MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO RECOMENDAÇÃO MPF n.º 25, de 16 de agosto de 2006. A PROCURADORA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO, os PROCURADORES REGIONAIS DOS DIREITOS DO CIDADÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO e os PROCURADORES DA REPÚBLICA DESIGNADOS PARA ATUAR JUNTO AO CONSELHO PENITENCIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO infra-assinados, no exercício das atribuições que lhes foram conferidas pelos arts. 2º, 5º, inciso I, 6º, inciso XX, 11 e 13 da Lei Complementar Federal n.º 75/93, CONSIDERANDO que o dever de respeitar e proteger a dignidade humana é norma jurídico-positiva legitimadora de toda a ordem estatal, com eficácia vinculante a todos os entes da Federação; CONSIDERANDO que o princípio da dignidade humana inclui, necessariamente, o respeito e proteção da integridade física e psíquica de toda pessoa, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput, da CR); CONSIDERANDO que o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição explicitou que também os presos custodiados pelo Estado devem ter sua integridade física e moral respeitadas; CONSIDERANDO que o inciso III do mesmo artigo declara que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; CONSIDERANDO que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (tratado internacional de direitos humanos ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 e promulgado pelo Decreto Presidencial n.º 592/92) estatui, em seu art. 10.1, que “toda pessoa privada de liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”; CONSIDERANDO que a Lei de Execução Penal (Lei Federal n.º 7.210, de 11 de julho de 1984) contém regras bastante específicas a respeito do tratamento que deve ser dispensado a presos provisórios e definitivos custodiados nos estabelecimentos prisionais brasileiros; CONSIDERANDO que tais regras não estão sendo majoritariamente observadas nos estabelecimentos prisionais administrados pelos Estados Federados; CONSIDERANDO que particularmente em São Paulo a situação prisional atingiu níveis de indignidade gravíssimos, não sendo leviano afirmar que os 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO presos provisórios e definitivos deste Estado são tratados como coisas, sem nenhum direito; CONSIDERANDO que, já em 1997, a Organização dos Estados Americanos – através de sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos - apontava que “em muitas prisões os detentos se encontram em condições subhumanas, o que constitui violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais de direitos humanos”. Na prática, disse a Comissão, “os presos no Brasil são, em sua maioria, maltratados e desamparados, o que minimiza a possibilidade de sua reforma e readaptação, dadas as condições físicas e humanas das prisões e do pessoal responsável pelo sistema penitenciário” (Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, Washington D.C., 1997, p. 69). CONSIDERANDO que, no mesmo relatório, a Comissão recomendou a adoção de “todas as medidas adequadas para melhorar a situação de seu sistema penitenciário e o tratamento que os presos recebem”, o que inclui: a) a criação de condições de abrigo físico, higiene, trabalho e recreação de acordo com as normas internacionais; b) a melhoria das condições de higiene e saúde nos estabelecimentos penitenciários e nas delegacias policiais; c) a adoção das medidas necessárias para a prestação de uma assistência jurídica real, efetiva e gratuita aos que dela necessitem e não têm como pagá-la durante todas as etapas do processo judicial; d) a separação dos detentos em prisão preventiva dos condenados e o agrupamento destes últimos de acordo com o tipo e gravidade do delito e a idade dos reclusos; e) o oferecimento de oportunidades de trabalho aos presos, além de programas de educação, reabilitação e recreação que contribuam para a sua readaptação e reinserção na sociedade; f) o estabelecimento de mecanismos efetivos e oportunos de controle interno no sistema penitenciário, para punir os agentes penitenciários responsáveis por abusos e atos de violência contra os presos; g) a criação de programas adequados de formação e especialização para os agentes responsáveis pela segurança, administração e supervisão das prisões (idem, pp. 69-71); CONSIDERANDO que também a Anistia Internacional, em recente relatório sobre o Estado brasileiro, apontou que “as condições