criada em capoeiras ou em granjas e muito usada na alimentação humana. Essa parte conceitual é
a outra parte do signo, o significado.
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sugere a alternativa de que o significado está sujeito ao deslizamento (cf. WOODWARD,
2000. p. 53), isto é, ele é sempre adiado.
Na representação discursiva, a identidade passa a ser um significante e não
um significado e como tal não pode ser vista como um conceito pronto e acabado. Vimos
que o significante apresenta significados deslizantes que levam a outros significantes.
Da mesma forma a identidade não se apresenta de forma fixa.
De acordo com Silva (2000), a identidade e a diferença “são o resultado de atos
de criação linguística” (p. 76). Isso significa dizer que não são elementos naturais ou
essências que simplesmente existem e que estão à espera de uma descoberta. Elas
são produzidas no mundo cultural e social. E por serem produzidas podem ser
modificadas, uma vez que, por serem definidas por meio da linguagem, caracterizamse também pela indeterminação e pela instabilidade.
Levar tais ideias para a sala de aula é uma forma de aprimoramento cultural,
social e intelectual do aluno. Se, de acordo com o inciso III do art. 35 da LDB, uma das
finalidades do ensino médio é “o aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico”, necessitamos de uma abertura muito maior no que diz respeito à
formação da capacidade crítica desse educando.
Para que isso se cumpra, é necessário que se execute uma educação reflexiva
desde o início desse nível de ensino. Sendo assim, os conteúdos tradicionalmente
estabelecidos pelas diretrizes nacionais, ao invés de serem estudados como verdades
absolutas, devem ser problematizados, para que se atinja o objetivo de formação do
pensamento crítico e autonomia intelectual do aluno. Tal perspectiva nos leva a refletir
de que forma isso pode ser feito ou até mesmo em quais disciplinas essa finalidade
pode ser alcançada com maior proveito e mais abertura para a discussão.
De antemão, deparamo-nos com a necessidade de formação de leitores
críticos que se insiram num novo contexto social de questionamento a respeito da
realidade que se nos apresenta. Nesse sentido, apesar de em todas as disciplinas haver
a possibilidade de discussões acerca das problemáticas humanas, destacamos a
história, a filosofia, a sociologia e a literatura como disciplinas potenciais. Por ser nossa
área de atuação e de pesquisa, defendemos que, nas aulas de literatura, essa tarefa
pode ser inserida com maior êxito, uma vez que ela trata do humano e pode abrir um
leque de discussões por meio dos textos literários.
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Sendo a formação crítica e reflexiva um dos pilares da educação
contemporânea, como, então, formar cidadãos com tais características senão
problematizando tudo que nos foi imposto socialmente como verdades absolutas?
Aquilo que parece “natural”, “normalizado”, pode vir a ser questionado, discutido e
ensinado como uma construção social.
Historicamente foram construídos os preconceitos tanto étnico-raciais,
comportamentais, relacionados a escolhas culturais, ou até mesmo em relação à
orientação sexual das pessoas. Sob o alicerce de uma sociedade extremamente
patriarcal, a mulher, por muitos e muitos séculos, foi colocada à margem das decisões
sociais. Sua participação se configurava como um ser vivo destinado apenas para a
reprodução, para o cuidado da casa, dos filhos e do esposo. Não podia, assim,
manifestar-se ou participar da vida social. Tais aspectos só podem ser entendidos pelo
paradigma da construção social de tais realidades, uma vez que a própria noção de
gênero é questionável.
O que entendemos comumente por masculino e feminino não pode ser
necessariamente chamado de gênero. Gênero é, antes, o que construímos, sentimos e
conquistamos nas relações sociais. Tal construção se dá pelo contraste da alteridade,
ou seja, pelo confronto com o outro. Entretanto, um dos mais sérios problemas na
definição do conceito de gênero está na associação que se faz, em geral, entre sexo
biológico e gênero social.
Para Grossi (1998), o sexo é uma categoria relacionada à diferença biológica
entre homens e mulheres, e o gênero remete à construção cultural de atributos de
masculinidade e feminilidade. Nesse sentido, a identidade de gênero é uma categoria
pertinente para se pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura (cf. GROSSI,
1998, p. 15), e essa forma de pensar passa inevitavelmente pelo ensino. A escola tem
o papel fundamental de introduzir uma consciência crítica já na formação inicial do aluno
e problematizar tais realidades na prática da sala de aula.
Ao falarmos de tais aspetos conceituais, nosso objetivo é falar de quanto isso
pode ser útil para a educação e para a sociedade. Ao estabelecer as relações de
referência com o outro, o professor introduz uma discussão crítica e o aluno passa a
perceber que depende do outro para ser o que é. Tomado dessa perspectiva, o aluno
logo perceberá que sua visão de mundo é uma visão construída socialmente e que pode
ser mudada; percebe que seus preconceitos e tabus foram inseridos em sua forma de
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pensar como normalidades inquestionáveis e que, a partir disso, pode advir a
intolerância com o outro, com o diferente; percebe que a construção de verdades
absolutas só pode advir quando se elege um valor e não se consideram outros aspectos
da questão. Assim, enaltece-se o que é valorizado socialmente e despreza-se,
incrimina-se quem não faz parte de, ou não concorda com aquele valor eleito.
Fazendo uma releitura dos textos literários que tradicionalmente foram
impostos com uma única possibilidade de leitura, a educação torna possível a formação
de um leitor capaz de se identificar dentro de um sistema de vários discursos e apto a
transitar por esses discursos sem que precise dizer “este é o certo”, “este é o errado”.
Como vimos defendendo, a postura que toma a posição radical do “certo ou errado” é
uma postura que não considera a diferença e por isso precisa se firmar e se impor
perante o outro como sendo o paradigma a ser seguido. O seu corolário é a exclusão e
a marginalidade dos que não compartilham dessa construção simbólica.
Vejamos que essa discussão, ao mesmo tempo em que nos incita, sugere
grandes questionamentos que podem ser discutidos na sala de aula entre professores
e alunos tendo como canal o texto literário. Tal perspectiva é uma forma de envolver o
aluno e instigá-lo ao conhecimento de forma que lhe proporcione uma formação mais
crítica, eclética e menos preconceituosa em relação ao diferente, já que ele perceberá
que todos os valores sociais são construídos socialmente e por isso podem mudar. Ao
tomarmos essa postura, um caminho ideológico se manifesta. A partir de então,
optamos por dar voz a quem não a tem, sem precisar calar os que falam; optamos por
uma luta pacífica em busca de respeito e igualdade entre os membros de uma mesma
sociedade, sem precisar de armas; optamos, enfim, pelo respeito às diferenças.
REFERÊNCIAS
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educação nacional. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9394.htm. Acesso
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Trad.
Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Ventos, 1997.
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RJ: Vozes, 2000.
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1 ABORDAGEM CULTURAL DO TEXTO LITERÁRIO: UMA