UMA DEFINIÇÃO PERSPECTIVISTA DO
CONHECIMENTO
(revendo a definição tradicional)
Knowledge is not simply justified true belief, but
it is justified true belief justifiably arrived at.
Robert Fogelin.
(justificadamente alcançada)
Todos conhecem a definição tradicional ou clássica ou
tripartida de conhecimento como crença verdadeira
justificada.
A primeira condição é a de verdade.
Não podemos saber uma coisa falsa, exs:
- “Sei que a Lua é de queijo suíço”.
- “Sei que 2 + 2 = 3”.
Essas proposições soam falsas!
Daí temos a condição (i) da definição tripartida:
(i)
aSp -> p
Podemos dizer os “Gregos sabiam que os Deuses viviam no
monte Olimpo”, mas o que queremos dizer é que eles
pensavam que sabiam (elíptico)...
A segunda condição é a da crença.
“Eu sei que o céu é azul, mas não acredito nisso”...
soa contraditório.
Dessa intuição vem a condição (ii) da definição tripartida:
(ii) aSp
-> aCp
- Há objeções como a do estudante nervoso que acerta as
questões da prova oral, mas não acredita no que diz... Mas
falamos aqui de crença racional, não de uma obliteração
emocional da crença. (etc.)
Finalmente, há a condição de justificação:
a deve estar ser capaz (ao menos em princípio) de
apresentar evidências justificacionais adequadas para
aquilo que pretende conhecer (ou está de posse delas)
Ex.: Sei que Fernando Pessoa escreveu “Mar Português”
porque
(i) vi esse poema ser declamado em um filme sobre
Fernando Pessoa, e também porque
(ii) tenho uma coletânea de poemas desse autor etc.
Podemos então concluir:
(iii) aSp -> aECp
Note-se que a evidência justificaçional tem de ser
epistemicamente responsável – chamo a isso de
justificação razoável. Não posso dizer que sabia que um
conhecido meu iria morrer porque perdi um dente, mesmo
que essas coisas de fato ocorram...
Aqui também há problemas (entre outros):
- Sei que “ácido + base = sal + água”. Não sei quando nem onde aprendi
isso, mas sei (posso responder vagamente, ou não sei no sentido forte
da palavra?).
- O cão sabe que o seu dono chega às 7 horas da noite (pelo
comportamento sabemos que ele crê. Ele não pode justificar, mas é
possível reconstruir externamenteuma justificação indutiva para isso.)
Ignorando problemas, juntamos:
(i) aSp -> p,
(ii) aSp -> aCp, e
(i)
Temos
aSp ≡
p
(iii) aSp -> aECp
(ii)
&
aCp
Que já é a assim chamada definição tripartida.
(iii)
&
aECp
Cada condição é individualmente necessária e o
conjunto das condições é suficiente para que a
saiba p.
*
Como a condição (ii) é repetida em (iii), podemos excluir (ii),
donde:
(i)
(iii)
aSp = p & aECp,
Que é a versão bipartida da definição tradicional.
É curioso notar que em casos de crenças básicas como “Eu
sei que tenho sede” não temos evidência justificacional fora
da própria crença, donde:
aSp =
(i)
p &
(ii)
aCp
Apesar das possíveis dificuldades, a definição
tradicional de conhecimento só foi seriamente desafiada
com o problema apresentado em 1963 em um artigo de
três páginas e meia escrito por Edmund Gettier.
O que Gettier fez foi apresentar contra-exemplos nos
quais casos nos quais todas as três condições são
satisfeitas sem que a pessoa tenha conhecimento.
...........................................................
Devido a esse artigo o que desde então testemunhamos tem sido
um avalanche de definições alternativas muito imaginativas e
filosoficamente interessantes como as de Nozick, Dretske,
Lehrer etc. ou a uma alternativa como a de Williamson, que
desencadeou uma espécie de ceticismo quanto a
possibilidade de se definir o conhecimento (análise do
conhecimento).
