XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 ENSINAR/APRENDER A SER HUMANO: TAREFA CONTEMPORÂNEA E COTIDIANA DA ESCOLA Terezinha Azerêdo Rios GEPEFE/Universidade de São Paulo Resumo “Ninguém nasce humano – torna-se humano” é o que poderíamos dizer, parafraseando Simone de Beauvoir. A construção da humanidade, que se dá por meio de um processo educativo, acontece num contexto sócio-cultural, em que se criam e recriam valores, saberes, poderes, deveres. E direitos. Todas as instituições sociais participam desse movimento, mas ele ganha um caráter específico na instituição escolar, na qual se desenvolve um trabalho sistematizado de socialização, criação e recriação da cultura. Isso constitui a tarefa da escola, em todos os dias e todos os tempos. Este texto pretende discutir, do ponto de vista da filosofia, o papel dessa instituição na construção da cidadania, jogando o foco sobre o significado que aí se dá aos direitos humanos, na organização da proposta curricular e do projeto pedagógico. Procura levar em consideração as propostas que têm sido apresentadas nas políticas educacionais brasileiras com relação aos direitos humanos e a reação dos educadores a essas propostas. Chama atenção para a dimensão ética do trabalho dos professores e para a necessidade de que eles realizem uma reflexão sobre o seu gesto didático e sobre as implicações desse gesto, qualquer que seja a área de conhecimento em que ele aconteça, na formação dos estudantes e no contexto político. A articulação entre os direitos e os deveres, a busca de fundamentação rigorosa para os valores que se encontram nas ações e nas relações de indivíduos e grupos e o recurso aos princípios éticos apresentam-se como exigências para uma prática pedagógica de boa qualidade. Palavras-chave: Instituição escolar. Direitos humanos. Didática. Ética. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000253 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 [...] o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! GUIMARÃES ROSA, 1965, p. 318. Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1960, p. 9). Parafraseando a autora, podemos afirmar que ninguém nasce humano: torna-se humano. A construção da humanidade, que se dá por meio de um processo educativo, acontece num contexto sócio-cultural, em que se criam e se recriam valores, saberes, poderes, deveres. E direitos. Todas as instituições sociais participam desse movimento, mas ele ganha um caráter específico na instituição escolar, na qual se desenvolve um trabalho sistematizado de socialização, criação e recriação da cultura. Isso constitui a tarefa da escola, em todos os dias e todos os tempos. Este texto pretende discutir, do ponto de vista da filosofia, o papel dessa instituição na construção da cidadania, jogando o foco sobre o significado que aí se dá aos direitos humanos, na organização da proposta curricular e do projeto pedagógico. Procura levar em consideração as propostas que têm sido apresentadas nas políticas educacionais brasileiras com relação aos direitos humanos, chamando atenção para a dimensão ética do trabalho dos professores e para a necessidade de eles refletirem sobre seu gesto didático e sobre as implicações desse gesto na formação dos estudantes e no contexto político, qualquer que seja a área de conhecimento em que ele aconteça. A articulação entre os direitos e os deveres, a busca de fundamentação rigorosa para os valores que se encontram nas ações e nas relações de indivíduos e grupos e o recurso aos princípios éticos apresentam-se como exigências para uma prática pedagógica de boa qualidade. Natureza e condição humana Os seres humanos se constituem enquanto tais pela intervenção intencional e consciente que realizam no mundo. É por isso que talvez a definição mais correta do ser humano é a de que ele é um animal que trabalha, transforma a natureza e a si mesmo, criando a cultura e a história, junto com os outros, em sociedade. Mais do que mencionar uma natureza humana, dever-se-ia, então, falar de uma condição humana, Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000254 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 construída pelos seres humanos. A natureza humana é algo condicionado, isto é, configurado pelos homens e mulheres no processo histórico. É natural, para o homem, fazer cultura, criando-se de maneiras diferentes. A cultura é segunda natureza, banho de que nunca nos enxugamos, na bonita expressão de Flávio Di Giorgi: “(...) mais importante talvez que o primeiro banho de água, foi o banho que o tornou Homem, isto é, o banho no universo do símbolo. Isto é, o banho da cultura, e de que nós permanecemos perpetuamente úmidos, que toalha nenhuma enxuga, e se enxugados reverteríamos à mera biologia que nos anularia como seres humanos. Isto é, nós somos seres humanos porque fomos banhados pela cultura. (DI GIORGI, 1980, p. 75) Criar cultura – isso é próprio do ser humano, de todos os seres humanos. Entretanto, é de maneira extremamente diversificada que se dá a criação cultural nos diversos grupos, nas diversas sociedades humanas. Poderíamos dizer que o que iguala os seres humanos é, contraditoriamente, o fato de serem diferentes, e