Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128
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HOMEM, NATUREZA E CULTURA: UM OLHAR ECOCRITICO
SOBRE OS TEXTOS MUSICAIS DE LUIZ GONZAGA
Maria do Socorro Pereira de Almeida (UFPB)
INTRODUÇÃO
Luiz Gonzaga é um dos maiores ícones da música popular brasileira e o
principal representante nacional da cultura nordestina. Tem um acervo eclético e
rico, tanto em ritmos quanto em letras. Foi o criador do Baião e difusor do chamado
forró pé de serra. Teve 53 parceiros musicais, entre eles, Zé Dantas e Humberto
Teixeira se destacaram por terem acompanhado o rei do baião por mais tempo, com
músicas que caíram facilmente no gosto popular.
Gonzaga sabia o que queria, no entanto não tinha o domínio das letras
precisava de alguém letrado e com talento poético que o ajudasse a externalizar o
que tinha em mente e é aí que entram os parceiros, como afirmou o próprio Gonzaga:
“Eu queria cantar o Nordeste. Eu tinha a música, tinha o tema. O que eu não sabia
era continuar. Eu precisava de um poeta que saberia escrever aquilo que eu tinha na
cabeça, de um homem culto pra me ensinar as coisas que eu não sabia" (MOTA, 2006,
p. 01).
É esse talentoso tradutor da cultura nordestina, um homem do povo, que se
pretende apresentar nesse estudo, na perspectiva da crítica literoambiental. Com esse
intento partiu-se do pressuposto de que, se tudo é natureza e o homem é parte dela,
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há uma relação direta e indireta entre o humano e os outros elementos que a
compõem e a ecocrítica se encarrega de observar como isso se revela, através do texto
literário. No acervo musical do velho Lua, é predominante a presença da natureza,
em especial sobre a cultura nordestina. Assim, através do acervo musical de
Gonzaga, observa-se como se revela a relação home/natureza, sob o aparato teóricocultural, do espaço, da crítica literária e social. Para isso, recorremos aos estudos
geográficos de Yi Fu Tuan e Milton Santos, com o intuito de analisar a relação do
indivíduo com o espaço vivido, bem como a visão de natureza e ecologia. Sem
deixar, no entanto, de nos reportarmos ao contexto da Fenomenologia, uma vez que
tratamos do imaginário humano perante o mundo e a representação das coisas que
nos cercam e que dão sentido a vida.
1 – NATUREZA, ESPAÇO E LUGAR
Refletir sobre a natureza, a princípio, parece simples, mas ao adentrar o
assunto percebe-se uma tarefa complexa que se expressa não só no que vemos e no
que somos, mas também no que percebemos, através dos sentidos e dos sentimentos.
Desta forma, o espaço ambiente é um elo que liga o homem com os outros elementos
e dá visibilidade a diversificação da natureza, e aos seus movimentos e as ações do
homem sobre o que ele percebe como natureza. São esses movimentos e ações que
vão renovando, a cada dia, a face do mundo, dando novas funções aos espaços e
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mudando a percepção humana em relação a eles, numa metamorfose mutua. Nesse
contexto é interessante observar as palavras de Milton santos quando afirma:
Ao papel que o mundo natural é representado pela diversificação da
natureza, propomos comparar o papel que, no mundo histórico é
representado pela divisão do trabalho. Este, movido pela produção, atribui a
cada movimento um novo conteúdo e uma nova função aos lugares. Assim o
mundo humano se renova e diversifica, isto é, reencontra sua identidade e a
sua unidade enquanto seus aspectos se tornam outros. (2006, p. 131)
Para Santos a presença do homem já é uma espécie de diversificação da
natureza, isso mostra que ele vê o homem incluso no processo natural, o que se difere
até certo ponto, do pensamento do homem ocidental moderno que percebe a
natureza como algo externo a ele.
