FERNANDO PESSOA A Lírica (Poesia) Moderna • • • Duas polaridades: Uma lírica intelectualizada, de grande rigor formal, iniciada por Mallarmé e continuada por Valéry, pela qual a poesia deve ser “uma festa do intelecto”; uma lírica formalmente livre, alógica, iniciada por Rimbaud e elevada às últimas conseqüências pelo poeta surrealista André Breton, pela qual a poesia deve ser “a derrocada do intelecto”. A Lírica Moderna • É marcada por uma tensão entre as “forças cerebrais”, de uma lírica intelectualizada, e o “impulso anárquico”, de uma lírica livre e alógica. A Lírica Moderna • Característica comum a todos os artistas da vanguarda moderna: a ruptura com a tradição cultural e o desejo de criar uma nova estética em face à crise da humanidade provocada pelos horrores do entre-guerras. A Lírica Moderna • A poesia vanguardista moderna é a poesia da sugestão, ou seja, tende mais a sugerir do que a comunicar. • A poesia deve provocar no leitor apenas uma “sugestão mágica”, sem nenhuma pretensão de ser compreendida. A Lírica Moderna • O poeta moderno agride o leitor com seus versos inefáveis, inexplicáveis, alimentando-se do prazer aristocrático de não ser compreendido. A Lírica Moderna • Crise do conceito de personalidade = redução do ser humano a um número. • A lírica moderna é a poesia da dissonância: a poesia do homem fragmentado e em crise num mundo igualmente fragmentado e em crise. A Lírica Moderna • Não há mais lugar para a unidade e a totalidade. • A totalidade é sempre falsa porque está estilhaçada e seu estilhaçamento produz uma cisão no sujeito que se divide entre o “sujeito lírico” (o poeta) e o “sujeito empírico” (o homem). A fragmentação em Pessoa • A fragmentação em Fernando Pessoa envolve um ato de fingimento que se completa na utilização de várias linguagens, reveladoras do sujeito como um ser múltiplo. • Parece que Pessoa levou ao extremo a fragmentação, chegando mesmo à despersonalização. A fragmentação em Pessoa • Criou não um, mas vários sujeitos líricos. Entende-se esses sujeitos líricos como personas, como máscaras, como criações. A heteronímia de Pessoa A heteronímia de Pessoa • Quando o autor faz uso de “heterônimos”, não se esconde sob um nome falso. Ocorre bem o contrário, “ele se coloca em posição de diálogo com o sujeito lírico que ele mesmo criou, além de assinar a sua própria obra.” A heteronímia de Pessoa • O heterônimo é um personagem criado pelo poeta, que escreve a sua própria obra. Tem nome, obra, biografia e, sobretudo, um estilo próprios. O autor, o criador do heterônimo, passa a ser chamado de “ortônimo” e a sua criação passa a ser chamada de “heterônimo”, não havendo possibilidade de existência de um sem o outro. Fernando Pessoa foi quem criou essa designação e é o único caso de heteronímia na literatura universal. Álvaro de Campos: o heterônimo da lírica moderna • Álvaro de Campos é o mais fecundo e versátil heterônimo de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por vezes até histérico. Com algumas composições iniciais, que devem algo ao Decadentismo ("Opiário"), Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo (ao auge), da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na "Ode Triunfal". Álvaro de Campos: o heterônimo da lírica moderna • É o único heterônimo que conhece uma evolução ("Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já não o sou"). Passa por três fases: a decadentista, a futurista e sensacionista e, por fim, a intimista-melancólica. As fases da poesia de Campos 1ª - A fase decadentista • Traduz-se por sentimentos de tédio, enfado, náusea, cansaço, abatimento e necessidade de novas sensações. • Falta de sentido para a vida e necessidade de fuga à monotonia. 1ª - A fase decadentista • Esta fuga era feita habitualmente à base de entorpecentes, como era o caso do ópio. • Um dos poemas mais exemplificativos desta fase é o “Opiário” (1915). 2ª - A fase futurista e sensacionista • Após a descoberta do Futurismo (de Marinetti), da criação do Sensacionismo, e da influência que recebe do escritor norte-americano Walt Whitman, Campos adotou, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico (repetitivo), exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes (interrupções) e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável, desprezando a rima e a métrica regular. Assim, ele busca a liberdade, a irreverência e a prosificação da poesia. 