Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
O MARCO BABÉLICO DE W. J. SOLHA
Éverton de Jesus Santos (Mestrando/UFS)1
Este trabalho tem como objeto a epopeia Marco do Mundo (2012), do escritor
paraibano Waldemar José Solha, acerca da qual traçaremos algumas considerações
no tocante ao gênero épico e na qual visualizaremos aspectos da estética pósmoderna, visto que ela parece intrínseca não apenas à estrutura, mas também à
variedade de temas e à releitura que a citada obra faz da história e do passado.
Da imaginação de um poeta, metáfora do criador, surge um marco na literatura.
Na verdade, o segundo poema longo de Solha é mais que uma epopeia pós-moderna
capaz de alucinar pelo aglomerado de informações que contém: sua forma fluida
permite uma leitura célere, requer associações as mais diversas, além de apresentar
uma concisa apreciação de fatos históricos, de assuntos ligados à religião, à arte e à
cultura em geral, mas, principalmente, é perceptível o poder da poesia viva, tecida
através da bricolagem, da inserção narrativa, da referenciação e da citação
incansáveis, na incessante busca pela palavra precisamente pensada e usada, tudo
isso com humor, carnavalização e, ao mesmo tempo, seriedade, como se nota na
seguinte passagem, a qual é montada tendo como principal referente as obras de
Shakespeare:
Aí,
chega o projeto da ponte
a las cinco de ontem,
e,
nele,
a megera domada, mais o mercador de Veneza e as alegres
comadres de Windsor cruzam com os dois cavaleiros de Verona, Tito
e Andrônico, Hamlet, Coriolano, Macbeth e os Henriques IV, V, VI e
VII,
Ricardo II, III,
além dos reis Lear e João,
que,
com os trabalho de amor perdidos e muito barulho por nada,
chegam à conclusão – depois de uma ano – de que as tragédias de
Romeu e Julieta, Antonio e Cleópatra
mais Tróilo e Créssida
nada mais são... Do que el sueño de uma noche de verano
(SOLHA, 2012, p. 52).
Este artigo foi orientado pela Profa. Dra. Christina Bielinski Ramalho e traz análises iniciais, as quais servirão de
base para a construção da dissertação intitulada “A estética épica na trilogia de W. J. Solha”.
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Já no que concerne à estrutura ou à forma, observa-se que Marco do Mundo é
um poema longo, que conta com 223 estrofes e 1609 versos, os quais têm variância
de extensão e “cavam, sem problema, a fundação do poema” (SOLHA, 2012, p. 9), ao
que se acrescentam ainda o uso da inserção narrativa, do negrito, do itálico, dos
espaços em branco, do vocabulário mais coloquial, culto ou estrangeiro, além das
marcas de coordenação através da conjunção “e”, seguida, geralmente, pela
expressão “lá vem”, tudo isso compondo a superposição dos pisos e a edificação do
Marco/Poema e instaurando os planos literário, histórico e maravilhoso da obra.
O mote central desse poema dá-se a partir do vislumbre da Babel bíblica – que,
no épico solheano, assume significações contemporâneas –, símbolo da sede de
conhecimento humano na tentativa de alcançar o divino, mas também está implicada
nela a relação com a diversidade que caracteriza a confusão das línguas e dos povos
no contexto daquele evento representado nas antigas escrituras. Pode-se dizer,
inclusive, que é daí que Solha retira a matéria épica de que necessita para a sua
criação poemática.
Uma das considerações iniciais a que me atenho é à significação bíblica da
palavra Babel: Confusão. Que outro sinônimo seria mais profícuo ao Marco de Solha?
Uma confusão ordenada, obviamente, pelo laço da matéria épica, pela construção da
Torre, mas uma miscelânea “pandemônica”, sem dúvida. É que, através da
compilação de episódios e referenciais componentes da história da humanidade –
filmes, pinturas, obras literárias, artistas, religiões, lugares, objetos, ferramentas,
animais, diferentes idiomas e raças –, é possível perceber que a construção do Marco
[entendido aqui tanto como a nova Babel quanto como o próprio poema] é concebida a
partir de variados marcos, sejam eles históricos, literários, culturais, humanos,
políticos, filosóficos, etc. Assim, não é de se estranhar os críticos mormente
descreverem essa obra solheana como uma avalanche, um texto cataclísmico,
caleidoscópico, entorpecente, que parece convidar o leitor para uma leitura sem
pausas, tão rápido e fluido o ritmo articulador do texto, em cujas malhas diversos tipos
de conhecimentos são amalgamados até solidificarem o Castelo desse Cantador,
ainda que o Poeta – o eu-lírico/narrador – se sinta angustiado devido à suposta
escassez da sua inventividade:
Aí, cento e vinte mil guindastes,
noventa submarinos,
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e setecentos mil vapores,
do exagero bizarro de Leandro Gomes de Barros,
e as três milhas de fundura, do Athayde em sua loucura,
fazem com que o Poeta sinta, apesar de tudo – pro seu Marco –
próprio engenho... parco
(SOLHA, 2012, p. 11).
