XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 A FORMAÇÃO MORAL E A DIVERSIDADE CULTURAL NA ESCOLA Luiz Câmara – PUC-Rio RESUMO A comunicação apresenta o resultado de um levantamento bibliográfico das pesquisas mais recentes sobre a relação entre a educação moral e a diversidade de identidades presentes no cotidiano escolar, e as conclusões de uma pesquisa sobre a resolução de dilemas morais referentes à injustiça, preconceito e discriminação no cotidiano de uma escola de ensino médio da cidade do Rio de Janeiro, que teve como referencial teórico a ética do discurso de Jürgen Habermas e a teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg. A coleta de dados se efetuou em duas etapas: (1) observação do campo de pesquisa, focalizando o comportamento e relacionamento dos estudantes nos momentos de intervalo e lazer no pátio da escola; e (2) a realização de grupos focais, que discutiram a resolução de dilemas morais, que versavam sobre conflitos envolvendo questões de justiça, dignidade humana, preconceito e discriminação referentes às características de gênero, etnia e orientação sexual. A pesquisa foi motivada pela constatação da existência de muitas relações conflitivas no cotidiano escolar, causadas, em grande parte, pela falta de reconhecimento e respeito às diferenças interpessoais, bem como, pelos limites na formação docente para lidar com esses conflitos. Dentre as principais conclusões do estudo merecem destaque: (1) as situações de injustiça, preconceito e discriminação, apresentadas nos dilemas, embora hipotéticas, fazem parte do cotidiano dos estudantes; (2) a ausência de reconhecimento e da autoridade e da credibilidade dos adultos para a resolução de conflitos nos quais os estudantes se acham envolvidos. A pesquisa aponta para a necessidade de se aprofundar a compreensão das complexas relações entre os sujeitos envolvidos no cotidiano escolar, partindo do pressuposto de que a escola deve cada vez mais se tornar um espaço em que as novas gerações possam construir suas diferentes identidades, reconhecendo como riqueza a pluralidade presente em seu interior. Palavras-chave: educação, ética, moral, dilemas morais, diversidade cultural. 1 - INTRODUÇÃO Esta comunicação se propõe a apresentar uma reflexão sobre a necessidade e possibilidade de uma educação moral que se atente para a diversidade cultural presente nas sociedades contemporâneas e em especial no cotidiano escolar. Os elementos aqui discutidos representam o resultado de um levantamento bibliográfico das pesquisas mais recentes sobre o tema e as conclusões de uma pesquisa sobre a resolução de dilemas morais referentes à injustiça, preconceito e discriminação no cotidiano de uma escola de ensino médio da cidade do Rio de Janeiro. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003911 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 O referencial teórico utilizado na pesquisa foi a ética do discurso de Jürgen Habermas e a teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg. A investigação esteve inserida em um projeto de pesquisa institucional, de um programa de pósgraduação em educação, e culminou com a elaboração de minha dissertação de mestrado, defendida em março de 2011. A coleta de dados se efetuou em duas etapas, das quais participou toda a equipe do grupo de pesquisa ao qual estou vinculado. A primeira consistiu na observação do campo de pesquisa, a saber, uma escola pública de ensino médio localizada na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro, cuja clientela pertence às classes populares das comunidades do entorno e de alguns bairros mais distantes, nomeada aqui Colégio Guarani. Tínhamos como foco principal o comportamento e relacionamento dos estudantes nos momentos de intervalo e lazer no pátio da escola, a partir dos quais construímos algumas categorias que nos orientaram a interpretar suas idéias e opiniões expressas na próxima etapa. A segunda etapa foi a realização de grupos focais, que discutiram a resolução de dilemas morais, previamente elaborados. Os dilemas trataram de conflitos envolvendo questões de justiça, dignidade humana, preconceito e discriminação referentes às características de gênero, etnia e orientação sexual. Foram realizados quatro encontros com um grupo de 14 estudantes, entre 16 e 18 anos, de ambos os sexos, que se voluntariaram para a pesquisa. Cada encontro, com duração aproximada de 60 minutos, foi coordenado por um integrante da equipe de pesquisa e acompanhado por outros pesquisadores, que observaram e realizaram anotações para posterior discussão nas reuniões do grupo. As discussões foram registradas em áudio, transcritas e depois analisadas a partir do referencial teórico que orientou a pesquisa. A pesquisa foi motivada pela constatação da existência de muitas relações conflitivas no cotidiano