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NOTAS FILOSÓFICO-HISTÓRICAS DA CORPOREIDADE: A ESCOLA
PÚBLICA CONTEMPORÂNEA EM ANÁLISE
Andreza Berti (UFRJ – [email protected])
Helio Moura (FAETEC/ETE Henrique Lage – [email protected])
Ao assumir o compromisso com a escola pública, laica, gratuita e de qualidade,
propomos problematizar o sentido atribuído ao corpo e ao conhecimento nos cotidianos
escolares, considerando os múltiplos contextos educativos. As práticas pedagógicas
predominantes nas instituições escolares são as que apresentam métodos e técnicas
corporais autoritárias e padronizadas, dificultando atividades pedagógicas críticas e
inventivas. Diante disso, nossas pesquisas na formação continuada, em diálogo no
Grupo de Pesquisa ELAC (Educação Física Escolar, Experiências Lúdicas e Artísticas,
Corporeidades), pretendem apontar indicativos às diversas possibilidades de ações
educativas coerentes com uma perspectiva libertadora e contra-hegemônica do corpo,
potencializando as diversas produções humanas. A partir destes pressupostos,
compreendemos que as práticas pedagógicas serão cada vez mais fortalecedoras da
expressão viva da escola quanto mais forem superadas todas as dicotomias da
integridade do que temos de mais humano - entendendo a humanidade como a interação
do construto histórico-cultural. Em uma tentativa de suplantar a ideia de dominação,
seja com o mais generoso e vibrante dos nossos esforços em construirmos uma
sociedade justa, quanto ao deixarmos em evidência a genuína e expressiva contribuição
de cada agente social envolvido na vida escolar e extraescolar; dialogamos, neste texto,
com autores como Gallo, Foucault, Mosé e Nietzsche, pois nos permitem compreender
alguns discursos filosófico-históricos construídos ao longo dos séculos e como estes
enunciados atravessam o dia-a-dia das escolas, fragmentando os saberes e disciplinando
os corpos. Deste modo, desejamos contribuir com a melhoria da qualidade de ensino e
da aprendizagem, ressaltando a importância da convivência criativa e libertária.
Propomos, também, o comprometimento dos educadores e educadoras com a discussão
do papel da paixão, do acaso e da tão temida incompletude da Vida.
Palavras-chave: Corpo. Corporeidade. Escola Pública.
Sobre a corporeidade
O afeto deixe ele perto.
A quem diga que seja volátil,
Para outros é tátil.
Mas eu garanto que é lança,
Que alcança o lado do avesso,
Porém sem entrar um só dedo:
É o som da dança dos arvoredos.
Atravessado, difícil deixá-lo de lado.
Previsto, a quem veja mal-visto.
Mas eu garanto que é alegria.
Não deixe o afeto um só dia,
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Pois a lança pode marcar bemmarcado,
Deixar desencarnado o desejo
E a dança perdida a esmo.
(A contradança, de Edu Veríssimo)
Atualmente, o fenômeno da idolatria ao corpo divulga um arsenal de produtos
para modelagem estética, além de modificações diretas, como os implantes, transplantes
e cirurgias plásticas que apresentam uma falsa promessa de liberdade.
É notório que o corpo apresenta um caráter ambíguo no discurso atual. Há
diversas apologias ao corpo como objeto, aproximando a discussão do sujeito à
mercadoria e produto. Veicula-se pela televisão (e demais meios de comunicação) o
padrão de corpo imposto pela sociedade, os mecanismos de opressão e violência, a
ditadura do consumo desregrado e tantos outros “encaixes sociais”. A partir disso,
pautados nas experiências escolares cotidianas, problematizamos os sentidos que o
corpo e o conhecimento assumem na sociedade contemporânea.
Historicamente, o corpo apresenta um entendimento dicotômico e fragmentado,
que tem raízes na Grécia antiga, mais precisamente, representado pela figura de Platão.
