O Globo - 01/07/2015 Sociedade Expectativa por julgamento no STF que pode descriminalizar uso de drogas divide juristas Ao contrário de defensor, juiz aposta em permanência de penas para usuários POR DANDARA TINOCO 01/07/2015 6:00 / ATUALIZADO 01/07/2015 10:39 O juiz Fábio Uchôa (esquerda) e o defensor público Daniel Lozoya - Fotos de Fabio Rossi e Gustavo Stephan / Agência O Globo RIO - Ao serem perguntados sobre a expectativa em relação ao julgamento do Recurso Extraordinário que trata da descriminalização do uso de drogas e que ocorrerá em breve no Supremo Tribunal Federal (STF), o defensor Daniel Lozoya e o juiz Fábio Uchôa expõem as fortes divergências que polarizam o debate do assunto. — Estou bastante otimista. Tenho confiança nos ministros do Supremo. Recentemente eles têm dado demonstrações de defesa das garantias constitucionais, de forma progressista — afirma Lozoya, para quem a Corte declarará inconstitucional o artigo 28 da Lei 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas, que prevê penas para quem adquire, guarda ou tem em depósito substâncias ilícitas. — Não consigo imaginar que o Supremo tomará uma decisão dessas. Primeiro, porque o artigo não é inconstitucional. Segundo, porque seria um disparate em relação a toda a comunidade mundial — rebate Uchôa, do I Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Enquanto Lozoya integra o movimento que pede a liberação de usuários — no início da semana que vem deve ficar pronto texto de um habeas corpus coletivo que a Defensoria Pública do Estado Rio está redigindo —, Uchôa tem sido um dos principais críticos da iniciativa. — Não há usuários presos — assegura o magistrado, lembrando que as penas previstas pelo artigo 28 são advertências, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas, não prisão. O defensor, no entanto, afirma que, na prática, usuários têm sido classificados como traficantes, processo que colabora para a superlotação do sistema carcerário. — Sob o ângulo estritamente positivista, ele (Uchôa) tem razão. Os autuados pelo artigo 28 não são presos. Mas vê-se que houve um aumento no número de pessoas autuadas por tráfico e uma redução no número de usuários a partir do momento em que a Lei de Drogas foi aprovada. Isso é prova cabal de que há usuários presos. Enquanto o defensor, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, sustenta que a criminalização do uso “viola a esfera de autodeterminação individual”, o juiz sustenta que o argumento de Lozoya é “um sofisma jurídico”. — A pessoa, quando apanhada com drogas, ainda que para uso próprio, é submetida a um processo porque, enquanto essa droga não foi consumida, ela pode se disseminar — opina o magistrado, para quem “no problema de lotação das prisões, há mais folclore que verdade”. — Quando um preso que mora numa comunidade, que pratica crime, vai para a cadeia, ele encontra amigos, ou conhecidos de comunidade, de crime, então não é tão pernicioso assim esse ingresso nesse sistema penal. A possibilidade de que o STF considere inconstitucional a punição do consumo de substâncias psicoativas tem sido alvo de um debate sobre a contradição de permitir o consumo mantendo produção e comercialização à margem da lei. Para Lozoya, a decisão seria apenas a primeira etapa de uma ampla reforma na política brasileira de drogas: —A descriminalização do uso pode permitir também que as pessoas façam o cultivo próprio sem serem criminalizadas e taxadas por isso, o que contribuiria para enfraquecer a criminalidade relacionada ao tráfico. LEIA AS ENTREVISTAS NA ÍNTEGRA: DANIEL LOZOYA, MEMBRO DO NÚCLEO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS Por que o senhor é a favor do habeas corpus coletivo proposto pela defensoria pública para impedir a prisão de usuários de drogas? A ideia do habeas corpus coletivo surgiu dentro do grupo de trabalho que a Defensoria formou esse ano para refletir sobre política de drogas e alternativas. Isso se insere numa questão mais ampla, da política de drogas do Brasil atual, que já existe há pelo menos 30 anos e que foi importada dos Estados Unidos. É uma política de combate, belicista, supostamente de guerra às drogas e proibição total. Essa política tem várias abordagens extremamente problemáticas que demonstram seu fracasso total com relação aos seus fins declarados de reduzir o consumo, o problema da dependência e o tráfico. O Brasil é o pais onde mais se mata no mundo. São 56 mil mortes por ano, e estima-se que