Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Valdene Rodrigues Amancio Uma clínica para o CAPS Rio de Janeiro 2011 Valdene Rodrigues Amancio Uma clínica para o CAPS Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clínica em Psicanálise. Orientador: Profº. Drº. Luciano da Fonseca Elia Rio de Janeiro 2011 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A A484 Amancio, Valdene Rodrigues. Uma clínica para o CAPS / Valdene Rodrigues Amancio. – 2011. 168 f. Orientador: Luciano da Fonseca Elia. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicanálise – Teses. 2. Serviços de saúde mental – Brasil – Avaliação – Teses. 3. Pessoal da área de saúde mental e pacientes – Teses. 4. Reforma psiquiátrica – Teses. I. Elia, Luciano da Fonseca. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. nt CDU 159.964.2 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ________________________________ Assinatura ________________ Data Valdene Rodrigues Amancio Uma Clínica Para o CAPS Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clínica em Psicanálise Aprovada em 30 de agosto de 2011. Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Dr. Luciano da Fonseca Elia (Orientador) Instituto de Psicologia da UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra Sonia Alberti Instituto de Psicologia da UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra. Andréa Máris Campos Guerra Instituto de Psicologia da UFMG Rio de Janeiro 2011 DEDICATÓRIA Aos atores da Reforma Psiquiátrica, aqueles que são dignos de serem chamados assim, desejando que uma lufada oxigenante de desejo possa vir a arejar os tempos difíceis que atravessamos nesse campo e ter efeito de nos unir coletivamente para prosseguirmos reformando. AGRADECIMENTOS Parafraseando Clarice Lispector “que não se esmaguem com palavras as entrelinhas.” A Deus, o bíblico, da Teologia Reformada, causa primária de todas as coisas, que em sua soberania conduziu as causas secundárias, ao mesmo tempo em que paradoxalmente me colocou como um sujeito responsável e ativo por minha história. Aos meus pacientes pelas questões que me puseram em trabalho e por colaborarem com meu aprendizado da clínica da psicose. A Luciano Elia pela presença na psicanálise em intensão e em extensão e durante toda a pesquisa realizada. Que privilégio ter sido orientada por alguém que não se identifica com sua douta posição e que transmite de maneira rigorosa e generosa os ensinos de Freud e Lacan, que me proporcionou reflexões importantíssimas no campo da Reforma Psiquiátrica, que me fez ultrapassar embaraços durante o percurso possibilitando a construção de uma outra relação com a clínica e o saber. Para sempre minha gratidão. Considero também de grande privilégio poder usufruir de uma banca examinadora do quilate de Andréa Máris Campos Guerra e Sonia Alberti. As indicações de caminhos, contribuições generosas e retificações importantes muito colaboraram para as questões de nossa pesquisa. Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica da Psicanálise da UERJ que de alguma maneira contribuíram com nosso percurso: Sonia Alberti, Sonia Altoé, Marco Antônio Coutinho Jorge, Ana Costa, Ana Cristina Figueiredo, Doris Rinaldi, Rita Manso e Heloísa Caldas. Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo apoio e às bibliotecárias da UERJ pelo zelo e precisão nas orientações. Aos meus colegas de turma de mestrado que se tornaram amigos e companheiros de jornada amenizando o cansaço dos 800 km de estrada, Marco Aurelio Silva, Paula Coutinho, Ameli Fernandes, Fernanda Samico, Claudia Oliveira, Fernanda Cox, Claudia Fernandes, Manoel Leite, Leila Mendonça, Leonardo Cabral, Henrique Martins, Renata Sales, Flavia Bonfim e Cleuse Barleta do doutorado. Aos meus colegas do CAPS de Varginha lugar da minha ausência maior em uma parte da minha pesquisa, especialmente minha coordenadora e amiga Vanda Maria Silva Rodrigues e também Anderson Michel Furtado, Rosana Maria Paiva Frota Vidal, Liliani Rodrigues Magalhães, Anderson José de Souza, Neuza Maria Theodoro Castilho, Vânia Maria Bernardes Carmácio, Maria Cristina Silva Pereira, Marta Regina Pícole, Lucimar Silva, Dalva Maria Paiva Lemes, Talissa Fabiane de Lima Labre Sodré, Valéria Aparecida Silvério e Juliana Pimenta Santiago que dividem comigo a desafiadora clínica de permanência-dia do CAPS. Também aqueles colegas e amigos que fizeram parte de uma história clínica anterior importante: Rejane Tecla Rodrigues, Vívian Leal, Luciana Maria de Resende Teixeira, Maria Cristina Martins Leal, Vanessa Bíscaro Canela, Angela Amarante, Beatriz Vilela, Dhebora, Alessandro Caldonazzo Gomes, Waldir José Assis, Carlos Augusto de Souza, Jovana Sério Veiga, Jorge Geovane Tostes e Camila Comune. A equipe do CAPSi Pequeno Hans por consentirem com minha presença durante todo ano de 2009 e compartilharam comigo a sua rica experiência. Em especial, Nympha Amaral e Katia Wainstock Alves dos Santos. Aos membros do Laço Analítico Subsede Varginha, pares com quem percorro a formação permanente em psicanálise. Aos membros do Laço Analítico Subsede Rio, também meus pares, que nesse período permitiram fazer da Subsede a minha casa. Aos meus alunos da graduação e pós- graduação que me instigaram com suas questões. A Antônio Amâncio da Silva, meu pai. O ipê amarelo surgiu dias atrás como todos os agostos, exuberante, lindo, impactante, me fazendo escutar mais uma vez a sua voz: "quando você ver o ipê Valds, é porque meu aniversário está chegando...". Antes a árvore marcava sua ausência, mas faz algum tempo que ela me traz sua presença carregada de bom humor, de alegria e de seu amor por mim que nunca esquecerei. A Maria de Lourdes Rodrigues Amancio, minha mãe, com quem aprendi dentre outras coisas o amor pelo trabalho, pelos estudos e também a perseverar. A Flávia Danielle Rodrigues Silva, com quem divido com seus pais o amor de uma filha e que esteve sempre presente na minha vida, mas principalmente nesses anos de pesquisa: obrigada pelo abraço singular no dia 11/09/2008, pela companhia nas viagens para seleção do mestrado, por cuidar de mim na recuperação das minhas cirurgias, por continuar a digitação dos meus trabalhos de mestrado quando eu já exausta, pelas nossas horas de lazer e humor que parecem histórias de um seriado divertido. Sem você eu não teria conseguido! A minha irmã e amiga Wanderleia Rodrigues Amancio, por sua companhia, única testemunha, no único momento em que esmoreci. Ao meu irmão e amigo Wanderney Rodrigues Amancio, tão longe, mas que soube estar perto com seus telefonemas e palavras. Quanta falta você me faz! Aos meus tios Niercides Batista Policarpo e Irene Policarpo, pelo apoio de várias formas e por me acolherem sempre como filha. Ao meu amigo e irmão Natanael Atilas Aleva, pelo incentivo para iniciar o mestrado, pelas horas que se ocupou comigo na orientação do projeto preliminar e por ter me salvado com seu telefonema naquela noite de "sangue, suor e lágrimas". Ao meu amigo e irmão Luidi Figueiredo Braga, por ter estado ao meu lado, pelas aulas de espanhol que me deu de presente, por ter muitas vezes largado as horas com a família para me ensinar e por continuar usando seu humor para me fazer rir. A todos os meus amigos e especialmente Lígia Gomes Aleva, Juliana Basques Tavares, Fabiana Basques Tavares Braga, Rita Basques Tavares, Azenete Berto, Ana Cristina Sather, Guilherme Demétrio Ferreira e Luciana Maria de Resende Teixeira, amizades eternas que fizeram mais suave o meu caminho. A Ademir Gomes Junior, por ter tido o abraço mais gostoso do mundo para me encorajar. A Igreja Presbiteriana de Varginha, especialmente Reverendos Ismael Elias da Silva e Lucas Felipe Apolinário e aos meus alunos da EBD. RESUMO AMANCIO, Valdene Rodrigues. Uma clínica para o CAPS. 2011. 168 f. Dissertação (Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2011. A presente dissertação é uma pesquisa teórico-clínica sobre o dia-a-dia dos pacientes e técnicos dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), especificamente no que diz respeito à clínica neste dispositivo. O que é clínica? Temos uma clínica? Que clínica temos? Que clínica para o CAPS? Como construí-la? A partir de um breve histórico sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira, desde a criação de seu primeiro hospital público, na cidade do Rio de Janeiro, até a constituição de um novo campo, que é o campo da atenção psicossocial percorremos os principais episódios que contribuíram para a constituição deste campo, destacando as resoluções das quatro conferências nacionais de Saúde Mental que colaboraram para a sustentação do movimento transformando o Brasil no país que mais avançou no tratamento oferecido aos doentes mentais. Por último levantamos a relação da Reforma Psiquiátrica com o saber, com as teorias e com o ecletismo teórico. Discorremos sobre a teoria e clínica psicanalítica da psicose abordando a teoria freudiana e a interpretação lacaniana através dos três registros do real, simbólico e imaginário. A questão central - Uma clínica para o CAPS foi trabalhada levantando questões relacionadas ao que chamamos de herança do modelo manicomial presente na atenção psicossocial e que dificultam a construção de uma clínica. Os CAPS, em sua maioria, são cidadãos, inclusivos, reabilitadores sociais e exibem efeitos aos quais não podemos recusar a dimensão de terapêuticos, mas isso não basta para dizermos que existe uma clínica nos CAPS. A ênfase continua sendo a reinserção social e não o exercício da clínica. A partir do estudo de algumas práticas institucionais realizadas a partir da psicanálise, práticas que podem contribuir para a construção de uma clínica nos CAPS, tais como a psicoterapia institucional de Jean Oury, a prática entre vários surgida na Europa com adeptos também no Brasil e a psicanálise com muitos, clínica gerada e operante em alguns CAPSis do Rio de Janeiro elegemos a psicanálise com muitos como melhor dispositivo para a clínica com adultos devido a radicalidade de sua proposta desde o início em realizar de maneira rigorosa as diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas de Saúde Mental no que diz respeito a um centro de atenção psicossocial, bem como realizar o mais rigorosamente possível as diretrizes teórico-clínicas e ético-metodológicas da Psicanálise quanto ao que seja o exercício de sua práxis. Passamos a analisar outros aspectos importantes do cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial com adultos e propomos quatro pilares para a construção de uma clínica efetiva para este dispositivo: o diagnóstico estrutural, uma ética para o sujeito, a psicanálise coletiva e a dimensão clínica de rede. Palavras-chave: Centro de Atenção Psicossocial. Reforma Psiquiátrica. Saúde Mental. Psicanálise. RESUMEN Esta disertación es una investigación teórica y clínica sobre la vida del día a día de los pacientes y técnicos de los Centros de Atención Psicosocial (CAPS), específicamente con respecto a la clínica de este dispositivo. ¿Qué es la clínica? ¿Tenemos una clínica? ¿Qué clínica tenemos? ¿Qué clínica para el CAPS? ¿Cómo construirla? A partir de un breve histórico de la Reforma Psiquiátrica brasileña, desde la creación de su primer hospital público en la ciudad de Río de Janeiro, a la creación de un nuevo campo, que es el campo de la atención psicosocial pasamos por los principales acontecimientos que contribuyeron a la constitución de este campo, destacando las resoluciones de las cuatro conferencias nacionales de salud mental que han contribuido para apoyo del movimiento transformando Brasil en el país que ofrece más avances en el tratamiento de los enfermos mentales. Finalmente, plantear la relación de la Reforma Psiquiátrica con el conocimiento, con las teorías y el eclecticismo teórico. Hablamos de la teoría y la clínica psicoanalítica de la psicosis abordando la teoría freudiana y la interpretación lacaniana a través de los tres registros de los archivos: real, simbólico e imaginario. La cuestión central - Una clínica para el CAPS - se trató planteando cuestiones relacionados con lo que llamamos el legado del modelo de manicomio en la atención psicosocial y que dificultan la construcción de una clínica. CAPS, en la mayoría de los casos, son los ciudadanos, incluidos, rehabilitadores sociales y muestran efectos a los cuales no podemos rechazar la dimensión terapéutica, pero esto no es suficiente para decir que hay una clínica en el CAPS. El énfasis continúa siendo la reinserción social y no la práctica clínica. A partir del estudio de algunas de las prácticas institucionales realizadas de psicoanálisis, prácticas que pueden contribuir a la construcción de una clínica en CAPS, tales como la psicoterapia institucional de Jean Oury, la práctica entre varios surgida en Europa, también con adeptos en Brasil y el psicoanálisis con muchos, clínica generada y operantes en algunos CAPSis de Río de Janeiro elegimos psicoanálisis con muchos como el mejor dispositivo para la clínica con adultos, debido a su propuesta radical desde el principio para llevar a cabo rigurosamente los lineamientos establecidos por las Políticas de Salud Mental con respecto a un Centro de Atención Psicosocial, así como realizar, la medida de lo posible, las directrices teórico-clínicas y ético-metodológico de psicoanálisis de lo que es el ejercicio de su práctica. Pasamos a examinar otros aspectos importantes de la vida cotidiana de los Centros de Atención Psicosocial con adultos y proponemos cuatro pilares para la construcción de una clínica efectiva para este dispositivo: el diagnóstico estructural, una ética para el sujeto, psicoanálisis colectiva y la red de dimensión clínica. Palabras clave: Centro de Atención Psicosocial. Reforma Psiquiátrica. Salud Mental. Psicoanálisis. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Nó borromeano................................................................................................. 54 Figura 2 - Esquema L......................................................................................................... 58 Figura 3 - Grafo do desejo – 1 º estágio............................................................................. 59 Figura 4 - Grafo do desejo – 1º andar................................................................................ 60 Figura 5 - Esquema R........................................................................................................ 62 Figura 6 - Esquema I.......................................................................................................... 79 Figura 7 - Grafo do desejo - “Che vuoi?” ........................................................................ 83 Figura 8 - Grafo do desejo completo................................................................................. 85 Figura 9 - Nó borromeano com três e quatro anéis – Sinthoma........................................ 106 LISTA DE SIGLAS ABP Associação Brasileira de Psiquiatria CAPS Centro de Atenção Psicossocial CAPSi Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes CERSAM Centros de Referência em Saúde Mental CNSM Conferênciaf -175.544 -20.4 Td 1rnc(C)3.55942(o)-1.91845tal de (N)2.1.156(S)1.31968(a)-1.91977 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 13 A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO: A ATENÇÃO 19 PSICOSSOCIAL.................................................................................................... 1.1 A Reforma Psiquiátrica Brasileira - Breve histórico.......................................... 19 1.2 História do CAPS-Breve histórico dos centros de atendimento Psicossocial... 25 1.3 A Reforma Psiquiátrica: ainda à procura de saberes?...................................... 32 1.3.1 Aversão ao saber e ecletismo teórico clínico........................................................... 33 1.3.2 Universidade e Reforma Psiquiátrica...................................................................... 34 1.3.3 A Reforma Psiquiátrica e a supervisão clínico – institucional................................ 37 1.3.4 Exacerbação do resgate da cidadania e da normatização........................................ 39 1.3.5 Uma direção proposta: a psicanalítica..................................................................... 41 2 TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA PSICOSE.................................. 46 2.1 A importância de reafirmar a psicose como uma estrutura clínica.................. 46 2.2 O simbólico e a psicose.......................................................................................... 54 2.2.1 A castração, um operador estruturante.................................................................... 54 2.2.2 O complexo de édipo e seus três tempos................................................................. 55 2.2.3 A metáfora paterna.................................................................................................. 57 2.2.4 Os fenômenos da linguagem na psicose.................................................................. 65 O imaginário e a psicose........................................................................................ 70 2.3.1 Narcisismo............................................................................................................... 71 2.3.2 Estádio do espelho................................................................................................... 72 2.3.3 Os fenômenos imaginários...................................................................................... 74 2.3.4 O desencadeamento do surto psicótico.................................................................... 76 O real e a psicose.................................................................................................... 82 2.4.1 Realidade, realidade psíquica e fantasia.................................................................. 82 2.4.2 Gozo e Psicose......................................................................................................... 84 2.4.3 Delírio....................................................................................................................... 86 2.3.4 Empuxo-à-mulher..................................................................................................... 89 A transferência na psicose..................................................................................... 90 2.3 2.4 2.5 Estabilização psicótica........................................................................................... 96 2.6.1 Passagem ao ato....................................................................................................... 96 2.6.2 Metáfora delirante.................................................................................................... 98 2.6.3 Escrita....................................................................................................................... 101 2.7 Laço social e psicose............................................................................................... 105 3 HÁ UMA CLÍNICA NOS CAPS? ....................................................................... 109 3.1 A Reforma Psiquiátrica e a herança do modelo manicomial............................. 109 3.2 Psicanálise e Instituição......................................................................................... 111 3.2.1 A psicoterapia institucional de Jean Oury................................................................ 111 3.2.2 A prática entre vários............................................................................................... 114 2.6 3.2.3 A psicanálise com muitos......................................................................................... 117 3.3 A construção de uma clínica para o CAPS com adultos..................................... 121 3.3.1 O diagnóstico estrutural........................................................................................... 129 3.3.2 Uma ética para o sujeito........................................................................................... 136 3.3.3 A Psicanálise coletiva............................................................................................... 143 3.3.4 A dimensão clínica de rede...................................................................................... 152 CONCLUSÃO........................................................................................................ 