ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 O HORROR DE (RE)CONSTRUIR UMA MEMÓRIA Eline Marques dos Santos (UFS) A memória é a capacidade de reconhecer acontecimentos do passado. É uma forma de representar, ou apresentar fatos ocorridas a partir da ótica do presente. A memória é seletiva, não dá conta de uma totalidade, é plural, uma mesma história pode ser contada de diferentes formas, sem, contudo nenhuma dessas versões serem falsas, pois a memória se relaciona com o esquecimento, e cabe à imaginação ocupar as lacunas deixadas. Essa memória, sempre subjetiva, é a que perpassa o romance Nove noites (2002) de Bernardo Carvalho. Toda a narrativa é composta pela rememoração, tanto relacionada ao registro de uma memória quanto para sua reconstrução, sendo ambas uma forma de preservar uma história que, por uma razão desconhecida e inexplicada, segue para o esquecimento, ficando relegada à lembrança de poucos interessados. Esta narrativa trata do suicídio do antropólogo americano Buell Quain ocorrido no interior do Brasil de forma misteriosa, em 1939. O fato é contado por dois narradores, os quais são diferenciados no texto pelo uso do itálico: Manoel Perna, contemporâneo de Buell Quain; e o narrador-jornalista, que não é nomeado, e tem seu interesse despertado nessa história depois de ler uma reportagem em que o nome do etnólogo é apenas citado. Manoel Perna é um engenheiro que conheceu o americano na cidade de Carolina no interior do Maranhão, onde morava. O etnólogo foi até a região com o objetivo de pesquisar uma tribo dos índios Krahô, entretanto ele se suicida de forma violenta, cortando-se e enforcando-se no meio da floresta no caminho de volta à cidade. O engenheiro conta a sua convivência com Quain para uma pessoa que não se sabe quem é, mas que indica ser o único capaz de desvendar os segredos que envolvem essa morte. O jornalista narra com uma distância temporal de mais 60 anos, em 2001, seu interesse não é tão explicado, mas ele busca resgatar essa história, 1 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 investigando por meio de cartas, testemunhos, documentos e fotos. Esse narrador quer, portanto, reconstruir uma memória que foi visivelmente esquecida, pela imposição do silêncio e do medo. Portanto, a memória é um fenômeno construído, e é em busca dessa (re)construção, desvelando outras memórias, que o narrador-jornalista parte em sua investigação. Assim, buscaremos analisar como a memória atua nessa reconstrução e como ela está associada ao horror, tanto vivenciado pelo antropólogo americano e revivido pelo narrador sem nome, quanto pela própria condição da não demarcação existencial, pois ao fim percebe-se que a real busca é pela reconstrução de si mesmo. A busca pela reconstrução da memória é uma questão predominante em Nove noites. O narrador jornalista, diante do completo esquecimento que a história do antropólogo Buell Quain, se sente intrigado e tenta colher informações que tirem da obscuridade esse violento acontecimento. Pode-se dizer que ele assume o papel de um historiador, o qual, para Pollak (1992, p.8) “se apoia numa primeira reconstrução”. Entretanto, ele esbarra na completa falta de informações confiáveis e do aparente interesse em apagar as lembranças desse passado. No processo de apreensão dessa memória, deve-se levar em consideração que o contado pelo narrador é uma interpretação do passado pela perspectiva do presente, pois como afirma Seligmann-Silva (2008, p.3) a “memória só existe no duplo trilho do passado e do presente”. Portanto, o que há é uma releitura a partir de sua ótica do presente e de suas próprias experiências, as quais são responsáveis por fazê-lo reviver o horror sofrido pelo antropólogo no passado. Em outras palavras, suas próprias experiências tornaram possível as sensações obtidas ao reconstruir a memória. Na primeira página do romance, deparamo-nos com uma informação que se repetirá em toda narrativa: a impossibilidade de saber a verdade, de construir a memória. A verdade é sempre inalcançável, até porque é relativa, pois a desconfiança impera e “paira no ar” um medo que parece estar ligado a uma culpa, que não se sabe do que nem por quê. 2 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 Quando vier a procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição de um mistério, para acabar morrendo de curiosidade (CARVALHO, 2002, p.6) A dificuldade de reconstruir essa memória se relaciona com a dificuldade de exumar o corpo, o qual está enterrado em algum lugar no meio da floresta. Sabe-se onde aconteceu toda a história, entretanto o lugar é muito amplo e não direcionado, por isso “escavar” todos os possíveis túmulos, muitas vezes, o leva a encontrar absolutamente nada, além de mais dúvidas e incertezas. Segundo Seligmann-Silva (2003, p.67), “a memória só existe no plural”, ou seja, ela possibilita diversas leituras do passado. Desse modo, a história pode ser contada de várias formas e é a partir do “embate entre diferentes leituras do passado”, que ela deve ser construída. O narrador-jornalista assume esse papel e vai em busca de registros e testemunhos para recriar o passado e unir as peças desse caso obscuro, motivado por um desejo incansável e, por muitas vezes, obsessivo. Para Pollak (1992, p.2), a memória é “um fenômeno coletivamente construído e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”. Isto é, a memória individual e coletiva nunca é estável e é sempre passível de reconstruções. Entretanto, há traços “relativamente invariáveis”, marcos irredutíveis que asseguram a coerência do que o informante revela. A quase inexistência dessa certa imutabilidade é o que dificulta as investigações e, por sua vez, o conhecimento da memória. Os disparates, as informações desencontradas e as várias versões e possibilidades levantadas aumentam o mistério e faz aflorar a imaginação. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os mesmos sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo as mesmas 3 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 perguntas. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente (CARVALHO, 2002, p.6). As noções de verdade e de mentira são desconstruídas, pois estas são sempre motivadas por um ponto de vista, é mais uma versão. Os índios tiveram contato com Buell Quain e o viram morto, mas o motivo do suicídio também é obscuro para eles, a cada dia as interpretações se modificam, porque as visões são instáveis. Assim, talvez o único fato invariável é o violento suicídio do antropólogo. O narrador-jornalista procura conhecer a totalidade do acontecido, mas só consegue encontrar uma infinidade de versões. Isso ocorre porque, além das “flutuações” características da memória, os meios buscados são diversos, desde cartas trocadas entre Buell Quain e amigos ou familiares, até o testemunho de pessoas que tiveram pouco contato com o etnólogo. Apesar de todos os meios buscados, a totalidade não é alcançada, pois como afirma Seligmann-Silva (2003, p.77) “a memória atua na seleção dos momentos do passado e não no seu total arquivamento”. Nesse sentido, o esquecimento, por constituir e ser característico da memória, prejudica ainda mais o conhecimento dos fatos e impossibilita a apreensão de toda a história. Depois de toda a investigação e a persistência do mistério, a única coisa que pode ser feita é escrever um romance, e é essa a decisão do narrador, pois este vê na produção de uma ficção uma forma de livrá-lo da obsessão que o atormenta, como um “antídoto” que o faria seguir em frente, ao mesmo tempo que registra a memória, impedindo assim o seu esquecimento. Nesse mesmo sentido, trata Seligmann-Silva (2008), sobre a escritura, relacionando à catástrofe: A escritura tem o papel duplo que caracteriza o arquivamento: ela é deposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e armazenamento de dados, mas é também um ato de separação desta memória. No ato de escritura o passado é como que passado adiante. Sofre um desdobramento (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.6-7). O suicídio de Buell Quain aconteceu em uma cidade no interior do Brasil, em uma aldeia indígena e no período da ditadura de Getúlio Vargas. O caso 4 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 não ganhou notoriedade e logo caiu no esquecimento, podemos levantar vários motivos para o caso se encerrar dessa maneira: primeiro por ter acontecido em uma região pouco visada pelo resto do Brasil, e o silenciamento já ser condição integrante desse grupo; outro fato é