escolar, causadas, em grande parte, pela falta de reconhecimento e respeito às diferenças interpessoais, bem como, pelos limites na formação docente para lidar com esses conflitos. Essa realidade motivou a necessidade de se compreender como pensam e que valores fundamentam as ações dos jovens e adolescentes que estão cursando o ensino médio, quando são confrontados com as diferentes formas da diversidade (etnia, gênero, orientação sexual, geracional, de origem social, entre outras). O momento de vida dos estudantes, por estarem passando pela adolescência, caracteriza-se pela presença de muitas dúvidas e “certezas”. O mundo adulto é alvo de questionamentos e a presença de regras e normas provoca, em geral, reações de Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003912 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 desconforto e desobediência. Este também é o momento de construção e afirmação da própria identidade e da identidade do grupo de pertencimento, o que pode dificultar o reconhecimento e respeito pelas diferenças que se apresentam tanto na sociedade quanto no ambiente escolar. Os valores e crenças adquiridos no ambiente familiar são colocados em dúvida e precisam ser reafirmados, ou quando não, substituídos por outros para que o/a adolescente se torne um adulto com princípios que orientem suas ações e relações interpessoais. São muitos os exemplos de práticas de preconceito e discriminação nas escolas, algumas das quais concretizadas por meio do bullying e frequentemente denunciadas pelos meios de comunicação. Uma pesquisa realizada em 2009, pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 500 escolas públicas do Brasil, em entrevista a mais de 18,5 mil alunos, pais, mães, diretores, professores e funcionários, revelou que 99,3% dos entrevistados demonstram algum tipo de preconceito relativo às temáticas de discriminação pesquisadas (étnico-racial, gênero, geracional, territorial, orientação sexual, sócio-econômica, necessidades especiais) (FIPE, 2009). Ainda segundo o resultado da pesquisa, as principais vítimas dessas práticas discriminatórias são os estudantes, em especial os negros, pobres e homossexuais, os quais em muitos casos são discriminados, não apenas por seus colegas, mas também, embora em menor grau, por dirigentes, professores e funcionários. A Pesquisa Nacional da Saúde Escolar de 2009, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental na faixa etária de 13 a 15 anos, de 6.780 escolas púbicas e privadas, revelou que 30,8% dos entrevistados foram vítimas de bullying no período de 30 dias que antecederam a pesquisa, sendo que 25,4% disseram ter sofrido raramente ou algumas vezes e 5,4% que sempre sofrem este tipo de violência (IBGE, 2009). Este quadro apresentado por pesquisas quantitativas de instituições de referência, e corroborado pelas observações de quem vivencia o cotidiano das escolas, coloca aos professores e gestores educacionais um grande desafio: proporcionar espaços e práticas, a partir dos quais o diálogo entre e sobre as diferenças possa se efetuar. O espaço e o tempo da escola devem ser pensados de forma que as diversas características individuais e de grupo possam se expressar, de modo que sejam conhecidas e reconhecidas enquanto expressões legítimas das várias identidades que estão em processo de constituição. Uma educação moral que possibilite a formação de sujeitos Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003913 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 moralmente autônomos e sensíveis às diferenças me parece ser o caminho que possibilitará um avanço rumo a relações interpessoais mais respeitosas das diferentes identidades que estão em processo de construção e reconstrução. 2 - DIVERSIDADE E MORALIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR Diante da presença das diferenças no cotidiano das escolas e dos conflitos que provocam, logo vêm à tona as questões referentes à moralidade. Uma questão de difícil solução, sobre a qual alguns pesquisadores têm se debruçado refere-se ao papel que cabe à escola, à família e às demais instituições na promoção de uma educação moral de suas novas gerações, moralidade esta que se atente para a diversidade. Duas importantes revisões bibliográficas (LA TAILLE, SOUZA E VIZIOLI, 2004 e SHIMIZU, CORDEIRO E MENIN, 2006), apesar de algumas diferenças em relação a suas categorias de análise e à sua abrangência temporal, demonstram que a preocupação e a atenção dispensada à formação moral pela educação formal tem sido crescente. Entretanto, merece destaque a pequena quantidade de publicações que discutem experiências vivenciadas no cotidiano escolar ou mesmo que proponham metodologias e conteúdos para a educação moral. As reflexões teóricas indicam algumas pistas para a compreensão da complexidade de uma educação moral que considere a