de se construírem de maneira diferente. É o que se encontra na palavra do antropólogo José Carlos Rodrigues: “Ao se definirem diferentemente como Homem, os homens manifestam a natureza profundamente semelhante que os une: poder diferir. (...) Assim, dizer ‘a semelhança que nos separa’ ou ‘a diferença que nos une’ não constitui paradoxo algum no terreno do humano” (RODRIGUES, 1989, p. 23). É isso que nos faz falar na existência de culturas. Afirma Rodrigues (op. cit., p. 132): Não existe rigorosamente A Cultura, que é apenas um conceito totalizador, um artifício de raciocínio; mas miríades de culturas, correspondentes à multiplicidade dos grupos humanos e a seus momentos históricos. A Cultura é uma abstração, um artefato de pensamento por meio do qual se faz economia da extraordinária diversidade que os homens apresentam entre si e com o auxílio do qual se organiza o que os homens têm de semelhante. (...) No sentido menos abstrato, as culturas são sistemas simbólicos. A capacidade de criar símbolos é o elemento distintivo do ser humano. Isso implica atribuir significado à realidade e às suas relações com ela e com os outros. Clifford Geertz ajuda-nos na compreensão desse fenômeno, quando afirma que Nossas ideias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais - na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e, não obstante, manufaturados. Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não somente uma catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo particular por certos membros de Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000255 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 uma sociedade particular. Para compreender o que isso significa, para perceber o que isso é exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas as catedrais. Você precisa compreender também - e, em minha opinião, da forma mais crítica - os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais. (GEERTZ, 1989, p. 62/63, grifos meus) É nessa medida que Fernando Savater afirma que nós, os seres humanos, “somos animais sociais, mas não somos sociais no mesmo sentido que o resto dos animais” (SAVATER, 1996:26). Os seres humanos criam valores, que permanecem e se transformam e que são identificadores do que se considera bom ou mau, desejável ou que deve ser recusado. Valores que configuram a humanidade de cada um, na sua particularidade, e de todos, na igualdade. Aristóteles afirmava que o ser humano é, por natureza, um ser político. Também o caráter político da vida humana resulta daquela segunda natureza, configurada, para além da physis, pelo trabalho. Hannah Arendt procura ressaltar esse aspecto de construção do político: Zoon politikon: como se houvesse no homem algo político que pertencesse à sua essência – conceito que não procede; o homem é apolítico. A política surge no entre-os-homens. (...) Não existe nenhuma substância política original. A política surge no intraespaço e se estabelece como relação (ARENDT, 1998, p. 23). Vale mencionar, por fim, a dimensão histórica como constituinte da humanidade. Como criação humana, social, que se faz com o uso da liberdade e da responsabilidade, a história tem um caráter dramático. Ela não se submete ao determinismo que encontramos na natureza, em que as transformações se dão em virtude de leis da própria natureza ou de caráter aleatório. É verdade que não escolhemos muitas das circunstâncias em que vivemos, mas escolhemos o que fazer com elas. Apesar de fazer a história “em determinadas circunstâncias”, como afirma Marx, os seres humanos empenham em suas ações a liberdade e a vontade. O sentido da história não é trágico, pois há a possibilidade de se alterar o curso dos acontecimentos a partir de uma intervenção consciente e deliberada dos indivíduos e dos grupos. Daí o caráter dramático – há sempre que pensar nas implicações das ações, no seu sentido, no que elas significam para toda a sociedade (RIOS, 2011). Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000256 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Direitos humanos – criação histórica Na esteira do que vimos considerando, pode parecer uma contradição falar de condição humana, inserção numa cultura particular, peculiar, e de direitos humanos, numa perspectiva de universalidade. Essa aparente contradição pode, entretanto, ser superada, se considerarmos que há algo próprio de todos os seres humanos, que os aproxima e iguala: a sua dignidade. Maria Victoria Benevides afirma que [...] dignidade é a qualidade própria da espécie humana que confere a todos e a cada um o direito à realização plena como ser em permanente inacabamento, à proteção de sua integridade física e psíquica, ao respeito a suas singularidades, ao respeito a certos bens e valores, em qualquer circunstância, mesmo quando não reconhecidos em leis e tratados. Dignidade é aquele valor – sem preço! – que está encarnado em todo ser humano. (BENEVIDES, 1995: 12) Somos diferentes em muitas de nossas características, mas somos iguais em direitos. E de que direitos se trata? Dalmo Dallari nos diz que falar em direitos humanos é referir-se “aos direitos fundamentais da pessoa humana. Eles são