Eis um contra exemplo do tipo Gettier (adaptado de O’Connor & Carr):
a = Maria. Ela pretende saber que p = “José veio à
universidade hoje”.
Ela tem uma evidência justificacional razoável:
E = José disse a ela que ele viria hoje pela manhã presidir a
reunião do Departamento e José é extremamente confiável.
Acontece que, sem que Maria saiba…
Pela madrugada o filho de José sofreu um sério acidente de
automóvel, encontrando-se hospitalizado, de modo que José
suspendeu a reunião…
Mesmo assim José esteve na universidade rapidamente hoje
pela manhã para apanhar alguns documentos em seu
escritório…
As três condições estão sendo satisfeitas: (i) p é verdadeira,
(ii) Maria crê que p é v, (iii) Maria tem uma justificação
razoável.
Mas Maria não sabe p!
+ Se Maria tivesse dito que
E1: José lhe disse hoje pelo telefone que havia suspendido a
reunião mas que estava vindo pegar documentos, ou que
E2: ela o viu estacionar seu carro diante do prédio do
departamento,
Notamos que:
E1 e E2 seriam evidências epistemicamente adequadas,
posto que vemos que elas são capazes de tornar p
verdadeira.
-Mas isso não acontece nos contra-exemplos do tipo Gettier,
pois neles a evidência justificacional apresentada, mesmo
sendo razoável, não é adequada, pois não tem nada a ver
com aquilo que torna p verdadeira!
-……………. Daí surge a solução que quero perseguir aqui:
A solução mais natural seria exigir que a justificação
epistemicamente adequada seja capaz de tornar p
verdadeira. (iii) tem que tornar v (i).
Quero primeiro expor as tentativas de se defender essa posição
na literatura filosófica:
A primeira é de Robert Almeder (década de 1970)
O que ele sugeriu é que uma evidência epistêmica adequada
(iii) deve acarretar (entail) a verdade da proposição (i).
É estranho, escreve Almeder, negar isso dizendo “Sua evidência
é suficiente para seu conhecimento de p, mas não torna p
verdadeiro.”
Usando o signo => para acarretamento, podemos reescrever a
definição tripartida segundo Almeder como:
(i)
(Df.2) aSp ≡ p
&
(ii)
aCp
&
(iii)
(aECp & (E => p))
Infelizmente, a proposta de Almeder forte demais!
Ela torna a justificação indutiva impossível, pois da verdade
da proposição evidencial E não se segue inevitavelmente a
verdade de p, como deveria ser no caso de acarretamento ou
implicação...
O seguinte experimento em pensamento de W. E. Hoffmann
para destruir a solução de Almeder. Imagine que Jones fica
várias horas sentado no saguão de um hotel vendo pessoas
com pesadas malas entrarem. No final disso ele decide
atravessar o saguão, certo de que o chão irá suportar o seu
peso. E o faz. Imagine agora que Smith faça a mesma coisa
no saguão de outro hotel, mas que ao atravessá-lo o chão
desaba sob os seus pés.
Comparando os dois casos, considerando que a evidência
justificadora E é a mesma, como no caso de Smith E não
torna p (“O chão irá me suportar”) verdadeiro, E não implica
em p. Portanto, para Almeder Jones não sabe que p. Mas isso
é obviamente falso!
Robert Fogelin, em 1994, formulou uma definição mais bem
sucedida que a de Almeder, creio que inteiramente correta.
O problema é colocado aqui pela primeira vez em um
contexto dialógico.
De acordo com Fogelin, uma evidência justificacional dada
para uma pretensão de conhecimento de p por a deve ser
(iii-p) uma justificação pessoal, e
(iii-e) uma justificação epistêmica.
(iii-p) A justificação pessoal deve satisfazer a condição de
responsabilidade epistêmica, por estar de acordo com os
standards epistêmicos e informação avaliável à pessoa no
momento em que afirma saber p.
Isso eu já considerei sob o nome de ‘evidência razoável’.