2ª - A fase futurista e sensacionista • Álvaro de Campos, além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, canta também os escândalos e corrupções da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo. 2ª - A fase futurista e sensacionista • Esta fase também é marcada pela intelectualização das sensações ou pela sua desordem. Como verdadeiro sensacionista, procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. O seu sensacionismo, contudo, distinguese do seu mestre Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o pensamento. 2ª - A fase futurista e sensacionista • O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade, por estar de acordo com a Natureza; já Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a violência e a força de todas as sensações ("sentir tudo de todas as maneiras"). 3ª - A fase intimista-melancólica • Esta fase caracteriza-se por uma incapacidade de realização, trazendo de volta o abatimento. O poeta vive rodeado pelo sono e pelo cansaço, revelando desilusão, revolta, inadaptação, devido à incapacidade das realizações. 3ª - A fase intimista-melancólica • Após um período áureo de exaltação heróica da máquina, Álvaro de Campos é possuído pelo desânimo e pela frustração melancólica. Parece apresentar pontos comuns com a 1ª fase – a decadentista - , contudo há que sublinhar que a intimista traduz a reflexão interior e angustiada de quem apenas sente o vazio depois da caminhada heróica. 3ª - A fase intimista-melancólica • Este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortônimo, no ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância, ou de qualquer coisa irreal, é o único heterônimo que compartilha da vida extraliterária de Fernando Pessoa. Análise dos poemas 1 - “Ode triunfal” • A “Ode Triunfal” (fase futurista-sensacionista) está escrita em verso livre e amplo (num total de 240 versos) e num estilo profundamente inovador marcado pela: grandiloquência (visível, nomeadamente, nas exclamações e interjeições), exaltação épica ( Eia! Hálá! ), ritmo esfuziante, torrencial; anáforas, apóstrofes repetidas, enumerações, exclamações, interjeições, onomatopeias, neologismos (ferreando), fonemas substantivados, estrangeirismos, grafismos inovadores, frases nominais e infinitivas, oximoros; misturas semânticas ousadas: máquinas/ filósofos/ termos técnicos/ referências míticas; expressões populares/ expressões eruditas. 1 - “Ode triunfal” • Podemos considerar nesta “ode” três momentos: • A. Introdução (vv. 1 – 4): • Marcada pela vontade de “cantar”, mas confessadamente em situação de “não canto” – “tenho febre e escrevo”. 1 - “Ode triunfal” • B. Desenvolvimento (vv. 5 – 238): • Marcado pela busca de identificação com tudo – máquinas, pessoas, tempos; abertura para o exterior e anulação do Eu pelo excesso das sensações; cosmopolitismo – cidade, luzes, modernidade, Europa; canto de todas as atividades contemporâneas – comércio, indústria, agricultura, política, imprensa, bordéis, gente reles; à mistura com uma vontade de identificação com o moderno que vai até à perversão sexual (vv. 72, 86-108 e 116-117). 1 - “Ode triunfal” • Este canto de triunfo vai em crescendo até o final, mas com “quebras”: referência a escândalos e à corrupção (coexistentes com a modernidade exaltada) e, sobretudo, o discurso parentético (dos versos 182 a 190), com a evocação nostálgica da infância e do mundo rural em desapropriação. Estas quebras, à mistura com a referência à febre, do primeiro verso, ao canto também do passado (vv. 17-22) e à impotência manifestada na conclusão, afastam, por outro viés, o poema dos preceitos estritos do Futurismo a Marinetti. 1 - “Ode triunfal” • C. Conclusão (o último verso): • Um verso de conclusão, espécie de “finda”: “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” – que representa uma confissão de fracasso e um retorno ao ponto inicial, à febre. 2 - “Lisbom Revisited (1923)” • Poema da terceira fase: intimismo e melancolia. • Aspectos Temáticos Fundamentais: a inexorabilidade (inevitabilidade) da morte; a recusa de: moral; metafísica; rejeição das verdades que a sociedade tem; ciências; civilização moderna; o direito à solidão, ao silêncio, à diferença; a infância como símbolo da felicidade perdida, presente no “céu azul”, no “Tejo” e na Lisboa de outrora. 2 - “Lisbom Revisited (1923)” • Aspectos linguísticos e estilísticos mais relevantes: acumulação de construções negativas, como manifestação da recusa que o sujeito poético faz das principais manifestações da vida moderna de Lisboa; Obs.: Da exaltação e da euforia febril de “Ode Triunfal” passa-se ao tédio, ao desejo de solidão, à náusea e à angústia. 