157 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 160 13 INTRODUÇÃO No início de nosso percurso no campo da Saúde Mental, há cerca de 20 anos atrás, não tínhamos quase nenhum questionamento sobre a práxis exercida neste campo. Os incômodos surgiram no decorrer dos anos de prática, com o avanço de nossa formação em psicanálise e as mudanças sofridas pelo Serviço de Saúde Mental de nossa cidade, um ambulatório clássico, transformado alguns anos depois em ambulatório com oficinas, e em 2005, em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). As várias mudanças do serviço foram resultados do trabalho e do desejo da equipe, ou de parte dela, e coincidiam com os ideais do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira em plena militância nos últimos anos. Porém em 2005, paralelamente à transformação do serviço em CAPS, a equipe multidisciplinar constituída há muitos anos foi dissolvida pela gestão municipal restando apenas nós e outra colega da antiga equipe no dispositivo. Os pacientes neuróticos passaram a ser atendidos na Atenção Básica juntamente com psicóticos que estavam estabilizados. A chegada de pacientes graves que antes eram encaminhados para os manicômios e a de profissionais com pouca ou nenhuma experiência em Saúde Mental compôs um quadro de grandes dificuldades do cotidiano da unidade, denunciando uma prática a-teórica mas que, mesmo negligente quanto a seus pressupostos e fundamentos, caracterizava-se pelo mais franco organicismo e pela mais clara vocação hospitalocêntrica, mesmo sobre o fundo de um ideário antimanicomial sustentado pela equipe. As dificuldades de articulação entre a teoria e a prática, a desafiadora clínica da psicose que se impôs ao dia-a-dia do CAPS, os questionamentos dentro e fora da equipe sobre a clínica psicanalítica em uma instituição pública, acrescidos das nossas próprias interrogações sobre a clínica da psicanálise articulada ao campo da Reforma, a falta de supervisão clínico-institucional e last but not least, a experiência de ensino na universidade, justamente no campo da teoria e da clínica em Saúde Mental, fez-nos buscar fundamentos para a nossa prática e apostar num possível bem-dizer sobre ela. No início do percurso de elaboração desta dissertação relacionamos várias questões referentes às nossas dificuldades no CAPS. As questões eram: - Lacan conclama os psicanalistas a que não recuem diante da psicose. Se atualmente é predominantemente nos CAPS que encontramos a possibilidade de tratamento da psicose, não é neste dispositivo que a psicanálise deve também considerar sua atuação? Como o 14 psicanalista pode estar num CAPS e não recuar diante da psicose e ao mesmo tempo não recuar do próprio rigor da psicanálise? - Como se pratica a clínica nos CAPS que tem como direção a psicanálise e naqueles que tem outra direção ou ainda nenhuma direção? - Quais as contribuições que a psicanálise de orientação lacaniana pode dar aos desafios enfrentados pela Reforma Psiquiátrica para que o modelo não repita o que com tanto empenho combateu ao longo dos anos? - De que modo deve se dar a estruturação do atendimento dos pacientes nesse dispositivo, levando em conta o acolhimento, o atendimento à crise, as práticas em oficinas e tudo o que envolve a convivência de técnicos e pacientes a partir da clínica psicanalítica? - As práticas organicistas, comportamentais e humanistas somadas ao atendimento dito de base psicanalítica podem repetir a lógica manicomial, hospitalocêntrica por não levar em conta o sujeito do inconsciente? Inicialmente ao levantar todas essas questões, entendíamos que alguma coisa não caminhava bem no dia-a-dia dos pacientes e dos técnicos, não só no CAPS onde atuávamos, mas em vários lugares do Brasil. No entanto não sabíamos diagnosticar, nomear muito bem do que se tratava. Fomos avançando nossa pesquisa na história da Reforma Psiquiátrica, nos modelos institucionais existentes e também na teoria psicanalítica. Aos poucos uma palavra foi se delineando no horizonte: clínica. O que é clínica? Temos uma clínica? Que clínica temos? Que clínica para o CAPS? Como construíla? A partir desse delineamento passamos a intensificar nossa pesquisa com pacientes adultos, portadores de grave sofrimento psíquico, psicóticos e neuróticos graves, atendidos em regime de permanência-dia, em caráter intensivo, semi-intensivo e não intensivo nos Centros de Atenção Psicossocial sem o referencial da psicanálise fazendo contraponto com os CAPS que atendiam clinicamente dentro do dispositivo da psicanálise. A pesquisa ocorreu predominantemente em um CAPS de atendimento de adultos em Minas Gerais que não tinha o dispositivo de supervisão clínico institucional além de trabalhar com uma direção teórico-clínica imprecisa ou, se quisermos ser benevolentes, diversificada e em um Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes (CAPSi) do Rio de Janeiro que atendia crianças e adolescentes com o dispositivo da supervisão e a direção única da psicanálise. Pesquisamos também através de visitas técnicas e entrevistas os CAPS de diferentes regiões do Brasil, como os do sul de Minas Gerais, da região metropolitana de Curitiba-PR e do Rio de Janeiro-RJ. 15 Nosso modo de direcionar a pesquisa teve a ver com a maneira de conceber e de fazer pesquisa em psicanálise que não coincide com o modo cientifico de conceber e fazer pesquisa. Isso porque a relação da psicanálise com a ciência pode ser formulada em termos de derivação da primeira em relação a segunda como propõe Lacan (1998g) no texto A ciência e a verdade, dos Escritos. Passaremos a definir melhor o nosso método de pesquisa antes de entrar em nossas questões propriamente dita. A psicanálise deriva da ciência e tem no corte que inaugura a ciência moderna no século XVI, com Galileu e Descartes, a sua condição de possibilidade. Apesar de derivar da ciência a psicanálise não se reduz a ela, pois vai operar um corte em relação ao passo inaugural da ciência. Trata-se de um rompimento discursivo que tem ligação direta com a noção de sujeito. É em relação à posição dessa noção em cada um desses dois campos discursivos, o da ciência e o da psicanálise, que melhor se esclarecem as relações entre esses campos (ELIA, 2000). Freud aspirou que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência. Ele nutria o ideal de ciência. Já Lacan no resumo para o anuário da EPHE, colocou uma questão para a ciência ao perguntar “O que é uma ciência que inclui a psicanálise?” (LACAN apud MILNER, 1996, pg. 31). Tal questão diz respeito à psicanálise ter introduzido o sujeito na cena discursiva, pois a ciência em sua fundação vai supor o sujeito, porém no mesmo golpe vai excluí-lo. Sendo assim, a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado do campo científico, contudo sem integrá-lo, já que subverteu o referido campo pelo viés do sujeito. Lacan, no que Milner (1996) denomina de seu Doutrinal de Ciência, faz a leitura do passo cartesiano do Cogito como tendo introduzido um sujeito sem qualidades, já que Descartes o reduz, por meio da dúvida metódica, a nada saber exceto do fato de que pensa, e, se pensa, é. A psicanálise retomaria, para Lacan, este ponto inaugural da ciência, cujo correlato, na expressão lacaniana, seria o Cogito, para fundar um sujeito do inconsciente precisamente para o qual o despojamento de toda e qualquer qualidade seria uma condição sine qua non: as qualidades humanas (anímicas, sensório-perceptivas, afetivas ou intelectuais) constituirão os revestimos identificatórios e imaginarizantes do sujeito, que tomam forma no “seu” eu. Tais revestimentos são guia de regra o que as ciências chamadas “humanas” tomam como objeto de estudo e investigação. Quando dizemos com Lacan que a psicanálise deriva do campo da ciência não habitando, contudo esse campo, afirmamos que o sujeito com que a psicanálise opera é um sujeito sem qualidades. 16 Se o sujeito com quem operamos em psicanálise não pode ser senão o sujeito da ciência como afirma Lacan (1998g) não cabe afirmar que a psicanálise é uma ciência humana, pois não se trata nela de forma alguma, do homem, mas do sujeito. A psicanálise tampouco se situa no campo das ciências físicas ou naturais. Com a obra de Lacan, dizemos que a psicanálise não está mais contida no campo da ciência. A psicanálise subverteu o sujeito suposto e excluído, a um só tempo, pela ciência e vai trabalhar a partir da inclusão desse sujeito, no campo de sua experiência, inclusão essa que se fará pela via do inconsciente. Tais pressupostos metodológicos impedem, por exemplo, que façamos uma pesquisa de campo tomando os sujeitos – no caso, os pacientes ou os técnicos do CAPS – como objetos sobre os quais procuraríamos aplicar um saber, a fim de extrair, desses objetos, algumas outras formas e níveis de saber além daquele que previamente teríamos aplicado sobre eles. Os pressupostos que, de forma bastante sucinta, e aqui apresentados a título introdutório precisamente por termos considerado que não seria necessário dar-lhes maior desenvolvimento, visam a sustentar que uma pesquisa em psicanálise só pode ser uma pesquisa clínica, pelo que queremos dizer, uma pesquisa em que os próprios sujeitos serão colocados em posição de emissão do discurso e do saber a ser produzido, restando ao pesquisador (que não ocupa na pesquisa em psicanálise o lugar do analista, uma vez que não é o desejo de pesquisa que anima esta função) a posição de analisante, mas de um analisante que toma o saber produzido pelo sujeito como fonte de elaboração teórica e de reincidência sobre a clínica. A partir da inclusão do sujeito pela via do inconsciente articulamos com Elia (2000) outros princípios para direcionamento da presente pesquisa. Seguindo a recomendação de Freud (1987e) em seu texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, o segundo princípio para o pesquisador será que tratamento e investigação devem ser coincidentes. Dessa maneira a clínica será tomada como o lugar de produção do saber e não de sua aplicação. Há outra recomendação freudiana que colocaremos como terceiro princípio para o pesquisador que será “tomar cada caso como se fosse o primeiro”, já que o saber do inconsciente não será apreensível por uma mera aplicação do saber acumulado pelo pesquisador-analisante. O saber do inconsciente se recolocará a cada vez de maneira inédita devendo ser lido segundo uma estrutura que, por sua vez, não coincidirá com o saber universal e genérico da ciência clássica. Esse saber incluirá necessariamente o real inapreensível pelo universal. 17 Como quarto princípio tomaremos a questão do campo de pesquisa. Pesquisar no campo da psicanálise será tomar a clínica como campo de pesquisa. É a clínica a forma de acesso ao sujeito do inconsciente e por esta razão ela será sempre o campo de pesquisa. É que o pesquisador a partir do lugar definido no dispositivo analítico como sendo um lugar que fará bascularem o lugar do analista com o do analisante (pelas razões que colocamos acima), vai fazer operar a escuta, escuta analítica que não será guiada pelas qualidades de valor da consciência, mas pela atenção flutuante orientada por Freud. Na clínica será necessário pressupor o ato analítico e o desejo do analista. Destacamos, assim, que será na posição de analisante que o pesquisador deverá atravessar todos os momentos do desenvolvimento de sua pesquisa. “Pesquisar é antes uma posição de trabalho [...], lugar do trabalho na transferência, de um sujeito dividido a partir do saber constitutivo do campo do inconsciente, campo de pesquisa” (ELIA, 2000, p. 24) como definimos anteriormente. Com essa exposição inicial passemos a falar dos pontos de que vamos tratar nessa dissertação. Na primeira seção fizemos um breve histórico sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira, desde a criação de seu primeiro hospital público, na cidade do Rio de janeiro, até a constituição de um novo campo, que é o campo da atenção psicossocial. Percorremos, ainda que de maneira breve, os principais episódios que contribuíram para a constituição deste campo, destacando as resoluções das quatro conferências nacionais de Saúde Mental que colaboraram para a sustentação do movimento. Por último levantamos a relação da Reforma Psiquiátrica com o saber, com as teorias, com o ecletismo teórico, levantando outros aspectos importantes que influenciaram a relação da Reforma com o saber como a supervisão institucional, a relação com a universidade e a exacerbação do resgate da cidadania e da normatização. No final do capítulo vamos propor uma direção: a psicanalítica. Na segunda seção discorremos sobre a teoria e clínica psicanalítica da psicose abordando a teoria freudiana e a interpretação lacaniana. Reafirmamos a importância do diagnóstico estrutural e em seguida passamos a expor o caminho percorrido por Freud e Lacan para a clínica da psicose, percurso esse de extrema importância para aqueles que lidam com a clínica da psicose, porém desconhecido pela maioria dos técnicos de CAPS. Depois do desenvolvimento das seções mencionadas, necessários para a nossa questão central - a clínica nos CAPS - chegamos a terceira seção levantando questões relacionadas à herança do modelo manicomial presente na atenção psicossocial que dificultam a construção de uma clínica. Em seguida apontamos algumas práticas 18 institucionais realizadas a partir da psicanálise, práticas que podem contribuir para a construção de uma clínica nos CAPS, tais como a psicoterapia institucional de Jean Oury, a prática entre vários surgida na Europa com adeptos também no Brasil e a psicanálise com muitos, clínica gerada e operante em alguns CAPSis do Rio de Janeiro. Para finalizar abordamos alguns equívocos referentes à psicanálise, especialmente no que diz respeito à sua presença nas instituições passando em seguida a apresentar algumas direções que podem colaborar na construção de uma clínica para os centros de atenção psicossocial. Esperamos que ao ler essa dissertação, os técnicos dos CAPS, assim como nós, possam se reconhecer no seu laborioso dia-a-dia nos CAPS e desejamos que a teoria e clínica da psicanálise que propomos para a clínica nesse dispositivo não sejam para alguns como um “lacanês” incompreensível ou para outros como o conto de Lima Barreto do “homem que falava javanês”, analogia que um amigo e colega nosso de CAPS gosta de usar, mas que seja um despertar para um mergulho na teoria e clínica psicanalítica relacionando-a com a política e a clínica da Reforma Psiquiátrica. Assim também que as dificuldades apontadas no campo da Atenção Psicossocial possam servir para avançarmos reformando. 19 1 A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO: A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 1.1 A Reforma Psiquiátrica – Breve Histórico Em 1830 a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro realizou um diagnóstico sobre a situação dos loucos na cidade que a partir de então passaram a ser considerados doentes mentais e merecedores de espaço próprio para reclusão e tratamento. Devido denúncias da insalubridade dos porões da Santa Casa de Misericórdia e das péssimas condições em que viviam os loucos da cidade, em 1841, Pedro II sanciona o decreto de criação do primeiro hospício do Brasil que foi inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com o nome de Hospital Psiquiátrico Pedro II e conhecido popularmente como o “Palácio dos Loucos”. É desse mesmo ano a criação da primeira lei que regulamenta a assistência aos doentes mentais no Brasil (OLIVEIRA, 2009). Instituições semelhantes foram construídas em outros estados como São Paulo (Juqueri, em 1898), Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. Assim como acontecia na Europa a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro ressaltava a necessidade de um tratamento que tendia desde o início para a exclusão (MINAS GERAIS, 2007). Quatro anos após a sua criação, em 1856, relatórios do hospício Pedro II acusavam sua superlotação devido à entrada indiscriminada de pacientes em todos os estados, curáveis e incuráveis, com problemas mentais ou meros indigentes. Os anos que se seguiram até o término deste século não viram grandes mudanças na forma de tratamento da loucura, verificando-se apenas a consolidação do ensino e da prática da psiquiatria no país, que se tornou especialidade médica autônoma em 1912 (OLIVEIRA, 2009). Em 1919 é criado o Manicômio Judiciário que se encarregou dos doentes mentais que cometiam delitos e em 1925, Osório César, pioneiro na utilização das artes plásticas como método terapêutico, assume a direção do Hospital do Juqueri em São Paulo. Em 1934 o decreto de № 24.559 reforma a lei de assistência aos doentes mentais que continua sendo através da exclusão. Nas décadas de 40 e 50 encontramos inaugurações importantes realizadas pela psiquiatra Nise da Silveira que apontavam para as mudanças que iriam ocorrer posteriormente. Temos nessa época a inauguração da Seção de Terapêutica Ocupacional e 20 Reabilitação (STOR) em 1946 no Centro Psiquiátrico Nacional, a inauguração do Museu Imagens do Inconsciente em 1952 e a da Casa das Palmeiras em 1956, que funcionava em regime de externato (OLIVEIRA, 2009). No final dos anos 50, havia nos hospitais psiquiátricos uma grave situação caracterizada por superlotação, deficiência de pessoal, maus-tratos, falta de vestuário e de alimentação, parcos cuidados técnicos e condições físicas precárias. Por conta da má fama dos hospícios públicos houve a entrada da iniciativa privada nesse campo. E de 1964, ano do golpe militar no Brasil, até os anos 70, tais clínicas se proliferaram. Os hospitais funcionavam como depósitos humanos, visando benefícios financeiros para os proprietários de hospitais através de convênios que mantinham esse quadro (MINAS GERAIS, 2007). Uma das peculiaridades da Reforma Psiquiátrica é a sua associação a medicina higienista. Oswaldo Cruz e Juliano Moreira foram dois nomes que se destacaram no governo de Rodrigues Alves, e tiveram a missão de “limpar” a cidade do Rio de Janeiro do risco de infecção produzida pela falta de saneamento e planejamentos urbanos, tanto da massa de desempregados quanto a de indigentes que habitavam as ruas da cidade. Uma das medidas tomadas por Juliano Moreira, que foi ao encontro a essa determinação do Governo, foi a “de recolher as sobras humanas do processo de saneamento, encerrá-las num asilo e tentar, se possível, recuperá-las de algum modo” (RESENDE, 1987, p. 45). Juliano Moreira reuniu toda esta população e ao fazer o levantamento de seu perfil, percebeu que havia um alto número de estrangeiros, bem como de seus descendentes diretos. Moreira chegou à conclusão que a doença mental provinha da corrupção da pureza indígena produzida pelos europeus que vieram para o Brasil, idéia baseada na pureza dos donos das terras. Juliano Moreira, recorrendo-se da sua ciência, em seus aspectos heredobiológicos, e partindo do argumento de que “a terra era boa e o índio sadio” (antes da chegada dos colonizadores) concluiu que a Europa nos mandava a sua “escumalha”, e propôs-se a bater “as portas” dos consulados estrangeiros pedindo a repatriação do material “defeituoso” que nos enviavam. Sem dúvida, uma das primeiras práticas preventivas entre nós (RESENDE, 1987, p.46). A ideologia burguesa do trabalho como indicador da cidadania e do bom comportamento do cidadão, sendo o termômetro do normal e do anormal, foi associada à psiquiatria brasileira, colaborando para que outra medida largamente utilizada fosse a criação de hospitais colônias, instalados em muitas cidades do Brasil. Foi utilizado o trabalho agrícola como meio de tratamento aos doentes mentais, sendo que a concepção de 21 sociedade rural, onde o paciente desenvolvia uma atividade e depois de recuperado seria devolvido a sociedade, foi muito tempo afirmado como melhor maneira de tratamento dos doentes mentais. O projeto não foi adiante, e os hospitais agrícolas deixaram de prover a sociedade de sua verdadeira função, ou seja, a exclusão dos doentes mentais em locais geograficamente distantes. A ideologia do trabalho como contribuição da sanidade influenciou também a internação daqueles que não eram considerados doentes, pois o enclausuramento passou a ser a solução para várias questões que não tinham resolução da parte do governo. De fato, quem se dispuser a examinar a população das nossas colônias de alienados, vai encontrar amalgamadas à massa de crônicos, tornada indiferenciada pela cultura mesma do asilo, desde pessoas que lá chegaram após uma passagem por um hospital psiquiátrico, até indivíduos em cuja historia de vida consta como determinante da internação, “doenças” como a de moças namoradeiras que foram desvirginadas e desonradas, crianças que se tornaram órfãos, mendigos e arruaceiros que, pela intermediação do chefe de polícia local ou delegado de polícia encontrava no encaminhamento ao hospício a solução definitiva (RESENDE, 1987, p.52). Durante a era Vargas, as instituições desse modelo não sofreram grandes mudanças, acontecendo apenas reforma e ampliação das instalações existentes. Foram fundados outros hospitais em larga escala, de modelo colônia agrícola, todos financiados pelo Governo Federal. As políticas públicas de Saúde Mental no Brasil tiveram como mola mestra o modelo manicomial, que só veio a ser contestado a partir do final da década de 1960. Vale dizer que na década de 60 houve um fator que gerou conseqüências para a política de saúde de nosso país, que foi a privatização dos hospitais psiquiátricos prestadores de serviço. Tais hospitais privados recebiam subsídio do Estado e eram favorecidos por políticos, gerando renda aos proprietários que, no entanto, muitas vezes, mantinham as condições de tratamento muito piores que as dos hospitais públicos, além de provocarem um inchaço do número de internações desnecessárias, superlotando os manicômios de desempregados, indigentes, pobres, mendigos, já que quanto mais pacientes internados, mais lucro para seus donos. É na década de 70 que a política de exclusão começa a ser contestada e com ela as condições das instalações dos manicômios, do trabalho da equipe, da superlotação dos internos etc. Três eventos políticos importantes colaboraram para o questionamento da Política Pública de Saúde Mental vigente até então. Segundo Delgado (1998) um dos 22 eventos foi o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que aconteceu entre os meses de agosto e setembro de 1977 em Santa Catarina, na cidade de Camboriú. O autor cita também o I Congresso Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental ocorrido em janeiro de 1979 em São Paulo, e o Congresso Mineiro de Psiquiatria, em novembro de 79, que teve como tema a violência praticada nas instituições psiquiátricas. Esteve presente neste último evento o psiquiatra Franco Basaglia que trouxe sua experiência de Trieste e com isso estimulou o movimento da Reforma Psiquiátrica em nosso país. Nesse momento da história da Reforma não havia preocupação em realizar o fechamento dos hospitais psiquiátricos, sendo que as reivindicações reclamavam por melhores condições de trabalho dos profissionais, autonomia e questionamento da privatização dos leitos, bem como das internações desenfreadas