1 A “ameaça” da alta: considerações sobre o amor na psicose1 Sâmea Carolina Ferreira Quebra2 O presente trabalho discute o amor na psicose – que para Lacan 3é considerado um amor morto – e suas implicações diante da proposta de alta institucional para um sujeito assistido num serviço de atenção psiquiátrica. Durante pesquisa de mestrado em um CAPS 4, pude acompanhar um caso de desestabilização de um paciente que ao prenúncio de sua alta dessa instituição, teve uma recaída. Tal situação e o modelo de assistência atualmente empreendido no atendimento aos portadores de transtorno mental – definição que inclui sujeitos estruturados psicoticamente – fundamentaram as considerações teóricas deste artigo. Considerações sobre o amor “O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor”, eis a definição de Lacan5 sobre o amor na neurose. Considerando a impossibilidade da relação sexual, o amor, então, aparece como a promessa de ser Um e de reencontrar o objeto para sempre perdido, a saber, o objeto a: o amor se alicerça no reconhecimento de uma incompletude – marca da falta que promove ao sujeito a separação do Outro. A demanda de amor que se engendra na falha reconhecida no Outro busca, para além do objeto, o reencontro com esse resto “a”, causa do desejo, mas ao invés de encontrálo, recobre-se com outra falta, ao que se acrescenta que é exatamente a tentativa de fazer Um com outro que denuncia “o impossível de estabelecer a relação dos... (...) – dois sexos”6. A falta que se reconhece na relação amorosa se dá pela inscrição do significante Nome-do-Pai, que, sobretudo, pela via da castração, impede ao sujeito o acesso ao Outro, e faz funcionar o registro simbólico como via necessária para fazer barra ao gozo do Outro, descrito por Soler7 como um gozo foracluído do simbólico e que, por isso, é não-sexual. Trabalho desenvolvido no âmbito da disciplina “Tópicos Especiais: a noção de gozo em Psicanálise”, ministrada pela professora Dra. Roseane Freitas Nicolau. 2 Psicóloga, discente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará, sob orientação do professor Dr. Ernani Pinheiro Chaves. 3 1955-56 [2008]. 4 Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II: Santa Izabel, situado ao município de Santa Izabel do Pará. 5 1972-73 [2008], p. 51. 6 Idem, p. 13. 7 2007. 1 2 Barrar o Outro dá lugar ao gozo possível, gozo sexual, gozo-fálico, circunscrito pela lei, uma vez que Lacan8 afirma que a sexualidade se inscreve no campo do sujeito pela via da falta. Na psicose, o que se revela é a ausência dessa falta constituinte e essencial ao amor. O Outro, nessa estruturação é absoluto e consistente, sem furo e sem falhas. Opera-se na psicose, ao invés da inscrição do Nome-do-Pai, a foraclusão deste significante que adviria caso inscrito, para fazer o corte fundamental para a constituição do sujeito separado de seu grande Outro. Dessa forma, o sujeito permanece gozado, objetificado pelo Outro, sobre o que Lacan nos diz:9 A que se deve a diferença entre alguém que é psicótico e alguém que não o é? Ela se deve a isto: para o psicótico uma relação amorosa é possível abolindo-se como sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse amor é também um amor morto. O amor na assistência psiquiátrica Durante o período que estive desenvolvendo a pesquisa de campo no CAPS, pude observar que os pacientes são classificados, além de suas nomenclaturas pelo CID-10, também como “pacientes que aderem aos tratamentos oferecidos e pacientes que têm dificuldade na adesão destes”. Em geral, “os que aderem” se referem aqueles pacientes que cumprem de modo satisfatório o planejamento proposto pelos técnicos do serviço: tomam a medicação no horário e na quantidade receitada, participam da maioria das atividades propostas, freqüentam o CAPS assiduamente, e os que têm dificuldade para aderir, faltam com freqüência, não tomam a medicação regularmente, desobedecem às orientações dos técnicos e da família/responsável. Assim, o paciente ideal é aquele que se coloca à disposição do Outro institucional, independente de qual seja o lugar dado ao sujeito quando este simplesmente obedece à risca seu planejamento terapêutico. Sobre isso, cito o caso de um paciente tido como “ideal” no CAPS. Este paciente que faz tratamento no CAPS há mais de três anos, Sales, como o chamarei, anteriormente à sua desestabilização, participava de todas as atividades nas quais era incluído: atividades comemorativas, grupo de psicologia, oficinas terapêuticas, sem questionar ou demonstrar interesse em saber por que participa de qual ou tal atividade. Além disso, costuma manter cumprimentos socialmente adequados e esperados, como dizer “bom dia”, “graças a Deus”; veste-se sempre com roupas sociais, mantém higiene física, o que se pode referir a partir do vocabulário da reforma psiquiátrica que Sales preserva habilidades sociais. 8 9 1964 [2008] 1955-56 [2008], p. 296. 