2 - “Lisbom Revisited (1923)” • É precisamente esta última fase de Campos, e o ceticismo que o percorre, que o aproximam de Pessoa ortônimo. Esta temática da infância aparece, no poema, depois da enumeração de uma série de sensações violentas e negativas. O sujeito poético vê o céu, o Tejo e Lisboa com o olhar da sua infância e ao mesmo tempo com o olhar do agora, do momento presente (“Ó céu azul – o mesmo da minha infância”; “Tejo ancestral e mudo”; “Lisboa de outrora e de hoje”). 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • A sociedade de produção sem as máquinas da revolução industrial, ou sem os carros, seria um progresso apeado, ou seja, um progredir de coisa nenhuma, para outra igual a si. 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • O automóvel, porém, encerra dentro dele outra particularidade: para ser guiado necessita de um volante, um comando de seguir viagem, cujo maquinismo, instrumento, o volante, é o símbolo sensacionista por excelência. Sem ele a sensação seria estéril, fixa, intoxicante, inconsequente, descontrolada, desequilibrada e descabida. 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • A estrada de Sintra é apenas um caminho, pelo qual, com o auxílio do volante (o sensacionismo, a corrente), cada um pode conduzir o progresso social e industrial, mecânico e econômico, a seu bel prazer, em direção à descoberta de si próprio, enquanto homem cosmopolita na sua fuga para a vida, para a frente, com a pobreza à esquerda e o latifúndio à direita, mas iludido e material, como o é, indubitavelmente, o homem típico da sociedade de produção. 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • No epílogo "final", há a sugestão de que as coisas do progresso, só serão válidas e úteis desde que forneçam um veículo e caminho que facilitem ao homem do seu tempo a tarefa essencial de se buscar, para a descoberta de si mesmo, enfim, um quadro de fundo e leitmotiv que assiste a todo e qualquer sensacionismo, ou até a todo e qualquer "ismo". 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra • Outro pormenor a realçar, enquanto crítica do social, é que, ironicamente, o Chevrolet conduzido é emprestado, pois o modelo de sociedade descrito e subscrito por Campos também foi emprestado, não é português, é anglo-americano, visto que em Portugal a revolução industrial nunca chegou a acontecer, em termos determinativos e concludentes. 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • A oposição entre as duas cidades denuncia a medida da inquietação do sujeito que põe entre ambas. Quando está em uma, quer estar em outra e vice-versa. Essa oposição é elevada à condição simbólica de expressão de si (vida ou sonho). 3 – “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” • A inquietude traz a instabilidade que leva o eu poético a admirar aqueles que estão parados.” No final, ao aproximar-se de Sintra, transparece o “cansaço da imaginação” e, em sua reflexão, parece distanciar-se da compreensão de si mesmo: “cada vez menos perto de mim...” 4 – “Mestre, meu mestre querido!” • Neste poema, Campos faz uma homenagem ao seu mestre Alberto Caeiro. Reverencia o Mestre, mas numa evocação dramática de discípulo que, confessadamente, não logrou professar o credo da "apendizagem de desaprender" , e para quem o "pasmo essencial / Que tem toda criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras" se transforma na "pavorosa ciência de ver". 4 – “Mestre, meu mestre querido!” • • • Álvaro de Campos, o poeta que nas grandes odes sensacionistas tenta a captação panfágica da realidade plural, ávido de um "mundo exterior sempre múltiplo", abre o seu poema com a clara manifestação de seu sentimento de perda em relação a Caeiro ("Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?"), o que se consuma nos versos finais da terceira estrofe: Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim. 4 – “Mestre, meu mestre querido!” • Campos se declara caído na desgraça de ser próprio, sendo ninguém, sendo nada. A "clareza da vista", objetivadora, ensinada naquela iniciação epistêmica, não encontra no discípulo malogrado "a alma com que a ver clara", e "o alto dos montes", para que fora chamada, não foi alçado pela "criança das cidades do vale" porque ela "não sabia respirar". 4 – “Mestre, meu mestre querido!” • Daí decorre o sentimento de vazio existencial presente na obra de Álvaro de Campos, seja constatado, euforicamente, nas grandes odes sensacionistas, seja manifesto, dramaticamente, na fase depressiva de seus últimos poemas. 