Nesse ensejo, tomando como ponto de partida as exposições anteriores,
situamos o Marco na perspectiva da estética do pós-modernismo, visto que, em seu
ativismo, “a arte pós-moderna [...] atua no sentido de subverter os discursos
dominantes, mas depende desses mesmos discursos para sua própria existência
física: ‘aquilo que já foi dito’” (HUTCHEON, 1991, p. 70). Isso quer dizer que o retorno
ao passado fertiliza o artista pós-moderno, engravida-o de fontes e faz com que, como
fruto dessa concepção, nasça o heterogêneo, o múltiplo, o diferente, o antitotalizante,
como uma forma de subversão contra o detentor do poder, mas, sobretudo, como uma
maneira de conhecer o objeto de que se fala e ocupar um lugar de enunciação que lhe
seja interior, para poder avaliar com mais propriedade, sem que isso venha, por
conseguinte, a liquidá-lo, embora o desestruture.
Com efeito, servindo como instância problematizadora e voz contradiscursiva, o
Marco relê ironicamente textos passadistas – principalmente os de feição bíblica –,
reinterpretando-os. Por ter uma aura que se opõe às ideologias e as contesta, a obra
traz enunciados que são, por conseguinte, reescritos sem a censura institucional e são
reinseridos no projeto épico à disposição dos sentidos atentos dos leitores, como nos
versos que atualizam a questão da seca nordestina: “Vem o momento em que a pobre
viúva estende sua mão,/ pensando na chuva,/ mas alguém lhe põe,/ pra salvação da
alma,/ a moeda na palma” (SOLHA, 2011, p. 65-6). A partir desse olhar irônico,
paródico, autor, texto e receptor, em seu diálogo, tornam-se os vértices de um
triângulo indissociável, visto que a significação depende da comunhão entre a
trindade. E, com isso, assim como a pobre viúva recebe a moeda sem o pedir,
simplesmente por estender a mão para saber se chove, o leitor de Solha acolhe as
piscadelas para se manter alerta, como os finos leitores de Machado de Assis.
Ainda sobre a teorização de Hutcheon, ela enfatiza o tratamento dado pelo
pós-modernismo à ideologia, ao discurso, ao autoritarismo, sendo que não se pode
esquecer de que, como forma de apreensão do mundo, o pós-moderno implica novos
modos de enxergar a história e a textualidade. Por exemplo, vemos que, quando o
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Poeta, instância de enunciação do Marco, se pergunta “Não vê que o poeta é um
deus... com templos que já são museus?” (SOLHA, 2012, p. 29), ele avalia o trabalho
do escritor, do poeta, inscrevendo-o num contexto de criação literária, mas numa
atitude que questiona a própria escritura, pois é como se, ao olhar para a história, ele
visse que a arte está circunscrita ao passado, ao museu do tempo, onde se localizam
os artefatos produzidos e a memória, mas, não obstante, onde se reflete sobre a
existência ou não da necessidade dessa produção.
Já Lipovetsky & Serroy, ao tratarem da existência da hipercultura universal,
dizem que “Nos tempos hipermodernos, a cultura tornou-se um mundo cuja
circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma” (2011, p. 8), como se
apontassem, assim, para o problema da babel globalizada, onipresente. E ela – a
cultura – é “hiper” por envolver o universal concreto e social na conjuntura da vida
pública e nos modos de comportamento do homem consigo mesmo e com os outros e
no seu relacionamento com o mundo.
Em meio à hodierna desordem e ao caos da pós-modernidade, o futuro se
torna duvidoso; o ambíguo, o contraditório e o paradoxal tornam-se irrevogáveis nessa
estética globalizante; as identidades coletivas ou individuais afeiçoam-se às mudanças
ou se fecham a elas. Tudo isso reclama uma intervenção, para que o reconhecimento
do processo ainda em andamento não leve à barbárie, nem ao esquecimento, mas à
propagação dos preceitos de igualdade e de solidariedade entre todas as partes, ainda
que num espaço-tempo impulsionado pelo simulacro.
