Metodologia jurídica I. II. III. Qualificação Interpretação da lei Integração de lacunas 1 I. Qualificação Referência de uma situação de facto à(s) norma(s) do direito Finalidade – encontrar o regime jurídico aplicável à situação de facto Hipólito, pouco cuidadoso com os seus próprios assuntos, mas bem intencionado, intromete-se na propriedade do vizinho para reparar um mal, causando todavia danos. Deve ou não ser responsabilizado ? 2 Pergunta em causa pré-conhecimentos (= sempre que alguém causa um prejuízo a outrem deve indemnizar) Análise jurídica Arrumação das matérias jurídicas em ramos e sub-ramos Direito Privado Direito Civil Institutos transversais: propriedade, dano, culpa Gestão de negócios 3 Situação da vida introdução da propriedade alheia Aspectos juridicamente relevantes (elementos de conexão) Orientação para reparar um mal danos bem intencionado Deve ou não ser responsabilizado? pouco diligente com seus assuntos Normas jurídicas Transformação do caso da vida num caso jurídico 4 Direito português Gestão de negócios Artigo 464º do Código Civil – ocorre “quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada” Verificar se o gestor se conformou, na sua actuação, com “o interesse e a vontade, real ou presumível, do dono do negócio” dado que, se o não fizer, “responde perante o dono do negócio (...) pelos danos a que der causa, por culpa sua” – Artigo 466º do Código Civil Culpa – critério de apreciação Objectivo - gestor age com culpa quando não actua com a diligência esperada de um gestor prudente Subjectivo - consideração da personalidade e o modo de ser do próprio agente (carácter espontâneo e altruísta da acção do gestor; gratuitidade da sua actividade; riscos a que se expõe – injusto exigir que 5 ponha maior zelo neste acto do que nos seus próprios) Normas jurídicas – busca de novas referências Círculo hermenêutico Situação da vida Direito (Instituto(s) jurídico(s) de referência) Novo guião (novas perguntas suplementares “de direito” e “de facto”) Guião (perguntas suplementares “de direito” e “de facto”) Invocação eventual de outro(s) instituto(s) Questão jurídica 6 Norma(s) jurídica(s) aplicáveis É quase certo que, na lei, não se vai encontrar qualquer norma cuja hipótese corresponda, ponto por ponto, ao caso: norma formulada em termos abstractos; casos são muito mais do que os que podem ser antecipados pelo direito Referir um caso a uma norma implica sempre um juízo sobre a “semelhança” entre um e outra, ou um juízo sobre a pertença das duas situações (a da vida e a da hipótese) a uma mesma categoria ou género, sob o ponto de vista relevante para a questão jurídica posta. Aplicação de uma norma: encontrar uma norma que tenha pontos de conexão com um caso confirmar que hipótese da norma compreende o caso como uma espécie do seu género 7 II. Interpretação • Disposição legal = enunciado linguístico “interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento” (Baptista Machado) “Mediante a interpretação «faz-se falar» este sentido, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável” (Karl Larenz) • Interpretação – extrair uma regra de uma fonte de direito (lei) • Tarefa de conjunto – sentido de cada fonte está em necessária conexão com o de todas as outras • Concepção do Direito como ordem social, expressa em regras jurídicas reveladas pelas fontes de direito – “Interpretar é pois colocar a lei na ordem social, procurando à luz desta o seu sentido” (O. Ascensão) 8 Metodologia da interpretação (hermenêutica jurídica) Significado Significante Coisa Sinal (palavras) Processo intelectual em que significado e significante se condicionam mutuamente Problema da interpretação Qualificação jurídica dos factos (na perspectiva da pergunta jurídica) Interpretação dos textos 9 Importância e significado da interpretação - Necessidade de interpretação em todos os casos (negação do brocardo in claris non fit interpretatio) – não aplicação automática da norma ao caso (normas = pontos de partida para o círculo hermenêutico) Especial importância: • • conceitos jurídicos que não têm definição legal (ex. negócio jurídico, contrato, ilícito) situações de definições incompletas ou ambíguas 10 De entre os sentidos possíveis do texto, extrai-se um que valha para todas as pessoas (generalidade) e para todos os casos (abstracção) – garantia de um mínimo de uniformidade de soluções Pluralidade de interpretações possíveis Escolha das interpretações: mais aceites (pela comunidade em geral ou numa comunidade de especialistas) - - mais praticadas (doutrina, jurisprudência) - mais reconhecidas pelo direito positivo 11 Metodologias da interpretação: orientação subjectivista destinada a captar o sentido imprimido à norma pelo legislador (mens legislatoris) orientação objectivista destinada a captar o sentido da lei (mens legis) Passos lógicos do mesmo método: análise da motivação e finalidade que eram imputadas à norma no momento em que ela foi emitida (sentido que a comunidade lhe atribuiu) actualização dos sentidos e motivações de modo a que a norma possa ser aplicada a um caso presente 12 Artigo 9.