As evidências dos contra-exemplos do tipo Gettier
satisfazem essa condição.
(iii-e) Já a JUSTIFICAÇÃO EPISTÊMICA é a evidência
(razão) que estabelece a verdade da proposição p
para NÓS, ou seja, para quem quer que esteja
avaliando a pretensão de conhecimento de p por a.
Isso nenhum contra-exemplo do tipo Gettier é capaz de fazer.
Em todos eles, diz Fogelin, nós temos uma informação MAIS
AMPLA do que a, e por isso podemos ver que a evidência
dada por a, embora pessoalmente justificada, não é
epistemicamente justificada.
Ou seja: Podemos ver que ela é incapaz de tornar a
proposição p verdadeira, deixando de satisfazer o standard
da justificação epistêmica.
Como Fogelin escreve:
“We are given wider information than a has, and in virtue of
this wider informational set we see that a’s grounds, though
responsibly invoked, do not justify p. I think this double
informational setting – this informational mismatch between
the evidence a is given and the evidence we are given – lies
in the hearth of Gettier’s problem.”
De acordo com Fogelin, a condição (iii) de evidência justificacional na
definição tripartida de conhecimento proposicional deveria ser
desdobrada em uma condição de justificação pessoal (iii-p) e uma
condição de justificação epistêmica (iii-e), resultando na definição:
a sabe que p ≡ (i)
(ii)
(iii-p)
(iii-e)
p é verdadeira,
a crê que p é verdadeira,
a justificadamente vem a crer que p
As razões de a estabelecem (para
nós) a verdade de p.
Embora os contra-exemplos do tipo Gettier satisfaçam (iii-p),
eles não
satisfazem (iii-e).
Essa versão da definição tripartida é intuitivamente
satisfatória, mas ela não resolve o problema lógico
endereçado por Almeder, qual seja: qual o vínculo
interno entre as condições (iii-e) e (i)? Se a palavra
‘estabelece’ significa o mesmo que ‘implica’ ou
‘acarreta’ então nós caímos na mesma arapuca de
Almeder…
No que se segue vou sugerir uma versão formal do que
Fogelin sugere que não tenha o defeito de destruir o nosso
conhecimento indutivo.
Antes de reformular a definição tradicional, vamos explicitar os
pressupostos dialógicos subjacentes:
Chamamos a pessoa que avalia a pretensão de conhecimento
de a de sujeito avaliador s (linguisticamente isso geralmente
aparece como “nós”) (isso não exclui que s = a em autoavaliações de conhecimento). Chamamos ‘tj’ de o tempo em
que s realiza a sua avaliação. Com isso podemos formar
preparatoriamente a seguinte equivalência dialógica:
(ED):
sStj(aSp) ≡ sStj(p & aCp & aECp)
…………………………..…………………………….
ou (o que é o mesmo)
sStj(aSp) ≡ sStj(p) & sStj(aBp) & sStj(aEBp)
Exemplo de DE:
Uma aluna a na escola responde à questão sobre como sabe
que p = “A terra é redonda”
Referindo-se a fotos tiradas do espaço como evidência.
Ora,
ao julgar que a sabe, s
deve saber que a sabe que p é verdadeiro, que a crê que p é
verdadeiro, e que a deu uma justificação adequada para isso.
Tendo em mente essas assunções, quero agora
reexaminar as condições (iii) e (i) no contexto
dialógico de maneira a descobrir a precisa
relação interna entre elas,
o “elo epistêmico perdido”…
Considere primeiro a condição (i), da verdade, formulada como
“p”, ou “p é verdadeira”.
Essa formulação desconsidera como chegamos a esse resultado!
Não é por um passe de mágica que decidimos que p é v/f. Tem
de entrar a questão de como s, o sujeito avaliador, decide que
p é v ou f…
Ex.: p = “A terra gira em torno do sol”,
Além disso
p seria v para s1, discípulo de Aristarco, vivendo no sec. III
a.C.
p seria f para s2 vivendo na Idade Média.
p seria v para s3 vivendo no século XVI em diante…
- Como a avaliação da pretensão de conhecimento de a
depende do valor-verdade de p dado por s, ela depende
desse v-v dado em tj.