nos cárceres constituem tratamento cruel, desumano e degradante, e a população carcerária continuou aumentando. O amontoamento, as instalações sanitárias deficientes e a falta de serviços médicos contribuem para que se produzam motins freqüentes e altos índices de violência entre os presos. São também constantes as denúncias de comportamento violento e abusivo dos guardas, o que inclui o emprego da tortura e de maus tratos” (Informe 2006, disponível em http://web.amnesty.org/report2006/index-esl); 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO CONSIDERANDO que, no mesmo relatório, a Anistia Internacional recomendou expressamente ao Estado brasileiro a reforma no sistema penitenciário “para garantir que os reclusos recebam tratamento humano e conforme a legislação brasileira e as normas internacionais. Isso inclui a obrigação de separar presos por categorias, proporcionar fundos e formação adequados aos funcionários das prisões, e estabelecer um organismo de supervisão eficaz, independente e dedicado exclusivamente a seu trabalho”. Para tanto, “o governo federal do Brasil deve assumir sua responsabilidade e garantir que os 26 Estados do País e o Distrito Federal ponham em prática eficazmente todas as reformas necessárias”; CONSIDERANDO a responsabilidade internacional da União (CR, art. 21, I) decorrente da sistemática violação de dispositivos que se comprometeu juridicamente a cumprir; CONSIDERANDO que “o binômio ‘respeitar/fazer respeitar’ [os tratados internacionais de direitos humanos] significa que as obrigações dos Estados-partes abarcam incondicionalmente o dever de assegurar o cumprimento daqueles tratados por todos os seus órgãos e agentes assim como por todas as pessoas sujeitas a sua jurisdição, e o dever de assegurar que suas disposições sejam respeitadas por todos, em particular pelos demais estados partes” (Antonio Augusto Cançado Trindade, “As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana”, coedição IIDH, CICV e ACNUR, San José da Costa Rica, 1996, pp. 46-47); CONSIDERANDO que “os balanços realizados pelo Departamento Penitenciário Nacional/DEPEN dão conta de que cerca de 40% das vagas existentes no sistema penitenciário brasileiro foram geradas a partir da mobilização de recursos da União, acumulados na figura do Fundo Penitenciário Nacional/FUNPEN (“FUNPEN em Números”, Ministério da Justiça, Brasil, 2004); CONSIDERANDO a recente notícia de que o Fundo Penitenciário Nacional custeará 90% da construção de dois centros de detenção provisória no Estado de São Paulo; CONSIDERANDO que é notório que a sistemática violação de direitos de presos contribui para a disseminação do ódio e do crime organizado nas prisões paulistas; CONSIDERANDO que a transferência de recursos públicos federais para a manutenção do atual estágio de violação de direitos fundamentais de presos afronta os princípios constitucionais da legalidade e da moralidade administrativas (art. 37, caput); 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO CONSIDERANDO que é dever dos gestores públicos da União acompanhar e fiscalizar a aplicação de recursos do erário federal, sendo certo que tal dever não está adstrito à execução das obras de construção de estabelecimentos prisionais; CONSIDERANDO que, nos termos do art. 64 da Lei de Execução Penal (Lei Federal n.º 7.210/84), compete ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, dentre outras atribuições: a) inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais e informar-se sobre o desenvolvimento da execução penal nos Estados, Territórios e Distrito Federal, propondo às autoridades dela incumbida as medidas necessárias ao seu aprimoramento; b) representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das normas referentes à execução penal; e c) representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal; CONSIDERANDO que também Política Criminal e Penitenciária cumprimento, pelos Estados da Tratamento do Preso no Brasil, 14/94; é atribuição do Conselho Nacional de adotar as providências necessárias ao Federação, das Regras Mínimas para o estabelecidas na Resolução CNPCP n.