º do Código Civil – regras gerais relativas à interpretação, aplicáveis em princípio a toda a ordem jurídica Faz sentido que uma norma legal preveja estas regras ? Normas definidas pela comunidade de intérpretes Orientação geral: A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (n.º 1) – texto da lei = apenas um elemento da interpretação Responsabilidade do intérprete – encontrar soluções mais adequadas Presume-se “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3) – não dispensa a tarefa de interpretação e o recurso a outros elementos 13 Dupla função da letra da lei: ponto de partida e limite da interpretação (n.º 2) Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso A letra é um elemento irremovível da interpretação, ou um “limite da busca do espírito”. “Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido” (Larenz) “(...) há-de ser um sentido (uma motivação, um conjunto de objectivos) que caiba razoavelmente no sentido literal da declaração do legislador. Sob pena de, se isto não acontecer, se estar a criar uma nova norma, em vez de interpretar uma norma já existente” (Hespanha) 14 Interpretação doutrinal / interpretação autêntica - Aplicação da metodologia em causa apenas à interpretação doutrinal - Leis interpretativas – integram-se nas leis interpretadas (art. 13.º, n.º 1 CC), ou seja, as leis que pretendem fixar a interpretação de outras têm a força vinculante de todas as leis (o legislador não tem de obedecer a princípios hermenêuticos) Aplicação retroactiva – reformulação da norma interpretada 15 Elementos de interpretação – doutrina tradicional – Elemento gramatical apreensão literal do texto da lei, apuramento do significado mais natural desse conjunto de palavras Elementos lógicos: teleológico – razão de ser da lei (ratio legis); justificação social da lei (Oliveira Ascensão); fim visado pela elaboração da norma 16 sistemático – unidade do sistema jurídico (9.º/1 CC): relação com outras normas que regulam a mesma matéria (contexto ou relação de conexão); • consideração de disposições legais que regulam problemas paralelos ou institutos afins (lugares paralelos ou relação de analogia) • relação com os princípios gerais do sistema jurídico – ex. interpretação conforme com a Constituição (lugar sistemático ou relação de subordinação) – limite da interpretação • • cfr. preâmbulos, títulos de secções e capítulos e epígrafes dos artigos 17 histórico – consideração dos dados e circunstâncias históricas que rodearam o aparecimento da lei • circunstâncias [económicas, sociais, políticas] em que a lei foi elaborada - occasio legis – 9.º/1 CC • história do instituto ou do regime jurídico, precedentes normativos; • fontes da lei (doutrina, direitos estrangeiros); • trabalhos preparatórios (perspectiva objectivista – como elementos auxiliares da interpretação e não como meio de apuramento da mens legislatoris). Cfr. condições específicas do tempo em que [a lei] é aplicada (9.º/1) – orientação actualista, não incompatível com a consideração do elemento histórico. A interpretação nunca é definitiva - referência à totalidade do ordenamento onde a norma se insere e às valorações que estão subjacentes a este (intervenção da lei em situações da vida variadas e18 em permanente mutação). Resultados da interpretação interpretação declarativa: O sentido da lei cabe dentro da sua letra; letra da lei está conforme com o seu espírito. interpretação extensiva: A letra da lei diz menos que o seu espírito; para obedecer à norma que se extrai da lei, o intérprete deve procurar uma formulação que a traduza correctamente – alarga o alcance do texto da lei para este coincidir com o espírito que extrai da lei, por interpretação (importância do elemento teleológico). - argumento a pari (de identidade de razão) - argumento a fortiori (de maioria de razão – submissão ao regime 19 aparece justificada por motivos mais fortes) interpretação restritiva: A letra da lei atraiçoa o pensamento legislativo (por ter um alcance mais abrangente do que a norma que se pretendia exprimir) interpretação implicativa ou enunciativa: argumentos a maiori ad minus e a minori ad maius (a lei que permite o mais também permite o