e das fraudes encontradas no setor privado, além da mercantilização da doença mental. Amarante (2001) defende que a Reforma Psiquiátrica possui as seguintes dimensões: dimensão epistemológica, técnico-assistencial, jurídico-política e cultural. A dimensão epistemológica citada pelo autor refere-se a conceitos que fundamentam a Reforma e que autorizam a contestação do modelo asilar. A desinstitucionalização funda outro modelo de tratamento diferente do modelo de exclusão, substituindo a internação pela possibilidade de recuperação dos vínculos sociais e da produção da subjetividade que foi excluída em detrimento da doença. O movimento da Reforma tem como conseqüência a desmanicomialização e a redefinição de doença mental. Ao colocar em questão o conceito de doença, as relações das pessoas envolvidas no campo de Saúde Mental foram se transformando, viabilizando a modificação dos serviços dos dispositivos e dos espaços, retirando do paciente a estigmatização produzida pela doença. Segundo Amarante, isso não quer dizer uma negação da doença e sim sua problematização bem como das conseqüências que a centralização do entendimento da patologia trouxe à maneira de se tratar a doença. A segunda dimensão, a técnico-assistencial, operou o questionamento do modelo manicomial por seus pressupostos baseados na tutela, na disciplina, na punição corretiva, no tratamento moral e na medicação exacerbada, instituindo o doente como incapacitado de decidir sobre o seu tratamento, propondo, através de um cunho corretivo e moral, a imposição do tratamento a todo aquele que procurava os serviços de psiquiatria, além de o tratamento ser realizado em instituições fechadas e longe do convívio social. O asilo era considerado o lugar mais adequado de tratamento, por tornar viável a observação dos 23 doentes e assim proporcionar o melhor entendimento da doença. Tal discurso era justificado pelo que se entendia por ciência. Verificou-se que os efeitos gerados pela exclusão agravavam o quadro do paciente, assim como tornavam quase nulo o prognóstico de melhora. Ingressar num hospital psiquiátrico indicava que a permanência de um paciente na instituição seria longa, podendo durar o resto de sua vida. Ao questionar o modelo asilar, ocorreu também uma tentativa de reformulação dos serviços e o modo de entender a doença mental. Na década de 80, aconteceu a reforma e ampliação de alguns hospitais psiquiátricos. O modelo ambulatorial de Saúde Mental como suplemento ao manicômio foi ampliado, colaborando para atender as exigências dos primeiros anos da Reforma. O ambulatório público foi estratégia prevalente de prevenção de internação ainda como suplemento ao modelo asilar. Desde esse momento houve ênfase na rede básica de saúde visando a descentralização do ambulatório, porém não se constitui efetivamente um trabalho em equipe de Saúde Mental. Desponta nesse período a presença dos psicanalistas entre os psiquiatras e psicólogos que trabalhavam nos ambulatórios nos grandes centros da região sudeste, com ênfase nas psicoterapias individual e em grupos e consultas psiquiátricas (FIGUEIREDO, 2004). Uma questão colocada nessa época e ainda presente nos dias de hoje como grande desafio foi a proposta de extinção das emergências em hospitais psiquiátricos e deslocamento para as equipes de Saúde Mental em hospitais gerais (FIGUEIREDO, 2010). Nesta mesma década, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental ganha prestígio contando com a participação de pacientes que estiveram internados e familiares de internos, além dos profissionais da área. Em 1987 é levantada a bandeira "Por uma sociedade sem manicômios" na I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) realizada na cidade do Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), já que humanizar os manicômios passou a ser pouco. O Movimento passou a denunciar a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de uma rede privada manicomial, e fazer crítica ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico (FIGUEIREDO, 2010). No relatório da I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), constam resoluções importantes para esta década as quais elenco com Figueiredo (2010) e Brasil (1988). 24 • Estatização da indústria farmacêutica brasileira com monopólio do Estado na importação de matéria-prima químico-farmacêutica e desenvolvimento da indústria química de base para garantir a soberania nacional no setor químico e farmacêutico. • Formação de Conselhos de Saúde em níveis local, municipal, regional e estadual com participação plena da sociedade no planejamento, execução e fiscalização dos programas e estabelecimentos. • Reversão da tendência "hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica“, com prioridade ao sistema extra-hospitalar e multiprofissional como referência na estratégia de desospitalização. • Proposta de não credenciamento ou instalação de novos leitos psiquiátricos em hospitais psiquiátricos, e redução progressiva dos leitos existentes deslocando-os para hospitais gerais públicos ou serviços inovadores alternativos à internação psiquiátrica. • Proposta de ruptura com a prática da internação hospitalar (hospitais psiquiátricos ou hospitais gerais) no modelo manicomial. • Regulação das unidades de internação psiquiátrica a partir do centro de saúde, ambulatórios e pólos de emergência da rede pública. • Implantação de recursos assistenciais alternativos aos asilares, tais como: hospitaldia, hospital-noite, pré-internações, lares protegidos, núcleos autogestionários e trabalho protegido. • Descentralização e maior capacitação técnica dos ambulatórios da rede pública, visando melhor poder de resolubilidade. • Implantação de equipes multiprofissionais em unidades da rede básica, hospitais gerais e psiquiátricos, de forma a reverter o modelo assistencial organicista e medicalizante, propiciando visão integral do usuário do setor, respeitando a especificidade de cada categoria. Outros fatores que contribuíram para a Reforma foram a constituição federal de 1988, a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) sem os quais a Reforma não teria se efetivado. Através do projeto de lei 3657, apresentado ao Congresso Nacional pelo deputado Paulo Delgado em 1989, inicia-se em nível nacional o movimento crescente de alterações das políticas públicas de Saúde Mental. É Delgado (2001) que sugere que no lugar dos termos psiquiátrico, psicológico e psicanalítico seja utilizado o termo atenção psicossocial, que englobaria o usuário em diferentes pontos de vista e não apenas no seu tratamento. 25 O projeto proporciona abertura das portas dos hospitais psiquiátricos para os técnicos e pesquisadores de diversas áreas e também para alta de vários pacientes que permaneciam internados há muitas décadas, sem interrupção. O debate sobre uma futura lei de Saúde Mental é aberto, já que a lei em vigor datava de 1934 e se baseava exclusivamente no modelo de exclusão dos pacientes em conformidade com a primeira legislação brasileira específica sobre assistência a doentes mentais que datava de 1903 (OLIVEIRA, 2009). Chamamos de Reforma Psiquiátrica ao conjunto de modificações acontecidas a partir dos anos setenta no modelo de assistência psiquiátrica pública, bem como na teoria, na metodologia, na ética e nas práticas que as sustentam. Tal processo envolve aspectos políticos, econômicos e sociais e tem caráter multidisciplinar, convocando todos os saberes relacionados com a saúde e a sociedade de modo crítico: psicologia clínica, psicologia social e institucional, psiquiatria social, psiquiatria clínica, psicanálise, história, filosofia, antropologia, sociologia ciência política, direito, pedagogia e demais áreas técnicas do campo do cuidado a doentes mentais que é por estrutura pluriprofissional: assistência social, terapia ocupacional, musicoterapia, enfermagem, e outras especialidades médicas, tais como neurologia, clínica médica e pediatria. Esse processo assume a dimensão de um movimento social que tem por objetivo principal a retirada do manicômio como a assistência única de saúde mental no Brasil. 1.2 História do CAPS - Breve histórico dos centros de atenção psicossocial no Brasil No início dos anos 90, inicia-se a era nomeada por Figueiredo (2010) de “era psicossocial”, a partir da insuficiência dos ambulatórios na formação de uma rede de atendimento para prevenir, evitar ou reduzir internações psiquiátricas. Um dos principais dispositivos da Reforma Psiquiátrica é Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Tais dispositivos foram criados oficialmente a partir da Portaria GM 224/92 e foram definidos como: unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de quatro horas, por equipe multiprofissional (BRASIL, 2004 b, p.12). 26 Surge o primeiro CAPS do Brasil, o CAPS Luis da Rocha Cerqueira, conhecido como CAPS da Rua Itapeva, inaugurado em março de 1986 na cidade de São Paulo (BRASIL, 2004a) funcionando de modo experimental na orientação da “clínica ampliada” atraindo profissionais e estudantes. Tanto a criação do primeiro CAPS como a de outros fez parte de um intenso movimento social, inicialmente de trabalhadores de Saúde Mental que lutavam pela melhora da assistência no Brasil bem como denunciavam a precária situação dos hospitais psiquiátricos que eram o único recurso destinado aos usuários que necessitavam de tratamento. Foi nesse contexto que em vários municípios do país surgiram os serviços de Saúde Mental como dispositivos eficazes na diminuição de internações e na mudança do modelo assistencial (BRASIL, 2004a). Com a regulamentação do CAPS a internação deixou de ser o único recurso disponível para o tratamento da loucura e passou a ser um recurso aplicável, indicável, necessário e em alguns casos indispensável desde que articulada a uma rede de cuidado, cuja lógica pautada nas ações comunitárias, territoriais, intersetoriais, não é a lógica da segregação, da exclusão, da internação como exclusão social no próprio seio da sociedade. Em 1989 vemos acontecer a chamada “revolta de Santos” com o fechamento da Casa de Saúde Anchieta e criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) a partir de 1989 que também funcionavam como CAPS. A partir desse mesmo ano tramita no Congresso o “projeto de lei Paulo Delgado” que redireciona o modelo de assistência em Saúde Mental, dispondo oficialmente sobre a redução de leitos psiquiátricos e a extinção progressiva dos manicômios, bem como sobre a não construção de hospitais especializados e controle das internações involuntárias. Tal lei foi sancionada apenas doze anos depois, com modificações, a Lei 10.216 em 6/4/2001. Neste momento, porém, o financiamento da assistência em Saúde Mental girava ainda, em torno de 90% para hospitais psiquiátricos (FIGUEIREDO, 2010; BRASIL, 1992). Pela entrada de outras disciplinas e técnicos, bem como à atenção a Saúde Mental, a Reforma Psiquiátrica passou a reivindicar o resgate da cidadania. A Reforma ampliou o seu campo, não ficando mais restrita apenas à psiquiatria, além de tornar-se um problema de cunho social e político, sendo que a assistência em saúde pública se tornou apenas um de seus aspectos. Houve consolidação da Luta Antimanicomial como movimento político organizado com a forte participação de usuários, familiares e profissionais engajados nas propostas radicais da Reforma que vai tomando lugar sobre o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental na cena política. 27 Temos dois fatos significativos nesse período que são a Declaração de Caracas (1990) e II Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em 1992, em Brasília, com o tema “Atenção Integral e Cidadania”, havendo participação efetiva do Ministério da Saúde com proposta na via de consolidação do SUS (BRASIL, 1992). Das propostas da II CNSM constou a articulação dos recursos existentes na comunidade, favorecendo a integração do usuário dos serviços de saúde e fortalecendo os movimentos identificados com as novas reformas da saúde. Também foi proposto valorizar e incentivar a atenção informal em saúde mental desenvolvida por religiosos, grupos de auto-ajuda, organização de familiares, organização de pais e outras e efetivar a interação democrática com os recursos formais dentro da nova política de atenção à Saúde Mental, promovendo a criação de grupos de ajuda mútua entre usuários e trabalhadores de Saúde Mental para melhor resolução nas ações de saúde coletiva. Uma das propostas que merecem destaque é a efetivação do trabalho em equipe multiprofissional com profissionais de outros campos do conhecimento, tais como os trabalhadores das áreas artística, cultural e educacional. A entrada do século XXI viu ser sancionada a Lei 10.216, em 06/04/2001 que reorientava o modelo assistencial em Saúde Mental e também de novas portarias do Ministério da Saúde. O argumento da “atenção psicossocial” foi estabelecido pela Lei Federal 10.216, colocando a Reforma Psiquiátrica em outra fase, já que trazia o debate sobre cidadania e as políticas públicas. Tais considerações trazem a dimensão jurídicopolítica, terceira dimensão da Reforma, defendida por Amarante (2001). A internação de involuntária passou a ser voluntária, salvo em casos em que se justifiquem os motivos. O respeito à capacidade civil do louco que antes era desconsiderada passou a existir. O paciente ao solicitar um benefício por incapacidade de executar suas atividades laborais perdia seus direitos civis, ficando sob curatela. A lei 10.216 possibilita argumentar sobre a garantia de determinados direitos, afirmando que a capacidade civil não necessariamente precisa ser anulada por conta da incapacidade de trabalho. Além da Lei 10.216 acontece também em 2001 a III CNSM com o lema “Cuidar sim, excluir não!”, proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a Saúde Mental, com a participação de convidados internacionais, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e OMS e ampla participação de usuários. Como propostas da conferência, relacionamos (BRASIL, 2001a): • Extinção de todos os leitos em hospitais psiquiátricos do país (88% do orçamento da Saúde Mental) até 2004 para consolidar o movimento de “Sociedade sem 28 Manicômios”. Internação como “hospitalidade diurna e/ou noturna” como parte do projeto terapêutico. • Abolição da eletroconvulsioterapia por ser prática de punição, de suplício e de desrespeito aos direitos humanos. • Ampliação da criação do cargo de coordenador de Saúde Mental em níveis municipal, estadual e federal, devendo a votação do coordenador se dar em processo democrático com participação do gestor, dos trabalhadores, dos usuários e dos Conselhos de Saúde. • Referência ao trabalho interdisciplinar, incentivo à criação das Residências Terapêuticas, atenção à infância e adolescência e a usuários de álcool e drogas. A política intersetorial nesse momento ainda está em sua gênese. A Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 regulamentou os serviços substitutivos que surgiram no Brasil, tais como o CAPS, o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) e o Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) integrando-os à rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e reconhecendo e ampliando o funcionamento e a complexidade dos CAPS que tem como missão dar atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias (BRASIL, 2004b). Tem início o processo de implantação nacional dos CAPS, havendo no ano 2000 mais de 240 CAPS contra apenas 03 em 1990 (BRASIL, 2001b). A proposta é definir unidades tipo CAPS como referência local, micro regional e regional para a assistência em saúde mental como serviços substitutivos ao hospital, com um CAPS para cada 70.000 habitantes. Em 2004 celebra-se no I Congresso Brasileiro de CAPS, promovido pelo Ministério da Saúde na cidade de São Paulo, a implantação de 500 CAPS. A publicação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004a), destinada a informar os profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS sobre o que são e para que servem os serviços de Saúde Mental, chamados Centros de Atenção Psicossocial(CAPS), define-o como serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema único de Saúde (SUS). O CAPS é o lugar de referência e tratamento para as pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida (BRASIL, 2004a, p.13). 29 Dentro de sua área de abrangência, o CAPS tem como objetivo oferecer atendimento à população, realizando acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Foi criado para ser substituto às internações em hospitais psiquiátricos. Os CAPS devem prestar atendimento em regime de atenção diária, gerenciando os projetos terapêuticos e oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado. Além disso, visa promover a inserção dos usuários através de ações intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamento dos problemas. Em virtude desse objetivo, os CAPS têm a responsabilidade de organizar a rede de Saúde Mental de seu território, dentro do qual deve dar suporte e supervisionar a atenção à Saúde Mental. No aspecto de organizar a rede de seu território é missão do CAPS regular a porta de entrada da rede de assistência em Saúde Mental de sua área, dar suporte e supervisionar a atenção à Saúde Mental na rede básica, Programa de Saúde da Família (PSF) e Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Além disso, deve coordenar com o gestor local as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território e manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que utilizam medicamentos para a Saúde Mental. A cartilha do Ministério da Saúde especifica que os CAPS devem contar com espaço próprio para atender à sua demanda específica e ser capaz de oferecer um ambiente continente e estruturado, contando com consultórios para atividades individuais, salas para atividades grupais, espaço de convivência, oficinas, refeitório, sanitários e área externa para oficinas, recreação e esporte. As práticas realizadas nos CAPS devem acontecer em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Muitos dos projetos ultrapassam a própria estrutura física, já que buscam rede de suporte social, que pode potencializar suas ações. Dessa forma, deve voltar-se para o sujeito e sua singularidade, sua história, cultura e vida. O CAPS vem sendo a base do processo de substituição do manicômio nos últimos 20 anos, daí constituir-se como a referência primordial no que se intitulam os serviços substitutivos. Sendo o CAPS a unidade de base da Reforma Psiquiátrica Brasileira, serviço de atenção diária, diurna e intensiva, de base territorial, ele não se define como um mero estabelecimento de Saúde Mental onde se aplicam técnicas e tratamentos diversos. O 30 CAPS é antes de tudo o ordenador da rede e porta de entrada, um pólo de encaminhamento de demandas psicossociais diversas em determinado território, do qual provêm respostas a demandas e ações e intervenções dirigidas a diferentes instâncias e dispositivos desse território. Os serviços criados inicialmente como alternativos são agora considerados substitutivos ao manicômio. Além de um rearranjo administrativo, de uma racionalização de recursos financeiros, da desativação de leitos em hospitais psiquiátricos, o movimento de luta antimanicomial visa tornar possível um convívio real entre a loucura e a sociedade, criando enlaces no campo da saúde, da cultura e do trabalho, colocando em cena a família e o Ministério Público. A Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu grandes avanços políticos, sociais e clínicos, escrevendo o Brasil como um dos países mais avançados no campo da assistência ao portador de sofrimento psíquico, tornando como diretriz legal a atenção psicossocial, que tem como paradigma uma ampliação do alvo das intervenções, no sentido de tratar a psicose no próprio meio social e promover as condições de preservar ou resgatar os laços de pertencimento do paciente. Esse objetivo tem sido amplamente atingido no Brasil que figura hoje entre os países que mais operaram mudanças na humanização e na qualificação dos cuidados aos seus doentes mentais, tal como foi verificado no Encontro chamado “Carta de Caracas: 15 anos depois”, realizado em Brasília em 2005, em que se comemoraram os 15 anos da Carta de Caracas, que estabeleceu tarefas políticas aos países que dela participaram, e que, após 15 anos, no evento considerado, foi feita a verificação de que o Brasil foi o país que mais fez em relação ao estabelecido em 1990, em Caracas. (BRASIL, 2001 c). Chegamos a 2010 com a IV CNSM, primeira conferência oficialmente intersetorial, com apoio significativo da Secretaria de Direitos Humanos além da participação maciça de usuários e familiares. O tema este ano foi “Consolidar avanços e enfrentar desafios”. Em relação às conferências anteriores a intersetorialidade representou um avanço fundamental, atendendo as exigências concretas a partir das mudanças do modelo de atenção. O lema da conferência vai justamente nessa direção: “A saúde mental é ampla demais para ficar nos limites da saúde”, com extensa participação dos municípios e regiões, e de todos os estados nas conferências preparatórias para a IV CNSM. A partir da IV CNSM verificamos a consolidação da rede de atenção psicossocial na perspectiva da intersetorialidade. Os CAPS se consolidam efetivamente como dispositivo estratégico da Reforma Psiquiátrica. No final de 2004 verificou-se a criação de 605 CAPS e em 2010 são 1.541 31 CAPS no Brasil. Em 2003 eram 206 beneficiários do Programa “De volta pra Casa”, programa que contempla os pacientes que passaram por um período de longa internação psiquiátrica e como o próprio nome diz, estão voltando para suas famílias ou Residências Assistidas. Em 2010 foram registrados 3.574 benefícios (SAÚDE..., 2010). Além de questionar o modelo manicomial bem como a psiquiatria e a assistência vigente, a Reforma proporciona uma transformação do lugar social da loucura, introduzindo a dimensão cultural, quarta e última afirmada por Amarante (2000). Podemos exemplificar tal argumento a partir da criação das várias associações de usuários e familiares em todo país, assim como cooperativas, estabelecimento de contratos com empresas privadas visando a inserção do louco no mercado de trabalho, a produção de oficinas de geração de renda, além da adesão dos usuários a vários grupos tais como associações comunitárias, clubes, igrejas e lazer de suas cidades. Vemos que o processo de redução planejada e programada de leitos em hospitais psiquiátricos ao longo dos anos foi acompanhado por significativa expansão da rede de atenção comunitária. Foram fechados cerca de 16.000 leitos em Hospitais Psiquiátricos no período de 2002 a 2009, através do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços hospitalares (PNASH) /Psiquiatria e do Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica (PRH). Até 25 de junho de 2010, a cobertura foi de 63% com 1541 CAPS (BRASIL, 2010). Segundo dados do Ministério da Saúde desde 2002 os hospitais psiquiátricos vem ficando menores. Hoje 44% dos leitos em hospitais psiquiátricos estão situados em hospitais de pequeno porte, enquanto que em 2002 apenas 24% dos leitos estavam nesses hospitais. Esta mudança – conseqüência desejada pelo PRH – gerou a necessidade de atualizar as classes de remuneração dos hospitais psiquiátricos, que levam em conta porte dos hospitais. Com a publicação da Portaria GM 2.644/09, de 28 de outubro de 2009, houve reagrupamento dos hospitais psiquiátricos em quatro classes. Os hospitais de menor porte são melhor remunerados. A expansão e qualificação de leitos de atenção integral à Saúde Mental nos Hospitais Gerais ainda é um grande desafio para a rede de Saúde Mental. Tais leitos, articulados aos CAPS III, às emergências gerais e aos Serviços Hospitalares de Referência para Álcool e Drogas devem oferecer acolhimento integral ao paciente em crise, em diálogo com outros dispositivos de referência para o usuário. A regulação desses leitos de atenção integral é fundamental para garantir acessibilidade e resolutividade, especialmente nos grandes centros. Para estimular a qualificação destes leitos, como parte do Plano Emergencial para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e 32 Outras Drogas (PEAD) no SUS, houve reajuste dos procedimentos para a atenção em Saúde Mental em Hospitais Gerais ao final de 2009 (PT GM 2.629/09). A partir desta portaria, pela primeira vez, os procedimentos de psiquiatria em Hospital Geral passam a ser mais bem remunerados do que os procedimentos em Hospitais Psiquiátricos (Brasil, 2010). O que pode um CAPS? Passando de organizador a articulador da rede de Saúde Mental, qual o seu mandato hoje? Qual o alcance desses dispositivos de convivência tais como o acesso, o acolhimento e o acompanhamento dos pacientes, o atendimento à crise, as consultas com os diferentes profissionais, a convivência diária, as oficinas, a geração de renda, a inclusão social, dentre outros? Ficamos por hora com essas questões. 