a próprio momento histórico, que reprimia aquilo que não era conveniente para o poder. Outras questões reforçam essa última possibilidade, como a constante repressão sofrida pelo antropólogo e o fato de ele ter sido obrigado e se retirar repentinamente de uma outra tribo onde pesquisava. Assim, a história do antropólogo foi ignorada, e seu nome rapidamente relegado ao esquecimento, da mesma forma como são esquecidas as tribos indígenas no interior do país, só restando aos familiares e aos poucos amigos lamentar a sua morte. Pollak (1992), ao se referir às vítimas do Holocausto, afirma que o silêncio pode ser uma forma de resguardar-se. Assim como as razões de um tal silêncio parece se impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas, que compartilham essa mesma lembrança “comprometedora”, preferem, elas também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um mal entendido sobre uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar a consciência (POLLAK, 1989, p.6). É possível relacionar essa razão do silêncio aos índios, pois estes por terem sido os últimos a manterem contato com o antropólogo, temiam ser responsabilizados. Entretanto, houve toda uma preocupação nesse sentido, tanto por Quain que deixou uma carta os isentando da culpa, como pela própria cidade, ao apagar o acontecido e voltar a sua normalidade. Portanto, ninguém foi ao fundo dos fatos para encontrar o verdadeiro motivo, muito pela preocupação em ser de alguma forma responsabilizados. O silêncio dos índios parece ser conveniente até mesmo para a mãe do antropólogo, pois em um certo momento é levantada a hipótese de que a insistência em ajudar os índios seria uma tentativa de “comprar o silêncio ou subornar a própria consciência” (CARVALHO, 2002, p.45). Portanto, o silêncio daqueles que poderiam ser considerados vítimas de uma possível acusação, acaba 5 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 sendo de alguma forma pertinente para aqueles que poderiam ter o maior interesse em revelar o ocorrido. O leitor tem acesso a narração de Manoel Perna sobre a convivência com Quain por meio de seu testamento, o qual é deixado para uma pessoa que não se sabe o nome. Esse narrador deixa registrado o seu contato com Buell Quain como uma forma de resguardar toda a história vivida, e livrar da completa incerteza aquele que virá em busca de reconstruir essa memória. Portanto, esse testamento é para ajudar essa pessoa a chegar à resolução dos mistérios. Ele pretende que a memória do suicídio seja reconstruída, por aquele que receberá seu testamento e a oitava carta. Mas nem por isso às informações são claras e precisas, pois, segundo o narrador, ele não pode lhe dar “o que nunca [o] deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar com o imponderável e a precariedade do que lhe conto” (CARVALHO, 2002, p.7). Por ser um relato de suas memórias, a versão de Manoel Perna não pode ser totalmente confiável, pois como ele mesmo afirma, é uma “combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao logo de nove noites” (CARVALHO, 2002, p.41). Mesmo havendo uma tentativa de abarcar o máximo das noites passadas conversando com o antropólogo, a descrição, por depender da memória, será sempre parcial, ela nunca poderá dar conta da totalidade de sua experiência. O horror já assombra o leitor nas primeiras páginas do livro. O clima misterioso e composto por incertezas se inicia desde as primeiras linhas do romance: “vai entrar em uma terra onde a verdade e a mentira não terão os mesmos sentidos que o trouxeram até aqui” (CARVALHO, 2002, p.6). Em seguida, deparamo-nos com a descrição da morte do antropólogo: Que se matou sem explicações num ato intempestivo com uma violência assustadora. Que se maltratou a despeito das súplicas dos índios que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou (CARVALHO, 2002, p.6). 