Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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A LITERATURA DE FICÇÃO EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL.
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Elúzia Lisboa da Cruz (UFS)
O texto sempre esteve presente nas diversas abordagens dos conteúdos
apresentados em livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental.
Historicamente ele tem sido utilizado por vários autores para o ensino de gramática,
produção escrita e oral apresentado em manuais escolares. Muito embora com o passar do
tempo as suas significações, formatos e autorias tenham mudado, ele ainda é o um dos
maiores alvos das discussões acerca da melhoria no ensino.
Com a chegada dos PCN (parâmetros curriculares nacionais), no inicio dos anos 90,
vemos que esta significação tornou-se ainda mais acentuada. A proposta apresentada neste
documento visa à produção textual como meio fundamental para diminuição de problemas
como o fracasso escolar, repetência, desistência etc. “Sabe-se que os índices brasileiros de
repetência nas séries iniciais — inaceitáveis mesmo em países muito mais pobres — estão
diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever”. (PCN,
p.19-1) Isso nos deixa claro que o problema é da ordem escrita.
A mudança no modelo de ensino apresentado pelos PCN, que procura mostrar a
importância da produção e recepção de textos como agente transformador do
conhecimento, utiliza esta questão como forma de lembrar aos educadores o papel que eles
exercem na aprendizagem de seus alunos. Ainda mais se lhe é de direito também a escolha
dos materiais á serem utilizados em sala de aula.
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Graduanda do curso: Letras Português/ Francês; pesquisadora do PIBIC/CNPq. E-mail:
[email protected]
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Ao lançar a questão no âmbito da Literatura, pensamos logo de entrada que esta é
bastante significativa, pois elas estão sempre presentes nas abordagens dos livros didático,
e principalmente nos campos que dizem respeito a leitura e a escrita. Observando este
detalhe importante percebemos, ao analisar alguns materiais didáticos, que a questão da
literatura de Ficção enquanto gênero textual não tem sido recepcionado e/ou analisada da
maneira mais adequada, é esta questão que trataremos adiante.
O LIVRO DIDÁTICO E AUTORIA
Para que uma obra didática seja recomendada pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) - implementado pelo MEC, com o objetivo de avaliar, adquirir e distribuir
gratuitamente livros a toda rede de ensino fundamental, deve-se apresentar uma
diversidade de gêneros textuais, sendo imprescindível a presença da literatura. Porém, não
é somente a presença de textos literários no material de estudo que garante a qualidade da
aprendizagem e a compreensão do texto pelos alunos.
Partindo do pressuposto de que os autores de livros didáticos são responsáveis pela
escolha do material que será apresentado como proposta de ensino aos professores, e nisto
reside à importância deles neste momento, cabe a estes indivíduos o cuidado com tal
seleção, é preciso pensar que neste momento os conteúdos fazem uma grande diferença.
Todo e qualquer valor atribuído ao material disponível no livro didático influência diretamente
na metodologia de ensino adotado em sala de aula.
Alguns livros didáticos apresentam uma concepção de texto literário com objetivo
deslocado do espaço no qual está sendo apresentado. As narrativas em prosa, os poemas,
as crônicas etc. não são considerados a partir de seu gênero, sua ordem conceitual
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lingüística, são textos utilizados para uma analise conceitual desfavorável. Pensando tal
questão, deve-se levar em consideração que:
“O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições especificas e as finalidades de cada referido campo não
só por seu conteúdo (temático) e pelo o estilo de linguagem... mas,
acima de tudo, por sua construção composicional” (BAKHTIN, 1997,
p. 362)
Nesse sentido o texto literário necessita de uma compreensão que leve em
consideração sua ordem de significado, pois não é um texto qualquer, ele possui uma
filiação teórica e um objetivo enquanto gênero discursivo. Este tipo de texto é parte
importante nas discussões, ainda mais se concebermos no alto de sua utilização.
Para que possamos entrar de fato na discussão onde a literatura é a questão
precisa-se entender que:
"Pensar a literatura a partir de uma autonomia relativa ante o real implica
dizer que se está diante de um inusitado tipo de diálogo regido por jogos de
aproximação e afastamentos, em que as invenções de linguagem, a
expressão de subjetividade, o trânsito das sensações, os mecanismos
ficcionais podem estar misturados a procedimentos racionalizados,
referencias indiciais, citações do cotidiano do mundo dos homens." (PCN,
1997; p.37)
Para o PCN de língua portuguesa a literatura é uma forma especifica de
conhecimento que deve estar incorporada as práticas cotidianas em sala de aula. Esse
primeiro contato com o conceito de literatura deve ser discutido com mais freqüência pelos
críticos responsáveis pela avaliação do conteúdo disposto nos livros didáticos.
CARACTERIZAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO
Por diversas vezes a característica da literatura enquanto gênero textual especifico e
discursivo, não chega à sala de aula, invés disso, os textos literários são utilizados apenas
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para interpretação de texto ou, como se vê na maioria dos livros didáticos de língua
portuguesa, para análise gramatical, sendo, nesse ponto, um pretexto ao ensino da mesma.
Geralmente quando os textos são transpostos para os livros, são esquecidos ou
deixados despercebidos a tipologia, o gênero e até mesmo a origem de tal material. Há
momentos em que percebemos que se houvesse um deslocamento de tal artefato gráfico
não perderíamos em nada na proposta a qual foi dedicado. Para Bakhtin, 1997, “tudo isso é
resultado direto da incompreensão da natureza de gênero dos estilos de linguagem e da
ausência de uma classificação bem pensada dos gêneros discursivos por campo de
atividades.” (p.267)
É importante observarmos que o papel do texto, não só o literário, tem sido tratado
de modo bem especifico pelos autores como forma de introdução a outros conteúdos. É o
que constatamos em livros da 5ª serie do ensino fundamental. Como exemplo
apresentamos um texto da unidade 2 do livro didático da autora Magda Soares, (em anexo)
onde encontramos a leitura de “O mistério do coelho pensante” (Clarice Lispector) e
destacamos alguns detalhes interessantes.
Este texto faz parte de uma das mais conhecidas obras da autora em seu trabalho
com a literatura infanto juvenil, no entanto sua importância enquanto texto literário não é
apresentado da forma devida; é utilizado apenas como recurso a conteúdos da ordem
gramatical. Seu estatuto e tipologia não são levados em consideração, pois é preciso
entender que “em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem a
condições especificas de dado campo; é a esse gênero é que correspondem determinados
estilos.” (BAKHTIN, 1997)
Por isso não devemos ignorar estes detalhes em um texto, do contrario poderíamos
apresentar invés de um texto em prosa uma poesia, e com isso não haveria muita diferença
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nesse deslocamento, pois o trabalho ao qual se propõe o livro não estaria comprometido.
Não há um respeito pelo o lugar do texto, a intenção é apenas o ensino de língua. A maioria
dos textos são descaracterizados ou usados somente para o estudo dos aspectos formais.
Assim acabam esquecendo-se de apresentar uma primeira abordagem onde façam menção
ao gênero e sua especificidade.
Ao analisarmos o texto em questão, percebemos também que em nenhum momento
foram disponibilizadas informações que possam estimular a conversação com seus alunos
sobre a função da literatura. O texto é um gênero narrativo em prosa, esteticamente
apresentado na poesia moderna. Essa tipologia textual necessita do auxilio do professor
para seu entendimento, não só enquanto leitura e tipo particular de gênero textual, mas
também pela a importância que ele possui para o ensino preocupado em viabilizar ao aluno
conteúdos que mostrem o porquê desse tipo de literatura aparecer como formador de
conceito, e ainda, como ele está inserido em seu cotidiano.
A QUESTÃO DA DIVERSIDADE DE TEXTOS E SUA APLICABILIDADE
Inerente ao nosso objeto de trabalho está a concepção da diversidade de textos que
segundo os PCN`s necessita da produção de autores considerados "reais" “pois estes são
textos que favorecem a reflexão crítica e imaginativa, o exercício de formas de pensamento
mais elaboradas e abstratas, os mais vitais para a plena participação numa sociedade
letrada." (PCN,1997 p.30-2) Segundo esse documento o ensino deve estar voltado ao meio
em que o aluno vive, com sua concepção de mundo, as suas crenças e valores. “Cabe,
portanto, à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam
socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los.” (PCN, 1997, p.26-1)
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O trabalho com o texto, desse ponto vista, deve se aproximar do cotidiano do
individuo que o produz. Todo material de ordem textual apresentado em sala de aula deve
pertencer a uma esfera de conhecimento que remeta ao mundo vivenciado e não ao mundo
virtualizado. A questão da utilização do texto literário como recurso para a produção e
reflexão dos conteúdos apresentados em livros didáticos nas series iniciais nos interessa
substancialmente pelo fato de ser esse tipo de texto parte de todo e qualquer material
didático de Língua Portuguesa.