Com relação a unificação homem/espaço/natureza Santos mostra que o
espaço é composto pelo tempo e vice versa. Esse tempo, por sua vez, é resultado da
mobilidade dos eventos naturais ou históricos, os primeiros como a queda de um
raio, por exemplo, que é uma ação pura da natureza e o segundo que depende da
ação do homem como um acidente de carro. Assim, o lugar é formado
caracteristicamente pelos eventos e o homem age em relação a esses lugares
conforme a percepção que tem deles.
No contexto interacional entre homem e espaço é importante observar o que
diz a teoria humanista de Yi Fu Tuan, no livro Topofilia (1980) em que o geógrafo cria
os termos topofilia e topofobia para denominar a relação de afetividade positiva, e
negativa do homem com o espaço. O primeiro significa a afeição e o outro, a aversão
pelo espaço. Abrimos espaço, aqui para criar mais um termo que vem nomear a
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indiferença do indivíduo em relação ao espaço, a topo-apatia, que explica a situação
do sujeito no entre-lugar, termo criado por Silviano Santiago na década de 1970 e, cujo
significado, no contexto atual, vincula-se aos limites difusos da sociedade moderna,
as vertentes culturais que pululam na sociedade contemporânea e ultrapassam
fronteiras, “fazendo do mundo uma formação de entre-lugares” (HANCIAU, 2005, p.
125), que leva o sujeito a participar de muitos espaços, sem criar um sentido de lugar
por afetividade.
Sendo assim, como os textos musicais de Luiz Gonzaga contêm, em sua
maioria, características socioambientais, observaremos como esses espaços são
apresentados nas letras cantadas por ele. Porém faz igualmente importante entender
como funciona a percepção fenomenológica, uma vez que não se pode tratar das
relações humanas com o social e com a natureza sem observar como o humano os
percebe. É interessante observar que Tuan é um estudioso desses sentidos e
sentimentos humanos e foi influenciado por Edmund Russerl.
2 – PERCEBENDO A NATUREZA: A QUESTÃO FENOMENOLÓGICA
Russerl é um dos precursores dos estudos fenomenológicos e deixou muitos
adeptos, entre eles, Merleau-Ponty é um dos que mais se destacam. Ponty vê a
sensação como “algo pelo qual sou afetado e a experiência de um estado de mim
mesmo” (2011, p. 23). Ou seja, algo que sinto, mas que a expressão só é possível
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quando consigo transpor essa sensação para o mundo real e para isso usa-se a símile
com os eventos e ações recíprocas entre os elementos da natureza.
A fenomenologia parte do princípio de que, aquilo que atinge o homem
através dos sentidos e das sensações, muitas vezes não é possível ser traduzido pelas
palavras e é essa forma de sentimento que corrobora para a metáfora e a relação
comparativa que o homem faz de si com a natureza. Nesse contexto, cabe observar
na música Assum preto, a forma como o eu poético relaciona sua dor á dor do pássaro.
O eu poético, tomado pela dor do amor e da saudade, tenta explicá-las através da
situação vivida pelo pássaro. “Também roubaro o meu amor/Que era a luz, ai, dos
óios meus”. Trata-se de duas cegueiras diferentes, a do pássaro é a real, a do eu
poético em sentido figurado, mas ele só consegue traduzi-la a partir da tristeza do
Assum preto, como se o leitor só percebesse a imensidão da dor do eu poético se
conseguisse perceber o que pode sentir o pássaro que perdeu a vista e a liberdade.
Percebe-se também uma relação íntima entre o eu poético e o pássaro, em uma
cumplicidade de sentimentos, expressando aí a fusão humano/não humano, ou seja,
a quebra da fronteira que separa os dois, pela fraternidade de ambos presentefica-se
no texto.
Na teoria da percepção Husserliana, cada coisa com que o humano entra em
contato lhe confere uma sensação ambiental que pode ser positiva, negativa ou
indiferente, essas sensações são personificáveis e subjetivadas pelo sentido humano.
