Entrevista com Ana Carla Souza Silveira da Silva (CRP 05/18427), conselheira do
CRP-RJ e psicóloga da Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro e
da Secretaria de Estado e Administração Penitenciária/RJ.
1) Quais as variáveis que mais influenciam na continuidade das instituições
prisionais como alternativa privilegiada de controle da criminalidade?
As instituições prisionais são recursos que tiram do convívio social pessoas que violam
regras sociais e que não são aceitas pelos grupos majoritários. As prisões têm servido
como espaço para receber parte da população, que em sua maioria, tiveram pouco ou
nenhum acesso a políticas públicas, como saúde, educação, trabalho, cultura e
habitação, ou seja, acesso a direitos de cidadania. Desse modo, as instituições prisionais
vêm recebendo uma “clientela” que, geralmente, conta com poucos recursos financeiros
e é socialmente frágil, principalmente em relação a sua rede comunitária. Tais
instituições não são alternativas de controle: elas são o auge do controle, pois visam
retirar a liberdade das pessoas, contribuindo para vivência das pessoas em situações de
menos valia, humilhação, massificação, indiferenciação, castigo, produção de culpa,
assujeitamento, diminuição de oportunidades... Assim, sob o modelo da pena e do
castigo, as prisões vem se afirmando como lugares de violação de direitos, em que o
Estado deixa de cumprir com seu papel de proteger aquele que está sob sua guarda.
2) Quais são os pressupostos e as ideologias que estão envolvidas na sustentação da
lógica da privação de liberdade?
É possível sugerir que a lógica da privação de liberdade se ampara na individualização
do sujeito, desconsiderando seu contexto de vida, sua história. A entrada na prisão cria o
estigma do criminoso, e tal marca sempre acompanhará qualquer um que esteja ou eu
tenha sido preso. De pessoa, o preso passa a ser criminoso, e, dessa maneira, passível de
ser investigado, analisado pelo seu ato, reduzido à situação do crime ou ao seu histórico
criminal. A marca de criminoso supera a de pai, marido, filho, neto, trabalhador, ou
qualquer outra marca presente na sua história. O preconceito acompanha o sujeito
mesmo quando este se encontra liberto. A marca do crime quase sempre se sobrepõe nas
novas relações. Fala-se do sujeito, mas não da forma como este é tratado, como vive no
cárcere, em quais condições sobrevive para manter ‘bom comportamento’ e um dia ter
sua liberdade, segundo os critérios da lei. As instituições prisionais são instituições
totais, que tolhem direitos e ajudam para que, ao longo do tempo, os laços sociais se
percam, e que não viabilizam acessos no momento da liberdade do sujeito. Muitos ao
sair da instituição percebem que sua desfiliação social aumentou, e não possuem mais
redes de contato, vínculos ou referências.
3) De que maneira práticas como o exame criminológico se relacionam com a idéia
da responsabilidade do comportamento criminoso ser única e exclusivamente do
sujeito?
O exame criminológico pode ser visto como um recurso para descrição do sujeito,
focado no ato do crime, da ilegalidade social cometida. Muitas vezes, a história do
sujeito é colhida apenas para justificar a atitude criminal. No momento do exame, que
comumente ocorre para viabilizar a progressão de regime, se avalia crime, vida sóciofamiliar, comportamento na prisão e projetos futuros. O exame criminológico coloca
apenas na mão do sujeito a responsabilidade por sua ‘recuperação’ ou ‘reabilitação’.
Perde-se, muitas vezes, a análise da impropriedade do espaço de prisão como aquele
que deve ‘reabilitar’.
4) Através de quais práticas, além da realização do exame criminológico, o
psicólogo pode atuar no sistema prisional?
Compreendo que, no contexto de uma sociedade que busca, através da sua Constituição,
garantir direitos fundamentais e sociais, independente das condições das pessoas, sendo
dever do Estado proteger as pessoas que estão sob sua responsabilidade, não há como
priorizar a realização de exame criminológico pelo psicólogo. O tempo que se gasta
produzindo informações ao juiz sobre a pessoa presa deveria ser utilizado em ações de
acesso às políticas públicas no interior das prisões. Tal acesso pode ocorrer:
a) Pelo atendimento a pessoa presa ou a sua família a qualquer momento do
cumprimento da pena;
b) Pela oferta de atividades terapêuticas, reflexivas ou expressivas aos presos,
preferencialmente junto a outros profissionais, como assistentes sociais,
enfermeiros, médicos, terapeutas, professores, entre outros;
c) Por ações institucionais que busquem trabalhar as relações entre internos,
equipes técnicas, direção e inspetores;
d) Pelo trabalho de articulação com a rede “extra-muros”, para futura
corresponsabilidade de ações, segundo as necessidades da pessoa presa e sua
família, e também criando espaços para dar visibilidade aos setores sobre a
situação das prisões;
e) Viabilizando a identificação, o encaminhamento e a construção de projetos
dentro do próprio sistema penitenciário a partir das demandas apresentadas pelos
internos.