5 – “Poema em linha reta” • O sujeito lírico é crítico em relação a si próprio e interroga o leitor pedindo-lhe respostas. Dessa forma, se apresenta por meio de adjetivos pejorativos: reles, porco, vil, pessimista, sujo, ridículo, absurdo, grotesco, mesquinho, submisso, arrogante, cômico, errôneo. Expõe-se, portanto, ao ridículo quando revela suas transgressões sociais, através de uma perspectiva absurda e sarcástica. 5 – “Poema em linha reta” • Quando declara que “tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”, o eu poético sugere uma fuga das etiquetas que a sociedade impõe, sem dar importância às convenções sociais, que exigem regras das “pessoas civilizadas”. 5 – “Poema em linha reta” • O poeta, ironicamente, lamenta que os outros, “os príncipes”, “os superiores”, ou seja, nenhuma “voz humana” possa confessar-lhe algum pecado ou alguma atitude vil. Trata-se, naturalmente, de uma corrosiva ironia à hipocrisia social que ostenta de falsas aparências. 6 – “Todas as cartas de amor são” • “Todas as cartas de amor são” e “Poema em linha reta” possuem um ponto em comum ao abordarem, ambos, “a questão da transgressão da ordem social pelo ridículo, pelo absurdo”. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Trata-se de um sujeito lírico que não assume a dimensão heróica de luta contra a sociedade, lutando por algum ideal revolucionário. Numa perspectiva niilista, o sujeito assume a “possibilidade de ser ridículo” como traço marcante da condição humana. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Na introdução do poema, está posta a ideia de que, em sua totalidade, as “cartas de amor” são “ridículas”, e que não poderiam ser cartas de amor se não fossem ridículas, pois parece que todo o sentimentalismo é piegas. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Então o sujeito lírico demonstra uma “virada de perspectiva” nos versos: “Mas, afinal,/Só as criaturas que nunca escreveram/Cartas de amor/É que são/Ridículas.” Atribuindo um caráter negativo ao termo “ridículas”, subverte a noção e sugere que “ridículas” são, justamente, as pessoas que não escreveram cartas de amor. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Satiriza e rebaixa, assim, as “criaturas” que nunca conseguiram expressar o sentimento amoroso por cartas, “que não se permitiram o ridículo de se entregar ao amor.” Portanto não se expor à verdade, mesmo que inventada; não se entregar às intempestivas razões do coração (misterioso), é renegar a liberdade e a maior de todas as possibilidades permitidas para ser, adoravelmente, ridículo. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Com os versos “Quem me dera no tempo em que escrevia/Sem dar por isso/Cartas de amor/Ridículas.”, a fala do sujeito lírico “ganha uma dimensão melancólica”, na medida em que essa escrita passa a ser objeto de desejo do eu poético, inalcançável no presente.” 6 – “Todas as cartas de amor são” • Tal amargura parece configurar-se nos seguintes versos: “A verdade é que hoje/As minhas memórias/Dessas cartas de amor/É que são/Ridículas.” Ao pensar no passado, parece refutar a idéia de nostalgia, pois recordar sobre as cartas de amor que, supostamente, escrever é que deveras inútil nesse momento. 6 – “Todas as cartas de amor são” • Na estrofe final, posta entre parênteses, faz uma “espécie de comentário interno sobre o próprio poema”: “(Todas as palavras esdrúxulas/Como os sentimentos esdrúxulos,/São naturalmente/Ridículas.)” Sugere, enfim, que o amor, como sentimento que arde, que é extravagante, que provoca devaneios e desesperos, tem a particularidade de poder ser conclamado e de nos permitir ser exagerado e ridículo. Então, esquisito ou risível, o discurso poético e a expressão amorosa são objetos dignos de riso, na autoconsciência corrosiva de Campos. 7 - Tabacaria • O poema enquadra-se na terceira fase poética de Álvaro de Campos, denominada intimista-melancólica. Desiludido dos esforços das fases anteriores, "Sensacionista" e "Futurista", Campos deixa-se cair num pessimismo intenso, marcado por um forte regresso das memórias da sua infância e a consciência de que ficou (e está) sozinho no mundo. 