- A condição (i) “p” da formulação simbólica da def. tradicional não
leva em conta nada disso!
Alguém poderia perguntar aqui se o que se tem em mente com a
condição de verdade não é o valor-verdade último de p
independentemente de qualquer sujeito avaliador ou do
modo como se chega a esse valor…
A resposta é que essa demanda nos levaria ao CETICISMO
EPISTÊMICO, pois todas as nossas atribuições de verdade
empíricas são dependentes de suporte evidencial falível. Só Deus
(o avaliador infalível) conheceria o valor-verdade último. Como
nossa troca de informações com Deus não é das melhores, o que
nos resta é apenas interpretar “p” como “p é verdadeiro para s”.
Após entendermos para quem p deve ser v, ainda precisamos
saber o que faz p v. A condição (i) era
sStj(p), ou
sStj(que p é verdadeira), ou ainda
sStj(de pelo menos uma evidência suficiente para
fazer p verdadeira).
Mas para chegar a uma explicitação mais completa do que
está envolvido na condição (i) precisamos introduzir o conceito
de corpo de evidências E*, entendido como um conjunto
de evidências justificadoras cada qual contando a favor ou
contra a verdade de p. Aqui está a definição:
(Df.E*) E* = um conjunto de evidências mantido por
alguém, cada qual sendo por ela considerada como suficiente para a atribuição de verdade a uma proposição p.
Assim, se uma evidência ou composição de evidências
é um elemento de E*, então E deve ser suficiente
para tornar p verdadeira.
Para tratar com a noção de SER SUFICIENTE quero introduzir o
símbolo ‘~>’.
Df.:
F ~> Y quer dizer que sendo o antecedente F
verdadeiro, o consequente Y deve ser
(i) necessariamente verdadeiro (com probabilidade
1; certeza lógica), ou
(ii) Ser provavelmente verdadeiro em alto grau (com
probabilidade muito próxima a 1; certeza prática).
(i) captura a força de evidências formais, das ciências
dedutivas, formais, que nos dão certeza lógica.
(ii) captura a força das evidências indutivas, das ciências
empíricas, que nos dão certeza prática.
Assim, no caso de “E ~> p”, se E é verdadeira, então p é
certamente ou muito provavelmente verdadeira.
Ou seja: “E & E ~> p” tornam p uma proposição verdadeira ou
muito provavelmente verdadeira.
Podemos assim substituir
sStj(de ao menos uma evidência E, tal que E é suficiente para
p)
Por
sStj(E* & (E* ~> p))
Uma vez que E* é um conjunto de evidências consideradas por s
individualmente suficientes para a verdade de p.
Minha sugestão será substituir p por (E* & (E* ~> p)) como condição (i), a
condição da verdade. Mas antes quero fazer algumas considerações sobre E*.
Para mostrar o quão comum é E*, considere um exemplo:
Suponha que no tempo t o sujeito s sustenta:
p1 = “a temperatura esteve abaixo de zero esta noite”,
porque
E1 = o reporter na TV havia predito temperaturas abaixo de zero.
E2 = a temperatura esteve abaixo de zero porque a neve não deu
mostras de se derreter.
Temos aqui um E* constituído por um conjunto de condições
E1 e E2 consideradas individualmente suficientes para a
verdade de p1, ou seja E* = {E1, E2},
De modo que s admite em t E* para p1 e E* torna
indutivamente, com certeza prática, que p1 é verdadeira.
Ou seja, em t, assumindo o seu estoque de crenças, s
sustenta que p é verdadeiro.
Considere agora a proposição:
p2 = “A terra é plana”.
O sujeito s sustenta que p é falsa porque:
E1 = “Fotos tomadas do espaço mostram que a terra é
redonda”.