1.3 A Reforma Psiquiátrica: ainda à procura de saberes? A Reforma Psiquiátrica Brasileira é o movimento mais importante na história da psiquiatria de nosso país, tanto por sua dimensão revolucionária referentes às práticas sociais e clínicas que produziu no atendimento aos que sofrem de loucura, como pela sua dimensão ético-política de colocar em questão e em discussão os valores que atravessam o dia-a-dia de nossa vida profissional e pessoal, pública e privada mesmo em campos não diretamente relacionados à assistência no campo da Saúde mental (ELIA; GALVÂO, 2000). Com sua ação a Reforma se opõe frontalmente ao sistema econômico vigente e ao funcionamento da sociedade moderna. Por esta razão as resistências a ela são grandes (FRANÇA NETO, 2009). Não se trata neste trabalho de levantarmos críticas infundadas contra a Reforma, haja vista aos grandes ataques externos recebidos pelo movimento nos últimos anos, sempre reiterados pelos setores privados em nome de seus interesses econômicos. É preciso, contudo, que os méritos e virtudes de um movimento não se transformem, por força de nossos próprios receios, em fatores silenciadores da reflexão crítica, pois se cairmos na cerimônia de tomar uma prática discursiva como intocável, deixamos de poder colaborar para que ela acerte seus rumos, retificando suas eventuais distorções. Tomemos para introduzir nossa questão, a afirmação de Saraceno (1996) em seu trabalho intitulado Reabilitação Psicossocial: uma prática à espera de teoria. O autor afirma que o campo psicossocial é sem teoria, e também que não existem práticas 33 eternamente sem teorias. Garcia, C. (1997) observa que há uma prática rica e fecunda acumulada pela atenção psicossocial no atendimento da loucura, porém examina a falta de teoria vinculada à clínica antimanicomial. Por estar atrelada ao compromisso de inserção social, ela relega ao segundo plano a dimensão clínica. É a partir dessas afirmações, que abrimos a discussão para uma interrogação: estaria a Reforma Psiquiátrica uma década e meia após a afirmação de Saraceno e Garcia, ainda à procura de uma teoria? Que lugar a Reforma confere ao saber, ou seja, à elaboração teórico-clínica que se tece em torno do sujeito? 1.3.1 Aversão ao saber e ecletismo teórico-clínico Primeiramente lembramos que um dos principais fatores determinantes da Reforma e que tem a ver com a sua História é a enérgica crítica do processo de medicalização da loucura. O discurso médico-higienista e pedagógico substituiu a opressão de isolamento pela opressão discursiva e de igual modo de isolamento, “transformando a loucura em doença mental e confinando-a sob os rótulos de uma nosologia de exclusão, que desconstitui o sujeito da doença mental de toda condição cidadã” (ELIA; GALVÃO, 2000, p. 76). Em conseqüência do rechaço ao discurso médico, o movimento reformador acabou tomando uma espécie de aversão a todo e qualquer saber formalmente constituído, sob a forma de teoria da clínica, adotando, além disso, um ecletismo teórico-clínico. É nessa direção a afirmação de Elia e Galvão quando discutem essa questão: recusa do teoricismo e do clinicismo, e adoção de uma fenomenologia de fundo social. Como corolário, um explícito e orgulhoso ecletismo teórico-clínico, que não deixa de estar fundamentado, de modo coerente, em toda a lógica que rege esta postura. Se a meta é evitar a hegemonia de um saber teórico que pudesse orientar a prática clínica e ser, ao mesmo tempo, por ela afetado, nada mais eficaz do que pluralizar as correntes teóricas, aceitar todas, afirmar a multiplicidade de orientações como regra vigente (ELIA; GALVÃO, 2000, p.77). Contribuindo nessa direção, o DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Norte- Americana de Psiquiatria) e a CID (Classificação Internacional de Doenças), cânones psiquiátricos seguidos em larga escala também dentro dos novos dispositivos da Reforma, como por exemplo, nos CAPS, adotam o a-teoricismo, uma 34 postura desvinculada da qualquer escola de pensamento, sendo que o diagnóstico é feito na base da combinação de vários sintomas observáveis por qualquer indivíduo, em qualquer tempo e lugar. É evidente a aproximação da ciência psiquiátrica com o atual modelo econômicocultural vigente conhecido como globalização. A direção é uniformizar o diagnóstico e também o tratamento, seguindo à risca o ideário da clínica médica. Dessa maneira, uma vez que os pacientes sofrem de sinais e sintomas equivalentes, eles sofrem da mesma doença, não se levando em conta as particularidades de sua subjetividade excluindo assim toda a possibilidade da escuta do sujeito (FRANÇA NETO, 2009). A crítica de Tenório (2001) segue na mesma direção, apontando o empobrecimento da psiquiatria e a redução da semiologia à contabilidade descritiva dos sistemas classificatórios atuais, à redução da clínica, à aplicação do fármaco e a redução da ação institucional. O saber psiquiátrico tradicional tal como é transmitido nos hospitais e também ainda em muitos dos atuais dispositivos da Reforma e novamente citamos como exemplo, o CAPS, coloca-se ao abrigo de qualquer imprevisto e protegido das interpelações do inconsciente. Ao incluir o doente numa classificação nosográfica que determinará o valor de sua palavra, o paciente é emudecido, bem como também o próprio médico, que se preserva das perturbações que a loucura traz, ao invocar esse outro em nós mesmos do qual recusamos tomar conhecimento (RINALDI, 2000). Sobre essa questão, afirmamos com Alberti (2010) que a psicanálise é uma teoria atrelada à prática, uma teoria da clínica, que surgiu das questões da clínica e que sempre retorna à clínica. É verdade que às vezes a política da Reforma pode tomar a forma de um mandamento exterior a tudo que se observa no cotidiano da clínica, a ponto de ser possível encontrar experiências que, em nome da reforma psiquiátrica, exilam a clínica do atendimento aos usuários... e então se trabalha para a Reforma e não para os pacientes que, no lugar do sujeito do pathos ( ), sujeitos do sofrimento, sustentam o modelo da Reforma da mesma forma que o proletário pode sustentar o capitalista no lugar de S1 no discurso do mestre (ALBERTI, 2010, p. 22). A Reforma Psiquiátrica é hoje uma esperança de vir a dar o ambiente suficiente para levar a efeito o convite de Lacan de não recuar diante da psicose, desde que ela também possa se instrumentalizar pela psicanálise (ALBERTI, 2010). 35 1.3.2 Universidade e Reforma Psiquiátrica Outro aspecto da dificuldade em relação ao saber e entre a relação da teoria e a prática é o que aponta Elia (2005 b), quando diz que a Universidade sedia pesquisas que tomam por objeto questões diversas do social, mas que conduz essas pesquisas sem nenhum compromisso de retorno a este campo. Por outro lado, a instituição assistencial pública encontra-se sem amparo do saber, saber este que poderia servir de arrimo para as várias intervenções necessárias em seu campo. Como não existe um norteamento teórico por parte dos técnicos, há um mergulho na empiria, tornando as instituições de Saúde Mental inertes e ineficazes no que diz respeito ao enfrentamento das questões que constituem seu objeto de intervenção. Investigação e intervenção segundo o autor parecem exercer entre si uma força centrífuga, que as expele uma para cada lado. Lobosque (2009) afirma que o movimento da Reforma foi capaz de influir na legislação do país, na forma de se empregar o dinheiro público e na definição da sua modalidade de assistência. No entanto no que diz respeito à relação com a universidade, não conseguiu obter êxito. A autora levanta algumas questões referentes a esse tema tais como: competiria a universidade se posicionar contra ou a favor da Reforma? Deveria dar visibilidade às divergências e abster-se de tomar partido? Poderia propiciar uma avaliação crítica do processo mantendo-se independente, porém ativa? A única resposta, qual seja o silêncio, vem excluindo todas as alternativas acima. Trata-se de um silêncio peculiar: não consiste em proibir ou expulsar determinado assunto, e sim em abordá-lo de forma tal que as questões por ele suscitadas não venham a atingir o corpo mesmo do ensino (LOBOSQUE, 2009, p. 20). As universidades de maneira geral não se ocupam da legislação, da política pública de Saúde Mental, das experiências que se desenvolvem nos serviços substitutivos. Ao invés disso, o modelo centrado em consultório, com consultas, sessões individuais ou em hospitais psiquiátricos e ambulatórios continuam sendo o ensino vigente. A apresentação de paciente em hospitais psiquiátricos prossegue sendo a principal forma de contato dos alunos com os pacientes graves, em parceria com a prescrição de psicofármacos e/ou sessões de psicoterapia ou psicanálise para pacientes com sofrimento mental leve. Em nossa observação percebemos que a maioria dos currículos dos cursos de formação dos profissionais de saúde em geral não aborda questões ligadas ao campo de Saúde Mental, e quando tratam do assunto, se restringem a trabalhar a história, a legislação 36 e aspectos meramente descritivos do campo, estando ausente o manejo clínico nas instituições. É pouco conhecida pelos acadêmicos e também pelos estudantes de cursos técnicos, como por exemplo, os de enfermagem, a atuação dos CAPS e outros serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e muito menos a noção de rede, universalidade de acesso, território, cidadania, acolhimento, etc. Na universidade onde lecionamos por quatro anos a disciplina denominada “Clínica nas Instituições”, onde o carro-chefe era a clínica psicanalítica nos dispositivos de Saúde Mental, isto só foi possível pela flexibilidade do currículo que permitia ao colegiado, acrescentar temas diversos que poderiam ser psicologia jurídica, psicologia do trânsito entre outros. Vale a pena lembrar que apesar de várias publicações importantes sobre a Reforma Psiquiátrica e sua clínica, as bibliotecas das universidades ainda possuem poucos exemplares em seu acervo para consulta dos acadêmicos. Lobosque (2009), na mesma direção, levanta a questão que talvez a universidade estivesse esperando o estabelecimento de verdades reconhecidas, depois de vencidos a polêmica, verdades que se possam tomar como objeto do saber, para poder aplicar sua atenção na legislação, na Política Pública para a Saúde Mental e nas experiências que se desenvolvem nos CAPS. Sobre esse aspecto queremos destacar a criação dos programas de Residências Multiprofissionais que estão surgindo pelo país, especialmente no Rio de Janeiro, onde os acadêmicos podem experienciar outra abordagem dentro do campo de Saúde Mental. Esta realidade, porém não é a da maioria dos universitários do país. É de suma importância de que o Ministério da Educação, de forma intersetorial, intervenha na reformulação dos currículos de cursos como a Medicina, que formam profissionais que nada conhecem acerca da Rede de Saúde Mental e que por esta e outras razões, ao ingressarem em equipes de Saúde Mental ou em outra de saúde em geral, chegam a ter aversão por reuniões, debates, fóruns e demais dispositivos. Também se faz necessário modificar os planos de ensino de outros cursos de futuros profissionais que atuam no campo da Reforma Psiquiátrica, tais como serviço social, enfermagem, psicologia, musicoterapia, etc. Faz-se necessário intensificar a pesquisa através de incentivo maior nas iniciações científicas, monografias, dissertações e teses. Por outro lado é importante ressaltar o que a Reforma faz com a Universidade. Existe um equívoco por parte do movimento social da Reforma Psiquiátrica sobre a Universidade. A Reforma, na voz de alguns de seus pensadores, tem uma relação de preconceito com a Universidade. Para estes a Universidade quer ter certeza, é asséptica, 37 puritana, não é ideológica, trabalhando apenas com rigor conceitual. Isto faz parte do pensamento do movimento social que está dentro da Reforma Psiquiátrica Brasileira e não necessariamente é o pensamento da Reforma. Trata-se de atores diferentes. O Estado não trabalha com o preconceito com que a luta antimanicomial trabalha. Tal preconceito impede o diálogo entre esta última e a Universidade. Ainda que a Universidade não tenha colocado a Reforma como frente de trabalho, há trabalhos isolados na graduação e pós-graduação. A Terapia Ocupacional fez um trabalho nessa direção assim como algumas cadeiras de Residências de Psiquiatria e Residências Multiprofissionais de Saúde Mental, assim como alguns cursos de Psicologia. Em termos de formação universitária, o grande problema ficou mesmo nos cursos de Medicina e especializações em Psiquiatria, que tomaram uma direção cada vez mais privatista, organicista e anti-Reforma. As políticas públicas voltadas para o campo da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial esqueceram-se, ao que parece, da preocupação, de ordem intersetorial, com a formação dos agentes médicos psiquiatras que estariam no amanhã – que já é hoje – do processo. Fazendo referência aos quatro discursos propostos por Lacan, a saber, discurso do mestre, da histeria, do universitário e do analista, Alberti (2010) questiona se no discurso da universidade os pacientes da Reforma são justamente os sujeitos jogados fora, já que não servem para corroborar a eficácia da multidisciplinaridade da Reforma, onde todas as práticas e todos os saberes são equivalentes. 1.3.3 A Reforma Psiquiátrica e a supervisão clínico- institucional Barleta e Elia (2010) defendem que se a supervisão clínica é considerada parte da política pública ela não pode ser contingencial, casual ou periférica. No entanto, a maioria das equipes dos CAPS em nosso país vive em grandes dificuldades por não poder contar com a supervisão clínica. Sabemos de muitas histórias de tentativas bem sucedidas apesar da falta desse recurso, mas são inúmeras as outras que em tempos de Reforma mais parecem lenda, como por exemplo, o episódio acontecido em um determinado CAPS, de chamar o corpo de bombeiros para conter o surto de um paciente. Se é extremamente comum a chegada de pacientes em surto, trazidos pelas viaturas do Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Guarda Municipal, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o que será que levou esse CAPS a 38 fazer justamente o contrário? Ao invés de poder operar clinicamente de alguma forma diante do caso, porque teve que se valer de uma outra instituição para lidar com a loucura? Não sabemos detalhes sobre esse episódio, porém podemos supor que os que integravam a equipe desse serviço, não contavam com instrumento da supervisão, como inclusive preconiza a Portaria MS № 1174 - 7/7/ 2005 e Mensagem Circular № 028/2007 19/11/2007 do Ministério da Saúde, para que pudessem juntos trabalhar as dificuldades encontradas em seu dia-a-dia no CAPS e na rede intersetorial, em seu território. Muitas vezes, diante de situações de crise dos usuários, que se impõem no universo do CAPS, não há respostas, e só no a posteriori é que algo pode se dar. Esse é justamente um dos aspectos onde a supervisão pode atuar, levando os técnicos ao invés de se posicionarem, seja diante de casos graves ou daqueles de aparência mais simples, como uma equipe que pode ter uma visão completa, holística, integral de um caso clínico, a conceber a insuficiência e a parcialidade de cada técnico, de cada especialidade, serviço e setor (BARLETA; ELIA, 2010). Não para ficarem na impotência, como demonstra o exemplo em questão, “mas poder despir-se de cada especialidade de modo a tornar-se passível de afecção pela direção clínica que se delineia no trabalho coletivo sobre supervisão, e operar sua função psicossocial a partir desta direção.” Ainda podemos ser mais radicais quanto essa questão, a partir da afirmação de que pode-se inferir ainda que “sem a supervisão, a equipe sequer se forma". Se a supervisão é o que deve ser introduzido em uma equipe para que ela se torne verdadeiramente uma equipe, isso não se opera à maneira de um fermento, um acréscimo que adiciona, que faz crescer, mas como uma operação de subtração. O que a supervisão “acrescenta” é a perda de ilusão de autonomia, de “autogestão”, que se define pela possibilidade que uma equipe pode se dar de saber a priori o que deve ou não ser feito, o que deve ou não ser levado à supervisão, o que deve ou não ser priorizado, ao invés de abrir-se aos efeitos de um trabalho que lhe escapa, e do qual só poderá produzir algum saber a posteriori (BARLETA; ELIA, 2010, p. 4). O supervisor clínico deve promover um espaço onde a equipe possa falar sobre os impasses, as angústias, as dificuldades, que são presentes na prática de todo técnico que trabalha em uma equipe de Saúde Mental, seja em CAPS ou em outro dispositivo da Reforma Psiquiátrica, e com isso possibilitar a construção de práticas teórico-clínicas que sejam consonantes com o terreno da Reforma. Principiante ou experiente, cada técnico terá sempre enormes dificuldades de exercer seu ato clínico, e será sempre surpreendido em seu encontro diário marcado com aqueles que ele tem em tratamento, sob sua responsabilidade técnica. Se o técnico não mais se surpreende, se não experimenta dificuldades, 39 algo está certamente muito errado. E cabe, aqui também, ao supervisor, interrogar isso, “cutucar” situações aparentemente amenas, brandas ou competentes, que exibem o ar de correrem muito bem em trilhos azeitados (ELIA, 2005b, p. 2). Lacan usou o termo êxtimo para indicar um lugar para o inconsciente como o que há de mais externo e íntimo ao sujeito. A equipe de CAPS necessita se reunir regularmente com um supervisor que deve cumprir essa função de êxtimo, de ser ao mesmo tempo interno e externo à equipe (FIGUEIREDO, 2005). Por isso um supervisor nunca poderá ser um membro da equipe, porém um profissional escolhido pelos técnicos. Diferente do trabalho de transferência que deve ser sustentado pelo psicanalista em sua relação com um analisante, o supervisor, segundo Figueiredo (2007), vai sustentar a transferência de trabalho e a construção do caso na equipe para operar como garantia. Sua ação quanto à transferência de trabalho se traduz em barrar o gozo da pulsão de morte presente nas rivalidades imaginárias entre os membros da equipe, que tem conseqüências no real, e pode ser devastador no dia-a-dia de um CAPS. Já no que diz respeito à construção do caso, a tarefa principal do supervisor será tomar os fragmentos de saber produzidos no dia-a-dia do CAPS fazendo circular seus efeitos na equipe para colocá-la na direção do trabalho partilhado. O supervisor tem uma função singular na equipe que passa ao largo da figura do ‘professor’, ou do ‘inspetor’ /‘interventor’. Ele deve garantir o trabalho da equipe (análogo à função do ‘mais um’ no cartel), mais do que portar o saber. Sua tarefa implica em sustentar e, mesmo, afirmar as ações de cada um, a cada caso, desde que haja uma direção construída conjuntamente. Conseqüentemente, implica em sustentar a transferência de trabalho e a construção do caso na equipe para operar como garantia (FIGUEIREDO, 2007, p. 7). Talvez fosse mais preciso dizer que o supervisor sustenta a transferência no trabalho, guardando a expressão transferência de trabalho para o sentido que esta categoria assume no ensino lacaniano, como resultado da análise da transferência e possibilidade de sustentação de laços de trabalho entre analistas em uma Escola de Psicanálise, no cartel, por exemplo. 