º CONSIDERANDO, finalmente, o disposto nas regras jurídicas a seguir citadas; RESOLVEM RECOMENDAR ao Senhor Diretor do Departamento Penitenciário Nacional e ao Senhor Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal: 1. Que façam constar expressamente dos instrumentos de venham a ser celebrados a partir do recebimento RECOMENDAÇÃO e que tenham por objeto a cooperação da execução de obras de construção e reforma de unidades seguintes obrigações mínimas do Estado-convenente: convênio que da presente União para a prisionais, as a) obrigação de prestar assistência material, social e religiosa aos presos provisórios e definitivos custodiados na unidade prisional objeto do convênio (arts. 10, 11 e 41, inciso VII, da LEP; arts. 2º e 43 da Resolução CNPCP n.º 14/94); b) obrigação de prestar assistência jurídica integral e gratuita, inclusive nas dependências da unidade prisional objeto do convênio, a todos os 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO presos que declararem insuficiência de recursos (CR, art. 5º, incisos LXIII e LXXIV; CPP, art. 261; Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, § 7º; LEP, art. 11; Resolução CNPCP n.º 14/94, art. 44); c) obrigação de prestar, na unidade objeto do convênio, assistência à saúde do preso, inclusive mediante atendimento médico, farmacêutico e odontológico, de acordo com as diretrizes e regras fixadas pelo Plano Nacional de Saúde Penitenciária (LEP, arts. 11 e 14; arts. 15 a 20 da Resolução CNPCP n.º 14/94); d) obrigação de prestar, na unidade objeto do convênio, assistência educacional nesta compreendida a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado (LEP, arts. 11, 17, 18, 19, 20 e 21; arts. 38 a 42 da Resolução CNPCP n.º 14/94); e) obrigação de fornecer, a todos os presos custodiados na unidade objeto do convênio, alimentação suficiente e vestuário (LEP, art. 41, inciso I; arts. 8º, 9º, 10, 13 da Resolução CNPCP n.º 14/94); f) obrigação de assegurar, ao preso, o direito à visita do cônjuge, da(o) companheira(o), de parentes e amigos, em dias determinados, excetuada a hipótese do parágrafo único do art. 41 da Lei de Execução Penal (art. 41 da LEP e arts. 33 e 37 da Resolução CNPCP n.º 14/94); g) obrigação de inspeção mensal da unidade objeto do convênio, pelo juiz da execução da comarca onde está instalada referida unidade (LEP, art. 66, VII; art. 32 da Resolução CNPCP n.º 14/94); h) obrigação de separar o preso provisório do condenado por sentença transitada em julgado (LEP, art. 84, caput; art. 7º da Resolução CNPCP n.º 14/94); i) obrigação de separar o preso primário em seção distinta daquela reservada para os reincidentes (LEP, art. 84, § 1º; arts. 7º, 53, 54 e 61 da Resolução CNPCP n.º 14/94); j) obrigação de que as unidades prisionais femininas sejam dotadas de seção para gestante e parturiente e de creche (LEP, art. 89; art. 7º, § 2º, da Resolução CNPCP n.º 14/94); k) obrigação de manter o registro referido no parágrafo único do art. 5º da Resolução CNPCP n.º 14/94, onde constem os dados dos presos acautelados na unidade objeto do convênio; 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO 2. Que façam constar nos mesmos instrumentos de convênio cláusula prevendo a rescisão do ajuste por inexecução total ou parcial das obrigações referidas nas alíneas anteriores, sem prejuízo da execução específica das obrigações de fazer, por qualquer dos legitimados da Lei Federal n.º 7.347/85; RESOLVEM, ainda, RECOMENDAR ao Senhor Diretor do Departamento Penitenciário Nacional que, nos termos do disposto no art. 71 da Lei de Execução Penal, preste o apoio administrativo e financeiro necessário para que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária acompanhe a fiel aplicação das normas de execução penal em todo território nacional e especialmente o cumprimento das obrigações mínimas apresentadas no item anterior. ENCAMINHE-SE, com urgência, a presente RECOMENDAÇÃO ao Senhor Diretor do Departamento Penitenciário Nacional e ao Senhor Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, solicitando-se a ambos, desde logo, manifestação expressa a respeito do cumprimento espontâneo do objeto desta recomendação. São Paulo, 16 de agosto de 2006. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão SERGIO GARDENGHI SUIAMA Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo LUIZ FERNANDO GASPAR COSTA Procurador da República Representante do MPF no Conselho Penitenciário do Estado de SP 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO MARCIO SCHUSTERSCHITZ DA SILVA ARAUJO Procurador da República Representante do MPF no Conselho Penitenciário do Estado de SP KAREN LOUISE JEANETTE KAHN Procuradora da República Representante do MPF no Conselho Penitenciário do Estado de SP 7