A filosofia platônica inaugurou a dicotomia corpo-alma/corpo-mente, propagando pelo
mundo ocidental a ideia de dualismo (que hoje conhecemos tão bem). Platão construiu a
noção de alma superior, ideal, perfeita e imortal que controlava as paixões e desejos
(inferiores) do corpo (GALLO, 2006).
No percurso histórico ocidental, a moral cristã tolhiu qualquer tipo de prática
corporal que visasse o culto ao corpo, pois o mesmo poderia tornar a alma, que é
sagrada, em impura. E assim, o poder da Igreja (junto a Monarquia) exerceu controles
rígidos sobre as formas de comportamento dos sujeitos, compondo valores morais
rígidos e uma nova percepção do corpo, aliás, trouxe como modelo a sua não percepção
- que era obviamente aparente.
Começa a se delinear claramente a concepção de separação de corpo e alma,
prevalecendo à força da segunda sobre o primeiro. O bem da alma estava acima dos
desejos e prazeres da carne e, portanto, acima dos aspectos materiais. O corpo tornou-se
culpado, perverso e necessitado de purificação, tanto que, nessa tentativa de dominação
do corpo, as sociedades e, principalmente os religiosos, instituíram técnicas coercitivas
sobre o físico (como o autoflagelo), ao mesmo tempo instaurando a confissão como
forma de controle.
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Com o tempo, estas práticas assumiram outras definições surgindo, portanto a
concepção de modernidade. Essa tendência categorizou as coisas como perfeitas ou
imperfeitas, materiais ou sensíveis, mutáveis ou imutáveis, colocando-as em planos
hierarquizados, nos quais a atividade intelectual sobrepunha a atividade manual. A
atividade racional prevalecia sobre a atividade física (manual).
Os princípios reducionistas e mecanicistas serviram de modelo para o
desenvolvimento do pensamento científico nas diferentes áreas do conhecimento,
pressupondo que todo sistema complexo pode ser entendido inteiramente a partir das
propriedades de suas partes, que, consequentemente, se reduzirão em unidades ainda
menores (CAPRA, 1996). Por conseguinte, estes princípios entenderam a natureza
como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas previsíveis e exatas.
A caracterização da sociedade moderna possui distintas interpretações. Alguns
autores consideram que foi a partir do século XVIII que se consolidou a organização
deste tipo de sociedade, na emergência da revolução Francesa, revolução científica
mecanicista e as revoluções industriais. E, a partir destes fatos, estabeleceram-se
Estados-Nação para constituir uma política de base laica, bem diferente das decisões
políticas tomadas pelas crenças religiosas, fundamentando-se no Iluminismo.
No desdobrar da história vários teóricos enfatizaram a concepção dual do ser
humano, reforçando o modelo mecânico. Bacon, Galileu, Newton, Descartes, entre
outros, foram representantes diretos desta visão compartimentada do ser. Para eles, o
mundo era governado por leis exatas e perfeitas e o homem era compreendido
bipolarmente como substância corpórea e substância pensante.
Descartes, por exemplo, priorizou a razão como ponto de partida de todo
conhecimento. Em sua famosa frase “Penso, logo existo”, fica claro que só o
conhecimento (racional) é importante. Para ele o corpo não tem qualquer relação com o
processo de construção de conhecimento.
Assim, na concepção cartesiana, razão e sensibilidade são conceitos antagônicos.
Na educação privilegiam-se os processos cognitivos, desvalorizando os processos
sensíveis, ratificando uma hierarquização entre estas dimensões.
Diante destes elementos da construção do cenário do mundo mecânico moderno,
há no desenrolar da humanidade uma perspectiva histórica de contextualização do
sujeito. No final do século XVIII, no auge do Idealismo Alemão, Hegel, exaltou a
subjetividade da qual corpo e espírito cooperavam para a compreensão do homem
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através do trabalho, porém, neste idealismo o espírito permaneceu ainda como princípio
da natureza humana.