Com isso, somos levados a dizer que Solha não tenta unificar, no seu Marco, a
pluralidade cultural. E é por isso que sua obra se erige tão completamente enérgica: a
torre é, sim, hiper no sentido de muito, mas, neste caso, ela pode também ser pã, visto
que é uma antologia enciclopédica que reflete o heterogêneo que compõe o mundo.
Vislumbramos uma miríade verbal, um conjunto de frases, músicas, notícias,
interjeições, citações, ditados, referências diretas ou indiretas a um já-dito de escalas
além-fronteiras. Tudo isso vai sendo tecido pelo fio da poesia, mas com uma feição
narrativa, prosaica, já que até a extensão dos versos – sem métrica, que é uma marca
solheana – é variável, possuindo o poema estrofes de mais de trinta linhas ou outras
mais concisas, como essa: “Nem mel, nem sal,/ nem Bem,/ nem Mal” (SOLHA, 2012,
p. 27). Além do mais, a diversidade de línguas que compõe a obra chama a atenção –
há o português, o francês, o inglês, o espanhol, o latim –, num polifônico jogo,
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demonstrando bem a pluralidade e a heterogeneidade da Babel solheana, o que, por
sua vez, seria uma referência direta à confusão dos idiomas, quando da intervenção
divina, conforme consta nas escrituras católicas.
Pelo que se tem falado até aqui acerca da pós-modernidade, não poderíamos
deixar de acrescentar a essa discussão algumas ideias de Stuart Hall (2011), para
quem as identidades atuais estão fragmentadas, deslocadas, perdendo sua
estabilidade. No contexto do Marco, isto seria representado pelo Poeta – eulírico/narrador – que, em seus excursos, deixa que o leitor o veja como feixe de luz e
cores num caleidoscópio: em um sem-número de combinações possíveis, pois ele é,
ao mesmo tempo, perpassado pelo passado, presente e futuro, pela religião e pelo
ateísmo, pelo trivial e pelo elevado, pelo regional e pelo universal, o que coaduna com
o postulado teórico a seguir:
O herói épico pós-moderno é portador de uma identidade heroica
relacional que resulta da relação das diversas subjetividades
superpostas na instância de enunciação do eu-lírico/narrador que, por
isso, pode agenciar os diversos fragmentos históricos e fundir os
percursos das viagens particulares no curso espaço-temporal da nova
viagem (SILVA & RAMALHO, 2007, p.153).
Sendo assim, o Poeta teria muito que ver com o chamado sujeito pós-moderno,
posto que este é concebido como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Esta, por sua vez, passa a ser entendida como uma construção histórica,
não biológica. Segundo o estudioso jamaicano, “O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de
um ‘eu’ coerente” (HALL, 2011, p. 13). Nesse sentido, o fato de estar situado numa
sociedade em que a mudança é constante e permanente colabora para a construção
de uma entidade jamais unívoca, pois interpelada por variados aspectos num mesmo
instante. E isso, quando visto na perspectiva espaço-temporal atual, demonstra a
dinâmica da transfiguração dos sujeitos, o que se reflete também na produção literária,
já que a épica pós-moderna – da modernidade tardia ou da hipercultura, termos
respectivamente de Hall e de Lipovetsky & Serroy – funde em seus heróis, de forma
plurivalente, diversas subjetividades:
Chega um jardim,
pro pavimento ao lado,
suspenso
(no sentido de cancelado)
em que um matemágico pega 1/6 das maçãs e nele as põe,
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menos as que caem no colo de Eva, cabeça de Newton e mãos de
Branca de Neve,
dando-se,
assim,
à luz a gravidez, a gravidade,
e,
o que é mais grave,
a morte da Princesinha,
pela Rainha
ferida em sua vaidade
(SOLHA, 2012, p. 53).
Tendo como base esta citação, vemos que os referentes Eva, Newton e Branca
de Neve, que pertencem, respectivamente, ao imaginário bíblico, cientifico e literário,
são englobados pelo referente “maçã”. Na recontextualização solheana, pode-se ver
um sujeito atravessado por um vasto conhecimento de mundo e que, de forma
astuciosa, torna-se um viajante do tempo, um organizador de fragmentos: “Mas o Eu
da experiência subjetiva não é um Eu individualizado, se a individualização já era
precária na epopeia moderna, onde se dá a diluição da individualidade do herói num
Eu metonímico, na epopeia pós-moderna é impossível” (SILVA, 1987, p. 97).