A realização do exame criminológico não produz nenhuma destas ações. Ao contrário,
além de ser uma ação massificante junto às pessoas que são desconhecidas do
psicólogo, também não tem servido como instrumento de denúncia para mudar a
situação das prisões nos seus níveis estrutural e relacional. É importante que a
Psicologia afirme sua presença na equipe do Plano Nacional de Saúde do Sistema
Penitenciário, que é uma parceria entre os Ministérios da Justiça e da Saúde, exigindo
políticas públicas de cuidado, atenção, acolhimento e escuta dos internos, sob a lógica
da afirmação da vida em um espaço de clausura.
5) De que maneira a atuação da Psicologia no sistema prisional contribui para a
manutenção das relações de poder e dominação do Estado para com os presos?
O exame tem sido feito a partir de pedidos do judiciário, da defensoria, no tempo da
progressão de regime, e consta de uma entrevista curta e objetiva feita pelo psicólogo
para avaliar se determinada pessoa, que o profissional geralmente nunca viu nem
acompanhou na unidade, está em condições de receber tal beneficio. O acesso do
profissional ao interno neste momento, avaliando sua conduta, é extremamente
individualizador e simplista, já que não considera que tal sujeito é efeito do contexto
que faz parte, que, neste momento, é a prisão. Como não há planejamento de ações
cidadãs no Sistema Penal para atingir todos os internos, pouco há o que se dizer. O
profissional só consegue acesso às informações relacionadas ao período anterior da
prisão, como contexto sócio-familiar, motivação do crime e perspectivas de futuro. Não
há o que dizer sobre o tempo que a pessoa permaneceu presa e, por isso, pouco ou nada
há que se dizer de concreto sobre ela, a não ser por meio da investigação institucional,
colhendo informações de inspetores e direção. Através do exame criminológico a
psicologia se coloca no lugar do poder-saber, pago pelo Estado, para decifrar falas,
comportamentos, expressões com objetivo de produzir material informativo ao juiz. O
poder de dizer sobre o outro, de sentir-se útil para a sociedade por meio da convocação
do juiz, tira do psicólogo a oportunidade de estar com a pessoa presa de outro modo,
sob outro paradigma, que poderia ser o psicossocial, clínico, ajudando na promoção de
ações instituintes e não de reprodução de jogos de poder. A pessoa presa anseia pela
entrevista com o psicólogo porque sabe que esta levará informações ao juiz que podem
ser ou não favoráveis no acesso aos benefícios previstos em lei. Como esta entrevista,
por meio de exame, é entendida de modo naturalizado na cultura judiciária e prisional, a
cena está pronta: o preso fala o que o profissional precisa informar ao juiz; o
profissional escreve o que avalia ser importante para o conhecimento da justiça e o juiz
decreta seu veredito considerando ou não as palavras escritas do profissional, deste
modo, protegendo-se com este instrumento de qualquer objeção a sua decisão. Grande
cena, com vários protagonistas, cada qual servindo-se do seu saber-poder para atingir
algo. Assim, cabe a psicologia se perguntar se esta prática naturalizada, instituída,
massificada e teatralizada de realização do exame criminológico é concernente com a
posição ética do profissional. Para quem o profissional serve na prisão? A quem atende?
Falar de ética é um meio de reflexão sobre o automatismo de práticas, de uso e de
manipulação de sujeitos. A psicologia precisa estar onde ninguém está, acolher a dor da
ausência de liberdade, ajudar na valorização de vidas mesmo que no interior do cárcere,
garantir atenção das pessoas por meio de sua integralidade. A atuação no sistema
prisional deve deixar de ser massificada, para que a complexidade das práticas deste
espaço surja.
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Entrevista com Ana Carla Souza Silveira da Silva (CRP - CRP-RJ