Para além de Hegel, já no século XIX, Marx - em sua compreensão do homem
como categoria histórica e sua ênfase na ação concreta – reconheceu a abordagem do
corpo enquanto subjetividade, só que subjetividade encarnada/corporalizada deformada
pelas precárias condições do trabalho.
Todavia, é ainda no século XIX que surge uma crítica incisiva a tradição
dualista. Um projeto crítico moderno que propõe partir do corpo. É na figura de
Nietzsche que o corpo surge valorizado. Em seus estudos, Nietzsche critica o mundo
metafísico das ideias e atribui ao corpo o sentido pleno da existência humana. Porque,
para o filósofo, é pela experiência dos sentidos e das ações que o homem existe e se
realiza.
Interessar-se pelos questionamentos, interpretações e encontros com o “vir a ser
o que és” (NIETZSCHE, 2006) é entender que: “o que Nietzsche tem de doutrina
pertence ao passado, porém o que Nietzsche tem de inquietude, o que no texto de
Nietzsche funciona como um catalizador de nossas perplexidades atravessa o século e
pertence, sem dúvida, ao futuro” (LARROSA, 2005, p. 8). E é mais do que necessário
desconstruir os mitos, os dogmas e as explicações rasas e superficiais da realidade, visto
que “a realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em
que se forjou um mundo ideal...” (NIETZSCHE, 2006, p. 18).
No século XX existe uma busca pela compreensão ontológica do corpo,
entendendo-o como forma de ação no mundo. Esta perspectiva filosófica da existência
nomeada de Fenomenologia, que no entender de Rezende (1990) pode ser chamada de
“filosofia da ambiguidade”, teve na figura de Merleau-Ponty a representação máxima
das questões filosóficas inscritas no corpo... “Pois há sempre mais sentido além de tudo
aquilo que podemos dizer” (Rezende, 1990, p. 17). Portanto, “a fenomenologia prefere
uma dialética plurilinear ou polissêmica e continua afirmando a ambiguidade do
fenômeno que nunca se reduz a um só de seus aspectos, nem a um só tipo de relações
semânticas no interior da estrutura” (idem, p. 20).
Ainda que tentativas de se (re) pensar o humano, de se superar a visão dualista
do ser fossem perceptíveis na filosofia moderna, estes movimentos não se tornaram
hegemônicos. Surgiram apenas como linhas de fuga à visão tradicional, fragmentada e
restrita da compreensão do homem.
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Gallo (2006), em seu artigo “Corpo Ativo e a Filosofia”, traz contribuições dos
estudos de Foucault ao destacar a leitura ética de condução da própria vida. Porém, não
foi esta postura que predominou na história do ocidente. Visto que, como bem alerta o
autor, a história predominante é a do dualismo platônico e a do discurso racionalista
cartesiano, acentuado pela concepção cristã do corpo como residência única e exclusiva
da alma.
Trilhando as pistas deixadas por Gallo (2006), nos aproximamos das
observações de Foucault (1989), presentes no livro “Vigiar e Punir”, pois revelam a
existência de um poder, diferente ao poder do Estado, porém a ele articulado; agindo
sobre os corpos, sobrecarregando-os e oprimindo-os. A este poder Foucault denominou
“poder disciplinar”, uma forma específica de poder que surgiu a partir do século XVII,
efetivando-se nas mais diversas instituições sociais (escolas, igrejas, famílias, prisões,
quartéis etc), com a finalidade de subordinar o corpo. Assim, o filósofo revela os
processos de dominação inscritos no corpo ao longo dos tempos. Diante disso,
compreendeu o corpo como um “corpo político”:
A tese de Foucault é que por trás do suposto „desprezo‟ pelo corpo
que vemos na sociedade moderna, baseado na filosofia cartesiana, há
todo um investimento no corpo, sobretudo pela estrutura burguesa e
capitalista de sociedade, que opera sobre o corpo como força de
trabalho. Portanto, o „esquecimento‟ do corpo na modernidade é
deliberado; trata-se de uma forma de desviar a atenção do uso
produtivo que se faz dos corpos, de uma maneira de mantê-los
submissos. Esquecer o corpo, fazer com que ele não seja lembrado –
forma eficaz de manter o corpo ativo, força produtiva, mas ao mesmo
tempo submisso (GALLO, 2006, p. 24)
Compreender a noção de corpo nos diversos campos de estudos e vivências, os
quais tem sido pensado, construído, investido e produzido, é reconhecer que o mesmo
está sempre em processo. Vivo.
