Os jovens negros na EJA e o currículo PROFª DRª JOANA CÉLIA DOS PASSOS - NEN categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria. Tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na natureza (HALL, 2003, p. 69). OEDUCAR ordenamento OS NEGROS jurídico ePARA as desigualdades LIBERTÁ-LOS? raciais RAÇA Construção histórica, social, política e cultural produzida nas relações sociais e de poder O RACISMO COMO ESTRUTURANTE DAS DESIGUALDADES SOCIAIS JS: tem 16 anos, se autodeclara preto e é morador da região continental da Ilha. Mora com a mãe, que possui o ensino fundamental completo e que desenvolve atividades remuneradas em serviços gerais. No momento da entrevista esta se encontrava em licença para tratamento de saúde pelo INSS. JS declarou não conhecer seu pai. Ele participa de grupos de street dance e teatro. Foi reprovado quatro vezes na escola. Segundo ele, suas reprovações aconteceram pelo seu comportamento, “senão estaria até hoje estudando num colégio normal, não precisaria da EJA. Não precisaria mesmo”. JS, nos últimos dois anos, tem participado do Projeto Aroeira que integra o Consórcio da Juventude. Sobre a continuidade dos estudos diz que pretende “ir um pouco mais adiante”, mas não pretende ir para um curso superior. JS compõe músicas de hip hop. (grifos nossos) AC: tem 17 anos, se autodeclara preta e reside na “Vila”, comunidade localizada no bairro onde estuda. Mora com sua mãe, dois irmãos e seu companheiro. Sua mãe é analfabeta e trabalha como ajudante de cozinha em restaurante. Seu pai foi morto próximo de sua casa, cinco anos atrás e o crime não foi desvendado até então. AC participa do Programa Jovem Aprendiz como empacotadeira, numa rede de supermercados. Foi reprovada três vezes na escola, na terceira e quinta série e, segundo ela, o principal motivo era a bagunça. Quando perguntei onde morava, respondeu que nem sempre dizia que era na Vila porque as pessoas discriminam muito quem mora lá. “Pensam que lá, só tem bandido, só porque são todos pobres e pretos”, disse-me ela. AC e seu companheiro estudam juntos na mesma sala. Pretende “concluir o ensino fundamental, fazer o segundo e, se puder, vou fazer até o terceiro. Só não vou pra faculdade porque eu não tenho condições, mas se fosse faria gastronomia ou veterinária, porque eu gosto de animais e adoro cozinhar”. (grifos nossos) FS: tem 15 anos, se autodeclara negro e mora na região do sul da Ilha com sua mãe, padrasto e cinco irmãos. Sua mãe trabalha como doméstica e seu padrasto como pedreiro. Ambos têm o ensino fundamental completo. FS trabalha num restaurante como ajudante em serviços gerais. Ele foi reprovado duas vezes, uma na terceira e outra na quinta série, por excesso de faltas. Segundo ele, “não é que eu quis vim pra EJA. Se depender de mim, mesmo que me doa eu queria estar na escola normal. Sou bom na escola, só que o lado de bagunçar é mais forte que o lado de estudar”. Conta ele que, no período em que ficou sem estudar, esperando completar a idade para a EJA, passava algumas horas no muro da escola observando o que se passava em seu interior. Diz ele, “no dia 26 de agosto foi um dia bem interessante pra mim porque foi o dia do meu aniversário, o dia que eu voltei a estudar e o dia em que comecei a trabalhar”. FS tem o sonho de se tornar jogador de futebol profissional. (grifos nossos) DR: tem 16 anos, se autodeclara preto e reside no mesmo bairro onde estuda, na região do Continente. Mora com os pais e dois sobrinhos. Seu pai trabalha como entregador de uma loja e sua mãe não desenvolve nenhuma atividade remunerada. Ambos estudaram até a quinta série do ensino fundamental. Desde os 15 anos trabalha como padeiro. Participa de rodas de capoeira, tendo como preferência a Regional. Participa de um time de futebol no bairro. Foi reprovado um ano na quarta e três anos na quinta série, e quando foi para a sexta série foi expulso da escola. Segundo ele, reprovou por falta de atenção, porque ficava brincando. Quanto à expulsão: “Bem que eles já tinham me avisado uma semana antes. A próxima vez que eu fosse para a diretoria, eu seria expulso. Quase toda minha família expulsaram. Expulsaram o meu sobrinho, me expulsaram, expulsaram o meu primo. Já expulsaram muitos da minha família. Meu irmão, acho que também expulsaram”. Veio para a EJA “porque eu tenho que ter um futuro”. DR participa da escolinha de um time de futebol e sonha se profissionalizar como jogador. (grifos nossos) Para Charlot (2000), o sujeito é: um ser humano que se constrói historicamente na relação com outros seres humanos, também sujeitos; é carregado de desejos e movido por eles, os quais também o mobilizam. O sujeito também é um ser social com uma determinada origem familiar, que ocupa uma posição em um espaço social e está inserido em relações sociais. Por fim, o sujeito é um ser único, que tem uma história, que interpreta o mundo e lhe dá sentido. É um sujeito ativo que se produz ao agir no e sobre o mundo, ao mesmo tempo em que é produzido nas relações sociais em que se insere. “Existem várias maneiras de se construir como sujeito, e uma delas se refere aos contextos de desumanização nos quais o ser humano é ‘proibido de ser’, privado de desenvolver as suas potencialidades, de viver plenamente a sua condição humana [...] Não é que eles não se construam sujeitos, ou o sejam pela metade, mas sim que eles se constroem como tais na especificidade dos recursos de que dispõem” (Dayrell, 2003, p. 43). “juventude negra”, uma categoria com elementos peculiares