até 50% delas têm algum tipo de relação com o tráfico. A repressão violenta ao tráfico e a violência dele geram malefícios incomensuravelmente superiores aos malefícios que a droga traz. Não deixam a pessoa usar determinada substância porque está se cuidando dessa pessoa, mas, a pretexto disso, a polícia entra em determinados locais com um fuzil e causa várias mortes. Outro enfoque é o criminal. Recentemente a população carcerária aumentou vertiginosamente, o que é impulsionado, principalmente, pela nova Lei de Drogas. As prisões relacionadas ao tráfico cresceram 465% em cinco anos, o que leva a um aumento de todos os problemas relacionados a isso: o superencarceramento, as péssimas condições da prisão e a incapacidade de o Estado oferecer condições mínimas para os egressos. Não há como realizar mudanças mais profundas na politica de drogas sem descriminalizar o uso. Na prática, o habeas corpus descriminaliza o uso? Alegamos a inconstitucionalidade do artigo 28 que criminaliza o porte de drogas para uso próprio. As pessoas não podem ser autuadas, levadas à delegacia, processadas criminalmente por conta disso. Queremos a descriminalização via judicial, o que o Supremo pode fazer com efeitos vinculantes, e estamos tentando fazer isso desde a primeira instância. Por que o artigo 28 é inconstitucional? O artigo 28 trata da criminalização do porte para uso. Vários autores já sustentam que a criminalização do uso é inconstitucional por violar a esfera de autodeterminação individual, de intimidade de privada, da separação entre Direito e moral. E há o princípio constitucional da lesividade. Você só pode ser incriminado numa conduta que afete terceiros, que cause prejuízo a outras pessoas. O fato por si só de uma pessoa usar droga não causa mal absolutamente a ninguém, talvez apenas a ela própria. Quais as consequências de se prender usuários e traficantes que não oferecem risco para a sociedade? Os jovens são os alvos principais do envolvimento com o tráfico, o que tem a ver com uma série de fatores sociais, econômicos e culturais. O encarceramento tem diversos efeitos nefastos para a vida pessoal daquele jovem que vai ficar taxado, estigmatizado, terá dificuldade de se reinserir, de conseguir emprego. Há também a questão dos laços familiares. As vezes, ele é uma pessoa que contribui para a família e vai ficar privado de auxiliar nesse sustento. Para a sociedade, há a perda da força de trabalho e os custo do encarceramento. A justificativa do habeas corpus é superlotação das prisões. Quais as soluções para esse problema? Primeiramente, precisamos adotar medidas de contenção do crescimento da população carcerária. Isso causa um impacto nas pessoas nesse momento em que a sensação de violência pode estar crescente ou muito forte nas pessoas, mas a questão é que, no Brasil, o número de homicídios triplicou nos últimos 30 anos, mesmo com a população carcerária tendo aumentado exponencialmente. Aumentar a repressão e o encarceramento não tem surtido o efeito esperado de trazer mais segurança publica, muito pelo contrário. Tudo indica que adotar essa política de encarceramento indiscriminado e massivo contribui para políticas de enfrentamento que geram danos colaterais e mortes de policiais e de inocentes. Precisamos criar critérios mais racionais e mais humanos para encarceramento. Não defendemos que a prisão seja banida para crimes violentos, mas hoje temos uma banalização da prisão. Diz-se que as condições econômicas e a cor de pele são determinantes na classificação por juízes de indivíduos como traficantes ou usuários. O que pensa disso? A polícia prende muito e o Ministério Público e o Judiciário têm um tratamento bastante duro, principalmente em áreas de maior exclusão que são taxadas por serem dominadas por uma suposta facção. A todas as pessoas daquela região é imputado um tipo de envolvimento com droga, e elas recebem tratamento de serem traficantes, o que é uma abordagem bastante preconceituosa. Há uma função não declarada do sistema penal que é a forma que o Estado gere as pessoas de determinada classe social. Já que ele não oferece condições de integração social para determinadas classes, a política é o cárcere, e a droga funciona como um mero pretexto para o encarceramento. Qual a sua expectativa em relação ao recurso extraordinário 635.659, que deve ser votado no segundo semestre pelos ministros do STF? Estou e bastante otimista. É uma posição que a Suprema Corte da Argentina e o Tribunal