Assim como a luz do sol nas águas do mar pode fazer-me chorar de alegria só pelo
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fato de vê-la, pode passar despercebidamente aos olhos de outros. Dessa forma, os
objetos, assim como os elementos da natureza, existem, mas é a sensação perceptiva
de cada um que vai dar a eles, um determinado valor. Nesse sentido, ”construímos a
percepção com o percebido. E, como o próprio percebido só é evidente, acessível
através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro”
(Merleau-Ponty, 2011, p. 42). Observa-se então, que o fenômeno perceptivo está na
dualidade do real (corpo) e da sensação (espírito). Como se vê nas palavras de
Ponty:
A significação do percebido é apenas uma constelação de imagens que
começam aparecer sem razão. As imagens ou as sensações mais simples são,
em última análise, tudo que existe para se compreender nas palavras, os
conceitos são uma maneira complicada de designá-las e, como elas mesmas
são impressões indizíveis, compreender é uma impostura ou uma ilusão, o
conhecimento nunca tem domínio sobre os objetos, que se ocasionam um ao
outro, e o espírito funciona como uma máquina de calcular que não sabe
porque seus resultados são verdadeiros. (2011, p. 38)
Fica evidente, nesse contexto, a autonomia dos objetos em relação ao
entendível sobre eles. A razão factual nos dá um entendimento e a sensação provoca
o sentimento que interfere nesse entendimento e, consequentemente nas ações dos
indivíduos sobre tais objetos. Dessa forma, Ponty aponta para a formação dessa
percepção fenomenológica:
A alegria e a tristeza, a vivacidade e a idiotia são dados da introspecção e, se
revestimos com eles as paisagens ou os outros homens, é porque
constatamos em nós mesmos a coincidência dessas percepções interiores
com signos exteriores que lhes são associados pelos acasos de nossa
organização. (2011, p. 50)
É evidente a relação das ideias de Tuan e da teoria pontiniana, uma vez que
Tuan discute no livro Topofilia (1980) pontos como: a) Como os seres humanos
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percebem e se estruturam o seu mundo; b)Percepção e atitudes ambientais como
uma dimensão da cultura ou da interação entre cultura e meio ambiente.
Vê-se que a percepção se encontra tanto nas relações do homem com o espaço
ambiente, vistos por Tuan, quanto na forma técnica de como o homem se relaciona
com a natureza em geral e configura os espaços. Nas formas de perceber o mundo e
as coisas o indivíduo se encontra entre o exterior e o interior em que, razão e
sensibilidade caminham juntas, de modo que a primeira abra espaço para a
percepção sensível que é o olhar interior para o mundo. Nesse aspecto, André
Datigues, no livro O que é fenomenologia, no qual discute a base das idéias de
Husserl, observa a percepção fenomenológica da seguinte forma:
A análise intencional, nós vimos, a distinguir entre sujeito e objeto, ou
consciência e mundo, uma correlação mais original que a dualidade sujeitoobjeto e sua tradução em interior-exterior, já que é no próprio interior da
correlação que se opera a separação entre interior e exterior. Mas o acesso a
essa dimensão primordial só é possível se a consciência efetua uma
verdadeira conversão, isto é, se ela suspende sua crença na realidade do
mundo exterior para se colocar, ela mesma, como consciência
transcendental, condição de aparição desse mundo e doadora de seu
sentido. Está aí uma nova atitude que Husserl chamará de atitude
fenomenológica. (1973, p.27)
Entende-se assim, que a fenomenologia se evidencia a partir do momento que
a dualidade humana se “reconfigura” em evidências racionais e sentimentais e estas
últimas se revelam. No texto literário esses aspectos são revelados pelo encontro
entre o teor literário, os olhos do leitor, o eu lírico e os elementos por ele deixados ao
longo do texto. Essa assertiva se ratifica nas palavras de Roman Ingardem quando
diz que “a obra literária não possui um ser autônomo ideal, mas é relativa às
operações subjetivas da consciência” (INGARDEM APUD RAMOS 1974. P. 29) .