40 1.3.4 Exacerbação do resgate da cidadania e da normatização A percepção da loucura vigente no movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi marcada pela exclusão social e privação da cidadania. Sendo assim, a estratégia da assistência foi ao encontro do princípio da reabilitação social, resgate da cidadania e da valorização dos laços sócio-afetivos, familiares e comunitários. Porém, tomadas em primeiro plano, a politização e a cidadania podem gerar apenas um imperativo a ser seguido e obedecido pelos usuários e técnicos (FRANÇA NETO, 2008) Como assinala Viganò (apud Tenório, 2001), as propostas de reabilitação, e em um aspecto mais geral, a própria psiquiatria oficial, vão na direção a abdicar ao tratamento dos sintomas através da exclusão da clínica, já que acolhem o psicótico sem levar em conta o discurso. Desse modo, afirmam o modelo de exclusão e segregação do manicômio. Tenório (2008) cita um exemplo clínico bastante ilustrativo a esse respeito. Relata o caso de um paciente de CAPS que se encontrava com sua moradia em péssimas condições, com janelas e portas quebradas e demais partes da casa em situação precária. Apesar das intervenções da equipe na tentativa de ajudá-lo, o paciente, que era psicótico, permanecia firme na sua certeza delirante que teria um dinheiro para receber do Exército brasileiro e seria com esse dinheiro que arrumaria sua moradia. Após algum tempo, a equipe conseguiu convencê-lo a receber ajuda para a reforma. Ao chegarem à residência do paciente no dia marcado para os consertos e limpeza, o paciente havia saído. Esperaram bastante por ele e como tinham que levar em conta a dificuldade que era juntar todos aqueles trabalhadores e como estava tudo previamente combinado com o paciente, a equipe do CAPS e os trabalhadores da prefeitura foram adiante em seu intento. Podia-se esperar que no registro de uma realidade compartilhada, as preocupações da equipe com o bom funcionamento da casa do paciente, com a ordem e a higiene eram pertinentes e que o paciente em questão provavelmente ficaria mais feliz. Porém, qual não foi a surpresa para a equipe ao saber que o paciente ao chegar a sua casa quebrou novamente tudo o que havia sido consertado alegando que tudo o que precisava viria da indenização do Exército e não de outra parte qualquer. Como vemos pelo exemplo acima, a psicose tem uma lógica própria que não entra totalmente nas nossas tentativas de normatização. É necessário considerar essa lógica nas tentativas de ações terapêuticas. No exemplo narrado pelo autor, a equipe do CAPS interveio em um registro da realidade, fazendo com que o paciente perdesse o lugar onde 41 ele se sustentava como sujeito. O paciente em questão recusou o conforto oferecido pelos técnicos para poder prosseguir sustentado pelo seu delírio (TENÓRIO, 2008). Comprometer a escuta na perspectiva do cuidado é, de certa forma, segundo Rinaldi (2000), dissolver o que ela pode trazer de realmente novo numa atitude que tem a pretensão de humanista, onde a possibilidade de uma verdadeira solidariedade, a partir do reconhecimento das diferenças em nosso destino comum se desfaz numa prática que se confunde com o exercício da piedade. Protocolos, planos terapêuticos, linhas de trabalho são criados nos CAPS sem o mínimo de embasamento teórico-clínico. Os técnicos comumente empregam medidas adaptativas, moralistas, visando uma inclusão do paciente. França Neto (2009) defende que os profissionais da Reforma, em suas tentativas de inclusão aparentemente necessárias, são quase sempre vistos menos como facilitadores e mais como obstáculos, pois tais tentativas se apresentam para os pacientes como intervenção externa, e, portanto, como assujeitamento. Se aos agentes da Reforma cabe a inclusão dos pacientes, “nem por isso eles deixam de ser um dos Outros contra os quais os usuários deverão necessariamente resistir para assegurarem uma existência não assujeitada” (FRANÇA NETO, 2009, p. 9). Zenoni (2000) nesta mesma direção formula uma importante questão: como presentificar para o sujeito um Outro que não seja a encarnação do querer do Outro? Dentro de um CAPS, o sujeito não está somente diante dos técnicos, mas também de outros pacientes. Nesse convívio é comum o problema da violência, de roubos, insultos, injúrias, uso de drogas e etc. O autor responde que em certo sentido somos representantes da lei para esses sujeitos e devemos garantir a coexistência de todos. Porém, a manobra consiste em não presentificar a vontade do Outro, mas em presentificar um Outro que é ele submetido a uma lei. Não se trata de ficar numa posição paterna ao considerar que nós mesmos introduzimos a dimensão da lei, mas nos mostrarmos nós mesmos enquanto submetidos à lei. Não devemos personificar um Outro que quer, mas um Outro do querer que é submetido á lei. Assim, evitaríamos dois riscos. O primeiro é o da “regra pela regra” que deve ser mantida a qualquer preço. O outro é o da regra terapêutica, regra que é aplicada ou não segundo o estado de saúde do sujeito, como podemos ver no exemplo citado anteriormente, regra que decide se o sujeito é ou não responsável. Zenoni (2000) vai dizer que o fato de considerar o paciente sempre responsável, nunca tem efeitos nefastos sobre ele enquanto que ás vezes considerá-lo não responsável pode ter efeitos de desencadeamento. 42 1.3.5 Uma direção proposta: a psicanalítica Reestruturar tecnicamente os serviços ou propor novas e modernas terapias para o campo da Saúde Mental não abrange todo o processo de desinstitucionalização. É necessário um complexo processo de estabelecimento de novas relações e reconstituição de saberes e práticas. Criar a rede de Saúde Mental não garante, por si só, a transformação dos modos tradicionais de lidar com a loucura. Contestar de maneira radical a nossa relação com o louco enraizada em nossa cultura faz-se necessário e não apenas reformar a assistência através da criação social e administrativa de novas formas de tratá-lo. (RINALDI, 2000). Sabemos que uma práxis deve ser regida por princípios e diretrizes que lhe dão sua orientação ética e, caso ela se insira em um campo de saber, científico ou dele derivado, também sua orientação metodológica, sustentada por um eixo conceitual. A clínica em Saúde Mental deve ter seus princípios e diretrizes éticas e metodológicas bem definidas, e, como deriva da ciência, deve ter também uma orientação conceitual. No entanto, por força de outro fator, ele próprio elevado à condição de princípio, o campo da Saúde Mental, por suas características próprias, históricas, epistemológicas, políticas, sócio-institucionais, enfim, por seu modo operatório, não admite uma orientação teórica única, prevalente ou hegemônica. Não cabe, no campo da Saúde Mental, tentar impor uma orientação teóricoclínica exclusiva ou única (ELIA, 2005a). Contudo isso não significa que não se extraiam, de algumas das orientações existentes, os conceitos que se revelam capazes de dar sustentação teórica a posições que devem ser sustentadas precisamente em função dos princípios e diretrizes éticos e metodológicos mencionados acima, princípios entre os quais se situa, por sua vez, aquele que interdita uma orientação teórica única. Para Elia (2005a) isto significa que determinado campo de saber, dotado, como ele deve ser de unidade e consistência conceituais, só pode ser tomado como referência para a Saúde Mental se ele atender a duas condições logicamente interligadas. A primeira condição é que sua construção discursiva deve depreender dois planos distintos: o de princípios e o de conceitos propriamente ditos. Já a segunda é que seus princípios devem possuir harmonia com a direção ética proposta pela ação do cuidado em Saúde Mental e dar sustentação a esta ação. Para este autor, os conceitos devem guardar, com os princípios, uma relação de homologia e conformidade, de modo que a ação que deles originam, ou 43 seja, por eles afirmadas, não apenas não fira como também se apóie nos princípios éticos que os regem. Incontestavelmente a psicanálise já se apresentou como um desses saberes. Não é necessário que adotemos todos os enunciados da psicanálise para que façamos a verificação de que o sujeito de que trata a psicanálise é um sujeito que não pode deixar de ser responsável, exigência ética que a psicanálise estende até o plano do próprio inconsciente. Podemos acompanhar autores que demonstram que vários outros saberes permitem a mesma disjunção operatória entre princípios e conceitos, e que se constitui de uns e outros perfeitamente articuláveis com o campo da Saúde Mental. A concepção marxista do sujeito, por exemplo, sustenta que o sujeito só se realiza em um trabalho de que ele não esteja divorciado em seu desejo, um trabalho no qual ele não realize o propósito alheio – caso em que Marx diz que o trabalho é estranhado (entfremdte Arbeit) (ELIA, 2007). Há também alguns saberes filosóficos que se reúnem com o modo de pensar requerido pelo campo da Reforma Psiquiátrica. Citamos com Elia (2007) a fenomenologia e o existencialismo, “sobretudo quando o humanismo neles implicado é submetido a uma crítica interna (como em Heidegger ou Sartre), que o retira de uma ingenuidade rousseauneana, samaritana ou – em um plano mais degradado – até mesmo rogeriana.” Arendt (2004) faz uma importante colocação sobre responsabilidade que também pode contribuir para nosso entendimento sobre esta noção: Essa responsabilidade vicária por coisas que não fizemos, esse assumir as conseqüências por atos de que somos inteiramente inocentes, é o preço que pagamos pelo fato de levarmos a nossa vida não conosco mesmos, mas entre nossos semelhantes, e de que a faculdade de ação, que, afinal, é a faculdade política par excellence, só pode ser tornada real numa das muitas e múltiplas formas de comunidade humana (ARENDT, 2004, p.225). Em todas essas orientações teóricas é possível sustentar a categoria de um sujeito responsável e ativo. Responsável porque o sujeito, tanto na perspectiva do inconsciente, para a Psicanálise, quanto na perspectiva histórico-dialética, para o Marxismo, não é mero joguete de forças que o determinam, mas toma parte nelas, ainda que sem sabê-lo. E ativo porque é só na dimensão do ato que o sujeito assume as determinações que recebe do que lhe é externo e alteritário. Só a Psicanálise concebe um efeito ativo – em geral a causa é ativa, o efeito, passivo. Mas o sujeito da psicanálise é efeito em ato, efeito ativo. E é disso mesmo que ele tem que responsabilizar-se, sobre o que lhe concerne, mas que ele não deliberou. Lacan, expressando o que para nós serve como fundamento desta colocação, diz, 44 em O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico, que “só podemos nos responsabilizar verdadeiramente pelo que ainda não sabemos responder” (LACAN, 1984). Tais enlaces entre os saberes, “se arejados pela lufada oxigenante do marxismo ou se regados pelo bom vinho da fenomenologia existencial não avinagrada pelo humanismo vitimizador” (ELIA, 2005), podem se tornar poderosos instrumentos conceituais e clínicos para o exercício de toda práxis que se pretenda consistente e conseqüente no plano da Saúde Mental, como por exemplo, os CAPS. O dispositivo de escuta inaugurado por Freud corresponde à regra fundamental da psicanálise denominada associação livre, onde o paciente deve dizer tudo que lhe vem à cabeça. O analista deve apenas escutar, sem se preocupar se está retendo alguma coisa e sem estabelecer uma seleção do material. A isso Freud denominou atenção flutuante. Freud propõe a partir dessa regra, a geração do tratamento a partir de uma abertura inconsciente e não de um saber a priori, onde o analista deve, antes de qualquer coisa, abrir mão de seus preconceitos, permitindo a ele escutar as particularidades do discurso de cada sujeito. Mesmo no caso do psicótico, que não pode se reconhecer naquilo que diz, pode-se seguir o princípio colocado por Freud e assim o paciente se dará a conhecer ao analista (RINALDI, 2000). No campo do saber e da experiência do homem a psicanálise traz a dimensão do sujeito do inconsciente. Portanto, o princípio de que o paciente deva ser tomado como um sujeito, e não como um objeto é um princípio que deve ser acolhido, afirmado e tomado como indispensável, entretanto isso não será suficiente, se alguém for tomado como sujeito estabelecendo a esse sujeito apenas a dimensão de seus direitos humanos, tais como educação, saúde, lazer, etc. Teríamos, então, um sujeito de direitos, mas não um sujeito de responsabilidades, e, mesmo que se tome nesta segunda categoria, a própria responsabilidade precisaria ser definida, na medida em que ela poderia ser reduzida ao plano dos deveres cidadãos (obrigações sociais, jurídicas e comunitárias, por exemplo) e não no plano de uma responsabilidade subjetiva, isto é, responsabilidade por sua condição psíquica, mental, por seu pathos, e pelos destinos que se lhe podem dar. O sujeito do direito teria que ser transmutado em sujeito de desejo. Estamos aqui diante de uma impossibilidade tão lógica quanto ética: o sujeito, uma vez tomado apenas em seus direitos, deixaria, no mesmo golpe, de ser um sujeito, e se tornaria um objeto – vítima social, vítima familiar, vítima dos processos de exclusão. Como se vê, independentemente do saber teórico com que operamos, impõe-se-nos a idéia de que a categoria de sujeito implica, internamente, a de responsabilidade, sob pena de desfazer-se como categoria de sujeito, a rigor. Se há sujeito, então ele é responsável (ELIA, 2005a, p 3). 45 Como a Reforma Protestante do século XV, iniciada por Lutero e continuada por teólogos como Zwínglio, Calvino, Knox e outros, movimento que produziu um corte profundo em um status quo que estava insustentável, já que a Igreja Católica Romana era conivente com vários procedimentos patrocinados pelos clérigos contrários aos ensinamentos apostólicos, tais como com a venda de indulgências e relíquias, peregrinações, intercessões pelos mortos e etc., a Reforma Psiquiátrica que queremos e buscamos é aquela que não cesse de avançar na direção de se reformar, para enfrentar as questões que ela mesma criou ao ter a coragem de combater o quadro manicomial que a assistência exibia no Brasil há décadas atrás aos que sofrem gravemente com a loucura. Gisbertus Voetius, reformado holandês, propôs à época do Sínodo de Dort (16181619), um moto que era “Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” (Igreja Reformada Sempre se Reformando) que as igrejas e os teólogos calvinistas seguem até o dia de hoje. O slogan tem como direção o retorno constante aos pilares da Reforma Protestante, Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo Gloria. Voetius, defensor dos pontos doutrinários calvinistas (eleição incondicional, depravação total, expiação definida, graça irresistível e perseverança dos santos) claramente presentes nas epístolas paulinas e em Santo Agostinho, não negou o princípio da reforma constante, mas destacou que o alvo era sempre retornar às Escrituras, que tinham sido a base da Reforma Protestante. Assim, A Reforma Psiquiátrica deve seguir na direção de uma reforma contínua que também não desvie de seus pilares. Ao se colocar na posição de continuar à espera de uma teoria – sustentando que não a tem, ou ao se manter em uma posição avessa à discussão teórica e epistemológica, a Reforma Psiquiátrica corre o risco de se encontrar de certo modo com a visão hospilatocêntrica, no cruzamento das esquinas do saber a priori, com a da ausência de crítica epistemológica, e a do silenciamento do sujeito. Se continuar eternamente como afirmam Saraceno (1996) e Garcia, C. (1997), mas na verdade com seus referenciais pouco explicitados e velados, o campo da Saúde Mental pode ser “achado” por teorias que só aparentemente lhe seriam tão estranhas assim e não completamente forasteiras ao seu campo, tais como já deu mostra a medicina do comportamento, com seu organicismo violento associado a um comportamentalismo cognitivo e adestrador. Se quiserem manterse coerentes com os princípios que a Reforma preconiza, os profissionais devem ter em vista que sua ação deve implicar, desde o princípio, a construção de um saber onde prática e clínica estejam relacionados e afinados com a Política Pública de Saúde Mental. 46 2 TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA PSICOSE 2.1 A importância de reafirmar a psicose como uma estrutura clínica Para abordarmos a questão de nossa pesquisa, - a clínica nos CAPS – que desenvolveremos destacadamente na seção 3, tomaremos nesta seção, a teoria e clínica psicanalítica estabelecida por Freud e sistematizada por Lacan. A psicanálise é uma teoria que está em conjunção com a clínica, desde a sua invenção por Freud, pois foi a partir de suas questões com a clínica que ele pôde abrir o inconsciente à sua formalização, levando-o a teorizar e a ela retornar de maneira contínua. O que fundamenta a experiência da psicanálise? Muitos poderão responder apressadamente que será o dispositivo criado por Freud, que tem como ponto central a associação livre, regra fundamental, citada por nós no final do capítulo anterior, que somada ao estabelecimento do setting analítico, com a determinação do tempo das sessões, sua freqüência, etc. garantiria um bom andamento ao tratamento analítico, porém faz-se necessário ir um pouco mais longe para estabelecermos nossos fundamentos. Freud (1987f, p. 165) em seu texto Sobre o início do tratamento descreve a função do diagnóstico levando em conta especialmente os psicóticos. Em suas palavras: Estou ciente de que existem psiquiatras que hesitam com menos freqüência em seu diagnóstico diferencial, mas convenci-me de que, com a mesma freqüência, cometem equívocos. Cometer um equívoco, além disso, é de muito mais gravidade para o psicanalista [...] ele não pode cumprir sua promessa de cura se o paciente está sofrendo, não de histeria ou de neurose obsessiva, mas de parafrenia, e, portanto, tem motivos particularmente fortes para evitar cometer equívocos no diagnóstico. Quanto à cura como efeito terapêutico esperado numa análise, Lacan vai dizer que um sujeito é incurável (LACAN, 1984), já que mesmo que atravesse a fantasia e cheque ao final de análise, isso no caso do neurótico, o inconsciente nunca vai deixar de se manifestar, sendo o sujeito testemunha de sua persistência. Quanto à promessa de cura, no caso da psicose, diz respeito ao analista não poder prometer inserir o psicótico na norma fálica, não poder inseri-lo numa “norma” já que a norma é regida pelo Édipo e pelo complexo de castração cujo resultado é o significante fálico, isto para ambos os sexos. Não é possível fazer um psicótico tornar-se um neurótico. 