Constitucional da Colômbia já adotaram. Tenho confiança nos ministros do Supremo. Recentemente eles têm dado demonstrações de defesa das garantias constitucionais, de forma progressista. É contraditório descriminalizar o uso enquanto produção e comércio ainda são ilegais? A descriminalização do uso é a primeira etapa de uma reforma ampla na política de drogas. No entanto, a descriminalização do uso pode permitir também que as pessoas façam o cultivo próprio sem serem criminalizadas e taxadas por isso, o que contribuiria para enfraquecer a criminalidade relacionada ao tráfico. O que acha da prisão de cultivadores de maconha? É um exemplo claro de que usuários ainda são presos. O juiz Fabio Uchoa diz que não há usuários presos. O que acha disso? Sob o ângulo estritamente positivista, ele tem razão. Os autuados pelo artigo 28 não são presos. Mas, ao analisar sob ponto de vista de como o sistema penal opera real e concretamente, vê-se que houve um aumento no número de pessoas autuadas por tráfico e uma redução no número de usuários a partir do momento em que a Lei de Drogas foi aprovada. Isso é prova cabal de que há usuários presos, a menos que a lei tenha alterado o livre mercado, o que nao é crível. Uma lei que definisse objetivamente a quantidade para diferenciar usuário e traficante seria útil? Sou favorável a isso, porque haveria uma segurança jurídica para as pessoas. Seria um critério razoável para evitar prisões de pessoas que respondem por o tráfico sendo usuários. Há o argumento de que as pessoas passarão a portar quantidades pequenas para comercializar, mas essa questão é uma mudança de paradigma. O objetivo da política de drogas não deve ser prender as pessoas, deve ser cuidar delas. FÁBIO UCHÔA, DO I TRIBUNAL DO JÚRI DO RIO Por que o senhor é contra o habeas corpus coletivo proposto pela defensoria pública para impedir a prisão de usuários de drogas? No Brasil, não existe ninguém preso por ter drogas para uso próprio. A lei penal brasileira não prevê essa modalidade de ilícito. Alguns advogados questionam o dispositivo legal que prevê a criminalização, embora sem pena de prisão, da posse do entorpecente para uso próprio. Eles passaram a entender, num sofisma jurídico, que o artigo 28 da Lei de Tóxicos invade a privacidade da pessoa. É evidente que não. Ninguém é punido por estar usando drogas. A pessoa, quando apanhada com drogas, ainda que para uso próprio, é submetida a um processo porque, enquanto essa droga não foi consumida, ela pode se disseminar. E, digo mais: quase sempre ela se dissemina. Então, para o senhor o artigo 28 não é inconstitucional? De forma alguma. Na prática, o habeas corpus descriminaliza o uso? Completamente. Na verdade, significa permitir o uso indiscriminado de qualquer droga. Crack, cocaína, heroína, morfina, todas as drogas. As pessoas gostam muito de falar que tem de haver tratamento, mas a grande maioria das pessoas que fazem uso de substâncias entorpecentes não são doentes mentais, nem dependentes, elas usam a droga recreativamente. Muita gente o faz por opção, por prazer, por deleite, e não por dependência, por vício, por estar dominando por aquela substância. Há pessoas, sim, nessa hipótese, mas elas estão absolutamente isentadas de pena e são tratadas como doentes mesmo num caso de tráfico. E mais: em país algum do mundo há essa liberação de drogas. Alguns países liberam a maconha, outros liberam o uso em determinado local restrito, apenas para garantir a segurança e a saúde do viciado. A justificativa do habeas corpus é a superlotação das prisões. Quais as soluções para esse problema? No problema de lotação das prisões, há mais folclore que verdade. A começar que não se sabe exatamente qual o critério adotado para dizer que, em determinada prisão cabem 50 ou 60 pessoas. Em segundo lugar, aqui no Estado do Rio, por exemplo, embora se diga que todas as prisões da Seap estão todas superlotadas, nelas há espaço adequado. Há muitos presos dentro da cela, mas ninguém está passando falta de ar, ninguém tá ficando doente por causa disso, ninguém está dormindo em pé. Quando um preso que mora numa comunidade, que pratica crime, vai para a cadeia, ele encontra amigos, ou conhecidos de comunidade, de crime, então não é tão pernicioso assim esse ingresso nesse sistema penal. Não é uma tristeza total. Então, não há necessidade de esvaziar as prisões? As cadeias que são tidas como cadeias públicas, os presídios, aqueles que concentram os presos provisórios