E2 = “Há inúmeros relatos de circunavegação da terra”,
E3 = “Navios parecem afundar quando desaparecem no
oceano”.
Nesse caso, para s em t, E* é formado por {E1, E2, E3…
En} e cada evidência é considerada suficiente - sob o
suposto do estoque de crenças mantido por s em t - para
tornar p2 (com certeza prática) falsa.
No caso sSt(E* & (E* ~> ~p2)) = ~p2
Terceiro caso,
s não sabe se a proposição p3 “Recife é uma cidade maior do
que Maceió” é verdadeira.
Nesse caso E* é para s um conjunto vazio.
Observe também que
1)Um elemento de E* pode ser um conjunto de
evidências que só enquanto tal é considerado
suficiente para p.
Ex: sei que p = “Essa mesa que estava aqui ontem”,
porque E* = {E} = “(i) ela é idêntica e (ii) está no mesmo
lugar”.
E, principalmente, que
2) Supondo que s seja um avaliador epistêmico
INTEIRAMENTE RACIONAL (isso é uma idealização), então
ou cada elemento de E* é suficiente para tornar p verdadeira
ou cada elemento de E* é suficiente para tornar p falsa, não
podendo existir casos mistos!
Pois, suponha que s mantenha E* constituido por {E1, E2}, de
tal modo que E1 seja para s suficiente para tornar p
verdadeira e E2 suficiente para tornar p falsa. Ou seja: “E1 ~>
p” e “E2 ~> ~p”. Mas é claro que E1 e E2 se anulam entre si e
não podem ser ambos mantidos por um sujeito epistêmico
racional (inconsistência).
(Não quer dizer que na prática sejamos racionais, mas só
somos verdadeiros sujeitos avaliadores epistêmicos
enquanto tais.)
Finalmente,
3) E* é sempre sustentado por s em certo período de tempo t,
pois depende da assunção da verdade de um background
informacional, de um estoque de crenças pertencentes ao
conjunto das crenças mantidas por s em t.
Assim, por exemplo, se E é
“A gasolina no tanque é suficiente para a viagem”,
isso pressupõe, por exemplo, que não pertença ao conjunto das
crenças de s, como a de que o tanque não está furado etc.
Dadas essas explicações, podemos reapresentar a condição
(i) p,
como algo que o sujeito avaliador s precisa saber no tempo tj em
que avalia a pretensão de conhecimento de a como:
(i’) sStj(E* & (E* ~> p)).
x
De fato, se nós temos E* em tj com algum elemento
que julgamos evidência suficiente para a verdade de
p, concluímos dedutivamente (usando o MP) ou
indutivamente (usando a regra de indução) que p é
verdadeira.
E isso é o mesmo que admitir que a condição de
verdade está sendo satisfeita por um avaliador humano
em situações reais nas quais as pessoas efetivamente
estão avaliando conhecimento, sem precisar pedir a
opinião de Deus sobre o valor-verdade de p.
Passemos agora a uma análise da condição de justificação, da
condição (iii) aECp.
Ora, tendo em mente que, para o s que avalia a pretensão de
conhecimento de a, a justificação dada por a deve ser
suficiente para tornar p verdadeira,
a estratégia para ligar a condição de justificação (iii) à
condição de verdade (i) é exigir que a evidência dada por a
seja aceitável por s como pertencendo a E*.
Ou seja: E apresentada por a só será epistemicamente
adequada (além de razoável) se puder ser admitida por s
como pertencente ao E* que ele sustenta enquanto estiver
avaliando a pretensão de conhecimento de p por a.
Eis, pois como devemos reescrever (iii) no contexto
dialógico da avaliação de conhecimento:
(iii’) sStj(aECp & (E  E*)).
