Intervenção do Supremo nas Prisões
Carlos Magno Couto
“Respeitem ao menos a dignidade dos acusados. As prisões estão lotadas, sujas de vômitos e
de sangue. Essa nódoa será lavada, um dia, mas os homens que a toleram, os homens que a
aumentam, esses ficarão com o estigma para sempre. E pagarão – um dia – a ignomínia e a
violência. Serão eles os seus próprios verdugos diante do povo e da história”. (Carlos Heitor
Cony)
O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental
por mais de 350 anos, tendo sido também o país que mais tempo resistiu
a pôr fim ao comércio negreiro e o último do continente americano a
abolir a mão de obra escrava, que era uma sólida instituição nacional, que
parecia imune às transformações e aos ventos libertários do século XIX,
como está dito na obra de Laurentino Gomes.
Já o Brasil, dos tempos atuais, figura como a quarta maior
população carcerária do mundo.
Inobstante esse cenário prisional desalentador, cumpre fazer ecoar
aqui, a frase resgatada pelo Ministro do STF Luís Roberto Barroso, do
navegador solitário Amyr Klink, quando ele diz: “O maior naufrágio é não
partir”.
Invoca-se essa passagem para dizer que nosso país encontra-se às
vésperas de finalmente pôr-se a caminho de uma grande transformação
substancial dessa instituição sem direitos, antipopular, bárbara e
desumana, que é o sistema penitenciário do Estado brasileiro, cujo
tratamento dos presos é pior do que o concedido aos animais em
zoológicos, a lembrar feras humanas ou mesmo um autêntico lixo humano
intolerável.
A distorção do sistema é tanta que a prisão é reconhecida por todos
como uma escola profissionalizante do crime, com um percentual de
reincidência estimado em 70%, sob o olhar e o patrocínio do Estado
brasileiro, a ponto do Ministro da Justiça do país José Eduardo Cardoso,
admitir publicamente, que preferiria até morrer a ser preso numa dessas
verdadeiras masmorras medievais.
Em suma, não há no país uma instituição mais incompatível com o
que prevê a Constituição da República do que o sistema carcerário
nacional, de vez que este documento essencial do cidadão brasileiro, que
é a medida de todas as coisas, consagra como princípio fundamental a
dignidade da pessoa humana, proíbe a tortura e o tratamento desumano
ou degradante, veda as sanções cruéis, impõe o cumprimento da pena em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e
sexo do apenado, assegurando aos presos o respeito à integridade física e
moral, além de prever a presunção de inocência, entre outros direitos
fundamentais, tais como a saúde, educação, alimentação e adequado
acesso à justiça.
Foi diante desse ambiente impróprio à existência humana, que o
Partido político PSOL em parceria com a Clínica de Direitos Fundamentais
da UERJ, ajuizou perante o STF, guardião da Constituição, uma ação de
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental objetivando seja
reconhecido o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário
brasileiro, tendentes a sanar as gravíssimas lesões a preceitos
fundamentais da Constituição, decorrentes de condutas comissivas e
omissivas dos poderes públicos da União, dos Estados e do Distrito
Federal, no tratamento da questão prisional do país.
A referida ação segue experiências exitosas de intervenção da
jurisdição constitucional de países como os Estados Unidos, África do Sul,
Argentina e Índia e, muito especialmente da Corte Constitucional da
Colômbia, que impôs aos poderes do Estado a adoção de medidas
tendentes à superação de violações graves e massivas de direitos
fundamentais e supervisão, em seguida, a sua efetiva implementação.