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Assim, não é a literatura em si que se expressa ou se encontra com o subjetivismo
interior, mas a literaridade, como observa Ramos ao enfatizar que:
Todos esses fatores de natureza rítmica ou plástica influem inegavelmente
para a devida constituição do poema na consciência, passando de sensações
indefinidas à verdadeiras vivências intencionais de ordem estética. Só assim
acreditamos corresponder ao que Husserl chama de intuição sensível, isto é,
a percepção ou evidenciação da presença “material” do objeto pela
consciência. (1974, p. 82)
A fenomenologia é intrínseca à literaridade, está também na forma como o
crítico percebe este teor literário. Sobre esse aspecto ramos observa que:
De fato a fenomenologia é fundamento para a demonstração científica,
precisamente porque se deixa instruir pela vivência originária em que se
entrelaçam consciência e objeto. [...] o círculo que define a intencionalidadeconceito básico da fenomenologia é assumido pelo crítico na medida em que,
também ele parte de um ato perceptivo que, segundo Dufrenne manifesta
“um sentimento prévio anterior”. (1974, p. 83)
É perceptível que a literatura, em prosa ou poesia, só é possível ser, realmente
observada, através do encontro de eus (eu poético e leitor) e cada um desses eus com
suas inerentes dualidades (razão e sensibilidade) para que haja uma interação de
atitudes que permeiam entre a razão e a emoção.
3 - OBSERVANDO O TEXTO MUSICAL DE LUIZ GONZAGA
Todas as atitudes dos humanos com relação à natureza e tudo que existe é
reflexo da sua percepção em relação a eles. Percepção essa que também atribui
valores a tudo que está ao alcance factual, sentimental ou no imaginário do
indivíduo. É visível nas letras das músicas cantadas por Gonzaga a forte relação do
homem com o espaço vivido em que o espaço, muitas vezes ganha status de lugar,
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fato que remete a teoria Tuaniana de espaço e lugar expressa no livro de mesmo nome
escrito em 1983. Para o autor o espaço passa a ser lugar conforme o grau de
afetividade que se cria com ele, ou seja, é a partir da vivência, e do sentimento criado
em relação ao espaço que este deixa de ser um espaço indefinido e passa a ser um
lugar que estará sempre na memória. Esse olhar tuaniano corrobora com as
perspectivas sertanejas de que só sabe cantar o sertão quem é sertanejo ou pelo
menos habitou o sertão o tempo suficiente para criar com ele um grau de intimidade
que permite olhá-lo, não com os olhos de um observador, mas de quem partilhou de
suas multiplicidades e especificidades. As músicas do Rei do baião mostram essas
perspectivas, como é o caso de No meu pé de serra:
Lá no meu pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai, que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão
No meu roçado trabalhava todo dia
Mas no meu rancho tinha tudo o que queria
Lá se dançava quase toda quinta-feira
Sanfona não faltava e tome xóte a noite inteira [...]
Apesar da vida dura, há um apego do eu poético ao lugar, um lugar de
memória que reflete sua identidade cultural, uma vez que mostra também os
costumes nas suas interações e relações. Assim, a música não traz só as condições
geográficas e culturais do espaço, mas também a forma como o eu poético a percebe,
como seu lugar e para onde deseja voltar.
Na relação do homem com a natureza nas letras de Gonzaga, a presença do
animal é forte e constante. Na música Asa branca vê-se a cumplicidade entre o
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sertanejo e ambiente natural, o homem faz a leitura do tempo através do pássaro que
o avisa da chegada da seca ao se retirar do lugar: “Inté mesmo a asa branca/ bateu
asas do sertão”, fica expressa a condição de igualdade entre o humano e os outros
elementos da natureza, numa relação fraternal. Gonzaga mostra a realidade de um
tempo em que, assim como a asa branca, o sertanejo era obrigado a se retirar do
sertão para não morrer de sede e de fome: “Intonce eu disse/ Adeus Rosinha/
guarda contigo/ meu coração”. Era costume, o homem viajar e deixar a moça
prometida em casamento e, se desse, voltava. Muitos pais de famílias também iam
procurar uma vida melhor com ou sem a família, mas sempre na esperança de voltar:
“Espero a chuva cair de novo/ Pra mim vortar pro meu sertão”. Há um sentimento
de topofilia e a referência, não a um espaço, mas ao lugar de memória. Também se
percebe a dependência do homem em relação a natureza para poder voltar ao espaço
vivido. No final da música: “Quando o verde dos teus oios/ se espaiar na prantação/
eu te asseguro viu/ não chore não viu/ eu vortarei viu/ meu coração” observa-se
que, além da dependência da natureza para voltar, há também a símile entre o verde
dos olhos da amada e o verde da terra, remetendo a uma relação de igualdade entre
a mulher e a terra querida, como se a alegria em ver as duas fosse igual.