Tendo visto esse Eu metonímico, que é um ao mesmo tempo em que é todos,
e tendo feito esse percurso por algumas teorizações com relação ao pós-modernismo,
nossas reflexões desembocam, mais uma vez, na epopeia, para falarmos, também,
sobre o Modelo Épico Pós-Moderno, o qual é vinculado à Matriz Épica Moderna.
Marco do Mundo, estando inserido nestas duas categorias, compartilha das seguintes
propriedades:
As principais características do modelo épico pós-moderno são: a
elaboração literária da matéria épica; o centramento do relato no
plano literário; o recurso poético da hétero-referenciação e o recurso
narrativo da hétero-contextualização; elaboração intratextualizada da
proposição de realidade histórica, da estrutura mítica, da ação épica,
da viagem do herói e da identidade heroica, através da superposição
na expressão subjetiva do eu-lírico/narrador, respectivamente, de
diversas proposições de realidade particulares, aderências míticas,
ações épicas, viagens particulares e subjetividades heroicas;
participação plena do eu-lírico/narrador no mundo narrado e a total
liberdade rímica, métrica e estrófica (SILVA & RAMALHO, 2007, p.
155).
Como vemos, a elaboração da matéria épica pós-moderna dá-se mediante o
encadeamento de vários fragmentos hétero-contextualizados/referenciados que são
fundidos tanto à realidade histórica quanto às aderências míticas, o que reforça a
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intervenção criadora na tessitura da epopeia – que também apresenta liberdade no
tocante à estrutura. Quanto ao herói épico, ressalta-se o fato de possuir uma
“identidade heroica relacional”, a qual é resultante da interação entre as diversas
subjetividades superpostas na instância de enunciação, o que o torna metonímico.
Para representarmos essa imbricação da diversidade na figura do herói
trazemos a cacofonia de que trata os seguintes versos:
até que as luzes se apagam, ligam-se os transmissores,
e a cacofonia começa na Sinfonia Fantástica transmitida com a vida
bombástica de Septímio Severo, mais a marcha Mamãe eu quero, a
informação de que Faleceu ontem, às 18:30, no Rio de Janeiro, e a
velha voz de Chico Viola, que canta Brasil, meu Brasil brasileiro,
enquanto rola a bola no Maracanã – Go, Go, Go! – até o prolongado
grito de Goooooooool!, sem que se perca o sabor de se ouvir de um
cantor levado da breca a música sapeca Você não vale nada mas eu
gosto de você, junto do bordão démodé do Bóris Casoy – Isto. É.
Uma. Vergonha!, o que não impede que a declamação em
crescendo de Laurence Oliver se sobreponha, dizendo I said to my
soul/ be still/ and wait without hope Alô alô Repórter Esso, Alô!
et la sortie de crise sera non seulement longue mais chaotique
La donna è mobile/ Qual piuma al vento
El país sufre en los últimos días un repunte de la violência
(SOLHA, 2012, p. 50-1).
Se partíssemos para um trabalho de exegese literária, talvez pudéssemos
destrinchar cada elemento aí contextualizado, fazendo com que a relação entre fontes
e influências se evidenciasse. No entanto, o que queremos mostrar com essa
cacofonia é o modo como Solha se apropria dos ditos dos outros e os combina,
fazendo com que se comuniquem. Além disso, pode-se observar que, no que diz
respeito ao processamento dos recursos formais, semióticos e inventivos, a epopeia
pós-moderna, como a de Solha, toma emprestado à lírica e à narrativa a héteroreferenciação poética e a hétero-contextualização narrativa, respectivamente. A partir
destas, os enunciados são deslocados dos referentes originais e são realocados,
integrando-se ao novo contexto e impedindo, de certo modo, o diálogo explícito com
os textos de onde foram retirados. Com efeito, isso é visível na citação acima, na qual
se demonstram não apenas traços estilísticos do escritor, mas também o conjunto de
significantes que parte do repertório pessoal dele, significantes estes dos quais Solha
se utiliza para a composição da sua epopeia.