Assim, a noção de corporeidade (com suas múltiplas possibilidades de ação no
mundo) contribui para que possamos lançar novos olhares sobre a construção do sujeito,
em seus diferentes processos de ensino e de aprendizagem, pois ao associar os discursos
não-reducionistas às práticas pedagógicas evidenciadas nas escolas, tentamos diluir (e
até erradicar) a objetivação e a racionalização do cotidiano escolar.
Diante dos diferentes movimentos que os corpos produzem, expressam e
reelaboram ao longo da vida – suas múltiplas narrativas – é de extrema relevância
admitir a multidimensionalidade e a complexidade da experiência corporal,
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abandonando a concepção dual de corpo anunciada pela modernidade. E, a partir disso,
(re) conhecer o outro como “legítimo outro” (GALLO, 2008) no processo do conhecer.
Sobre a corporeidade na escola
É perceptível que a institucionalização da educação, sob o signo da vigilância,
disciplina e hierarquia, fundamenta-se no dualismo corpo/mente, concebidos como
entidades distintas, cujo pressuposto é de uma boa escolarização. Afinal, dizem que
corpos estáticos aprendem melhor...
Foucault (1989), portanto, dá-nos subsídios para pensar o contexto escolar
quando relaciona o “poder disciplinar” existente na sociedade às escolas. Pois, as
escolas impõem movimentos controlados e repetitivos, doutrinando e reduzindo os
corpos a algo mecânico.
Como modelo disso, a escola (tradicional?), encaixa os alunos em pequenos
espaços rigidamente enfileirados, uns atrás dos outros, tentando eliminar do corpo das
crianças os movimentos espontâneos e criativos.
Nesta educação disciplinadora, o professor determina a hora de sentar, de
levantar, de andar, até mesmo de perguntar. Todas as ações são dirigidas. Olhos devem
estar atentos ao quadro, ouvidos para o professor, boca para responder o que este deseja
ouvir e mãos para (mecanicamente) copiarem exercícios, muitas vezes, sem significação
e distantes da realidade dos alunos.
Dialogar com as análises de Foucault a respeito das categorias de poder, de
controle, de docilização e disciplina nos corpos, é assumir uma atitude mais consciente
sobre o corpo vivo. Corpo vivo este que resiste, cria, escolhe e se relaciona consigo,
com o outro e com o mundo. É, “quebrar as formas, de dentro de nossa materialidade
mortal, de nossa finitude, produzindo novas formas de viver o corpo, de fazê-lo ativo;
inventando novas formas de produzir a vida” (GALLO, 2006, p. 29).
E, neste processo, acreditamos que a escola apresenta-se como lugar de
conhecimento com todas as possibilidades de compreender a existência no mundo,
ajudando-nos a superar a rígida realidade ou, pelo menos, enfrentá-la no cotidiano
escolar.
No entanto, a escola tem sido o local de conhecer a lógica. Seja a lógica
gramatical ou matemática, ou histórica... Não há espaço para instinto, para paixão, para
o encontro, como Gallo (2008) nos alerta em seu trabalho, no qual levanta questões para
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o que chamou “filosofia da diferença”. Só há encontro se houver o outro para encontrar,
ou seja, se eu reconheço de fato aquele que está comigo e não o represento na lógica do
Ser que não existe, ou melhor, que só existe na minha imaginação, que no fim sou eu
mesmo.