7 - Tabacaria • O tema do poema é a dimensão da solidão interior face à vastidão do Universo exterior. A Tabacaria acaba por ser um símbolo que não tem valor próprio - verdadeiramente importante é que esse símbolo faz nascer em Campos a necessidade de analisar a sua própria existência face à existência da Tabacaria enquanto coisa fixa e real. 7 - Tabacaria • A simbologia do quarto e da janela versus a rua e a Tabacaria pode representar a oposição entre o "dentro" e o "fora", uma oposição dialética que parte em busca de uma síntese, de uma compreensão. 7 - Tabacaria • Ao longo de todo o texto, há uma noção clara de diálogo, mesmo sem personagens. Trata-se de um monólogo, onde Campos fala para si mesmo e, em evidentes momentos de quebra (passagens entre parênteses), para a fim de pensar, intercalando ao discurso racional momentos de delírio momentâneo, irracionais, emocionais, mas complementares. 7 - Tabacaria • A primeira parte do poema correspondente à primeira estrofe, o sujeito lírico assume uma espécie de vazio ontológico - "não sou nada", e a contraposição entre o nada exterior e o tudo interior ("tenho em mim..."). Na realidade o vazio ontológico é ilusório e aquele "nada" é apenas o assumir de não ser nada exteriormente - a nulidade não é verdadeiramente ontológica (teoria do ser enquanto ser – em si mesmo), mas fenomenológica (fenômenos interiores). 7 - Tabacaria • Na parte seguinte, o sujeito lírico estabelece a sua condição atual, ao mesmo tempo em que localiza o espaço sabemos que está no seu quarto e a metáfora do quarto é a metáfora da sua condição humana. Ele é uma mente presa num quarto que olha a realidade do dia a dia por uma janela. 7 - Tabacaria • O que fica é, sobretudo, um sentido de oposição entre realidade (a rua, a Tabacaria) e irrealidade (a vida dele, o quarto). A ligação entre ambas é apenas uma janela, ou seja, permite uma interação limitada, mas nunca uma passagem concreta de uma para a outra. O eu poético é um "falhado", mesmo que se saiba um gênio - é afinal Pessoa que fala pela voz da Campos. Está vencido e sabe que nunca conseguirá ser feliz. 7 - Tabacaria • Na entrada do homem na Tabacaria, o sujeito lírico justifica para si mesmo o rumo que teve na vida e, deixando ainda estar-se desesperado, olha as alternativas que lhe restavam para ser feliz. Aqui a contraposição já não é entre o real e o ideal, entre o fora e o dentro, mas entre ele e os outros, entre a sua condição e a condição dos outros. 7 - Tabacaria • Choca-lhe, sobretudo, aqueles que vivem a sua vida numa inconsciência plena - essa é afinal, em muitas das passagens de Pessoa, o ideal inatingível de felicidade. 7 - Tabacaria • Começa com a rapariga que come chocolates, suja, perdida na sua gula. Essa passagem é marcante e simples de analisar: "Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! / Mas eu penso". Sabe, porém, que isso está fora do seu alcance - ele não vai deixar de pensar. Resta-lhe uma atitude nobre e vaga: os poemas. Uma atitude nobre que ele espera que o salve, não sabe bem como, de uma mediocridade intensa que lhe vem de nada fazer sentido em sua vida. 7 - Tabacaria • Surge o regresso da realidade. O sujeito lírico deixa de "filosofar" quando um elemento real se intromete entre ele e a Tabacaria. Tudo se desmorona, porque tudo estava apenas no pensamento dele e nunca poderia ser real da mesma maneira que o Esteves é real. 7 - Tabacaria • Passando, subitamente, a interveniente na realidade que analisava, vê um conhecido que depois lhe acena, e deixa de poder estar fora da realidade para ser puxado violentamente para o meio dela. É assim que o Universo se reconstrói subitamente, sem metafísica, ou seja, sem dar mais azo ao pensamento e à análise - é só a verdade dos sentidos e não a idealização do pensamento. 8 – “Aniversário” • Escrito em 13 de junho de 1930, data do aniversário do próprio Fernando Pessoa, o ponto de partida do poema é a comemoração do aniversário. Ao final, entretanto, aparece a data de 15 de outubro de 1929, aniversário atribuído a Álvaro de Campos. Trata-se de um dos poemas mais tristes e simultaneamente pungentes de toda a obra do poeta. 8 – “Aniversário” • O poema "Aniversário" enquadra-se precisamente na última fase do poeta, a fase dita “intimista-melancólica”, em que os temas abordados por Campos apontam para a sua desilusão com a vida, sugerindo a amargura e a lembrança de um passado para onde nunca mais poderá regressar. 8 – “Aniversário” • "Aniversário" é mesmo marcado por essa recordação da infância: " No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto". Campos parece referir-se aos anos de infância de Pessoa, em que nenhum dos seus irmãos tinha ainda morrido, e o seu próprio pai ainda o acompanhava. Nesse "tempo", festejar os anos era ainda uma festa inocente e feliz. 