3 Certo dia, chego ao CAPS, e me é dito que Sales entrou em crise quando lhe disseram que receberia alta do serviço, uma vez que a equipe entedia que ele estava estabilizado e em condições de recebê-la. Sales mantém todos os hábitos descritos anteriormente, entretanto adota postura infantilizada, “regredida” como é dito pela funcionária que me relatou a situação. Pelo o que pude acompanhar, a decisão pela alta de Sales foi tomada a partir dos comportamentos ideais esperados pela equipe, incluindo o que se reverbera neste serviço sobre a reforma psiquiátrica. Os serviços de assistência psiquiátrica regulamentados pela lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira 10.216/2001, e que fundamentalmente têm o CAPS como maior representante, surgiram como substitutos ao modelo manicomial que enclausurava a loucura e anulava o sujeito em sua existência, com o objetivo de recuperar a autonomia, fornecer condições de estabelecer contratualidade para reinserir os sujeitos na vida social10. Retomando o amor na psicose, como sendo esse amor morto, no caso de Sales esse tem sua alta prenunciada no momento em que parece ter descoberto o que seu Outro lhe demanda. Colado neste, para onde ir ou o que se pode ser, se o CAPS “não o quer mais”? O prenúncio da alta apela àquilo ao que o sujeito psicótico não pode responder, como nos diz Lacan11 sobre o momento em que se entrevê a entrada na psicose. Soler (2007) resgata sobre a palavra estabilização (também presente no Brasil) as contribuições de Lacan acerca desse quadro na psicose. A estabilização em muitos momentos aparece para qualificar o sujeito que atende às expectativas sociais, entretanto, além disso, para Lacan, esta se dá, na psicose, pela via da metaforização do gozo mortífero, possível pela construção delirante, por exemplo. Outra via para tal, é a suplência que pluraliza o Nome-doPai – Nomes-do-Pai – possibilitando que outros significantes possam operar como ponto de basta ao Outro. “Há que fazer uma clínica dos substitutos do Nome-do-Pai, dos diferentes termos que a clínica nos apresenta e que exercem a função de estabilizadores”12. A decisão por Sales sair de alta se fundamentou, no uso satisfatório da medicação, independente de quais sejam as conseqüências permanentes desse uso – principalmente a eliminação dos fenômenos psicóticos, e conseqüente desperdício de significantes que poderiam aceder em uma função estabilizadora –, na participação assídua nas atividades e no atendimento às exigências sociais. Estaria Sales estabilizado? RINALDI, 2006 e 2010. 1955-56 [2008]. 12 (SOLER, 2007, p. 205). 10 11 4 Quanto ao amor, a relação de Sales com o CAPS é amorosa; Sales é tido como um paciente amoroso, entretanto essa relação se apóia naquilo que é morto nas relações de amor na psicose: o sujeito. Sales sairia de alta por conseguir operar aquilo que seu Outro institucional lhe exige. É relevante considerar que, como nos diz Hanna (2006), o que pode promover a interrupção de um tratamento ou empurrar o sujeito à passagem ao ato é o analista assumir como única posição o Outro absoluto, sem fazer disso a possibilidade para limitar o gozo desmedido do qual padece o psicótico. Assim o momento da alta que poderia advir como a via para construir novos laços, surge como ameaça real de separação, que na psicose se atualiza pelo despedaçamento do sujeito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5 HANNA, Maria Silvia G. F. Sobre a Direção do Tratamento no Campo da Psicose: que concepção para a transferência e seu manejo na psicose? In: FIGUEIREDO, Ana C. (Org.) Corpo, Sintoma e Psicose: leituras do contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2006. LACAN, Jacques. (1955-56) O Seminário, Livro 3: As Psicoses. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. __________. (1964) O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. __________. (1972-73) O Seminário, Livro 20: mais, ainda. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2008. RINALDI, Doris. Entre o Sujeito e o Cidadão: psicanálise ou psicoterapia no campo da saúde mental? In: ALBERTI, Sonia; FIGUEIREDO, Ana C. (Orgs.). Psicanálise e Saúde Mental: uma aposta. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006. ___________. A Clínica do Sujeito no Campo da Saúde Mental. In: PIMENTEL, Adelma; LEMOS, Flávia; SOUZA, Maurício; NICOLAU, Roseane (Orgs). Itinerários de Pesquisa em Psicologia. Belém: Amazônia Editora, 2010. SOLER, Colette. O Inconsciente a Céu Aberto da Psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. Bibliografia Consultada COUTO, Richard; ALBERTI, Sonia. Contribuições ao debate entre a psicanálise e a atual reforma psiquiátrica brasileira. In: Mental – ano VI, n. 11 (15-33). Barbacena: jul-dez 2008. MUÑOZ, Nuria M. Do Amor à Amizade na Psicose: contribuições da psicanálise ao campo da saúde mental. 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