47 Se o sujeito é um neurótico ou um psicótico, é importante que um técnico de CAPS, seja este analista ou não, o saiba, pois a condução de um tratamento precisa ter como referência o Nome-do-Pai e a castração no primeiro caso, e não poderá ser conduzido desta maneira no último. Dessa maneira é fundamental que se detecte a estrutura clínica do sujeito desde as entrevistas, chamadas nos CAPS, de acolhimento, e nos momentos subseqüentes de permanência do paciente no dispositivo, para a conduta correta do caso. Muitas vezes o que vemos acontecer é uma desvalorização do diagnóstico em prol da avaliação de transtornos, levando-se assim a uma clínica confusa e desnorteada. Muitos neuróticos são conduzidos como se fossem psicóticos. De igual modo, os psicóticos são tratados no cotidiano como se fossem regidos pela norma fálica, ou seja, como os neuróticos. Se Freud contra-indicava a psicanálise para os psicóticos, Lacan vai trazer uma importante recomendação aos analistas, que transmitimos e transferimos para os técnicos dos CAPS: “a paranóia, quero dizer a psicose, é para Freud absolutamente fundamental. A psicose é aquilo diante do que um analista não deve, em caso algum, recuar” (LACAN, 1977, p.12). Resta saber, porém, de que maneira devemos avançar, pois se com os neuróticos a condução da clínica exige um manejo adequado, o que diremos então da clínica da psicose? A direção do tratamento deve ter como base de estratégia a transferência da qual o diagnóstico não deve estar dissociado, já que o analista será convocado a ocupar o lugar do Outro para o sujeito, a quem ele dirigirá suas demandas, e, a partir deste campo assim constituído, o desejo inconsciente encontrará o analista na posição de objeto a. Será, assim, de profunda importância detectar qual a modalidade da relação do sujeito com o Outro e com o objeto, pois como veremos posteriormente, é pela transferência que poderemos lidar com os transtornos que podem advir da clínica com pacientes psicóticos, especialmente aqueles que convivem diariamente em um dispositivo como o CAPS. Em seu texto Neurose e psicose, Freud (1987q) define neurose e psicose como estruturas clínicas e distintas entre si, o que foi corroborado por Lacan posteriormente quando recoloca a clínica psicanalítica distinguindo a diferença entre a demanda de análise, a direção de tratamento e os critérios de final de análise entre uma estrutura e outra. No texto em questão, Freud define a neurose como um conflito entre o eu e o isso devido ao recalcamento secundário da pulsão, tendo como conseqüência a inibição, restrição ou interdição da realização do desejo em prol de uma primazia da realidade. Diferente da 48 neurose, a psicose não se submeteria à realidade, havendo então conflito entre o eu e a realidade. Dessa maneira, não se constitui a realidade como “mundo interno da fantasia”, concebido por Freud como lugar psíquico para onde converge a libido ao ser retirada dos objetos, nos neuróticos. Para o psicótico, o eu que rompeu com o mundo externo, recriaria o último sob o comando do isso, ficando assujeitado a essa instância. Freud (1987r) no texto A perda de realidade na neurose e na psicose, retifica o que havia dito em Neurose e psicose no que diz respeito à relação com a realidade. Vai dizer que em ambas as estruturas haverá perda ou afastamento da realidade e o que diferenciaria a neurose da psicose seria o que adviria no lugar disso que é perdido. Na neurose, a defesa iria se ligar a um fragmento da realidade e na psicose, no lugar da realidade perdida, seria recriado um mundo que não se liga a nenhum fragmento da realidade. A defesa se levantaria contra a realidade e seria bem sucedida em seu intento de rejeitá-la. A concepção freudiana da psicose afirma uma unidade necessária do campo, que é determinada por uma espécie única de mecanismo responsável pela produção da paranóia e da esquizofrenia, tipos clínicos fundamentais dessa estrutura. Trata-se da retirada libidinal no mundo dos objetos culminando no auto-erotismo ou interrompendo-se antes, ao nível do narcisismo, determinando respectivamente a posição esquizofrênica, em que o estádio do espelho não se estrutura e o narcisismo não se constitui, e a paranóia, que se caracteriza, ao contrário, por uma regressão tópica ao estádio do espelho. É com as Notas psicanalíticas sobre o relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides), que toma como tema de suas análises as memórias de Schreber que Freud (1987d) traz sua maior contribuição para o estudo das psicoses. Contradizendo o pensamento de que o delírio seria a manifestação da doença, Freud eleva o delírio à condição de tentativa de cura para as psicoses, um movimento rumo à estabilização. Ao se debruçar sobre as memórias de Schreber, Freud pela primeira vez tematiza a relação da paranóia com a sexualidade além de identificar na primeira uma forma própria de estruturação e não somente um mecanismo específico de defesa como havia dito anteriormente (ELIA, 1992). A análise de Freud é centrada na referência paterna, apontando assim a vertente estrutural. O pai para Freud não coincide com o pai genitor, mas com o pai como referência simbólica. Elia (1992) defende que o recurso de Freud à tese de um conflito entre o eu e os impulsos homossexuais na base da paranóia tem o sentido que toda análise das “Notas psicanalíticas” assume no todo da obra freudiana, que é a de construir uma 49 teoria analítica sobre as psicoses que tenha como eixo a teoria da libido. O atributo ”homossexual” desta libido tem na gênese do delírio (que é a gênese da consciência crítica, a Gewissen, precursora do que será posteriormente o supereu, radicalmente distinta da Bewusstsein, que seria a consciência perceptiva, sob forma regressiva), antes o sentido de atestar o caráter narcísico, identificatório, na vertente imaginária do “duplo” do eu, do que fazer qualquer alusão à escolha de objetos homossexuais, como é o caso da interpretação de Schreber. Muitos anos antes, nos primórdios da Psicanálise, no artigo Psiconeuroses de Defesa, Freud (1987) já escrevia que na psicose existe uma espécie de defesa muito mais enérgica e eficaz que na neurose. Já nas análises das Memórias de Schreber, Freud (1987d) vai partir da premissa de que na base da paranóia há a posição subjetiva exprimível pela sentença “Eu (um homem) o amo (um outro homem).” Há três maneiras pelas quais a proposição pode ser negada resultando em três configurações do delírio paranóico, a saber, a perseguição, a erotomania e o ciúme. A primeira configuração da forma de negação seria a partir da proposição básica que afirma “Eu o amo” para em seguida negar com a sentença “Não, eu não o amo”. O terceiro passo é a inversão do verbo na sentença “Eu o odeio” que inverte o valor do afeto em jogo em seu contrário. O passo seguinte é a formulação “Ele me persegue”, que projeta com interversão entre o sujeito e objeto a forma final do delírio de perseguição. Antes de ser objeto de ódio e perseguidor, pela seqüência das operações gramaticais e discursivas, percebe-se que o objeto foi amado, e que através da projeção, ele é percebido desde fora, tornando-se assim odiento e consciente, o que ocorre sem recalque. Como segunda forma de negação, Freud apresenta a erotomania. A proposição básica “eu o amo” seria negada, não com inversão do verbo, como na proposição anterior, mas invertendo o objeto, onde após o sujeito formular a frase “Não, eu não o amo”, passa a formular a frase “Eu a amo”. Em seguida por projeção com interversão entre o sujeito e o objeto, acompanhada de uma generalização (em que o caráter ilimitado do Outro faz ver claramente que o psicótico não o reduz ao outro, mas amplia este no Outro como um campo sem demarcação ou contorno imaginário), a frase passaria a ser “Elas (todas as mulheres) ou eles (todos os homens) me amam”, culminando na erotomania. O ciúme é a terceira forma de negação apontada por Freud. Nesta última a proposição básica, “Eu o amo” é negada, sendo que o sintagma que sofrerá alteração será o sujeito, por sua inversão. A frase “Não, eu não o amo” passaria a ser formulada como “Ela (e não eu) o ama.” 50 Ainda como quarta forma de negar a proposição “Eu o amo”, Freud apresenta a radicalização do narcisismo na megalomania. A frase ficaria “Não amo de modo algum, não amo ninguém, só a mim mesmo.” A mesma unidade do mecanismo psíquico da psicose que encontramos em Freud será reencontrada em Lacan. São três momentos principais em que Lacan dedica-se ao tema da Psicose. O primeiro deles foi em sua tese de doutorado, datada em 1932, intitulada 51 É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose (LACAN, 1998e, p. 582). Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação simbólica que ocorre no nível da linguagem, e ressignifica a noção de defesa no que diz respeito às relações do sujeito com a estrutura. Para Freud, a noção de defesa envolvia um processo bem mais amplo que o do recalque (Verdrängung), envolvendo outras estratégias e mecanismos que são a rejeição (Verwerfung) na psicose e recusa (Verleugnung) na perversão. O efeito dessa defesa constitutiva modifica a relação do sujeito com a linguagem, no momento da constituição do sujeito. Para Lacan a defesa também assume formas diversas. Ele segue as formas diferenciadas de defesa para as diferentes estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Para Freud, o pensamento e a função do julgamento somente são possíveis a partir da existência do símbolo da negativa, favorecendo o pensar de uma primeira medida de liberdade em relação às conseqüências do recalque. O juízo de atribuição e o juízo de existência são duas funções supostas por Freud que possibilitam a ordem do discurso na origem do pensamento humano. Quanto ao juízo de atribuição, Freud vai afirmar que envolve introjetar o que é bom e expelir o que é mau, estabelecendo, respectivamente, um dentro e um fora. Se for bom quero ingeri-lo e sou eu. Se é mau quero cuspi-lo e é não-eu (FREUD,1987t). O juízo de existência não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva ser acolhido ou não no eu. Vai referir-se ao fato de que algo existente no eu, como representação, possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real estará só dentro, enquanto o outro, real, também existirá fora. A oposição entre subjetivo e objetivo não é dada desde o início. A realidade psíquica, para a psicanálise, nem sempre coincidirá com a realidade material (GUERRA, 2010). A prova da realidade terá como objetivo primeiro não encontrar um objeto que corresponderia ao representado na percepção real, mas reencontrar tal objeto desde sempre perdido. Há um intervalo entre o objeto da percepção, desde sempre perdido, e a representação. É nesse intervalo que o inconsciente se institui como diferença, como estrutura que porta este ato. Qual a importância da função do julgamento? Trata-se do fato de que ela é uma ação intelectual que decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à procrastinação do pensamento. A função do julgar conduz do pensar ao agir, e também é uma continuação do 52 processo original através do qual o eu integra ou as expele de si, conforme o princípio do prazer. Freud denominou de afirmação (Bejahung) e de denegação (Verneinung) o movimento que se realiza em dois tempos dessa função. A afirmação (Bejahung) implica que ao se afirmar uma inscrição no aparelho psíquico, outra seja expulsa (Ausstosung). Assim, a última confirma a anterior. No curso ulterior do ensino de Lacan encontraremos o riquíssimo processo de pluralização dos Nomes-do-Pai e sua correlata diversificação de possibilidades de resposta dadas pelo sujeito às exigências do real. Essa diversificação não dirá respeito apenas às psicoses, embora tenha sido inspirada pela clínica da psicose. Abordaremos, em momento posterior desta dissertação, esse processo em maior detalhamento. Neste ponto nós apenas o assinalamos, seguindo a exploração das vicissitudes da incidência ou não do Nome-doPai. Quando ocorrer algo que mexa com a Gestalt do sujeito, como por exemplo, na puberdade, onde não há reconhecimento do corpo, e a Gestalt é totalmente bombardeada, haverá uma vacilação enorme na imagem. Por mais que a imagem seja mutante, é necessária uma outra referência que diga que o sujeito ainda é ele mesmo, apesar das mudanças. Essa outra referência é dada por Bejahung. O Nome-do-Pai é que permite isso. Ou seja, quando o Nome-do-Pai se faz presente, é possível para o sujeito se reorganizar e continuar com sua referência simbólica. Por mais que o mundo se quebre, que a imagem do sujeito se quebre, é possível resgatá-la. Esse resgate permite superar a crise no imaginário. Isso só será possível se existir o Nome-do-Pai para dar lastro, para dar ancoramento, pois se não houver o Nome-do-Pai, o sujeito dissolve-se com sua imagem. Se o sujeito buscar uma referência no Outro (A) e não encontrar, o mundo dele se quebrará, bem como o outro (a), ocorrendo a invasão do real (ALBERTI, 2009). Lacan vai reafirmar posteriormente a Bejahung como dimensão fundadora da ordem simbólica. Sendo assim, para que um sujeito não queira saber de algo, no sentido do recalque, é necessário que esse algo tenha aparecido pela simbolização primordial, e assim ter sido constituído uma dimensão no sujeito que a representação não atinge. Ou seja, tratase do real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização. Para Lacan (1985), na psicose haveria uma etapa em que uma parte da simbolização não se efetivaria previamente a qualquer articulação simbólica. Algo de primordial quanto ao ser do sujeito não ganharia representação, sendo antes foracluído. Há possibilidade de uma Verwerfung primitiva, na relação do sujeito com o símbolo, sendo que, o que não foi simbolizado se manifesta no real retornando no real. Lacan propõe que ao nível da 53 Bejahung é estabelecida a primeira dicotomia, onde o que foi submetido à Bejahung, à simbolização primitiva teria vários destinos. Já o que cai sobre o golpe da Verwerfung terá outro. Na origem haveria Bejahung, ou seja, a afirmação do que é ou Verwerfung, rejeição, foraclusão. Na estrutura neurótica haverá uma apresentação que se inscreve e que recalcada deixa livre o afeto a ela correspondente, produzindo assim derivados que retornam com revestimento simbólico e substitutivo. Para Lacan (1985), a foraclusão quer dizer que uma operação não foi inscrita em tempo hábil, caducando sua função e seus efeitos simbólicos. Pode-se perceber, então, que os efeitos da carência significante retornam como gozo no real. Ao implicar uma não representação de uma marca perceptiva inaugural, a foraclusão ou a Verwerfung modificaria estruturalmente esta marca, tornando-a real. Apesar de a percepção receber um primeiro registro, ela não pode se transformar em lembrança conceitual por falta da inscrição que amarraria a função da exceção do pai que corresponderia a um traço inconsciente, que é o traço unário. O resultado disso é um estado de percepção que não passa ao estado de representado. “É desde o exterior, desde que pensado como remetido a uma não inscrição, que se dá o ‘desde fora’ freudiano.” Podemos concluir que aquilo que foi abolido internamente, retorna desde fora: o que não se escreve simbolicamente pelo contorno do significante retorna sobre a forma de alucinação no real. A foraclusão do Nome-do-Pai é um acidente que traz conseqüências. Trata-se de uma ocorrência simbólica que produz um retorno real que tem efeitos imaginários, de um real que retorna trazendo desassossego e estranheza, desmantelando a teia de significações pela qual o mundo do sujeito era constituído. A foraclusão do Nome-do-Pai implica e refere-se ao real, ao simbólico e ao imaginário que são “três dimensões habitadas pelo falante” (LACAN (1998i), três registros que contribuíram para que Lacan construísse sua teoria dos nós a partir de sua leitura da obra freudiana. Lacan indica uma relação distinta entre os três registros em sua teoria dos nós borromeanos. Primeiramente ele definiu a supremacia do registro simbólico em relação ao real e ao imaginário e a exclusão destes do real pulsional. A partir de 1970, Lacan passa a falar não mais da supremacia do simbólico, porém de uma interdependência entre real, simbólico e imaginário, vinculados entre si. É através do nó borromeano que Lacan vai definir a estrutura do sujeito, na medida em que, onde há sujeito há uma amarração borromeana do real, simbólico e imaginário. 54 Figura 1 - Nó borromeano Na elaboração final de seu ensino, Lacan vai individualizar os três registros. No nó borromeano de três anéis, os três apresentavam a mesma consistência que é a consistência imaginária, característica que não é própria do simbólico nem do real. Se a característica do imaginário é a consistência, a do simbólico é a insistência da cadeia significante e o real a ex-sistência aos outros registros (LACAN, 2001). Mas este é o final do ensino de Lacan. Passemos a falar das relações da psicose com esses três registros, real, simbólico e imaginário e através desse modo de exposição continuar nossa incursão à teoria freudiana e lacaniana da clínica da psicose até chegar ao momento da clínica dos nós. 2.2 O Simbólico e a Psicose 2.2.1 A castração, um operador estruturante A psicose é uma estrutura singular que longe de excluir o sujeito, implica-o em suas relações com a linguagem. Para pensar a psicose a partir da psicanálise, é necessário nos debruçarmos em um conceito central da teoria que é a castração, operador estruturante que possibilita toda experiência, seja na estrutura da neurose, da perversão ou da psicose. Para Freud (1987p) a experiência da castração é centrada na fantasia de que o pênis foi castrado nas mulheres e que nos homens pode vir a sê-lo. O complexo de castração seria estruturado a partir da primazia, não dos órgãos genitais, mas do falo, onde tanto meninos e meninas atribuem o pênis universalmente, tanto a homens quanto às mulheres e 55 inclusive a objetos inanimados. Porém, ao deparar-se com a questão da diferença, meninos e meninas terão a difícil missão de significantizá-la. A castração, com o ferro em brasa do significante, marca o vivente o e transforma em sujeito, excluindo a experiência do corpo como real, desterrando o gozo do corpo, banindo-o para o exterior, instituindo assim um gozo propriamente sexual, fálico, gozo fora-do-corpo, e inaugurando um tempo de desejo, experiência exclusiva dos falantes, seres que habitam o universo simbólico, universo do discurso (SOUZA, 1999, p.10). 2.2.2 O Complexo de Édipo e seus três tempos Diante da constatação da diferença anatômica, os meninos vão negar a falta e acreditar que o órgão da menina irá crescer. Posteriormente chegarão à conclusão muito importante de que a menina possuía um órgão como o seu, mas que foi privada da posse. Essa falta do pênis na menina é interpretada como castração. Se tal fato aconteceu a ela, surge no menino o temor de que o mesmo possa suceder a ele. Temos aqui a ameaça da castração que reforça a interdição do desejo ligado às fantasias do menino em torno da mãe. Aqui chegamos ao âmago do Complexo de Édipo, que nos meninos encontra no temor da castração seu ápice e declínio. Ao escolher abandonar a mãe como seu objeto de desejo e conjuntamente tomar o pai como objeto de identificação o menino toma a via do que é próprio da sexualidade masculina. Ao verificar a diferença anatômica, as meninas reagem de maneira diferente. Rapidamente fazem juízo diante do que viram e sabem que não tem o pênis e que gostariam de tê-lo (Freud, 1987s). A menina é tomada pela inveja do pênis, elemento fundamental da sexualidade feminina e principal manifestação de seu complexo de castração, sendo o seu ingresso no Complexo de Édipo, caminho que percorrerá as ruas intricadas de sua sexualidade, num incessante tornar-se mulher. É a fantasia da castração que viria dar sentido à diferença sexual anatômica e organizar os destinos dos sujeitos, em posições sexuada masculina e feminina, para além da anatomia. Temos aqui a dimensão simbólica da castração que instaura a função do falo. Trata-se do falo e não do pênis, pois não se trata de uma imagem ou de uma fantasia, mas de um significante, o significante do desejo (LACAN, 1999). O falo seria um atributo universal e não o pênis ou clitóris. Não é um dado da realidade corporal e sim uma dimensão da contingência que marca todo objeto como podendo ser infinitamente diferente de si mesmo (MILNER, 1996), por isso sempre “outra 56 coisa”, que na verdade não é coisa, e por isso o falo marca todo objeto como objeto do desejo, é um nome para o desejo. Sendo o falo um significante, tem função organizadora da sexualidade infantil e a castração fica como a lei que ordenaria o desejo. Esta é a concepção lacaniana da castração: a castração como lei e não como fantasmagoria imaginária. A consideração do complexo de Édipo no texto freudiano gera a impressão de que, para Freud, a menina é castrada e o menino teme a castração. Por isso, a dualidade introduzida por Freud é “fálico X castrado”, que depois se desdobra em “ativo X passivo” e “masculino X feminino”, mas sempre com base no ter ou não ter o falo. O embaraço freudiano neste ponto é evidente (pois Freud nos dá indicações de que esta formulação é insuficiente – a relação da menina com o falo e a castração não se resolve como um simples “não ter”, e os desenvolvimentos freudianos sobre a fase pré-edipiana da menina, sua relação longa e complexa com a mãe, subterrânea ao Édipo “como a civilização minomiceniana que jaz sob o esplendor da civilização grega!” (Freud, 1987u, p. 260) bem o atestam. Com o recurso teórico do significante, e do falo como um significante, a questão do falo pode ser colocada não apenas como um órgão ou objeto que se tem ou não se tem, mas como algo que se pode ser ou não ser. E por isso Lacan permite sair do impasse freudiano sobre o édipo feminino. Lacan vai colocar a castração no centro do Complexo de Édipo concebendo-o em três momentos lógicos (LACAN, 1999). O primeiro momento é o da identificação da criança com o falo, como aquilo que a mãe deseja. A questão que se coloca para a criança é ser ou não ser o falo e assim satisfazer o desejo da mãe. O Outro tem uma lei que vigora. Lacan, em O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente dirá que no primeiro tempo do Édipo o pai incide como que velado, “por trás da cortina”, diz Lacan, sem “dar as caras”. A lei é puramente simbólica, é aquela lei do Nome-do-Pai que incide sobre a mãe e permite a simbolização do desejo da mãe como sendo o desejo do falo, daí a identificação da criança com o falo, situado como objeto desse desejo da mãe. É uma forma simbólica de incidência da castração, que exigirá outras formas de incidência, bastante diferentes, nos tempos seguintes – segundo e terceiro – para que o Édipo como estrutura seja subjetivado. O Édipo em seu segundo momento tem inscrita uma nova forma de incidência da lei da castração, que é a intervenção do pai sob sua forma de pai imaginário, pai castrador, que enunciaria – e Lacan dá a essa enunciação uma forma bíblica – “Não reintegrarás teu produto” – proferido à mãe e “Não serás o falo para ela” – proferido ao filho. Este pai é 57 privador, e permite a elaboração pela criança do fato real de que a mãe é privada do falo, como objeto simbólico. O pai não dá nada, só priva, mas essa privação é um grande dom, se admitido, para a seqüência da subjetivação da estrutura do Édipo, do desejo e da castração. Sendo assim, no terceiro momento do Édipo o desejo vai ter como arrimo a questão do ser, e não mais do ter o falo. Nesse momento, abandonando a mãe, será no pai, como suposto ser aquele que detém o falo, que tanto meninos quanto meninas irão procurar o objeto de desejo. O menino irá fazer do pai seu objeto de identificação e afirmará com ele ter o falo. Já a menina, tomando-o como seu objeto de amor e modelo para os demais objetos, buscará aí o que sabe não ter (FREUD, 1987o). 