menos; a lei que proíbe o menos também proíbe o mais) • argumento a contrario (da disciplina excepcional estabelecida para certo caso, retira-se um princípio oposto que corresponde ao regime-regra, isto é, deduz-se que os casos não contemplados devem seguir o regime oposto). • 20 interpretação correctiva: Texto da lei não exprime com uma clareza mínima a finalidade para que foi criado e, tomado à letra, abrange hipóteses que não estão de forma evidente no espírito da lei. (contra: Oliveira Ascensão – alterações do sistema normativo apenas competem às fontes de direito) interpretação ab-rogante: Intérprete conclui que existe uma contradição insanável com outra disposição legal. Regra não tem sentido útil (quer porque há uma impossibilidade prática de coexistência quer porque as regras exprimem valorações contraditórias), o intérprete apenas se limita a verificá-lo. 21 III. Integração de lacunas Lacuna – “é uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste”, ou seja, uma incompletude contrária ao plano do Direito vigente. Distinguem-se das situações extrajurídicas – dizem respeito a situações que cabe ao direito regular mas em que o Direito (e não apenas a lei) não dá resposta a esta questão jurídica (lacunas do ordenamento jurídico – Galvão Telles) • • Relação com a proibição de non liquet – cfr. art. 8.º/1 CC 22 Interpretação em sentido amplo Interpretação / integração – integração supõe interpretação momento de determinação da lacuna momento de preenchimento da lacuna interpretação das fontes a aplicar por analogia Integração de lacunas / interpretação extensiva – • para haver lugar a integração, a hipótese não pode estar compreendida nem na letra nem no espírito da lei, • não se trata da extracção de uma regra implícita num texto que a exprime imperfeitamente (cfr. artigo 11.º CC - proibição de aplicação analógica de normas excepcionais). 23 Processos de integração de lacunas Extra-sistemáticos Processo normativo Previsão legislativa de uma regra que preveja a solução do caso Intra-sistemáticos - Analogia legis - Analogia iuris - Criação de uma norma ad Solução administrativa Cometimento a uma autoridade administrativa do poder de resolver as situações para as quais não exista regra (resolução em concreto, fundada em razões de conveniência) hoc Equidade Solução conforme às circunstâncias do caso concreto (relevância para além do plano da existência de lacunas) 24 Processos intra-sistemáticos de integração de lacunas Analogia legis • Analogia – aplicação de um processo pensamentoparticular no domínio da integração geral de • Fundamento: tratamento igual de casos semelhantes (princípio da igualdade e certeza do direito – obtenção da uniformidade de soluções) Art. 10.º/1 CC– “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos” • Casos análogos: não basta semelhança na descrição exterior da situação, é necessário que exista um conflito de interesses paralelo ou semelhante e que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito no caso previsto possa ser aplicável também no caso análogo (art. 10.º/2 CC – é necessário que “procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”) 25 Processos intra-sistemáticos de integração de lacunas Analogia iuris • Analogia funciona, não pelo recurso a uma solução normativa precisa, mas supõe a mediação de um princípio elaborado a partir de várias regras. • Diferença em relação à analogia legis – essencialmente de grau, na analogia iuris parte-se de um complexo de preceitos jurídicos. 26 Processos intra-sistemáticos de integração de lacunas Elaboração de uma norma ad hoc • Artigo 10.º/3 CC – “Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse que legislar dentro do espírito do sistema” • Não significa remissão para o arbítrio do intérprete nem recurso à equidade Resolução do caso segundo a norma que corresponda ao sistema (“espírito do sistema”) Intenção generalizadora: o intérprete deve formular uma norma (regra geral e abstracta) para integrar o caso omisso. Contudo, essa norma apenas vale para o caso sub judice. 27 Exercício prático Imagine que o legislador, no âmbito da sua política de protecção à infância, cria a seguinte disposição: «As mães solteiras beneficiam de uma redução de 50% no seu horário de trabalho nos seis meses subsequentes ao parto» António, viúvo, e pai de uma criança de 15 dias deseja obter idêntica redução. A mesma pretensão é manifestada por Bernardo, divorciado, e a cuja guarda foi confiado o seu filho de três meses. Quid Iuris? [1] [1] In “Introdução ao estudo do Direito - Hipóteses elaboradas durante a regência do Prof.. 28 Miguel Teixeira de Sousa”, 1993 (polic.).