Ora, vocês se lembram que tinhamos transformado a
definição tradicional de conhecimento em uma equivalência
que explicitava o papel do sujeito avaliador, ou seja:
(ED):
(i) (ii)
(iii)
sStj(aSp) ≡ sStj(p & aCp & aECp)
Ora, nosso próximo passo é apenas juntar (i’) com (iii’) para obter
(ED’):
(i’)
(ii)
(iii’)
sStj(aSp) ≡ sStj(E* & (E* ~> p)) & aCp & (aECp & (E  E*))
Aqui a espécie de relação interna entre (iii’) e (i’) se torna
clara.
Estamos agora em condições de extrair de DE uma
reformulação “dialógico-dependente” ou “sócio-epistêmica”,
se quiserem.
Basta considerarmos que sStj se encontra em cada lado do
sinal de equivalência, podendo assim ser abstraído como
uma pressuposição redundante. Com isso obtemos:
(i)
(ii)
(iii)
(Df.) aSp = (E* & (E* ~> p)) & aCp & (aECp & (E  E*))
Ou ainda:
(Df.) aSp ≡ (aC(E & (E ~> p)) & (E  E*) & E* & (E* ~> p)
Que mesmo assim só são realmente compreensíveis se
tivermos em mente DE’ como pano de fundo.
Questão: resolve essa definição os nossos problemas?
Para responder, precisamos primeiro ver como isso funciona
nos casos usuais:
Ex.1: Uma criança (a) diz (p) que a terra é redonda porque há
fotos tiradas do espaço que provam isso.
Eu, como sujeito avaliador (s) aceito essa evidência como
parte de meu E*, concluindo que a sabe p.
Mas nem todos os casos são tão diretos,
Ex.2:
Digamos que alguém diz p = “Recife é maior do que Maceió”
por ter lido isso em um guia turístico sobre o Brasil = E1.
Pode ser que eu saiba disso por ter estado nessas duas
cidades = E2.
Mas, supondo a confiabilidade de meu interlocutor, eu estarei
disposto a aceitar a sua evidência adicionando-a ao corpo de
evidências E* que aceito: E* = {E1, E2}.
Há exemplos que mostram o quão dependente a avaliação se
encontra do tempo em que ela acontece:
Digamos que a = Colombo, diga p e que p seja:
p = “Eu descobri o caminho marítmo para as Índias”
Um avaliador da pretensão de conhecimento pode julgar que
a (Colombo) sabe que p se o tempo de sua avaliação for
pouco após Colombo ter retornado de sua primeira viagem...
Mas um avaliador, talvez o mesmo, chegará à conclusão de
que a não sabe p alguns anos depois, por não aceitar mais
que o relato da viagem de Colombo possa pertencer ao seu
conjunto de evidências E* para o caminho marítmo para as
Índias…
x
Finalmente, devemos notar que há casos em que a
definição não reflete realmente DE’.
Considere: sei que p, em que p é “o ar condicionado
está ligado” porque E = ouço o barulho.
Nesse caso s = a e E = E* e mesmo o tempo da
avaliação é o presente. Aqui a avaliação usualmente
dialógica foi interiorizada.
Mas esse caso não nos interessa, pois nenhum contraexemplo do tipo gettier pode ser produzido com ele.
Vamos examinar agora os contra-exemplos do tipo Gettier.
Ex1 (Lehrer): Uma pessoa b trabalha na firma de a e b aparece sempre
dirigindo um BMW que afirma ser seu. a conclui razoavelmente que b é dono
de um BMW, disso concluindo p = “Uma pessoa de minha firma possui um
BMW”. Mas a não sabe que b é um mentiroso contumaz, e que o BMW
pertence à irmã de b.
As condições da definição tradicional estão, contudo, sendo
satisfeitas, pois o empregado c da firma de a realmente possui
um BMW!
Mas é óbvio que a não sabe p.