ditos fundamentais porque é necessário reconhecê-los, protegê-los e promovê-los quando se pretende preservar a dignidade humana e oferecer possibilidades de desenvolvimento. Eles equivalem às necessidades humanas fundamentais”. (DALLARI, 2004, p. 25). A dignidade “está encarnada em todo ser humano”. Não se fala em dignidade como direito, mas como base sobre a qual se afirmam os direitos humanos, que vão se constituindo historicamente, processualmente. Norberto Bobbio afirma que “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos de certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesas de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO, 1992, p. 5) Isso quer dizer que sejam os direitos naturais, civis, sociais, são expressões decorrentes de relações que se dão em contextos particulares, em momentos específicos da história da humanidade. Faz-se mesmo referência a gerações de direitos, que se sucedem no tempo. É no espaço da ética que se pode falar numa configuração mais precisa dos direitos humanos. A ética é a face da filosofia que se volta para os valores que estão presentes nas ações e nas relações dos seres humanos, nas sociedades. Diferentemente da moral, que tem um caráter normativo, a ética tem um caráter reflexivo. É uma Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000257 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 reflexão que se apoia em princípios que, embora sendo valores criados historicamente pelos seres humanos, aspiram a uma permanência e a uma universalidade. É com base na dignidade humana, no bem comum, que se afirmam os princípios éticos: o respeito, a justiça, a solidariedade. Direitos humanos, educação, escola A cultura é elemento constituinte do humano. A sociedade é o contexto no qual se cria e se recria a cultura, num movimento histórico. O processo de partilha, de socialização que se dá nesse movimento é a educação. Kant afirma que o ser humano é a única criatura que precisa ser educada e que ele “(...) não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” (KANT, 1996, p. 15). Os seres humanos ganham sua humanidade na relação com os outros, na polis. A apropriação e transformação dos produtos culturais, no processo educativo, têm a finalidade de construir a cidadania, chamada, poeticamente, por Thiago de Mello, de “dever de povo”. O poeta diz que “só é cidadão/quem conquista o seu lugar/na perseverante luta/do sonho de uma nação./É também obrigação:/a de ajudar a construir /a claridão na consciência/de quem merece o poder.” (MELLO, 1996, p. 95) A cidadania implica a consciência de pertença a uma comunidade e também de responsabilidade partilhada. Ganha seu sentido num espaço de participação democrática e em cujo interior se encontra um elemento essencial – o exercício de direitos, que se estende a todos os indivíduos na sociedade, sem discriminação de raça, gênero, credo religioso, etc. Sendo processo de construção da cidadania, a educação é direito fundamental dos seres humanos. E é por meio dela que se criam possibilidades de exercício de outros direitos. A educação está em toda parte – todas as instituições sociais participam do processo de socialização da cultura. Interessa aqui, entretanto, a educação que se realiza numa instituição que tem a tarefa de realizá-la de maneira organizada e sistemática: a escola. Cabe refletir, portanto, sobre o papel da escola na formação dos indivíduos, sobre o significado da educação escolar na transformação das pessoas e da sociedade. Ildeu Coelho chama atenção para o fato de que [...] imaginar (a escola) como espaço e organização encarregada de transmitir e socializar o saber sistematizado, a ser apropriado pelos Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000258 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 alunos, preparando-os para a continuidade dos estudos, o mundo do trabalho e a vida é empobrecê-la e fragilizá-la pela perda de sua autonomia, sentido e razão de ser. (...) O que justifica, dá vida e sentido à escola, à relação pedagógica, ao trabalho de docentes e discentes, são o processo de formação humana que aí se realiza e a relação de professores e estudantes com a cultura, com o pensamento, com o saber vivo, instigante e que a cada momento se produz, se interroga e se recria. (COELHO, 2009:16 – grifos meus) Se concordarmos com Coelho, temos que questionar continuamente o trabalho da escola, procurando constatar se ela se organiza efetivamente para essa tarefa formadora, se seu projeto vai ao encontro das necessidades que se apresentam na sociedade, considerando sua complexidade e as contradições que a constituem, uma vez que, como afirma Alejandro Cerletti, [...] as instituições educativas não são lugares neutros. Conformam o cenário de permanentes e múltiplas disputas políticas, econômicas, sociais e culturais. Tampouco os saberes que circulam por ela são ingênuos. Os conhecimentos que chegam a institucionalizar-se e a radicar-se nos programas oficiais costumam ser o que emerge de enfrentamentos, conflitos e lutas de poder que o resultado final dissimula ou quase nunca permite vislumbrar. (CERLETTI, 2009, p. 72) É necessário refletir, então, sobre a melhor forma