Para M. Bakhtin (1997) os textos literários sempre se mantiveram na história como
um gênero dedicado ao ensino de formas artísticas e padrões de comportamento e de ética,
para certo tipo de sociedade, e isso acabou chegando a nossa civilização como herança da
tendência contemporânea. Estudou-se o gênero literário como um gênero fechado, imposto
apenas a sua existência e significação.
"estuda-se, mais que tudo, os gêneros literários. Mas estes, tanto na
antiguidade como na época contemporânea, sempre foram
estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade das
distinções diferenças intergenéricas (nos limites da literatura), e não
enquanto tipos particulares de enunciados, com os quais, contudo
tem em comum a natureza verbal (lingüística)". (p.263)
Partindo dessa idéia vemos que ela sempre foi acompanhada por muitos educadores
de forma deturpada, pois, a literatura sempre foi vista como um meio de obter condutas
educacionais fechadas e rígidas e não como uma arma para traçar um caminho de um
aprendizado mais interessante e inovador.
Para Bakhtin toda compreensão de um texto implica em uma responsividade, e, por
conseqüência, um juízo de valor. Quando o leitor conhece a obra e sabe da sua importância
ele terá maior capacidade de opinar, criticar, concordar ou discordar, total ou parcialmente.
Quando se compreende um texto, tem-se o dialogo com o texto, mas também com o
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escritor e com outros textos similares, e nisto reside à idéia da plurissignificação presente na
escrita.
Portanto na escolha dos materiais, que deveram seguir padrões de conhecimento
considerados acessíveis ao ensino de língua portuguesa nas séries iniciais, é preciso o
devido cuidado com a definição de um tipo de gênero; apresentá-lo da maneira correta e
respeitar seu estatuto criador.
Se nos são apresentados conteúdos fora do seu padrão ou com formas reformuladas
e reduzidas, em busca de uma espécie de acomodação conceitual, tornará menos possível
a idéia de que o texto é fruto dessa dinâmica apresentada por Bakhtin (1997) para produção
textual. O que ocorre com o texto literário não esta distante disso, as definições que
objetivam o conhecimento desse gênero não são respeitadas, a literatura acaba por
preencher um espaço parcial nos livros didáticos e independente do seu estilo acaba sendo
executado o mesmo ritual apresentado no exemplo dado anteriormente.
Beth Brait (1997) apresenta importantes definições sobre a influência das teorias
Bakhitinianas a respeito da linguagem utilizada nos textos e a maneira como estas
influenciam os conceitos que deveriam ser empregados ao se utilizar um texto literário.
"Na medida em que o conceito de linguagem e de ensino
privilegiado envolve o individuo, história, cultura e sociedade,
em uma relação dinâmica entre produção, circulação e
produção de textos, os conceitos de gêneros discursivos e
tipologias textuais, feitas à devida diferença e observado o
dialogo constitutivo que os une, contribuem para um trabalho
efetivo com a língua e Literatura.” (p.l4-3)
A compreensão do texto é então a soma do texto em si, do juízo de valor do leitor e a
soma de todos os textos já lidos pelo leitor. Não basta que o educando de uma serie inicial
leia apenas, é preciso implantar a consciência de que o que ele está lendo e conhecendo no
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texto não é apenas uma obra que alguém criou, deu forma e que posteriormente está lhe
servindo de conteúdo para sua formação intelectual.
No ato da escolha de um tipo de texto a ser partilhado em sala de aula deve-se
entendê-lo como um articulador de linguagem social e próprio de um lugar da escrita. Tudo
que foi discutido, de forma bem introdutória, traz no fundo uma necessidade de entender a
dinâmica em que são utilizados os diversos textos em materiais escolares e pensando os
questionamentos abordados diria que o trabalho ainda pode ser estendido a outros debates
como, por exemplo, o da colocação de textos de literatura ficcional de autores regionais, no
nosso caso Antonio Carlos Viana, Chico Dantas etc. em livros das escolas de Sergipe e
assim aperfeiçoar a proposta apresentada nos PCN e não perdendo de vista o debate que
deu origem ao trabalho apresentado: a questão do gênero textual e o seu lugar no espaço
escolar.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Secretaria de educação fundamental. Brasil, Parâmetros curriculares nacionais:
língua portuguesa, Brasília, DF, 1997.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
BRAIT, Beth (org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP, editora da
Unicamp, 1997.
LIPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. 2ªed. Rio de Janeiro, Rocco, 1976.
SOARES, Magda. Português através de textos. Moderna, São Paulo, 1990.
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Anexo 01
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a concepção texto literário em livros didáticos do ensino fundamental