Assim caminha a ciência... Por onde caminhará a pesquisa em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos? (ou Como conversar com jovens pósgraduandos e velhos professores engenheiros a respeito) Léo Heller – DESA/UFMG setembro/2008 A Ciência Moderna René Descartes (1596-1650) • • Jamais acolher alguma coisa como verdadeira se eu não a conhecesse evidentemente como tal; nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. Dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quanto possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. Blaise Pascal (1623-1662) • Sendo todas as coisas causa e conseqüência, assistidas e assistentes, mediatas e imediatas, e todas se conservando por um laço natural e imperceptível que une as coisas mais distantes e mais diferentes, eu afirmo ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes. A Ciência Moderna • Renascença, efervescência econômica, política e social do Ocidente europeu (séc. XVI e XVII) – Européia, branca e masculina... • • • • • Paradigma cartesiano Pilares: Galileu, Bacon, Newton... Ciência paradigmática: Física Concepção predominante: “mundo máquina” Organização da sociedade: positivismo A Ciência Moderna (Morin, 2003) • Desenvolvimento disciplinar da ciência – superespecialização: enclausuramento, fragmentação do saber. • Distanciamento entre ciências da natureza e ciências do homem. • Ciências “antropossociais” adquirem todos os vícios da especialização (sem nenhuma de suas vantagens). • Fragmentação: anonimato. – Especialista: ignorante de tudo aquilo que não lhe concerne. – Não-especialista: renuncia a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade. • Progresso científico: potencialidades tanto benéficas quanto subjugadoras e mortais. Séc. XX • Nova visão da História da Ciência (AlfonsoGoldfarb, 2004) – Da “história-pedigree” para externalismo e descontinuísmo. • Kuhn (1962) – Ciência normal crise revolução. – Paradigma: conjunto de regras, normas, crenças e teorias que direciona a ciência conforme a época e as comunidades científicas envolvidas. Crise da Ciência Moderna • Após mais de três séculos de absoluto predomínio: contestações no séc. XX. • Einstein e a relatividade. • Princípio da incerteza (Heisenberg): não se podem reduzir simultaneamente os erros de medição da velocidade e da posição das partículas. • Não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar: o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que entrou (Heisenberg e Bohr). • “A distinção sujeito/objeto é muito mais complexa que à primeira vista pode parecer”. Crise do paradigma dominante (Santos, 1987, 2004) 1. 2. 3. 4. Einstein: relatividade da simultaneidade (astrofísica). Princípio da incerteza (mecânica quântica). Teorema da incompletude e teoremas sobre a impossibilidade de se encontrar dentro de um dado sistema formal a prova de sua consistência (matemática, Gödel [1906-78]). Avanços do conhecimento nos domínios da microfísica, química, biologia... (e.g. Prigogine [19172003]: “irreversibilidade nos sistemas abertos significa que estes são produto de sua história”) Crise do paradigma dominante (Santos, 1987, 2004) Clássico Eternidade Determinismo Mecanicismo Emergente História Imprevisibilidade Interpenetração, espontaneidade, autoorganização Reversibilidade Irreversibilidade, evolução Ordem Desordem Necessidade Criatividade, acidente Questionamentos resultantes da crise (Santos, 1987, 2004) • Conceito de lei? – Leis passam a ter caráter probabilístico, aproximativo, provisório (Popper). – Simplicidade das leis: arbitrária e insuficiente. – Lei x sistema, estrutura, modelo, processo. • Conceito de causa? – Problema ontológico (Quais as características do nexo causal? Existe na realidade?) – Problema metodológico (Critérios de causalidade? Como reconhecer um nexo causal ou testar uma hipótese causal?) Sinais da crise Teoria dos sistemas dinâmicos Dinâmica de rede Teoria da complexidade Atratores caóticos. Fractais. Dinâmica nãolinear Estruturas dissipativas Teoria sistêmicas Autoorganização Redes autopoiéticas Ecologia profunda Sinais da crise - II • Teoria da complexidade (Morin) – Pensamento complexo: pensamento que lida com a incerteza e que é capaz de conceber a organização • pensamento capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo de reconhecer o singular, o individual, o concreto. – A palavra método deve ser concebida em seu sentido original, e não em seu sentido na perspectiva clássica, em que o método não é mais do que um corpus de receitas, de aplicações quase mecânicas, que visa a excluir todo sujeito de seu exercício. • Pelo contrário, na perspectiva complexa, o método, para ser estabelecido, precisa de estratégia, iniciativa, invenção, arte. Estabelece-se uma relação recorrente entre método e teoria. O método, gerado pela teoria, regenera-a. Sinais da crise - III • Epistemologia ambiental (Leff, 2002) – “Esforço por pensar a articulação de ciências capazes de gerar um método e um pensamento integrador do real, para desembocar em um saber [...] para problematizar a racionalidade modernizadora que provoca a crise ambiental.” – “O ambiente não é a ecologia,mas a complexidade do mundo; é um saber sobre as formas de apropriação do mundo e da natureza através das relações de poder que se inscreveram nas formas dominantes de conhecimento.” Sinais da crise - IV • Avaliação de quarta geração (Guba e Lincoln, 1989) – – – – 1ª geração: medição 2ª geração: descrição 3ª geração: julgamento 4ª geração: avaliação responsiva e construtivista • Responsivo: decisão sobre o que definir como parâmetros e fronteiras por meio de processo interativo e negociado envolvendo atores . • Construtivista: rejeita a abordagem controladora e manipuladora da ciência clássica e se apropria da interação observador-observado (processo hermenêutico-dialético). Sinais da crise - V • Avaliação de programas de saúde – enfoques emergentes (Bosi e Mercado, 2006) – Rejeição e crítica aos modelos tradicionais ou positivistas utilizados na avaliação, devido a suas limitações teóricas, metodológicas, políticas ou culturais. – Avaliação participativa, qualitativa, holística, de sistemas, colaborativa, transdisciplinar, democrática, de triangulação de métodos, de baixo para cima, crítico-interpretativa... O paradigma emergente (Santos, 1987, 2004) • Conhecimento prudente para uma vida decente – Todo o conhecimento científico-natural é científico-social – Todo o conhecimento é local e total – Todo o conhecimento é auto-conhecimento – Todo o conhecimento científico visa se constituir em senso comum Pesquisa em SMARH Objeto empírico “físico-natural” SA MA RH Objeto empírico “humano-social” Pesquisa em SMARH Técnicas para serviços e instalações de saneamento... Técnicas para controle da poluição... Compreensão dos fenômenos meteorológicos e hidráulicos.... SA MA RH Bem estar físico mental e social da população... Ambiente adequado e sustentável para a vida humana... Água adequada para o uso e a segurança humanos... Questões “clássicas” SA MA RH •Como ocorre a atividade microbiana metanogênica no tratamento de esgotos? •Quais variáveis intervêm no índice de perdas de água? •Como estimar a quantidade de material em suspensão na atmosfera? •Como reduzir a emissão de gases de efeito estufa? •Quais tipos de precipitações provocam as enchentes raras? •Como variam as características dos condutos quando infestados pelo mexilhão dourado? “Novas” questões SA MA RH •Como se comparam diferentes modelos de gestão em água e esgotos? •Qual é o efeito dos programas de gestão pela qualidade no desempenho dos serviços? •Qual é a percepção dos moradores quanto ao uso da água para consumo humano? •Como se deu a construção de uma nova relação entre titular e prestador de serviço em BH? •Quais seriam os (des)caminhos e •Como podem se organizar riscos do chumbo de baterias? consórcios inter-municipais para a gestão de resíduos? •Como são as representações sobre habitação e saneamento no cotidiano de moradores? •Qual é a percepção dos atores das Bolsas de Resíduos? •Quais metodologias poderiam ser empregadas na implementação de comitês de bacia? •Como se organizam os movimentos sociais em torno da água? •Como tem sido a política para fornecimento de água no semiárido? •Qual é a percepção dos riscos de inundação? Notas sobre a pertinência das “novas” questões • Engenharia é: “arte de aplicar conhecimentos científicos e empíricos e certas habilitações específicas à criação de estruturas, dispositivos e processos que se utilizam para converter recursos naturais em formas adequadas ao atendimento das necessidades humanas”. • Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos. • Alunos de diversas áreas de formação. – Imperialismo acadêmicos? Notas sobre o debate quantitativo x qualitativo (Minayo, 1994; Minayo e Sanches, 1993) • “Do ponto de vista epistemológico, nenhuma das duas abordagens é mais científica que a outra”. – “Uma pesquisa, por ser quantitativa, não se torna ‘objetiva’ e ‘melhor’, ainda que prenda à manipulação sofisticada de instrumentos de análise, caso deforme ou desconheça aspectos importantes dos fenômenos [...] estudados. Da mesma forma, uma abordagem qualitativa em si não garante a compreensão em profundidade”. Notas sobre métodos qualitativos (adaptado de Turato, 2005) Nível conceitual Método quantitativo Método qualitativo Atitude científica Explicação do comportamento Compreensão da dinâmica do ser humano Raciocínio Epistemologicamente, ambos são dedutivos (partem de hipóteses e teorias) – indutivos (partindo de dados coletados) Força do método Atribuída à alta confiabilidade/ reprodutibilidade. Atribuída à alta validade dos dados e achados Objeto de estudo Fatos (vistos e descritos) Fenômenos (apreendidos) Objetivos de pesquisa Estabelecimento matemático das relações causa-efeito Interpretação do significado dos fenômenos, como referido pelas pessoas Notas sobre métodos qualitativos (adaptado deTurato, 2005) Nível conceitual Método quantitativo Método qualitativo Andamento do projeto Procedimentos pré-fixados Procedimentos ajustáveis Amostragem Randomizada Intencional Tamanho da amostra “N” é indispensável “N” é impertinente Estudo das variáveis Controle de variáveis Não-controle de variáveis Tratamento/análise dos dados Estatístico Análise de conteúdo, entre outros métodos Estratégia de discussão Discussão/interpretação, propondo relações entre os elementos obtidos, cotejando com a literatura Generalização Estatística, explicando outras populações com as mesmas variáveis Conceitual, compreendendo outras pessoas ou grupos Múltiplas estratégias Estratégia metodológica para avaliação da relação entre saneamento e saúde na população Xakriabá, MG Dimensões de análise Estratégias para obtenção de dados 1 2 3 4 5 6 Observação participante * * * * Dados secundários de morbidade infantil * * Dados secundários de mortalidade * * Aplicação de inquéritos domiciliares * * * * * * Análises da qualidade da água consumida * * Legenda: 1 – Situação dos Xakriabá 2 – Perfil sanitário da sociedade Xakriabá 3 – Os sistemas médicos tradicional e ocidental 4 – Tecnologias exógenas: apropriação e resistência 5 – A dinâmica demográfica dos Xakriabá no período de 2000 a 2003 6 – Relação entre saneamento e saúde Logo... NOVAS QUESTÕES NOVOS MÉTODOS POTENCIAL PARA EMERGÊNCIA DE NOVO PARADIGMA?