6 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 O horror percorre a narrativa nas descrições do que o antropólogo vivencia com os índios no Brasil e com o seu passado. Dentre os horrores aventados está uma cicatriz que ele tinha no tórax e que é sugerido ser resultado de uma experiência cirúrgica de seu pai, que era médico. Outro caso que também é expressado, é um incesto com sua única irmã, mas também não é dito de forma clara. Ainda há a contaminação com sífilis, que é reiterada em alguns momentos e, por isso, é possível afirmar com um pouco mais de segurança. O que se pode notar é que todos esses possíveis acontecimentos contribuem para a sua angustiante feição e para o desenrolar dos acontecimentos em seu suicídio. O horror em Nove Noites habita também de forma acentuada no universo da não demarcação existencial, caracterizando a sensação de deslocamento do sujeito contemporâneo. Em Buell Quain, esse deslocamento e essa não identificação são responsáveis por sua desestabilização emocional e psicológica e contribui para o seu fim trágico. O deslocamento existente se dá por não haver uma identidade que seja consistente, a qual é uma característica da pós-modernidade. Hall (2011) afirma que essa identidade se constitui de acordo com a representação do mundo, ou seja, “as identidades não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior das representações” (HALL, 2011, p. 49). Talvez, o que falte ao antropólogo é essa representação, que o impede de se sentir pertencente em um lugar, ou seja, uma representação que se relacione com a sua identificação. O horror se relaciona com a memória na medida em que reconstruir a memória é reviver os horrores descritos por Quain em suas cartas. Dessa forma, esse sentimento não está restrito ao ato de violência no suicídio do antropólogo, mas se reconstrói inúmeras vezes, quando os narradores se reportam para os momentos de angústia e desespero pelos quais o antropólogo passou. Com o objetivo de investigar a vida do etnólogo minuciosamente, o narrador-jornalista vai passar alguns dias com a mesma tribo que o antropólogo conviveu anos antes. Esta tribo conserva os rituais que causaram o horror no 7 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 passado e despertam o mesmo sentimento no presente da narrativa. Portanto, a experiência entre os índios é revivida pelo jornalista, convivendo com o horror e sentindo as mesmas angústias que os índios despertaram no passado em Quain. Pode-se dizer que os índios para Quain possuíam uma conotação monstruosa, seus hábitos, costumes e comidas são repugnantes para o antropólogo. Segundo Carrol (1998), o monstro desperta o sentimento de repulsa, pois para que haja horror o monstro deve ser considerado “ameaçador e impuro”. Essa repulsa é vivenciada constantemente pelo antropólogo, que vê os índios como pessoas feias e medíocres. Não gosto deles. Não há nenhuma cerimônia em relação ao contato físico, e assim passo por desagradável por evitar ser acariciado. Não gosto de ser besuntado com pintura corporal. Se essas pessoas fossem bonitas não me incomodaria tanto, mas são as mais feias do Coliseu (CARVALHO, 2002, p.48). Da mesma maneira, os costumes dos índios dessa aldeia também assombraram o narrador, sentindo a mesma angústia vivenciada no passado. Faz ainda com que ele rememore os terrores da sua infância, pois “a representação do inferno, tal como imagino, também fica, ou ficava no Xingu da minha infância” (Carvalho, 2002, p.53). As memórias, portanto, se entrecruzam, se relacionam e se confundem, relacionando suas histórias, experiência e terrores. Observa-se então, que mais de que uma investigação do suicídio de Buell Quain, o narrador-jornalista relaciona com os terrores de sua infância e revisita seu passado. Percebe-se, portanto, que a com a busca da história desse outro, ele reconstrói a si mesmo. Revela-se, assim, mais similaridades com o antropólogo: a não demarcação existencial, observada por essa busca incessante e a convivência conturbada com os fantasmas do passado. Manoel perna, por sua vez, vivenciou o horror experenciado por Buell Quain, por meio de suas longas conversas durante as nove noites. O antropólogo contou nesses diálogos segredos perturbadores de seu passado, histórias assombrosas, as quais, Manoel Perna vivenciava por meio da imaginação, pois, 8 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 como ele afirma: “tudo que ele contava, [...] procurava imaginar. [..]o seu sonho e o seu pesadelo. Seu paraíso e seu inferno” (CARVALHO, 2002, p.41). Depois da morte de Quain, este narrador além de sofrer com o horror da violência, também sofre com o peso do silêncio, da