de se organizarem as políticas em relação à educação escolar, as propostas curriculares, os projetos pedagógicos das escolas, quando se trata de incorporar os direitos humanos à vida escolar. Políticas expressam intencionalidades, definem propósitos. Estabelecer políticas significa definir rumos para uma determinada ação a partir de uma decisão, de uma escolha que se faz de determinados valores. Numa perspectiva democrática e republicana (RIBEIRO, 2001, 2002), os interesses públicos devem prevalecer sobre os privados. É nessa perspectiva que devem ser considerados os direitos humanos. Embora não seja recente a discussão sobre o tema, é, de certo modo, nova a preocupação com a necessidade de que os direitos humanos sejam contemplados nas escolas, como componente do currículo escolar. E é com satisfação que se constata a elaboração e aprovação de legislação referente ao tema. E que se tenha um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) e se estabeleçam diretrizes para o trabalho na instituição escolar. É importante refletir sobre a melhor maneira de tornar efetiva a presença dos direitos humanos na escola, incorporados ao currículo. Deverá existir uma disciplina específica para o “ensino de direitos humanos”? Eles deverão constituir tema que se explora na transversalidade? Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000259 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 No Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) afirma-se que [...] a educação é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos. A educação ganha, portanto, mais importância quando direcionada ao pleno desenvolvimento humano e às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos. Essa concepção de educação busca efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de valores, atitudes e comportamentos, além da defesa socioambiental e da justiça social (BRASIL, 2007, p. 25) Aida Monteiro Silva afirma que a escola de educação básica é um espaço privilegiado pelas contribuições que pode oferecer ao desenvolvimento do processo de reconhecimento e defesa dos direitos fundamentais para todos os seres humanos. Segundo a pesquisadora, “a defesa intransigente da educação como direito humano é condição de exercício de cidadania, de conquista e ampliação de novos direitos” (SILVA, 2010, p. 44). Ela faz referência ao esforço da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Educação no sentido de “motivar os sistemas de ensino da educação básica a efetivar políticas nessa área” e relata aspectos da experiência de que participou no governo de Pernambuco, no período 2007-2010. Ali, apontou-se “a necessidade de revisitar o currículo escolar, introduzindo conteúdos de direitos humanos, na perspectiva de transversalidade e interdisciplinaridade, mas também de forma de componente, de disciplina” (SILVA, 2010, P. 58-59). Tive a oportunidade de participar, como consultora, e em parte como redatora, dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998). Embora reconheça limites na proposta, que tem sido objeto de crítica de grande parte de educadores, vejo nela possibilidades de ir ao encontro do objetivo de trazer para a escola uma vivência e uma reflexão sobre os direitos humanos. Os temas transversais propostos, relacionados a esses direitos, foram: pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo e ética. Nos PCN, os temas transversais deveriam ser explorados no trabalho em todas as áreas, atravessar os diferentes campos do conhecimento, o que – é importante assinalar – é diferente de passar ao largo deles. Assim, os temas transversais não se acrescentam às áreas temáticas como novas disciplinas, das quais se encarregam professores especialistas – a abordagem desses temas deve ser atribuição de todos os professores. E Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000260 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 não se pode dizer que isso acontece não importa a disciplina que o professor ensina. A disciplina que o professor ensina sempre importa, quando se trabalha com as questões abordadas nos temas transversais, e vice-versa. A especificidade de cada disciplina, na verdade, aponta muitas vezes para uma abordagem diferenciada das questões sociais. Na transversalidade, tem-se uma travessia e um encadeamento. Propõe-se que o trabalho realizado pelas disciplinas não se faça de maneira isolada, mas na articulação permanente entre todas elas. É nessa medida que se aponta a necessidade de um trabalho coletivo dos professores. Não adiantam as boas intenções de um ou outro professor, acidentalmente. Se toda a escola não estiver engajada na proposta, os resultados deixarão a desejar. Requer-se, portanto, uma mudança qualitativa no trabalho da escola, na organização de seu projeto pedagógico. Isso não significa que o professor deva ser especialista em todos os temas transversais, mas, também não significa que basta trabalhar espontaneamente com os valores ou aproveitar momentos pontuais para trazer a discussão à classe. Não se trata de impor e sim de afirmar valores. Os valores só serão incorporados se tiverem sentido para os educandos. Frequentemente o gesto do professor