a um determinado grupo social – os jovens negros – entendidos como constituídos de identidade racial, com suas variações e diversidade social, sexual, de gênero, de valores, de localização geográfica, de classe etc., influenciados pelo meio social concreto no qual se desenvolvem e pela qualidade das trocas que esse meio proporciona. A homogeneidade ou a heterogeneidade dos sujeitos jovens negros é resultado dos seus percursos biográficos e de suas experiências socializadoras. (Passos, 2010) OS SUJEITOS E A RELAÇÃO COM OS SABERES “Para que o aluno se aproprie do saber, para que construa competências cognitivas, é preciso que estude, que se engaje em uma atividade intelectual, e que se mobilize intelectualmente. Mas, para que ele se mobilize, é preciso que a situação de aprendizagem tenha sentido para ele, que possa produzir prazer, responder a um desejo” (Charlot ,2005, p. 54) “Qualquer relação com o saber comporta também uma dimensão de identidade: aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção da vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si”(Charlot, 2000, p. 72). Currículo Prescrito Currículo Apresentado aos Professores Ensino Interativo Currículo em Ação CURRÍCULO REALIZADO Efeitos complexos: explícitos- ocultos, em alunos e professores, meio exterior, etc. Currículo Avaliado Condicionamentos Escolares Currículo Modelado pelos Professores Campo econômico, político, social, cultural e administrativo Modelo de Interpretação do Currículo: Sacristán (1998) “Por que não pensar o currículo como tabuleiro de xadrez, onde algumas peças se movem com alguma previsibilidade e linearidade e outras peças como cavalos, reis e rainhas que fazem movimentos surpreendentes?” (CARRANO, 2008, p. 116). Um dos principais desafios da organização de currículos mais flexíveis na EJA é não abdicar da “busca de inventariar permanentemente a unidade mínima de saberes em comum, que as escolas devem socializar” (CARRANO, 2008, p. 116). “Sabe quando você assiste a uma palestra e sai com uma sensação meio inútil de que não aprendeu nada? Eu sinto que muitos alunos também sentem isso, eles saem da noite como se não tivesse aprendido nada, porque aprender pra eles é uma coisa bem cognitiva mesmo. Eles adoram quando você coloca no quadro, escreve. Eles adoram escrever. Você explica que está tudo ali, eles dizem então: ah aprendemos. Então é uma coisa bem cognitiva mesmo. Eles tiveram uma vivência da escola que foi essa, meramente intelectual. Estão acostumados com o professor vir dar uma aula, eles copiam, tiram dúvidas e vão pra casa. Cada vez que um professor dá uma aula específica de sua área eles adoram. O diário outro dia está lá recheado: adorei a aula do fulano. E quando é pesquisa, eles escrevem assim: - fizemos a pesquisa. É uma coisa bem seca, mas quando é uma aula de matéria, são altos elogios, e a gente sabe disso”. (Depoimento da Professora K.) (PASSOS, 2010) “Superar a ideia de que trabalhamos com percursos individuais, para tentar mapear que coletivos frequentam a EJA. O coletivo negro, o coletivo mais pobre, o coletivo de trabalhadores, o coletivo dos semtrabalho, o coletivo das mulheres. Que coletivos são esses? É muito diferente pensar um currículo para indivíduos, para corrigir percursos tortuosos individuais. Pensar em conhecimentos para coletivos, em questões que tocam nas dimensões coletivas, pensar na história desses coletivos. Um ponto que chama muito a atenção nesses coletivos é a luta por sua identidade, a luta por sua cultura: cultura negra, memória africana, memória quilombola, memória do campo, memória das mulheres, memória dos atingidos por barragens. Essas são as grandes questões que eles colocam. Mas, quando chegam à escola, ninguém lembra que é atingido pela barragem, que é quilombola, que é do campo, que é do MST, não importa. É simplesmente alguém que está no estágio A, no estágio B, no primeiro segmento, no segundo segmento.[...]. O que isso poderia significar para um currículo de EJA?” (ARROYO, 2007, p 15-16). (grifo nosso) Instrumentos normativos-legais que orientam a implementação da Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino da história e da cultura afrobrasileira e africana no currículo escolar REFERÊNCIAS ARROYO, M.G. A pedagogia multirracial popular e o sistema escolar. In: GOMES, N.L. (Org.). Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. CARRANO, P. Educação de jovens e adultos (EJA) e Juventude: o desafio de compreender os sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance” In: MACHADO, M.M. (org.) Formação de educadores de jovens e adultos. Brasília: Secad/MEC, UNESCO,2008. CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre : Artes Médicas, 2000. ____________. Relação com o saber, formação dos professores globalização: questões para a educação de hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. e DAYRELL, J. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação. Set /Out /Nov /Dez 2003 n. 24, 2003. “O conflito pedagógico será, pois, entre, as duas formas contraditórias de saber, entre o saber como ordem e colonialismo e o saber como solidariedade e como caos. Estas duas formas de saber servem de suporte a formas alternativas da sociabilidade e da subjetividade. Ao campo pedagógico compete experimentar, pela imaginação da prática e pela prática da imaginação, essas sociabilidades e subjetividades alternativas, ampliando as possibilidades do humano até incluílas a todas e até poder optar por elas”. (Sousa Santos, 1997, p. 25)