diversidade de um mundo cada vez mais plural (ANDRADE, 2009). Apontam, igualmente, alguns princípios gerais e esboços de metodologias que podem contribuir com a formação da moralidade de crianças, adolescentes e jovens no espaço da escola. Por outro lado, não podemos deixar de considerar que pesquisas empíricas muito têm a contribuir, pois possuem o mérito de partir da realidade concreta do cotidiano escolar, ou do mundo vivido, questionar teorizações estabelecidas reafirmando-as ou em muitos casos negando-as e construindo novas teorias. Partindo do pressuposto teórico de que os valores morais geram em quem tem consciência de possuí-los o auto-respeito, Souza e Placco (2008) afirmam que a construção dessa visão de si depende dos tipos de interações das quais as crianças participam. As autoras realizaram uma pesquisa empírica (utilizando-se da observação) na tentativa elucidar quais interações e que conteúdos favoreceriam e quais dificultariam a construção do auto-respeito. Seu estudo constatou que o investimento no e por parte do outro, a crença em sua capacidade, uma postura de acolhimento e cuidado e de enfrentamento dos conflitos são conteúdos de interações que favorecem essa Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003914 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 construção. As pesquisadoras defendem que, em função de diferentes modos de pensar e ações éticas – muitas das vezes imorais – presentes no ambiente escolar, as propostas pedagógicas que se dirigem a favorecer a construção do auto-respeito, deveriam se atentar para essas diferentes interações e investir na formação dos/as profissionais da educação. Nucci (2000), por outro lado, alerta para a importância de se considerar as distinções psicológicas entre moralidade e formas convencionais de certo e errado, nas abordagens que visam uma educação moral. O autor se reporta a pesquisas empíricas realizadas por diferentes pesquisadores em diversos países, entre os anos de 1975 e 2001, que demonstram a compreensão diferenciada que crianças, adolescentes e adultos possuem a respeito de normas morais e convenções sociais. Partindo dessa distinção, o pesquisador oferece algumas orientações para uma educação moral inserida em uma sociedade democrática e pluralista, que prepare os estudantes para “coordenar compreensões morais fundamentais de justiça e bem-estar humano com convenções e pressupostos informativos potencialmente mutáveis” (op. cit., p. 80). Araújo (2000), Sastre e Moreno (2000), Timon e Sastre (2003), e La Taille (2006), chamam a atenção em seus trabalhos para a importância de se atentar para o papel da afetividade na constituição dos juízos e das ações morais. Estes estudos apontam que a atenção que se deve dar à temática dos sentimentos não diminui o papel do conhecimento moral teórico, mas pode contribuir muito para que se compreenda com mais clareza as situações que envolvem conflitos morais e, em consequência, favorecer suas resoluções. Uma grande contribuição destes autores é a advertência de que não basta ter consciência do que é certo ou errado, ou sobre o tipo de vida se queira viver. Faz-se necessário, ainda, o desejo, a motivação para seguir este ou aquele caminho, para se viver tal ou qual tipo de vida. Esta clareza sobre o papel da afetividade na moralidade em muito contribui com o pensar e planejar ações de formação moral, pois chama-nos a atenção para a insuficiência de intervenções pedagógicas que se dirigem apenas à racionalidade dos educandos e educandas. Há que se considerar os tipos de intervenções e interações sociais que possibilitam a mobilização de seus sentimentos, de seus afetos. Silva (2006) e Marques (2009) desenvolveram pesquisas empíricas a partir do referencial teórico da ética do discurso. Ambos concordam que práticas discursivas em espaços democráticos, nos quais os alunos e alunas participam de discursos argumentativos sobre temáticas de seu interesse, em muito contribuem para o desenvolvimento do raciocínio moral dos estudantes. Knapp (2007) segue o mesmo Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003915 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 raciocínio em um estudo teórico abordando pontos pertinentes da relação entre ética e educação a partir das contribuições do pensamento de Habermas. A pesquisa de Carvalho (2008), por sua vez, analisa a relação entre as concepções sobre desenvolvimento moral de professores do Ensino Médio, sua prática pedagógica e o nível de julgamento moral de seus alunos e conclui defendendo a importância da formação continuada dos docentes. Os estudos de Rabelo (2000), Trevisan de Souza (2004), Dutra de Souza (2007), Inácio (2008) e Souto (2009) se preocupam em analisar as diferentes práticas pedagógicas e interações sociais que contribuem com o desenvolvimento da moralidade, e nos