Em A volta da asa branca novamente o homem é guiado pelos elementos
naturais: “Já faz três noites que pro norte relampeia/ A asa branca ouvindo o ronco
do trovão/ Já bateu asas e voltou pro meu sertão/ Ai ai eu vou me embora, vou
cuidar da prantação”.
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A forma de o eu poético perceber a natureza fica clara nas duas músicas.
Nessa última o sertanejo vê a hora de voltar pelo aviso da asa branca. A interação
entre homem e espaço ambiente vai se revelando também nos aspectos culturais
expressos na música: “sertão das muié séria/ dos home trabaiador”. A natureza vai
apresentando suas ações ao tempo em que as ações do homem vão acompanhando e
interagindo, numa relação de entendimento mutuo: “Rios correndo, as cachoeiras tão
zoando/ Terra moiada, mato verde, que riqueza/Ai ai o povo alegre, mais alegre a
natureza”. É evidente nas letras a vida da natureza e do sertanejo num entendimento
interacional em que as atitudes do homem é uma consequência da fenomenologia
comportamental da natureza e da forma como ele a percebe:
Sentindo a chuva eu me recordo de Rosinha
A linda flor do meu sertão pernambucano
E se a safra não atrapaiar meus pranos
Que que há, o seu Vigário
Vou casar no fim do ano”.
A fala do eu poético fomenta a sensação do contato com a pele de Rosinha em
símile com o contato com chuva e mais uma vez expressa a sua ação dependente da
ação da natureza e a felicidade do eu poético que está intimamente ligada à chuva e a
safra. Outro aspecto que se observa é que, sendo o casamento um meio de
procriação, a safra é também de produção é como se a ocorrência da população
estivesse ligada a produção da natureza, em seu sentido material.
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A íntima relação do homem com a natureza faz o velho Lua voltar ao tempo e
dar, à sua canção, ares de Cantiga de Amigo1 em que o eu poético confessa à natureza
a saudade do ser amado como o faz em Juazeiro:
Juazeiro, juazeiro
Me arresponda, por favor,
Juazeiro, velho amigo,
Onde anda o meu amor
Ai, juazeiro
Ela nunca mais voltou,
Diz, juazeiro
Outra cantiga faz o eu poético lembrar o ser amado também através da natureza:
Umbuzeiro veio
Veio amigo quem diria
Que tuas folhas caídas
Tuas galhas ressequidas
Íam me servir um dia
[...]
Hoje vivo pelo mundo
Tal o qual o vem-vem
Sobiando o dia inteiro
Quando vejo um umbuzeiro
Me lembro de ti meu bem
O umbuzeiro não é só uma árvore, mas um amigo e é a completude dos
elementos da natureza que comunga com o sentimento do amador. O adjetivo velho
não é a toa, é uma árvore que sobrevive ao sol e a seca assim como o amor do eu
poético sobrevive até o momento. O vem-vem, pássaro cantador, de canto sonoro e
muito apreciado, especialmente pelo sertanejo, mostra também a situação do
cantador que anda de lugar em lugar, cantando para viver e com a esperança de
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Poemas feitos pelos trovadores, no período medieval, mostram a solidão das mulheres abandonadas pelos
amados e suas confissões com o ambiente natural.
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voltar, uma vez que o canto do vem-vem também é para o sertanejo, prenuncio de
chagada da chuva ou de alguém querido.