A respeito do tema, a peça inicial sob comento, traz trecho flagrante
e esclarecedor do recente voto proferido pelo Ministro Barroso, em sede
de Recurso Extraordinário, interposto por um condenado que cumpriu
pena no presídio de Corumbá/MS, em condições degradantes, assim
averbado: “(...) o quadro crônico de omissão e descaso com a população
carcerária exige que este Supremo Tribunal Federal assuma uma postura
ativa na construção de soluções para a crise prisional, impulsionando o
processo de superação do atual estado de inconstitucionalidade que
envolve a política prisional do país. Sua intervenção estaria plenamente
justificada na hipótese, porque daria para proteger e promover os direitos
fundamentais de uma minoria que, além de impopular estigmatizada, não
tem voto. Faltam assim, incentivos para que as instâncias representativas
promovam a melhoria das condições carcerárias”.
Cabendo reproduzir aqui, por conseqüência, fragmentos do pedido
definitivo da aludida demanda que poderá marcar o fim de um método
penal de feição medieval, através do STF, de modo a: declarar o estado de
coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, determinar ao
governo federal que elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 3
meses, um plano nacional visando à superação do estado de coisas
inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, dentro de um prazo
de 3 anos, devendo conter propostas e metas específicas para a superação
das graves violações aos direitos fundamentais dos presos em todo o país,
especialmente no que toca à redução da superlotação dos presídios,
contenção e reversão do processo de hiperencarceramento existente no
país, diminuição do número de presos provisórios, adequação das
instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais aos parâmetros
normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço mínimo,
lotação máxima, salubridade e condições de higiene, segurança, efetiva
separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade,
situação processual e natureza do delito, garantia de assistência material,
de segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação,
à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os
presos, contratação e capacitação de pessoal para as instituições
prisionais, eliminação da tortura, de maus tratos e de aplicação de
penalidades sem o devido processo legal nos estabelecimentos prisionais,
adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para
grupos vulneráveis nas prisões.
O plano nacional deve conter, também, a previsão dos recursos
necessários para a implementação das suas propostas, bem como a
definição de um cronograma para a efetivação das medidas de
incumbência da União Federal e de suas entidades, com monitoramento
da implementação do plano nacional e dos planos estaduais e distrital, até
que se considere sanado o estado de coisas inconstitucional do sistema
prisional brasileiro.
Até lá, como pugna o texto sob luzes, espera-se que os juízes
brasileiros e tribunais, reconheçam a aplicabilidade imediata da audiência
de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o
comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas
contadas do momento da prisão, assim como reconheça que o juízo de
execução penal tem o poder-dever de abater tempo de prisão da pena a
ser cumprida, quando se evidenciar que as condições de efetivo
cumprimento da pena foram significativamente mais severas do que as
previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória, de
forma a preservar, na medida do possível, a proporcionalidade e
humanidade da sanção, pois, como enfatizou o Ministro Barroso: “(...) o
tempo de pena cumprido em condições degradantes e desumanas deve
ser valorado de forma diversa do tempo cumprido nas condições normais,
previstas em lei. Parece nítido que a situação calamitosa dos cárceres
brasileiros agrava a pena imposta ao preso e atinge de forma mais intensa
a sua integridade física e moral. Nesse sentido, a redução do tempo de
prisão nada mais é do que o restabelecimento da justa proporção entre
delito e pena que havia sido quebrada por força do tratamento impróprio
suportado pelo detento”.
Para concluir, registro que comecei esse texto com uma advertência
amarga do escritor Carlos Heitor Cony, agora, encerro com sua doce
esperança: “Olhando os horizontes que o cercam o náufrago não saberá
de que lado surgirá a luz. Mas espera. Sabe que a aurora, saída das águas,
de repente ameaçará uma cor de dia. Essa espera justifica a sua luta e a
sua sobrevivência(...). E quando o vento se tornar mais frio, não é hora de
desesperar: é que esse vento anuncia que, de algum canto, com já algum
calor, a aurora surgirá para todos, com suas redenções e claridades. Com o
seu futuro – que é o futuro de todo um povo”.
O autor é Conselheiro Estadual e Presidente da Comissão do Sistema Penitenciário da OAB/MS
Download

Clique Aqui para abrir o arquivo