até serem distribuídos para as unidades, realmente são as que têm maiores dificuldades. Mas muita gente fala das cadeias sem nunca tem ir ido a uma. Claro que se puder ter maior espaço, é melhor, mas a regra aqui no Estado do Rio não é esse desespero que se diz de superlotação. Quais as consequências de se prender usuários e traficantes que não oferecem risco para a sociedade? Se a lei diz que cometer determinada conduta importa numa pena de prisão, essa pessoa tem de estar presa. Nós temos uma situação muito confortável para aquele que comete um crime. Há um entendimento vigente hoje, ao meu ver totalmente equivocado, de que só se pode prender o réu quando há motivos pra prisão preventiva. O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), sempre invocado pelos garantistas para criar uma série de supostos direitos. Mas a convenção diz que a presunção da inocência deve ser vista até prova em contrário. Até prova em contrário é alguém acusando ali, uma imagem ou outros meios de provas existentes no processo que mostram que a pessoa não é inocente. Qual a sua expectativa em relação ao recurso extraordinário 635.659, que deve ser votado no segundo semestre pelos ministros do STF? A minha expectativa é que o Supremo vai dizer isso tudo que estou dizendo: que o artigo 28 não viola em nada a intimidade ou a privacidade de ninguém. Ninguém está sendo punido por estar consumindo alguma coisa, está sendo punindo por ter em mãos determinada substância que pode se disseminar em outras pessoas. Na ótica desse argumento, se diria que é uma invasão de privacidade prender aquele que estiver com uma arma na mão. Caso o STF entenda que o artigo 28 é inconstitucional, é contraditório descriminalizar o uso enquanto produção e comércio ainda são ilegais? Claro. Mas não consigo imaginar que o Supremo tomará uma decisão dessas. Primeiro, porque o artigo não é inconstitucional. Segundo, porque seria um disparate em relação a toda a comunidade mundial. O que acha da prisão de cultivadores de maconha? A nova lei deu um tratamento mais brando para esse cultivo de maconha. Esse tipo de plantio tem de ser valorado caso a caso. Porque muitas vezes é uma plantação para tráfico mesmo, em pequena escala. Mas é uma situação bastante delicada, que deve ser vista com bastante atenção. Uma lei que definisse objetivamente a quantidade para diferenciar usuário e traficante seria útil? Não. Em determinados lugares, o tráfico é feito com dois papelotes de cocaína. Quando a polícia aborda o traficante, ele diz que são para uso próprio. Do jeito que é hoje, sem fixar a quantidade de entorpecente, a classificação ocorre de acordo com as circunstâncias de cada caso. Fala-se que as condições econômicas e a cor de pele são determinantes na classificação por juízes de indivíduos como traficantes ou usuários. O que pensa disso? Já ouvi esse discurso, mas na prática, não acontece nada disso. O juiz, de um modo geral, lida com papel. Tirando a audiência, em que ele vê a fisionomia do réu, e às vezes nem vê. Nunca foi à qualificação do réu ver se ele é preto, branco amarelo, qual a cor dele. Acredito que todo juiz aja da mesma forma. Esse discurso de que só preto e pobre que vai pra cadeia também é hipócrita. Esses grandes traficantes são pobres? O senhor diz que não há usuários presos, mas defensores do Rio afirmam que eles são encarcerados ao serem classificados como traficantes. O que acha disso? Não há usuários presos. As vezes acontece de a autoridade policial encontrar determinado indivíduo com drogas e, por algumas circunstâncias, entende que aquilo era para tráfico. As vezes ele está com uma pequena quantidade de drogas, mas num lugar de tráfico, com radiotransmissor e pistola na mão. A autoridade policial encaminha o flagrante para o juiz, onde mostra todos os fundamentos que viu para justificar aquela prisão. Se o juiz entender que está errado, relaxa a prisão e encaminha aquele flagrante para o Ministério Público, que vai fazer um novo juizo de valor, em cima daquilo que foi dito pelo delegado. Se o promotor diz que realmente é tráfico, oferece a denúncia, que vai para o juiz novamente. Ele analisa aquilo tudo de novo. No final, diante das garantias da ampla defesa, do contraditório, no final, se acha que pode ser tráfico, mas também pode não ser, desclassifica para o uso. Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/expectativa-por-julgamento-no-stf-quepode-descriminalizar-uso-de-drogas-divide-juristas-16616143