Em outra música a apologia do cantador ao jumento deixa clara a vida do
trabalhador brasileiro que ajuda no desenvolvimento e não recebe o devido
reconhecimento, daí o olhar fraterno do eu poético para o animal: “É verdade, meu
senhor/ Essa história do sertão/ Padre Vieira falou/ Que o jumento é nosso irmão”.
Em
O
Xote
das
meninas
há
também
a
relação
de
cumplicidade
homem/natureza; “Mandacaru Quando fulora na seca/ É o siná que a chuva chega
no sertão/ Toda menina que enjoa Da boneca/ É siná que o amor/ Já chegou no
coração”[...]. A forma do sentir da menina se encontra com o “fato” da flor do
mandacaru, através da percepção do eu poético numa expressão comparativa entre
humano e natureza. O mandacaru anuncia a chuva e a passagem de uma estação
para outra (verão-inverno) e dá indícios de cheia, de produção e de colheita. As
atitudes da menina sinalizam a passagem de menina para mulher que, assim como a
flor, pode ser “colhida” por um pretendente e a procriação é uma consequência desse
evento. O mandacaru é uma planta aparentemente seca e espinhosa, mas que produz
a delicada e linda flor. O corpo da mulher é “seco” até certa idade, mas com a
puberdade é como o desabrochar da flor e a fertilidade é consequência desse evento
da natureza feminina. Finalizando o estudo, o Xote ecológico traz o olhar crítico do
cantador nordestino em relação ao que o homem está fazendo com a natureza e com
ele próprio:
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Não posso respirar, não posso mais nadar
A terra está morrendo, não dá mais pra plantar
Se planta não nasce se nasce não dá
Até pinga da boa é difícil de encontrar
Cadê a flor que estava aqui?
Poluição comeu.
E o peixe que é do mar?
Poluição comeu
E o verde onde que está ?
Poluição comeu
Nem o Chico Mendes sobreviveu
A natureza se acabando e, consequentemente aqueles que a defendem
também, é o que mostra a alusão a Chico Mendes. Vê-se de forma subliminar a crítica
ao capitalismo que, em nome do que chama de progresso, que alimenta sua sede de
poder, não poupa nada nem ninguém.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do estudo foi possível observar que as letras das músicas de Luiz
Gonzaga trazem a cultura regional de forma que na situação humano/natureza há
uma universalização e uma relação de intimidade e cumplicidade. É possível
perceber que a percepção fenomenológica é inerente a todo ser e que, no caso da
música e da literatura, ela se manifesta através das metáforas que vão sendo
construídas ao longo dos textos e das relações feitas direta ou indiretamente entre o
humano, a natureza e outros elementos de uma forma geral. Outro ponto importante
é o de que o espaço de vivência representa a cultura e a identidade do indivíduo que
com ele cria uma relação de topofilia (amizade) e que, para esse processo acontecer, é
necessário um tempo para que se crie a afetividade, para que o simples espaço passe
a ser o lugar de vivência e de memória. Assim sendo, o olhar líteroambiental ou
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ecocrítico é reverenciado nesse estudo uma vez que foi observada a relação entre
humano/natureza no texto lítero-musical.
REFERÊNCIAS
DARTIGUES, André. O que é fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.
HANCIAL, Nubia Jaques. Entre-Lugar, in Conceitos de Literatura e Cultura. (org.)
Eurídice Figueiredo. Juiz de Fora - MG: UFJF, 2005
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. (Trad.) Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MOTA, José Fábio da. Luiz Gonzaga jamais ofuscou Humberto Teixeira. 2006.
Disponível em
http://www.reidobaiao.com.br/luiz-gonzaga-jamais-ofuscouhumberto-teixeira. Acesso em 23/04/2012.
RAMOS. Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense,
1974.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção. São
Paulo:USP, 2006.
TUAN, Yi Fu. Topofilia. (trad) Lívia Oliveira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1980.
_____. Espaço e lugar. (trad) Lívia Oliveira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1983.
VOZES DO BRASIL. Luiz Gonzaga. São Paulo: Martin Claret,1990.
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