ensina mais do que o seu discurso. O exemplo é a melhor forma de socializar valores e cada professor, ao trabalhar com sua disciplina terá, na sua atitude, uma forma de afirmar os valores em que acredita e os princípios nos quais eles se sustentam. “Os fins da educação mais corretamente elaborados e mais bem estabelecidos pouco servirão se os educadores não os converterem em atitudes pessoais que terão de manifestar durante todo o processo de relação com os educandos” (PUIG, 1998, p. 185). Decorrido já algum tempo após a institucionalização da proposta dos PCN, e voltando para a realização da experiência nas escolas, acredito ainda que a melhor maneira de trabalhar com os direitos humanos e com os princípios éticos, não seria organizando-os em forma de uma disciplina específica. Continuo a pensar que a ética, os direitos humanos devem estar presentes no trabalho dos professores de todas as disciplinas. Os professores realizam a formação da cidadania ensinando que dois mais dois são quatro, que o calor dilata os corpos, que há palavras polissílabas, que arquipélago é um conjunto de ilhas, que há várias formas de criação artística. E, ao mesmo tempo, que é importante conhecer e cuidar do próprio corpo, valorizar a pluralidade do patrimônio cultural brasileiro, perceber e respeitar diferentes pontos de vista, buscar a justiça nas relações sociais. No que diz respeito a esses últimos ensinamentos, na verdade, mais Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000261 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 que ensinar que..., é importante ensinar a... (CARVALHO, 1997). Desafio maior do que ensinar que todos os homens nascem livres e iguais é ensinar a considerar os outros iguais e livres. Isso diz respeito à dimensão ética do trabalho docente, que chamo de dimensão fundante, na medida em que é com base nos princípios éticos que se avaliam todas as outras dimensões – técnica, estética, política – do trabalho docente. Os critérios que levam a estabelecer os conteúdos e os métodos, a forma como se organizam as relações entre professores e alunos, as escolhas que se fazem e os compromissos que se assumem deverão ser questionadas se não tiverem como fim último o bem comum. Levando as experiências que vêm sendo desenvolvidas, penso que se deve manter aberta a discussão sobre a forma de desenvolver uma educação em direitos humanos, apontando permanentemente para o objetivo – esse sim, indiscutível – de fazer da escola espaço de afirmação e defesa rigorosa desses direitos. Direitos humanos, todos os dias, em todos os tempos Na perspectiva da ética, pode-se dizer, com Savater, que [...] cada um de nós tem de ser reconhecido em sua humanidade pelos demais, e tem de reconhecer a humanidade dos outros para que esses também possam reconhecer a nossa: nós humanos nos fazemos humanos uns aos outros. A principal tarefa da humanidade é produzir mais humanidade; o principal não é obter mais riqueza ou desenvolvimento tecnológico, coisas que não são, por outra parte, desdenháveis, mas o fundamental para a humanidade é produzir mais humanidade, é produzir uma humanidade mais consciente dos requisitos do ser humano e das relações que se estabelecem entre eles. (SAVATER, 2002, p. 13-14) Savater fala em “produzir mais humanidade”. Ouvimos com frequência a referência a um mundo “mais humano”. Entretanto, parece estranho , considerando o que aqui vem sendo apresentado, falar em mais humano. Em cada momento da história, o homem teve a sua humanidade nas características de que esta se revestiu através de seu trabalho, através da intervenção que fez – junto com os outros – na natureza e das significações que conferiu a sua vida. Entretanto, podemos pensar que quando se afirma que se deseja um mundo mais humano, ou que é preciso produzir mais humanidade, o que se quer é uma humanidade alargada, se assim podemos dizer, no sentido de que ela esteja ao alcance de todos os homens e no homem inteiro que está em cada um de nós. A escola tem como tarefa contribuir para a formação dessa humanidade – é a sua tarefa essencial, de todos os dias e em todos os tempos. Deve, portanto, proporcionar Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.000262 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 condições para a realização do bem comum, cujo outro nome é felicidade. As ações que nela se desenvolvem ganham significado se contribuírem para superação do individualismo, romperem com o que nega os princípios éticos, criarem espaço para exercício efetivo dos direitos de todos. Direito de ser humano, de ficar sendo humano, como diz, de modo tão bonito, Guimarães Rosa. É com essa escola que devemos sonhar, utopicamente, e é em sua construção que devemos nos empenhar, competente e corajosamente. Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo – II. A experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960. BENEVIDES, Maria Victoria. Prefácio. In SCHILLING, Flávia (org.) Direitos humanos e educação: outras palavras, outras práticas. São Paulo: Cortez/Faculdade de Educação da USP, 2005, pp. 11-17. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. 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