Portanto, a crise que atravessou o século XX e ainda atravessa o século XXI é
um desafio que exige uma resposta do tamanho dos questionamentos à tradição
ocidental de pensar a vida. Em vários momentos nossos alunos resistem a tudo isso,
talvez não tão articulados para enfrentar a avalanche milenar de opções contra a Vida
feita pelo pensamento racionalista, mas de uma maneira ou de outra revelam sua
insatisfação com a escola. E o professorado como é que faz, ou não faz?
Em nossa formação ainda podemos perceber que a tal verdade filosófica
científica é hegemônica - o que potencializa a prática pedagógica ser um impulso a mais
uma avalanche. A resistência dos professores também são frequentes e não podemos
dizer que não são articuladas, ao menos de forma geral. Há uma preocupação com a
qualidade de ensino, com o processo de aprendizagem, com a gestão democrática e com
todas as lutas de melhorias do processo de trabalho docente. Mas, estas percepções da
problemática educacional são atravessadas pelas explicações lógico-racionais quase
sempre fundamentadas na diminuição da potência da luta no cotidiano da comunidade
escolar em sua capacidade de criar uma Escola viva, e, portanto, contribuir para relações
sociais mais afetivas e sinceras.
Uma possibilidade de olhar mais focado para esse cenário é afirmar uma
corporeidade que recupere o valor da vida, sem recorrer à vida após a morte ou a vida
paralela do mundo idealizado pela tradição filosófica.
Insistimos na corporeidade que traz para o centro da convivência escolar o devir,
a vida na sua infinita transformação - que nos deixa liberado da obrigação imputada pela
modernidade de responder a tudo como a ideia propagada pelo “homem cientista”. Nós
(...) precisamos aprender a conviver com o simultâneo, avaliar uma
coisa por diversas perspectivas, precisamos aprender a conviver com
as diferenças, com as polaridades e tensões, com os conflitos e as
contradições. Precisamos de um pensamento que nos impulsione e
fortaleça (MOSÉ, 2011, p. 165).
A comunidade escolar não pode reproduzir relações de controle via a
transmissão passiva do conhecimento teórico desencarnado, longe da realidade de
nossos alunos. O que faz questionar a opção pelo conteúdo científico que nos afasta do
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contato mais próximo de nossos alunos, pois esta lógica é a da exclusão, a qual nos foi
herdada da filiação socrático-platônica – que persiste em não reconhecer a vida como
ela se apresenta, mas a de criar uma caverna, que, ao contrário do que o mito da caverna
nos ensinou (onde viveríamos para não enfrentarmos a vida de verdade); a caverna
referida neste artigo é a do discurso da ciência distante da sensibilidade.
Hegemonicamente, optamos por temer o corpo porque ele tem expressão que
não controlamos totalmente, porque o corpo nos lembra a natureza que tanto tentamos
negar para afirmar a cultura. No entanto, parece ser um falso dilema, que resultou no/do
domínio da natureza e nos/dos problemas que enfrentamos com o meio ambiente. Esta
é, em última análise, a herança mais monstruosa que a ideia de ciência moderna nos
legou: a de negar a revelação do conhecimento ao homem, afirmando o poder ilimitado
da ciência positiva acerca da existência humana. Acreditamos que poderíamos não só
substituir Deus, como superá-lo.
Naturalizamos a cultura como se não fosse uma construção humana, assim como
retiramos de personagens envolvidos na vida escolar seu caráter cultural: sujeitos de
práticas concretas na escola e na sociedade. Processo que obrigou todos a conhecer tudo
sobre o passado e absolutamente nada sobre o agora. Não separando a natureza da
cultura podemos, efetivamente, trazer para o contexto escolar a presença, a experiência
única de cada pessoa envolvida no processo de aprendizado.
Não há como fazer transformações neste estado de coisas sem discutir o papel do
conhecimento na sociedade globalizada e em rede. E, principalmente, superar o medo
do corpo, o medo do acaso, o medo do que não compreendemos totalmente.