8 – “Aniversário” • O tempo passado é um tempo feliz, mas, simultaneamente, um tempo perdido, porque as crianças não sabem que são felizes, só mais tarde quando recordam. As crianças têm "a grande saúde de não perceber coisa nenhuma". 8 – “Aniversário” • A seguinte passagem "O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), / O que eu sou hoje é terem vendido a casa, / É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio..." sugere uma grande desilusão. A infância perdeu-se para nunca mais regressar igual. No momento presente o poeta sente essa perda como a perda da sua identidade feliz. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • Na poesia de Campos, a melancolia é efeito de uma perda que ocorre no próprio eu. Portanto para este eu do agora, do momento presente, sobrou o vazio inquieto, restaram os sentimentos de melancolia, tédio, angústia e náusea diante de tudo. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • O movimento de arrumar a mala é alternado com o do adiamento de todas as viagens. Partindo de uma profunda reflexão, acerca da aridez interior e do descontentamento de si, chega-se à conclusão de que se tem por força que arrumar a mala. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • O gesto cotidiano de acender o cigarro é mais do que um simples gesto, representa o desejo de adiamento, seja da vida, seja do universo inteiro. O presente absoluto que assola a vida também deve ser adiado. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • O julgamento do adulto, de agora, é implacável consigo mesmo: o sentir-se derrotado pela vida o comprometeu de modo irremediável, deixando muito distante o menino de outrora, que ainda podia sonhar. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • Mesmo com a constatação de que arruma melhor a mala apenas no pensamento, sabe que não é apenas no pensamento que a sua vida deverá ser arrumada, mas também na ação. A repetição da expressão “ter que arrumar” torna obrigatória a tentativa de realizar a ação. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • Por que “arrumar a mala de ser” se tudo é deserto? Por toda a vida teve e tem de arrumar a mala, mas o que tem feito é ficar sentado. Num dado momento, contudo, o impulso para arrumar a mala parece vencer a atitude estática e ruminante. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • Só que, quando se levanta em definitivo, com força e coragem para arrumar a mala, mais uma vez volta à questão da felicidade que mora sempre na casa dos outros ou em qualquer lugar em que não se esteja. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • Ele tem pena de si mesmo, porque sabe que o deserto que se formou, sem possibilidade de disfarçar o solo com pedras e tijolos, está no seu interior, pois pode até ser que nem tudo seja deserto, pode haver oásis, mas não para ele. 9 - “Grandes são os desertos, e tudo é deserto”: • No final, como última tentativa desesperada de ancorar nessa necessidade, decide que mais vale arrumar a mala, porque senão o pensamento lhe revelará o vazio, o do deserto de ser. Talvez, no entanto, já seja tarde demais, porque no último verso, lemos a palavra “Fim”. 10 - “Lisboa com suas casas” • Poema de estrutura simples, formado por cinco estrofes, de tamanhos diferentes, escrito em versos livres, tendo como núcleo de sua construção a repetição: “Lisboa com suas casas/De várias cores.” Tal repetição sugere uma caracterização trivial e abstrata, revelando a “monotonia objetiva da cidade.” 10 - “Lisboa com suas casas” • Na longa segunda estrofe do poema, acontece um deslocamento para um outro tempo e para outro espaço. O sujeito lírico surge em meio a noite, com os olhos fechados e sofrendo de insônia. Em seguida, “como numa projeção, não vê mais Lisboa com as suas casas de várias cores no lado interno das pálpebras.” 10 - “Lisboa com suas casas” • Ocorre, assim, uma de perspectiva e a monotonia dessa imagem “provoca o sorriso satisfeito de quem dorme e esquece que existe.” Trata-se de uma “imagem interiorizada, entre a vigília e o sono, que constrói um lugar aconchegante, que leva ao sono e ao descanso.” 10 - “Lisboa com suas casas” • Na passagem da vigília ao sono, “no tédio de estar acordado ao descanso de esquecer que existe”, é que a cidade interessa como “projeção subjetiva da interioridade do sujeito.” Última frase, escrita em inglês, do poeta: “I know not what tomorrow will bring” (Eu não sei o que o amanhã trará)