É essencial considerar os detalhes concretos excluídos dos
exemplos:
O julgamento precisa ser feito por alguém. Digamos que quem avalia a
pretensão de conhecimento de a seja o funcionário d da firma de a, que
sabe que b é um mentiroso contumaz, que o BMW pertence à irmã, e que
só o funcionário c tem um BMW. Nesse caso d não irá aceitar as
evidências dadas por a para a sua aceitação de que alguém de sua firma
possui um BMW, simplesmente porque a evidência dada é aceitável como
pertencente a E* admissível por d como suficientes para tornar p
verdadeira
As histórias gettierianas são sempre abreviações de
histórias mais longas e detalhadas...
Um outro exemplo ainda (Goldman):
Uma pessoa a dirigindo um carro percebe um silo vermelho e diz
p = “Lá está um silo vermelho”. É verdade, mas ela não sabe,
pois nessa região foram construidas dezenas de fachadas de
silos que imitam perfeitamente silos vermelhos, com exceção
dessa única, que é de um silo de verdade.
A questão é: como sabemos em detalhes essa “história
gettieriana”?
Resposta: a pessoa a dá carona a uma pessoa s que conhece
bem a região e essa pessoa também sabe que esse é o único
silo verdadeiro ao redor. A pessoa s se recusa a aceitar a
avaliação meramente visual de a como suficiente para tornar
verdadeira a afirmação de que reconheceu um silo vermelho,
recusando-se a aceitar E como pertencente ao seu E*.
* Ex3 (Russell): auto-avaliação:
No momento t1 olho o meu relógio, mostra 11:15: E1.
Olho então no momento t2 o relógio da igreja, são 11:15 da
manhã: E2.
Me recordo de que o meu relógio nos últimos dias estava
atrazando…
Olho outra vez meu relógio cuidadosamente no momento t3,
percebo que deve estar parado desde ontem. Concluo que em t1
eu não sabia que eram 11:15.
Aqui a pretensão de conhecimento de a em t1 está sendo
avaliada em t3 pelo próprio a como s em um contexto
dialógico internalizado.
Para s (a em t2) E* é constituido por E2,
mas E1 não é aceito como pertencente a E*.
A solução proposta responde ao contra-exemplo de Hoffman,
pois as evidências são admitidamente falíveis.
Um sujeito avaliador s julgará em tj, antes do acidente do
chão afundar-se, que tanto Jones quanto Smith sabem que o
chão aguentará os seus pesos, pois as evidências
acumuladas por ambos são aceitas como pertencendo ao E*
aceito por s, tal que E* ~> p.
Após o acidente, a evidência E dada por Smith passa a ser
considerada insuficiente, posto que E* deixa de ser aceito
por s tal que E* ~> p.
A força da relação indutiva é dependente do contexto,
diferentemente de E => p, o que a torna + flexível.
Finalmente, a definição tradicional revista esclarece uma
conhecida tentativa de solucionar o problema de Gettier, que
seria a de que a evidência epistêmica adequada deveria ser
ultimamente não-derrotada (ultimately undefeated) por
nenhuma verdade (evidência) (Lehrer…).
O problema dessa solução é que ela exige de nós
conhecermos a totalidade das verdades para
sabermos que a sabe que p, o que é impossível.
Ora, essa solução volta a fazer sentido quando transformada na
condição de que a evidência dada por a deve se encontrar
ultimamente não-derrotada (ultimately undefeated) apenas pelo
estoque de crenças mantido por s no momento tj, de
modo a poder ser aceita como pertencendo a E*.
Mas isso é uma condição bastante razoável!
*A conclusão de tudo isso seria que essa versão sócio-epistêmica
da definição tradicional resolve os problemas do tipo Gettier
sem criar novas dificuldades, como acontece com outras
soluções.
Parece que não foi a velha intuição tradicional de que
conhecimento é crença verdadeira justificada, mas foi a excessiva
confiança em uma versão simbólica incompleta daquela
intuição, o que conduziu ao problema apontado por Gettier.
Há, certamente, dificuldades remanescentes, como a do lugar
do externalismo epistêmico diante de uma redefinição útil de
uma definição eminentemente internalista, que é a tradicional...
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