possibilitam concluir que professores e orientadores precisam compreender sua importância e planejarem sua efetivação no cotidiano escolar. As pesquisas empíricas de Tognetta (2006) e Tardeli (2006), ambas partindo do referencial teórico da ética das virtudes, nos apontam outras perspectivas para a formação moral no cotidiano escolar. Tanto a generosidade, referencial do primeiro, quanto a solidariedade, do segundo, são virtudes éticas que ao serem construídas podem favorecer relações interpessoais mais respeitosas em relação às diversidades presentes no espaço da escola. Este breve levantamento bibliográfico aponta que a preocupação com a educação moral no espaço escolar tem provocado muitas discussões e estudos, e os resultados da pesquisa que realizei, que agora apresento, pretendem ser mais uma contribuição para a compreensão sobre como pensam e vivenciam a moralidade crianças, adolescentes, jovens e adultos que convivem no cotidiano das escolas. 3 - ALGUNS ACHADOS DA PESQUISA A observação das discussões dos participantes durante os grupos focais, assim como a leitura e análise de suas transcrições, deixou claro que as temáticas e problemas referentes à justiça, racismo, homofobia e sexismo estão presentes no cotidiano do Colégio Guarani. Os/as estudantes demonstraram com sua postura de interesse e desprendimento ao se posicionarem, argumentando, contra-argumentando e apresentando exemplos de seu dia-a-dia, que vivenciam e têm consciência de que em seu ambiente escolar ocorrem situações de injustiça, preconceito e discriminação em função das diferentes características das identidades dos membros comunidade escolar. O estudo demonstrou, igualmente, que os jovens participantes não hesitam quando desafiados a se posicionarem sobre problemas que envolvam suas vidas e Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003916 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 crenças. Esta postura pode ser interpretada como sinalizadora da pertinência e da importância que as temáticas abordadas pela pesquisa possuem para eles. A qualidade da sua participação indicou, além disso, que os pesquisados possuem um bom grau de maturidade e capacidade de ouvir e respeitar as diferentes opiniões de seus pares. Não podemos afirmar, entretanto, que são ou que não são representativos da totalidade dos estudantes do Colégio Guarani, pois não houve nenhum critério para sua seleção, e participaram todos os que se voluntariaram. De certo modo, o fato de terem sido voluntários já indica que são estudantes que se interessam em participar de atividades diversificadas. Algumas características do Colégio Guarani – como sua organização, a não observação de conflitos violentos, o envolvimento da comunidade escolar em diversas atividades – podem ser tomadas como fatores que contribuem para essa postura relativamente amadurecida e respeitosa dos jovens estudantes que participaram da pesquisa. Esta interpretação está em consonância com a hipótese de Kohlberg (1992), segundo a qual a “atmosfera moral” de uma instituição em muito contribui para o amadurecimento moral de seus membros. Em muitos momentos de suas argumentações, os jovens pesquisados expressaram que não confiam na capacidade dos adultos de assumirem sua responsabilidade na resolução de problemas e conflitos. Isto ocorre, por exemplo, quando, na discussão do dilema de Fernando (dilema sobre orientação sexual), alguns participantes propõem que o protagonista deveria resolver o conflito diretamente com o outro estudante, sem a interferência da professora; quando constatam a incapacidade do pai de Marcos e Fernanda (dilema sobre gênero) de lidar adequadamente com os comportamentos dos filhos, devido a sua postura sexista; ou ainda, quando propõem jogar o Capitão Pereira ao mar (dilema sobre justiça), o qual representa a figura da autoridade. Por outro lado, os participantes demonstram acreditar em sua capacidade e em sua autonomia para resolver problemas e conflitos. Defendem que os adultos, representados por pais e professores, deveriam depositar mais confiança nos jovens e adolescentes, pois, apesar de serem dependentes em muitos aspectos, já têm capacidade para tomar algumas decisões. Essa crença em sua autonomia se expressa, por exemplo, quando Greg e Renato (dilema sobre diferenças étnicas) reconhecem que os pais têm o direito de desejar o melhor para os filhos e de orientá-los, mas, os jovens deveriam poder tomar algumas decisões referentes à suas próprias vidas. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003917 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 A não credibilidade dos adultos em alguns momentos e a crença na autonomia dos adolescentes e jovens podem ser compreendidas como duas faces da mesma moeda, e não deveriam ser interpretadas apenas como consequências uma da outra. Ou seja, penso que não seria correto afirmar que a falta de credibilidade dos adultos seja uma consequência direta da crença em uma capacidade de autonomia adolescente, como também que a crença na autonomia seja consequência pura e simples da carência de credibilidade dos adultos. Acredito que a construção de uma autonomia pessoal, durante o processo de amadurecimento moral, possa ser construída no confronto com a autoridade, sem que necessariamente sua credibilidade reconhecida. A ausência de credibilidade por parte dos adultos, pode provocar a manutenção de posturas heterônomas e dificultar o surgimento da própria autonomia. As observações, interpretações e constatações apresentadas pela pesquisa provocam algumas indagações quando se pensa na educação escolar, nas instituições e agentes responsáveis por promovê-la. Ponderando que em seu espaço, os educandos e educandas vivenciam problemas que envolvem questões de justiça, preconceito e discriminação, e os consideram importantes em suas vidas, qual seria o papel da escola frente a eles? Os professores e gestores escolares estão preparados para lidar com essas questões? Se não estão, que alternativas poderíamos apontar? Se estão, quais processos foram os mais decisivos para esta formação? Não tenho a pretensão de apresentar saídas e propostas de intervenções, que julgaria serem soluções para as questões levantadas ou para muitas outras que possam ser provocadas por possíveis interpretações dos dados desta pesquisa. Entretanto, algumas considerações e reflexões neste sentido merecem ser partilhadas. As diversidades e os conflitos a elas inerentes estão presentes dentro da escola e esta não pode se furtar a exercer o papel de formadora de cidadãos/ãs competentes não apenas no que diz respeito aos diversos conteúdos disciplinares, mas também no que se refere à capacidade de se relacionar de forma respeitosa e responsável, dentro de uma sociedade plural e democrática, na qual todas as identidades têm o direito ao reconhecimento e ao desenvolvimento de suas potencialidades. Por ser uma instituição mais plural que a família, a escola poderia ser o espaço, por excelência, no qual a pluralidade de características, necessidades e interesses de seus educandos pudessem se expressar. Deveria, talvez, oferecer, em sua estrutura e em sua prática pedagógica, condições tais que as crianças, adolescentes e jovens pudessem, a partir da convivência com as diferentes identidades, refletir sobre quem são e sobre quem desejam ser, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003918 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 tornando-se cidadãos que reconhecem que as diferenças fazem parte da constituição humana, e que ser diferente não significa necessariamente ser melhor ou pior, ou seja, que a diferença não precisa ser sinônimo de desigualdade. As observações do cotidiano do Colégio Guarani, apontaram que a escola possui um projeto pedagógico que prioriza as boas relações pessoais e a construção da autonomia de seus estudantes. Não é possível afirmar, contudo, que todo o corpo docente está, de fato, envolvido, preparado e motivado para investir em uma formação integral de seus educandos e educandas, que contemple questões referentes à ética, à moral e ao respeito às diferenças. O que temos condições de afirmar, por outro lado, é que o fato de um grupo de treze estudantes participarem com um bom nível de maturidade, envolvimento e respeito, apresentando argumentos e contra-argumentos, pode sinalizar que algum investimento em sua formação ética e moral foi feita. É importante reconhecer, contudo, que a escola partilha este papel de formação com a família e demais espaços em que os estudantes estão inseridos (círculo de amizade, vizinhança, igreja) Não pretendo afirmar que a escola onde foi realizada a pesquisa é uma instituição modelo, posto que a pretensão de avaliar seu trabalho pedagógico foge ao escopo do pressente estudo. Como o Colégio Guarani contribuiu para o amadurecimento de seus educandos, e como eles se comportam frente situações reais de injustiça e preconceito que envolvem diferenças de etnia, orientação sexual e gênero, são questões que outros estudos poderiam tentar responder. Ouso apostar, todavia, que uma dos caminhos possíveis para a superação das dificuldades encontradas pelas escolas no que se refere às dificuldades de convivência e ao desrespeito pelas diferenças presentes em seu interior, seja abertura para o diálogo entre gestores, professores, estudantes e demais agentes envolvidos com a escola. Partindo do pressuposto que são as práticas discursivas (HABERMAS, 2003; 2004) que constituem e intermedeiam a construção do conhecimento, os diversos saberes podem ser questionados e se tornarem objeto de investigação em discursos argumentativos entre os professores e o grupo de estudantes. Do mesmo