Sendo assim, é possível dizer que a intratextualidade decorre, neste Modelo,
do diálogo externo entre duas ou mais obras, quando se observa a relação dos
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fragmentos com o todo. Dessa forma, a hibridação dá suporte, outrossim, à concepção
literária por meio da amarração entre os elementos heterogêneos e multirreferenciais
que constituem a epopeia e se torna, assim, palavra de ordem na pujante
materialidade do poema longo, em plena contemporaneidade, a despeito de muitos
críticos terem afirmado a morte do épico. Aqui, no entanto, falamos em sobrevivência
e perpetuação.
Tanto isso é verdade que atentamos para a reinvenção do épico. As categorias
clássicas – proposição, invocação, divisão em cantos –, bem como os planos literário,
maravilhoso e histórico, longe de terem sido extintos, foram atualizados, a depender
de cada poeta, além de outras importantes alterações:
No modelo épico pós-moderno, a instância lírica assume um domínio
quase absoluto sobre a epopeia, transformando, na concepção de
Silva, o que era uma narrativa épica em uma epopeia lírica. Porém,
embora a instância narrativa não tenha mais uma função estruturante
dentro do texto, ela se manifesta através da função enunciativa, ou
seja, existe uma proposição de realidade histórica de mundo, ainda
que esta tenha perdido a temporalidade histórico-cronológica e
ganhado a temporalidade do presente, e há, obviamente, uma
matéria épica à qual o texto se prende e através da qual se
desenvolve. De forma esparsa e multifacetada, ainda são
perceptíveis as inscrições de personagem, espaço e acontecimento,
categorias, portanto, do discurso narrativo, assim como também se
percebe a unidade princípio/meio/fim que organiza a leitura
(RAMALHO, 2013, p. 25).
Traduzindo isso no contexto Marco, vemos que o eu-lírico/narrador atua em
todo o poema, sendo uma figura central na estruturação dos referentes e na escritura
do relato ao qual parece presenciar como um narrador onisciente. Acrescente-se a
isso que o poema se abre com a queda de Lúcifer e se encerra quando o Poeta dá o
marco por completo, edificado: tais fatos, ao serem permeados pela visão do leitor que
também parece presenciar a construção, ocorrem num tempo presente – ainda que
haja muitas referências ao passado.
Em suma, pode-se dizer que o leitor, ao se deparar com Marco do Mundo,
descobre que não é apenas com pedras que se constrói um marco. O do escritor W. J.
Solha, por exemplo, tem como matéria-prima palavras, ritmos e rimas, substrato este
capaz de edificar uma epopeia de elaborada erudição. Tal monumento artístico, de
acurado labor intelectual, torna-se, por fim, sólido edifício: um marco poético.
Assim, vislumbramos a matéria épica de Marco do Mundo – qual seja, a Torre
de Babel – a partir da ambiguidade que ela carrega (a de ser mito e história). Se a
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tomarmos como real, estaremos lhe atribuindo um valor de “verdade” culturalmente
compartilhada, como num relato histórico; se a tomarmos apenas como elaboração
humana, estaremos lhe conferindo o caráter de literatura, de criação artística. Nos dois
casos, há em comum a difusão – através da religião – das narrativas, simbologias e
visões de mundo que a Bíblia, por mais de dois mil anos, tem reproduzido, com os
mais variados intentos.
Destarte, selecionar esta obra para compor o nosso trabalho é também dizer
sim a uma epopeia pós-moderna que convida a acompanhar os excursos do Poeta por
entre os pisos do Marco/Poema. A superposição de planos, o que sugere a
construção, e o movimento incessante diante dos olhos do leitor, trazem desde
aspectos bíblicos até pagãos; fala-se de gente e de bichos; de coisas e de arte; de
tempos e de espaços. Não raro, o leitor é surpreendido por um chiste (um gracejo, um
dito cômico), um trocadilho, um absurdo, que conferem um ar artificioso e inteligente
ao texto, posto que tanto demonstra a posição ideológica ou contraideológica daquele
que o compôs, como rompe a seriedade do mundo fantasticamente representado.
REFERÊNCIAS
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu
da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11a Ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2011.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria, Ficção.
Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade
desorientada. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
RAMALHO, Christina. Poemas épicos: estratégias de leitura. 1a. ed. Rio de janeiro:
Uapê, 2013.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Formação épica da literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Elo, 1987.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO, Christina. História da epopeia
brasileira. Vol. 1. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
SOLHA, W. J. Marco do Mundo. João Pessoa: Ideia, 2012.
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