Tentando não generalizar, mas sendo os mais possíveis amplos em nossa
narrativa - para não fazer das palavras algo morto -, posto que não seja possível explicar
sem retirar um pouco (ou muito do vivido), trazemos observações, motivados pelas
experiências em escolas públicas da periferia do Estado do Rio de Janeiro. Com todas as
forças tensionadoras e vivas que atuam neste contexto.
Não abordaremos um acontecimento particular, mas a dinâmica - mais ou menos
rotineira – desses cotidianos. Falamos dos espaços existentes nas escolas para além das
salas de aula, em particular as quadras ou espaços similares onde supostamente os
alunos e alunas estão livres da imobilidade imposta pelo controle corporal.
Muitas experiências em escolas públicas soam como legitimação de uma norma
pedagógica, na qual as atividades lúdicas, criativas e de livre expressão do corpo, só
convém se for para complementar a falta ou estimular o desenvolvimento psicomotor
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dos alunos. Ou seja, “servem para” combater a dificuldade de atenção, as dificuldades
de organização e localização no espaço, ajudar na utilização correta do caderno, na
organização dos objetos dispostos na carteira, etc. As expressões dos alunos ficam
restritas a momentos precisos, bem marcados pelo tempo escolar.
Desconfiamos que nestes espaços - seja nos momentos de recreio ou de aulas estejamos reforçando a tal avalanche desencadeada no mundo clássico; como foi
mencionado neste artigo, acerca das dicotomias engendradas pelas opções na produção
do conhecimento. Percebemos que, sem o tensionamento da comunidade escolar a
respeito dos controles corporais que ocorrem cotidianamente, tais espaços se tornarão
apenas “válvulas de escapes” para não se discutir, de modo corajoso, uma nova Escola.
O receio pelo não-controle das atividades pedagógicas permeia o dia-a-dia das
escolas e muitos professores se ressentem pela imprevisibilidade deste cotidiano, não
aceitando lacunas no planejamento, reforçando planos de aula pragmáticos. De tal
forma que é extremamente difícil pensar, nestes contextos, uma aula em que os alunos
possam propor, escolher, questionar e duvidar.
Para esse fim, é necessária uma nova organização escolar que não reforce
dicotomias como, por exemplo, a divisão do conhecimento por disciplina: professores
de Matemática (caso não seja possível desfazer de imediato a disciplina) trabalharão
somente lógica; professores de Língua Portuguesa serão responsáveis pelo
desenvolvimento da linguagem; professores de Educação Física atuarão com o corpo e o
movimento e etc.
Junto com isso, desejamos que todos vivenciem outros espaços da escola - como
a quadra ou qualquer outro ambiente aberto - que ressaltem a convivência criativa e
libertária.
Sendo assim, o desafio para os profissionais da educação, em suas práticas
pedagógicas, é o de refletir acerca dos valores que permeiam a concepção de corpo e de
conhecimento, despertando nos estudantes a percepção de si mesmo como ser corporal
(em relação com os outros e com o mundo), concebendo o corpo como um lócus
expressivo de subjetividade, cheio de significações.
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Referências:
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo, Cultrix, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis,Vozes,1989.
GALLO, Sílvio. Corpo Ativo e a Filosofia. In: MOREIRA, Wagner Wey (org). Século
XXI: A era do corpo ativo. Campinas, São Paulo, Papirus, 2006.
_________. Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e filosofia da diferença. In: Anais
do II Congresso Internacional Cotidiano: Diálogos sobre Diálogos. Rio de Janeiro: Universidade
Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2008.
LARROSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Traduzido por Semíramis Gorini da Veiga.
2ª ed. Belo Horizonte, autêntica, 2005.
MOSÉ, Viviane. O Homem que sabe: do homo sapiens à crise da razão. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução de
Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, Coleção grandes Obras do pensamento universal,
2006.
REZENDE, Antônio Muniz de. Concepção Fenomenológica da educação. São Paulo,
Cortez, autores associados, 1990.
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