modo, as regras e normas que orientam as relações e o funcionamento da instituição poderiam a ser compreendidas como produção coletiva e, consequentemente, como responsabilidade de todos. Não se poderia, entretanto, desconsiderar os limites e dificuldades que os próprios docentes e gestores possuem. Sem um corpo docente com formação que lhe ofereça condições e instrumentos teóricos e metodológicos para tratar e encaminhar Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003919 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 adequadamente os conflitos provocados pelas dificuldades de convivência com as diferenças, tanto nos momentos de urgência quanto preventivamente, dificilmente as escolas conseguirão superar o quadro de injustiça, preconceito e discriminação que os educandos vivenciam. Considerando que a formação docente pode ser pensada em, pelo menos, dois grandes momentos, a formação inicial e em exercício, estas seriam as duas frentes que precisariam de atenção e investimento. A responsabilidade das universidades que se propõem a formar professores não deve ser minimizada. Formar professores não deve se limitar a equipá-los com os conteúdos de uma disciplina específica, mas proporcionarlhes um referencial teórico sobre o processo de educação, esta entendida como uma formação integral do ser humano, e, como tal, deve ser muito bem planejada. Cabe, portanto, às universidades explicitarem em seus cursos de licenciatura conteúdos referentes. Algumas instituições de ensino superior explicitam em seus cursos de licenciatura conteúdos referentes à formação sobre ética, moral, cidadania e diversidade, o que poderia considerado como um possível modelo a ser tomado como referência (CÂMARA 2005). O investimento na formação continuada, por sua vez, enfrenta grandes dificuldades por não estar explicitado que instância é por ele responsável. Seriam as instituições de ensino, que deveriam se responsabilizar em promovê-lo, ou deveria ser responsabilidade de cada profissional ? Penso que a formação continuada deveria ser vista como uma co-responsabilidade das instituições escolares e dos profissionais da educação. Deveria ser encarada como parte integrante da formação docente, pois possibilita que enquanto se vivencia o fazer docente se mantém o acesso à reflexão teórica, elemento imprescindível para a prática pedagógica. Uma postura da direção do Colégio Guarani que chamou positivamente a atenção da equipe de pesquisa, e que demonstra o comprometimento dos gestores escolares, foi sua referência, no primeiro contato feito com o objetivo de solicitar a abertura do espaço da escola para a pesquisa, à necessidade de uma contrapartida dos pesquisadores para com a escola, no sentido de contribuir com a formação de seus docentes e discentes. Esta preocupação – e, de certa forma, cobrança – dos gestores escolares pode ser interpretada como um compromisso da direção com a formação continuada de seus quadros. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003920 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Revendo a questão inicial que mobilizou a presente pesquisa, considero que os elementos e reflexões apresentados oferecem uma contribuição, mesmo que parcial e provisória, para a compreensão sobre como os jovens pesquisados pensam e buscam solucionar dilemas morais relacionados à justiça e às diversidades. Algumas lacunas, entretanto, permanecem em aberto, bem como outras questões que surgiram no percurso. Concluí, a partir do envolvimento e dos elementos que os participantes da pesquisa apresentaram, que as situações dos dilemas hipotéticos fazem parte do cotidiano dos estudantes, todavia, seria importante investigar que outros dilemas reais eles vivenciam e quais são mais intensos e recorrentes. Aponto como um problema central a ser enfrentado, por professores e gestores educacionais, o não reconhecimento, por parte dos jovens, da autoridade e da credibilidade dos adultos. Seria pertinente, além disso, caracterizar a compreensão que os adultos (professores, gestores e demais profissionais da educação) possuem sobre as situações apresentadas pelos dilemas, ainda que hipotéticos, e como as enfrentam. Essas são questões sobre as quais pretendo continuar me debruçando, na tentativa de aprofundar a compreensão das complexas relações entre os sujeitos envolvidos no cotidiano escolar, partindo do pressuposto de que a escola deve cada vez mais se tornar um espaço em que as gerações mais jovens possam construir suas diferentes identidades, reconhecendo como riqueza a pluralidade presente em seu interior. 5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, M. Tolerar é Pouco? Pluralismo, mínimos éticos e prática pedagógica. Petrópolis, RJ: DP ET Alii: De Petrus; Rio de Janeiro: Novamérica, 2009. 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