desconfiança e do medo, imprimindo um tom de temor e desespero: “Não me julgue mal. Não teria podido responder nada. O silêncio foi um peso que carreguei durante anos, enquanto estive à sua espera. Já não posso arriscar que tudo desapareça comigo” (CARVALHO, 2002, p.21). O horror tem um poder de atração, capaz de despertar o interesse e curiosidades. Cangi (2006), ao tratar sobre como o horror e a violência relacionado a catástrofes tem poder de fascinar o olhar, destaca como o Holocausto se tornou objeto de uma indústria cultural. Nesse sentido, para este autor, o “problema radical de nosso tempo é a escravidão e a servidão passional do olho na sua busca da encarnação do horror e da violência (CANGI, 2006, p.140). Esse poder de atração pode ter sido um motivo para o interesse desmedido do narrador-jornalista em desvendar essa história, investigando por vários meios, mesmo sem compreender muito bem o porquê. O horror atraiu o jornalista e, por sua vez, atrai o leitor da obra. Carrol, sobre o poder de atração das histórias de horror, afirma que esta “é explicitamente dirigida pela curiosidade. Ela envolve o público tratando de processos de desvelamento, descobrimento, prova, explicação, hipótese e confirmação” (CORROLL, 1999, p. 259). Portanto, esse pode ser o motivo que conduziu o narrador a essa busca e é o que faz com que os leitores se mantenham presos na narrativa, querendo descobrir qual dos horrores descobertos, ou se todos, foram responsáveis pelo suicídio de Quain. Manoel Perna afirma que “as histórias dependem da confiança de quem as ouve e da capacidade de interpretá-las” (CARVALHO, 2002, p.7). Nesse movimento se encontra o leitor de Nove Noites, rodeado de incertezas, buscando unir as informações desencontradas e esperando que a qualquer momento uma informação inesperada ponha fim à angústia sentida. Entretanto, ao final do livro, 9 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 o narrador-jornalista não encontra a carta, muito menos o testamento de Manoel Perna, que o leitor tem acesso. Assim, nesse jogo de construção e desconstrução, o leitor é privilegiado, e apenas a ele cabe a função de construir essa memória. Portanto, o leitor tem um papel acentuado nessa narrativa, porque cabe a ele unir os discursos e as memórias fragmentadas para tentar formar um todo, reinterpretando as informações e montando as partes fornecidas para recriar a memória, tentando unir, de forma seletiva, plural e imaginativa. Nesse sentido, todas as versões, toda a imaginação, as fotos e os documentos nos contam diversas histórias sobre o mesmo acontecimento, cabe ao leitor unir essas informações para tentar fazer uma interpretação e guardá-la em sua memória, em seu repertório de leituras. Nesse sentido, a (re)construção da memória em Nove Noites é central, porque é a partir disso que a investigação se sustenta. E por ser constituída a partir de memórias diversas que há essa inexatidão, são pessoas diferentes que contam suas lembranças, que são convergentes em poucos pontos e não revelam o essencial: o motivo do suicídio. Assim, o que o narrador-jornalista tenta fazer é unir todas as versões, deparando-se com lacunas impreenchíveis Ao final, percebemos que a memória não pode ser exumada, por que uma única verdade não pode ser encontrada, coexistindo versões que muitas vezes não são excludentes, mas complementares. Restando para o narrador enfrentar os horrores vivenciados por Quain e registrá-los para sempre em uma obra literária, extirpando os fantasmas e seguindo em frente. Portanto, Nove noites mais do que se apegar aos mistérios acerca de um suicídio, retrata um mundo que, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se globaliza, se desagrega e essa desagregação é onde reside o horror. À memória cabe o papel de tentar unir, de forma seletiva, plural e imaginativa, e constituir um retrato, sempre, parcial da narrativa. 10 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 REFERÊNCIAS CANGI, Adrián. Imagens do horror. Paixões tristes. In: SELIGMAN-SILVA, Márcio (org). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 139-170. CARROL, Noel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Trad. Roberto Leal Ferreira. 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