2.2.3 A Metáfora Paterna Lacan se utiliza do Esquema L, um esquema linear, para mostrar a dialética da intersubjetividade, a oposição entre simbólico e imaginário. Justamente por sua preocupação dialética, Lacan promove uma discussão crítica, epistemológica, trazendo com isso conseqüências teóricas e clínicas para a clínica da psicanálise. Diferentemente dos kleinianos que vão pensar a relação mãe-bebê como dual, Lacan mostra que para se pensar em um único sujeito é preciso quatro termos. Lacan (1983) em O Seminário, Livro 1: os escritos técnicos de Freud, na lição sobre relação de objeto e relação intersubjetiva vai assinalar que o manejo da relação de objeto como dual estaria fundado no desconhecimento da autonomia da ordem simbólica, que acarretaria automaticamente uma confusão do plano imaginário e do plano simbólico e também do real. Se a relação primária fosse dual, a mãe diante de suas necessidades fisiológicas poderia vir a engolir a criança, assim como faz o bebê ao sugá-la enquanto mama. A mãe não age dessa maneira porque de antemão está referida a uma ordem terceira, simbólica, da linguagem, que é a lei paterna. Para formular a relação do sujeito (S) com o Outro (A) que é o inconsciente, Lacan (1985), em O seminário, Livro 3: As psicoses, se vale do Esquema L, que já havia sido apresentado no ano anterior. Em seu famoso escrito da mesma época, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, vai dizer que o esquema significa que “o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)” 58 (Lacan, 1998e, p. 555). Lacan vai mostrar as relações do sujeito com o Outro o desdobrando em Outro (A) e outro (a), simbólico e imaginário, respectivamente. Figura 2 - Esquema L Do lado esquerdo temos o sujeito (S), com “sua inefável e estúpida existência” (LACAN, 1998e, p.555), referido ao campo simbólico, que é anterior a ele, e que por esta razão o determina. O sujeito (S) é sem imagem havendo necessidade de projetar-se para possuir um eu (a’). O eu será uma projeção do objeto do lado do sujeito, onde aí sim haverá imagem. Do lado direito temos os objetos imaginários (a) do sujeito (S) e por último o Outro (A) que é o campo da linguagem, do tesouro dos significantes, “o lugar de onde pode se colocar a ele a questão de sua existência” (LACAN, 1998e, p. 555). O sujeito (S) está alienado no campo do Outro (A) e é a partir dessa relação simbólica, que ele se estabelece como eu (a’) podendo então investir nos objetos (a). No esquema L o Outro (A) dá sustentação à relação imaginária que vai de (a’) a (a). Para se criar uma imagem, para se especularizar alguma coisa, é necessário estar ancorado nos significantes. Se nesse tesouro dos significantes (A), faltar um significante fundamental, o Nome-do-Pai (NP) a imagem começará a vacilar e o sujeito não construirá uma imagem, não conseguirá fazer associação significante alguma. Voltaremos ao esquema L mais tarde. Tomemos agora o grafo do desejo. A forma definitiva do principal esquema elaborado por Lacan em O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente chamado posteriormente de “grafo do desejo”, encontra-se nos Escritos, no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. Esse grafo completo é ali precedido por formas que representam as etapas de sua construção e podemos fazer através do grafo que foi construído por Lacan para a neurose, um contraponto com o que acontece com a psicose. No texto dos Escritos, Subversão do sujeito já citado, Lacan (1998f) esclarece que o grafo ali produzido foi construído para o seminário sobre as formações do inconsciente. 59 Comenta ainda que o grafo servirá para apresentar onde se situa o desejo em relação a um sujeito definido por sua articulação significante. Nesse grafo está o Outro (A), com toda sua potência, onde o sujeito vai se identificar a partir de um traço unário, que o aliena em uma identificação primeira constituinte do Ideal do eu (I). A estrutura é quaternária, representada por quatro pontos de interceptação do discurso do Outro, a nível do enunciado e da enunciação, em movimento retroativo. No primeiro nível, do enunciado, lugar do desconhecimento, da alienação, um ponto de interseção é o A, o outro é o s(A), significação, lugar privilegiado do sintoma. O primeiro estágio do grafo do desejo (Figura 3) descreve o encontro do sujeito e a conseqüente mensagem que ele recebe nesse encontro, em função da interpretação que o Outro primordial faz do seu choro, que não queria dizer nada inicialmente, apenas que ele estava descarregando uma energia. Figura 3 – Grafo do desejo – 1º estágio A partir da página 822 da edição brasileira dos Escritos, no texto Subversão do sujeito, Lacan (1998f) vai introduzir outros termos no grafo e teremos então o grafo 2 (Figura 4). Nesse ponto, Lacan vai substituir S barrado do vetor retrógrado por I(A), fazendo com que o primeiro se transponha de sua extremidade para sua partida. Sobre essa retroversão Lacan diz que o sujeito, em cada etapa,transforma-se naquilo que era, como antes, e só se anuncia “ele terá sido”,no futuro anterior. Aqui se insere a ambigüidade o de um desconhecer [méconnaître] essencial ao conhecer-me [me connaître]. Pois tudo de que o sujeito pode se assegurar, nessa retrovisão, é de vir a ser essa imagem, esta, antecipada, que ele tem de si mesmo em seu espelho (LACAN, 1998f, p.823). 60 Figura 4 – Grafo do desejo – 1º andar O movimento do sujeito no terceiro tempo do Édipo, isto é, o movimento de identificação com o pai através do qual ele poderá sair do complexo de Édipo e assumir um ideal do eu como seu herdeiro, como dirá Freud, ocorre porque o sujeito quer ter o falo que ele atribui ao pai. No momento em que a mãe falta, o sujeito percebe que ela está com alguém que tem alguma coisa que ela quer e que ele não tem. Esse alguém é alguém que faz exceção ao que acontece com o sujeito e com a mãe e o sujeito vai querer ser como esse alguém que a mãe quer. O sujeito que era uma incógnita no desejo da mãe vai desejar ter o falo, isso que falta a mãe, e que ele atribui ao pai ter. Desde o primeiro tempo do Édipo, quando desejava ser o falo significado como objeto de desejo da mãe, o sujeito já era desejante, porém referido a um Outro primordial com o qual vivia uma relação de suposta completude. O pai, como terceiro termo, já se encontrava presente desde o primeiro tempo, como pudemos ver pelo esquema L anteriormente representado. Ou seja, toda estrutura do Édipo já era tríadica desde o início, e na verdade quaternária. A Lei não vai se inscrever no terceiro tempo apenas, porém nesse momento, o que vai acontecer é que na medida em que essa Lei vai se inscrever furando o Outro, no instante em que esse Outro faltar, abrir-se-á um buraco, um furo, e é nesse lugar que se inscreverá a Lei do Pai que franqueia ao sujeito o desejo. No momento em que o pai entra, ele irá barrar o desejo da mãe e em conseqüência, o sujeito deixará de ser o objeto de desejo da mãe para ser um sujeito identificado com o pai, e esse Nome-do-Pai é que vai incluir no outro o falo. Lacan faz notar que a presença do pai no ambiente familiar não garante, necessariamente, uma função operante, assim como a carência simbólica do pai não tem, necessariamente, relação com sua ausência na família. É nesse sentido que, em O Seminário, Livro 5, As formações do inconsciente, ele afirma que "mesmo nos casos em 61 que o pai não está presente, em que a criança é deixada sozinha com a mãe, complexos de Édipo inteiramente normais [...] se estabelecem de maneira exatamente homóloga à dos outros casos" (LACAN, 1999, p. 173). Para Lacan, "a questão de sua posição na família não se confunde com uma definição exata de seu papel normatizador. Falar de sua carência na família não é falar de sua carência no complexo" (LACAN, 1999, p. 174). Até esse ponto do ensino de Lacan, a pergunta sobre o "que é um pai para uma criança?", seria respondida como: é o pai proibidor, que interdita o acesso da criança à mãe, não a uma mãe qualquer, mas à mãe que dá à palavra do pai seu devido valor, simbolizando plenamente a castração para a criança e, conseqüentemente, livrando-a da neurose e da necessidade do sintoma. No entanto, uma leitura menos “moralizante” do conceito de Nome-do-Pai em Lacan aponta que esta interdição, esta dicção-entre, faz na verdade o efeito de abrir ao sujeito a via do desejo, na medida em que o pai do terceiro tempo do Édipo não é mais o pai temível e privador do segundo tempo, o pai imaginário, mas o pai real, que desde O Seminário, livro 4 é o agente da castração (operação simbólica que incide sobre um objeto imaginário – o falo imaginário, φ minúsculo e é agenciada por uma instância real – o pai real) que se coloca como lugar da castração mesma, pai do desejo, que transmite a castração não por autoridade, mas por estar submetida a ela. A imagem advém dos ditos do Outro em relação ao ideal que o sujeito deve poder alcançar. Freud (1987j) em Luto e Melancolia associa essa questão à identificação ao pai. São referências simbólicas de Ideal e não imagens narcísicas. O grande Outro apresenta, introduz, indica os ideais do Outro para o sujeito naquela cultura, naquela situação, naquela família e naquele contexto. A imagem que o bebê encontra no espelho é a imagem que passa pelo Outro, que se encarna, por exemplo, no investimento através do olhar do outro materno. Lacan (1998a) chamará isso de estádio do espelho e Freud (1987g) de Narcisismo. O eu como instância imaginária só se constituirá no momento em que o sujeito puder identificar-se com a imagem do corpo próprio, investida pelo Outro materno, numa triangulação Mãe-sujeito-imagem. O eu é antes de tudo um outro, o que se verifica no nível especular em se estabelece a relação dual e imaginária entre o eu e sua imagem, base da relação com o semelhante, relação que não é pensável fora do registro simbólico. Ou seja, a relação imaginária não se sustenta sem o grande Outro. Mas, retomando a questão do plano simbólico e não no plano do imaginário da formação do eu, podemos dizer que, no psicótico, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar 62 do Outro, a sua não inscrição, impede o sujeito de ter presente a significação fálica, indispensável, impedindo-o de nomear-se, e de constituir-se na dialética do desejo. Não há possibilidade de formulação do Che voui para o psicótico. Nesse lugar, formula-se uma resposta que vem de fora, do real. Na psicose, como defesa, trata-se de uma resposta e não de uma projeção, como, aliás, Freud supôs nos primórdios de seu pensamento (FREUD, 1987), ponto de vista que veio a corrigir na sua análise do Caso de Schreber: se se tratasse de projeção, teria que haver algo que tivera sido inscrito antes. A resposta que toma o lugar da projeção é o retorno, vindo de fora, do que fora originariamente abolido de dentro (FREUD, 1987d). O esquema R (figura 5) construído por Lacan, esquema da estruturação do sujeito, surge como um desdobramento do L, apresentando regiões, e vai permitir que adentremos um pouco mais na teoria lacaniana neste momento. No esquema R (Figura 5), o grande Outro (A) que no esquema anterior (esquema L) era apenas um ponto é representado por um triângulo inteiro. Teremos o Outro desdobrado em Outro da linguagem (M) - a mãe simbólica, simbolizada em sua ausência, a mãe do fort-da de Freud, o significante do objeto primordial adquirido por meio da função paterna - e o Outro da Lei, o Nome-do-Pai (P) no Outro. I Figura 5 - Esquema R Contrariamente à concepção genética da constituição da psicose, o pensamento freudiano e a interpretação lacaniana tomam a concepção estrutural como causa, onde a instância paterna, chamada Nome-do-Pai para Lacan, não se encontraria inscrita no sujeito. O sujeito, como mostra o esquema R, estaria referido ao Outro da linguagem (M) e ao Outro da Lei (P) no caso da neurose, e apenas ao primeiro no caso da psicose. O Nome-do-Pai (P) incidindo sobre o desejo da mãe (M) que para o sujeito é uma incógnita, faz com que esse desejo se signifique como desejo do falo. A mãe ao querer o falo, faz com que o sujeito queira ser o falo para ela (reencontramos aqui, no esquema R, a 63 formulação que fizemos sobre o primeiro tempo do Édipo, anteriormente – ver pág. 55). O sujeito (S) é sustentado pela significação fálica, que é instigada pelo Nome-do-Pai (P) através da metáfora paterna. É o Nome-do-Pai (P) o instrumento legal dessa operação. Pela metáfora o sujeito se define como marcado e assujeitado à lei simbólica, que é a castração e seus incrementos imaginários. É a metáfora paterna que define a sorte do neurótico e do psicótico na medida de sua presença no primeiro ou sua ausência no segundo. A principal conseqüência da metáfora paterna é a função fálica. Para formular a metáfora paterna é necessária a fórmula geral da metáfora M: ƒ S (S’/S) S S (+) s Que se lê: a metáfora (M) é a função [ƒ] do significante [S] tal que a substituição de um significante S por outro significante S’ [S’/S] na cadeia dos significantes [S] produz [ ] uma nova significação [s], um “a mais” no plano da significação, simbolizado pelo sinal +, que indica também que houve transposição da barra [ ] que separa o nível do significante (acima da barra) do nível do significado (abaixo da barra resistente à passagem da significação) produzindo o acréscimo de significação. E que também pode ser representada sob a forma de duas frações, dos termos: S’ . _S_ S x Que se lê: a metáfora é a substituição de um significante S por um significante S’ na cadeia de significantes, sendo que o significante S, substituído, tem um significado incógnito para o sujeito (x). Esta fórmula pode ser complementada com o resultado da metáfora, o lado direito, da seguinte forma: S’ . S_ S x S’. 1_ s em que o segundo termo tem no nível do significante o número 1, resultado matemático da elisão do significante S por seu corte possibilitado por estar sobre e sob a barra em uma equação na qual a multiplicação opera (S/S = 1), restando o significante metafórico S’ e o 64 termo 1 / significado advindo no lugar da incógnita x do primeiro termo da metáfora, antecedente à sua resolução. Na metáfora paterna, como Lacan (1998e, p. 563) assim formulou teremos: NP . DM_ DM x NP . A_ φ O Nome-do-Pai é o significante metafórico NP, que substitui o significante metonímico DM, o desejo da mãe, que deslizava continuamente na cadeia tendo um significado incógnito para o sujeito, fazendo com que este sujeito permanecesse impossibilitado de dar uma significação ao desejo da mãe que não implicasse seu próprio ser, ou seja, uma significação fálica, entendendo por isto uma significação que engendra o seu próprio deslizamento na cadeia inferior, a cadeia do significado, uma significação que é, assim, sempre “outra coisa”. O deslizamento ininterrupto do desejo da mãe e seu significado incógnito (x, do primeiro termo da metáfora, anterior à operação metafórica propriamente dita) é interrompido pelo Nome-do-Pai (NP) produzindo um significado novo para o sujeito: a significação fálica (φ) , que funciona como ponto de basta (point de capiton) na significação metonímica e incógnita (x) do desejo da mãe (DM). Ao elidir o desejo da mãe a metáfora paterna introduz, para além do Outro da Linguagem, o Outro da Lei. “O Nome-do-Pai é o significante que significa que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da Lei” (LACAN, 1999, p.153). Se o Outro da linguagem não opera mais sem lei, não pode se constituir para o sujeito como uma lei sem limites, uma lei do capricho. Assim, o Outro da lei impede que o sujeito seja usado como objeto de puro gozo da linguagem de um Outro absoluto, poderoso, sem limites. Ao ser bem sucedida, a metáfora possibilita que o falo entre como um significado novo para o desejo da mãe. Essa significação nova, que é o falo, induzida pelo Nome-doPai, será suporte para o sujeito, razão pela qual no esquema R temos em seu vértice, o falo. O que falta à mãe? Seja o que for, seja qual for o objeto do seu desejo, a resposta que o sujeito passa então a poder dar é que é uma falta. Seja o que for que faltar a essa mãe também faltará ao sujeito. Se não há significação fálica, se a metáfora fracassa em seus propósitos, fracassa por conseguinte a representação simbólica do sujeito. O sujeito não tem como produzir uma resposta, já que ao apelar para o Nome-do-Pai encontrou somente um buraco, um vazio no simbólico. No lugar de uma resposta possível pela significação 65 fálica, o sujeito vai responder com o próprio ser, e com o seu próprio corpo, oferecido ao gozo desse Outro absoluto. Por esta razão Lacan vai dizer que o gozo do Outro é o gozo do corpo, ou seja, gozo não fálico, que não é obtido pela operação da metáfora, pela significação do falo como faltoso, um gozo não sexual. Se assim é, se o psicótico não acede à significação fálica, devido o fracasso da metáfora paterna, ele é um sujeito fora-do-sexual sendo regido por uma dimensão nãosexual. Na psicose, “onde o Nome-do-Pai falta, o Outro não barrado é o supereu, que exige um gozo do sujeito; um gozo imperativo que retorna no ponto em que falta o gozo fálico” (ALBERTI, 2009, p. 112). Como vimos, o gozo fálico é constituído na metáfora paterna pelo Nome-do-Pai. Este é o significante, no lugar do código, em A, por meio do qual, no lado da mensagem, a significação fálica emerge retroativamente. Na psicose o Nome-doPai está foracluído, isto é, não está inserido no simbólico. O Nome-do-Pai está no real para o psicótico e é de lá que retorna, em geral como alucinação verbal. Pode-se dizer que na psicose, uma das faces do suicídio é a tentativa do sujeito de se livrar do assédio insuportável do real (ALBERTI, 2009). 2.2.4 Os fenômenos de linguagem na psicose É comum encontrarmos na psicose e, portanto nos pacientes que freqüentam os CAPS, particularmente na esquizofrenia, uma abundância de neologismos, frases partidas, repetição de letras, palavras, enfim um modo particular de dispor as palavras e a escrita. Para fornecer alguns exemplos sobre este fenômeno, assinalamos o caso de uma paciente psicótica que havia sido revendedora dos produtos da Avon e que tinha sido notificada de uma dívida pelo advogado da empresa que não procedia. Ela relata o que as vozes incessantemente ficam lhe dizendo: “a vontade... a vontade..a vontade...” Um segundo exemplo é a reação de um paciente psicótico na permanência–dia do CAPS que se deitou no chão em total relaxamento após a auxiliar de enfermagem ter aferido a sua pressão arterial e antes anunciado o que ia fazer dizendo de maneira coloquial: “Vou tirar sua pressão”. Ao ser questionado por ela sobre sua atitude ele responde: “Você não tirou a minha pressão?” Uma outra situação ocorrida na recepção do CAPS demonstra a manifestação desse fenômeno de linguagem. Ao ser solicitada a carteira do SUS a um paciente ele disse que não tinha. Ainda sem perceber que o paciente era um psicótico a 66 recepcionista prosseguiu solicitando no lugar, a carteira de identidade. O paciente novamente diz que não tem. Ao perguntar se o paciente não tinha nenhum outro documento como, por exemplo, a carteira de motorista, o paciente tira do bolso e lhe entrega uma gravura de automóvel recortada de uma revista, com a certeza de que enfim ele tinha o que ela lhe pedia. Pergunta em seguida à recepcionista: “quer a carteira de moto também?”. Sobre tal fenômeno Freud (1987i) vai assinalar que há nos esquizofrênicos grande número de modificações na fala. As frases seriam construídas por uma desorganização peculiar, tornando-se incompreensível para as pessoas. As observações dos pacientes quase sempre ganham destaque pelas referências a órgãos corporais ou a inervações. Freud assinala o exemplo da paciente de Tausk que após uma discussão com o amante queixa-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. A paciente justificava o ocorrido dizendo que não compreendia o amante, que ele era hipócrita, um entortador de olhos, termo que em alemão tem o sentido figurado de enganador. Ela agora tinha olhos tortos, não tinha mais os olhos dela e via o mundo com outros olhos. Freud destaca o significado e a origem da formação de palavras esquizofrênicas dizendo que a relação da paciente com o órgão corporal (olho) atribuiu-se a si a representação de todo conteúdo dos pensamentos dela. A manifestação oral esquizofrênica torna-se “fala do órgão” ou “fala hipocondríaca”, exibindo uma característica hipocondríaca (FREUD, 1987i). Lembramos com Freud que uma histérica em situação semelhante teria entortado os olhos convulsivamente sem apresentar qualquer pensamento consciente concomitante ou a capacidade de expressar quaisquer pensamentos posteriormente, como no caso do exemplo dessa esquizofrênica. Será a predominância do que tem a ver com as palavras sobre o que tem a ver com as coisas que emprestará o caráter de estranheza ao sintoma esquizofrênico. O que vai ditar a substituição não será a semelhança entre as coisas denotadas, mas sim a uniformidade das palavras empregadas para expressá-las. Assim como no processo primário que interpreta as imagens oníricas dos pensamentos oníricos latentes, na esquizofrenia as palavras estão sujeitas a mesma interpretação. “Passam por uma condensação e por meio de deslocamento transferem integralmente suas catexias de uma para as outras” (FREUD, 1987l, p. 227). Porém há uma diferença entre a elaboração de sonhos e a esquizofrenia. Nos sonhos, o que está sujeito a modificação pelo processo primário é a apresentação da coisa à qual as palavras foram levadas de volta e não as próprias palavras nas quais o pensamento pré-consciente foi 67 expresso, como no caso da esquizofrenia. Há nos sonhos livre comunicação entre catexias da palavra (pré-consciente) e catexias da coisa (inconsciente) o que é interrompida na esquizofrenia (FREUD, 1987l). Há uma fronteira que separa coisa e palavra, mas na psicose isso não se dá como também não acontece a separação entre corpo e linguagem, profundidade e superfície como podemos ver nos exemplos anteriormente citados. Os psicóticos têm todos esses ingredientes misturados. Uma das mais expressivas manifestações da transformação da palavra em coisa é o chamado neologismo na psicose, uma palavra incomum e que não remete a nenhuma significação. Pelo neologismo é subvertida a qualidade essencial do significante como também é corrompido a natureza da significação que é remeter sempre a um novo significante e reenviar a uma nova significação O neologismo encerra e aprisiona em si toda significação. Palavra e coisa se imbricam, interpenetram-se, encaixam-se. As palavras perdem seu estatuto singular, confundem-se com as coisas. Ganham substância, textura física, tornam-se sons penetrantes, letras cortantes, farpas que afetam, invadem o corpo. A palavra se transforma em som e o som em coisa. Exemplo, a queixa aflita de B.: ... as vozes ficam me sacaneando. Elas ficam falando assim: ‘maracujá’, ‘cuador’, ‘feliz ânus novo!’ (SOUZA, 1999, p. 17). Podemos citar também um outro efeito da palavra que perde o sentido que é o de perseguição e tirania. A palavra coisificada tiraniza, violenta, obriga a pensar, a procurar significação. O mundo se transforma num vasto lençol de hieróglifos. A palavra que perde o sentido torna-se signo, representa algo para alguém, algo enigmático que é preciso interpretar, algo que força, coage, obriga a decifrar. Tudo se torna signo: gestos, sensações, atos, fatos, olhares, falas, escritos (SOUZA, 1999, p. 19). Ao tornar-se signo, a palavra passa a ter um sentido cristalizado, que não desliza na cadeia, passa a representar algo para o psicótico que precisa ser interpretado, porém nessa estrutura, devido à ausência da metáfora paterna e da significação fálica, não é possível chegar a uma significação. Nenhuma significação é o bastante para barrar o movimento incessante que obriga o psicótico a pensar. Uma palavra remete a outra de maneira contínua sem ponto de basta. Esse fenômeno é denominado pela psiquiatria clássica de diferentes formas: verborréia, fuga de idéias ou descarrilhamento do pensamento. Lacan (1985) deu destaque à alucinação verbal como sendo um dos fenômenos que apontam para um desarranjo da linguagem. Esse transtorno não se reduz ao registro 68 simbólico, mas consiste no reaparecimento de algo que não foi simbolizado, de um real irredutível, de um acaso traumático que não contém nenhum sentido. A alucinação verbal é uma das manifestações clínicas mais importantes no caso da psicose. O paciente experimenta como se um Outro falasse com ele, sendo que na verdade trata-se de palavras e frases articuladas pelo próprio paciente sem seu conhecimento, à sua revelia. Como é bem evidente, o Outro como tal não fala, em estrutura clínica alguma, mas no real da experiência do sujeito psicótico, é o Outro que fala, ele não reconhece como sua a fala e a voz que ouve, não se constitui a instância subjetiva como lugar de recepção invertida da mensagem provinda do Outro, operação que é eminentemente ocasionada pelo inconsciente no regime do recalque. As alucinações podem ser cenestésico-verbais, motoras verbais completas ou impulsões verbais. Em ambas os pacientes se queixam de que estão ouvindo as vozes. A alucinação verbal é o paradigma lacaniano da estrutura psicótica, diferente das alucinações psicopatológicas dos manuais, que articulam as alucinações aos diferentes órgãos dos sentidos, como se, na alucinação, se tratasse de fenômenos ligados à percepção (perspectiva funcionalista, que atribuirá, de modo análogo, o delírio à função do pensamento). Para a Psicanálise, trata-se de uma revelação da posição estrutural do sujeito na linguagem. Ouvir aqui designa a atitude receptiva com a qual o paciente acolhe as palavras e frases que lhe vêm sem que ele queira ou espere. [...] Ouvir aqui “não implica de modo algum na percepção de um som, a tal ponto que Cramer pôde falar em alucinações auditivas de um surdo-mudo: eram alucinações faladas”. (LAGACHE, apud SOUZA, 1999, p. 21). Souza (1999) sugere classificar as alucinações como auditivo-verbais, como faz Henry Ey, pois toda alucinação verbal é auditiva já que o que queremos designar é uma atitude receptiva por parte do paciente, sem pré-julgamento dos caracteres da sensorialidade dos caracteres das falas ouvidas. Uma dimensão essencial do viver do psicótico é sua exterioridade em relação à linguagem (LACAN, 1985) e a alucinação auditivo-verbal vem evidenciar esse fato. Nessa posição de exterioridade ele vem saber daquilo que está velado ao neurótico, que é a estrutura da linguagem, bem como sua ordenação. Nessa perspectiva o psicótico sabe que a linguagem está fora, que se forma no Outro, que fala sozinha e que impõe suas leis. Possuído desse saber, o psicótico não tem a ilusão de que somos nós que falamos, mas sabe que na verdade somos falados. A inversão da mensagem é uma operação que subjetiva o 69 Outro de onde a fala procede, e seria mais correto dizer que, pela ausência da inversão subjetivante, a fala na psicose não é apropriada por ele. É esse saber que indica uma defasagem entre enunciado e enunciação, dissonância que o neurótico não ouve, mas que o psicótico escuta como “ecos do pensamento”, vozes que comentam seus pensamentos e atos. Para o neurótico há uma articulação contínua que organiza as suas ações e que é muda. O neurótico é cingido por várias realidades, por diversos mundos que o contemplam e operam como um silencioso fundo intocável e imperceptível de que ele não dá conta. Com o psicótico é diferente. Seu mundo é formado por barulhos, “uma espécie de zumbido, uma verdadeira zorra.” (LACAN, 1985, p. 331). Especialmente nas esquizofrenias as queixas de despedaçamento e deterioração dos órgãos internos são bastante freqüentes. Essas queixas atestam a falência da cadeia significante em articular os órgãos como organismo e o organismo como um corpo. E com Lacan vemos que é o corpo simbólico, ou seja, a linguagem, que faz aparecer o corpo como imaginário, como imagem, esse corpo que cada um leva consigo e convive sem estar muito à vontade. O corpo só poderá se constituir como imagem corporal através da linguagem que no exercício de sua função significante escolha apenas um órgão para fazê-lo órgãosignificante. Trata-se do falo que, assim escolhido, deixa os outros órgãos em seu estatuto de realidade corporal. Na neurose é isso que se dá. O pênis é tomado, e apenas ele, para ser elevado à categoria de significante. Na psicose todos os órgãos são objeto de escolha, nenhum é eleito. Os órgãos ficam privados de sua realidade corporal, atingidos que são por um processo generalizado de significação. Marcados pelo ferro do significante são transformados em órgãos significantes e como o falo, passam a habitar não o corpo próprio, não o interior do corpo, mas o exterior, fazendo parte do corpo simbólico, corpo do Outro, mais além do sujeito (SOUZA, 1999). Isabel dá testemunho da invasão do Outro de uma maneira radical: estou com um problema embaixo. Está me machucando. Tem um homem entrando em mim, nas minhas pernas. Meu corpo todo dói. Tenho uma câmera no olho que filma tudo o que eu faço. Não tenho sossego. Quero pegar uma faca e me matar. Quero pular no rio [...] Tem uma pessoa dentro do meu corpo. Ele tá deformando. Ele entrou dentro de mim faz dois meses. Ele estava em volta da minha casa. Ele ficou vendo as coisas através do meu olho. Meu pensamento tá misturado com o pensamento dele. Não é uma pessoa. Tenho muito medo dele. Ele é muito feio. De noite é muito pior. 70 Correlativamente ao que ocorre com a experiência que o sujeito tem de seu corpo, e de seus órgãos pela sua não submissão à ordenação pelo significante fálico, a alucinação verbal, com aquilo que lhe é mais característico, que são as palavras soltas somadas de frases cortadas que se estabelecem ao sujeito, torna evidente a decomposição da função da linguagem, com sua conseqüente quebra da cadeia simbólica e atividade anômala do significante. O significante não faz cadeia, não remete a um outro significante. Sendo assim perde seu estatuto de significante e se reduz a mero índice de um real indizível. Em Schreber (FREUD, 1987d) encontramos vozes que se repetem e frases incompletas, “conjunções isoladas ou locuções adverbais destinadas a introduzir orações secundárias” deixando Schreber na incumbência de completá-las. Lacan verifica que “a frase se interrompe onde termina o grupo de palavras que poderíamos chamar termosíndice, isto é, [...] shifters, ou seja, precisamente os termos que, no código, indicam a posição do sujeito a partir da própria mensagem” (LACAN, 1998e, p. 546). Lacan destacou a pertinência lingüística dos fenômenos psicóticos e estudou a alucinação verbal e o neologismo como fenômenos que dizem respeito ao código e à mensagem, duas dimensões constitutivas da língua. As alucinações verbais seriam lidas como fenômenos de mensagem ainda que limitadas a um ponto no código ocupado pelo sujeito da mensagem. Já os neologismos se organizariam na psicose como um novo código. Foi isso que aconteceu com Schreber e sua língua fundamental havendo ali um novo código constituído de mensagens sobre o código, pois as vozes ouvidas por Schreber pronunciavam as palavras novas e também informavam sobre o emprego dos vocábulos dessa língua fundamental (SCHREBER, 1995). 2.3 O Imaginário e a Psicose A ordem do imaginário é constituída pelas imagens e pela libido. A libido é um elemento sexual, vital, que partindo do corpo como fonte, vai circular entre as imagens, ou seja, entre o eu e a imagem do eu, dando-lhes sua sustentação necessária. A instância simbólica é presença fundamental na estruturação do imaginário já que toda função desempenhada pela imagem precisa ser ressignificada pela ordem simbólica. O imaginário tem como referência central o corpo, a forma, e a consistência do corpo próprio com tudo de erótico e libidinal que se organiza ali. 71 2.3.1 Narcisismo Freud vai articular as questões do imaginário através da teoria do narcisismo. Tratase de uma teoria do eu e das relações do eu com os objetos onde a libido será condição necessária para a organização psíquica sem a qual nada relativo à ordem do sujeito e do desejo vem a se constituir. No seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1987g) apresenta o auto-erotismo, um estado onde não se pode falar em qualquer estrutura semelhante ao eu. O corpo próprio servirá de sede para o surgimento das pulsões que vão encontrar satisfação no mesmo ponto onde brotam. A satisfação nessa etapa é auto-erótica, por causa da ausência do eu constituído. Após falar sobre o auto-erotismo, Freud pergunta qual a relação do narcisismo e o auto-erotismo que ele descreveu como um estado inicial da libido. Ele responde a pergunta dizendo que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica- a fim de provocar o narcisismo (FREUD, 1987g, p.93). Posteriormente esse eu irá se direcionar a um objeto investindo aí sua libido. Freud considera o narcisismo que surge através de catexias objetais como narcisismo secundário, superposto ao narcisismo primário. É quando a catexia do ego com a libido excede certa quantidade que surge a necessidade da vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e ligar a libido a objetos. Há uma dialética entre o investimento primário nos objetos e o retorno ao próprio eu que constitui o narcisismo dito secundário. O eu retirará a libido dos objetos e reinvestirá em si mesmo, ao abandonar investimentos de objeto, por exemplo, o que é o fundamento do luto e da identificação. Trata-se do narcisismo secundário onde o eu é um objeto privilegiado de libido, sendo que nenhum investimento no objeto poderá extinguir isso que é a estrutura mesma do eu. Sobre o ponto de vista da teoria da libido, Freud vai dizer que ambas as psicoses, paranóia, que ele preferia denominar de parafrenia, e esquizofrenia, vão apresentar o desligamento da libido com a sua regressão para o eu. Na esquizofrenia trata-se de um retorno ao auto-erotismo e na paranóia ao narcisismo. Na primeira 72 a regressão estende-se não simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo abandono do amor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil. A fixação disposicional deve, portanto, acharse situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do curso do desenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal (FREUD, 1987d, p. 102). Freud considerou que o principal acesso para a compreensão do narcisismo é análise da parafrenia (paranóia) e da demência precoce (esquizofrenia). Ele recorreu ao campo da patologia para entender os fenômenos ditos normais. 2.3.2 Estádio do Espelho Freud usou a expressão “nova ação psíquica” para o surgimento do eu. Esse efeito provocaria a ordenação e a substituição do caos das pulsões parciais do auto-erotismo por uma imagem unitária e totalizante. Essa “nova ação psíquica” que estrutura o narcisismo foi trabalhada por Lacan (1983, p. 96) em sua teoria do estágio do espelho que de igual modo é uma teoria da formação do eu, tal como ele a desenvolve em O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Diz ele: É, pois, a pura e simples realidade que não delimita em nada, que não pode ser ainda objeto de nenhuma definição, que não é nem boa, nem má, mas ao mesmo tempo caótica e absoluta, original. É o nível ao qual Freud se refere em Die Verneinung, quando fala dos julgamentos de existência – ou bem é , ou bem não é. E é aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu. Quando escreve sobre a tópica do imaginário em O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1983, p. 96) diz que o estádio do espelho “é a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo - dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia.” Ao se conceber como outro o eu se identifica e se deixa capturar encantado com sua imagem especular. Sendo a única maneira de perceber-se a si mesmo, o outro é tomado pelo eu sobrepondo-se investimento libidinal e de identificação. Surge aí essa ilusão fundamental de que o homem é escravo, bem mais que todas as “paixões do corpo” no sentido cartesiano, dessa paixão de ser um homem, diria eu, que é a paixão da alma por excelência: o narcisismo, que impõe sua estrutura a todos os seus desejos, mesmo os mais elevados (LACAN, 1998, p. 189). 73 Em O estádio do espelho como formador da função do sujeito, Lacan (1998a) afirma que o estádio do espelho deve ser compreendido como uma identificação. Trata-se de uma transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem. Descreve Lacan a criança que diante do espelho, mesmo sem ter o controle da marcha ou da postura, tem a assunção jubilatória de sua imagem diante do espelho. Esse contentamento vem da ilusão de completude que a imagem no espelho proporciona à criança uma imagem integrada diferente de sua experiência de fragmentação e falta. Ou seja, o espelho antecipa para a criança o seu amadurecimento corporal que ainda é inacabado. Lacan assinala que a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt. A Gestalt é fôrma, ou seja, a forma é uma fôrma. Produz-se uma rivalidade do eu com a imagem por ser a imagem “melhor”, mais íntegra, mais articulada do que o eu. Nesse registro estão os sentimentos de amor, ódio, completude, falta, rivalidade, ciúme, etc. que foram encarnados na relação do sujeito com este primeiro “outro” que é a imagem do seu corpo próprio. A primeira e mais verdadeira reação com a imagem é de estranhamento, como nos relata Freud (1987n) em sua experiência na cabine do trem quando de súbito, após um solavanco, a porta do toalete anexo se abriu e um senhor de idade, com quem ele diz que se antipatizou totalmente, entrou em seu compartimento. Ao se levantar com intenção de informar ao estranho que ele tinha entrado na cabine errada, viu que na verdade o estranho era sua própria imagem refletida no espelho da porta aberta. É importante destacar que o estádio do espelho tem o valor estruturante no que diz respeito às relações do sujeito com seu semelhante. Nas palavras de Lacan (1998a, p. 98) “a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível”. Ou seja, a visibilidade dos objetos depende de que o sujeito tenha constituído a imagem especular. Não há investimento objetal possível sem o narcisismo. Todo movimento do estágio do espelho inclui as relações com o outro, inclui a história, o que é vivido, experencial. “O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação” (LACAN, 1998a, p. 100). A insuficiência é uma condição do bebê. Da insuficiência ele salta para uma antecipação. Trata-se aqui da constituição do eu ideal. De uma imagem insuficiente passa-se para uma imagem íntegra, gestaltíca que não se dá por competência adaptativa, mas por carência de condições naturais internas. Nenhum sujeito poderá habitar o campo da realidade sem a afluência do imaginário. Se houvesse apenas o simbólico com sua lei impessoal e o real com sua radical ausência de 74 sentido, o viver humano se tornaria impossível, pois é ele, o imaginário, que dá ao corpo vestimenta para sua nudez. É por esta razão que Lacan coloca os três registros, real, simbólico e imaginário, articulados. 2.3.3 Os fenômenos imaginários Como o imaginário encontra-se destroçado, o sujeito na psicose fica desprotegido, aberto à invasão do Outro, totalmente aberto à sua mercê. Esse outro é encarnado e desdobrado numa multidão de pequenos outros. Pelo imaginário encontrar-se desbaratado, a identificação resolutiva não se consolida. Esta identificação resolutiva do confronto paranóico entre o eu e o outro é que torna possível apaziguar o dilaceramento imaginário mantendo e afirmando a um só tempo a intrusão essencial do outro (“eu é um outro”) e sua necessária exclusão (“ou eu ou ele”) sem que nenhuma das duas assertivas venha a suprimir seu contrário. Isabel, paciente do CAPS, nos diz: Não quero vir aqui. Vou pegar a aparência das outras pessoas... A aparência entra dentro de mim [...] Quando eu fiquei internada no hospital as meninas que estavam lá comigo estavam fazendo maldade. Assistiam televisão e jogavam aparência em mim. Eu fiquei com a aparência da Angélica, do Gianecchini... Ouço vozes que comentam tudo o que faço... Sinto cheiros por todos os lados. O imaginário despedaçado e hipertrofiado, sem condições de cumprir suas funções, principalmente de dar ao sujeito uma imagem suficientemente completa e consistente de si, funciona em regime de autonomia em relação ao simbólico, criando odoiia oiosi,6.3339(o)-6.( )-2 75 estádio do espelho reduzida à confrontação à imagem do duplo, ameaçada de dilaceramento, aniquilação e morte, porém suficiente para permitir ao sujeito dentro da crise psicótica continuar vivo em meio aos destroços de seu mundo em agonia (LACAN, 1998e). Outra vez ouçamos Isabel: Estou com espírito cigano. Tem duas pessoas querendo tirar o espírito de mim... Olham no meu olho e eu leio a mente. É a mente da cigana [...] Minha mãe não gosta que eu fique até tarde na rua, mas vou pra rua pra desenvolver o espírito cigano. O espírito da cigana puxa pensamentos ruins das outras pessoas. Um outro bom exemplo é Schreber que não teve nenhuma parte do seu corpo poupada. Em suas memórias relata como sua saúde e sua vida foram ameaçadas e como resistiu a toda sorte de abusos e crueldades, vivendo como o “único homem verdadeiro que ainda restava” entre “homens-feitos-às-pressas”(SCHREBER,1995). Nas “Memórias”, Schreber relata suas experiências fantásticas, frutos de “prodígios” e “milagres”, marcadas por um caráter erótico-agressivo, que ameaçavam o corpo e a alma do sujeito. As manifestações relatadas em sua obra dizem respeito à regressão tópica à fase do espelho, onde a imagem corporal é fragmentada e duplicada multiplicando-se em vários outros eus, duplos especulares do sujeito. O principal duplo de Schreber que podemos visualizar através de sua obra é o Dr. Flechsig, seu médico. Schreber o desdobra em múltiplos eus: Flechsig-alma, Flechsig-Deus, Flechsig-superior, Flechsig-médio, alma conjunta Von-W. Flechsig e “um certo Daniel Furchtegott Flechsig”, que mostra um amálgama dos nomes de Schreber e seu médico, atestando eloqüentemente a especularização, captura imaginária onde o eu de Schreber se encontra alienado. Flechsig torna-se parceiro de um confronto de forças. Schreber, como paciente, toma o lugar de amante e seu médico o lugar de amado. Flechsig é colocado por Schreber com objeto fonte de toda sorte de paixões tanto tristes como alegres, instalando-se com vigor uma transferência onde Flechsig é objeto causa de transferência delirante. A profusão de imagens na experiência de Schreber é o fracionamento multiplicado de figuras do pai. Não tendo o recurso do Édipo para se afirmar em um ponto central, como no caso da neurose, a proliferação de imagens paternas é o que vem no lugar da foraclusão do Nomedo-Pai, se organizando de maneira descentralizada, em várias direções (CALIGARIS, 1989, apud SOUZA, 1999). Uma das construções delirantes do paciente é a morte por suicídio do seu médico que vai ser ressonante da morte de Schreber anunciada nos jornais (SCHREBER, 1995). Nos delírios de Schreber, Flechsig aparece como perseguidor e figura central nos delírios 76 de fim-do-mundo. Ele aparecerá na figura de um mágico anunciando o que está por vir: o desaparecimento de Schreber e o fim-do-mundo. Assim é com Luiz, paciente do CAPS, que retrata um mundo, o seu, em destruição e morte. O Brasil está no fim... A entrada do dólar, o espanhol, o argentino vão acabar com o Brasil. Tem uma mulher de bota azul que eu não conheço, mas está atrás de mim... [...] Demorei a chegar no CAPS porque estava tentando fazer uma nota de um real para não deixar o dólar entrar no Brasil.Vai dar confusão se isso acontecer... O mundo tá acabando... [...] Queria uma esposa, mas agora não quero mais. Quando eu era vivo era diferente. Agora não vão achar meu coração... perdi meu tocircolo...e não tem mais jeito de operar. Após o desastre imaginário surge através de remanejamentos contínuos do significante, uma nova ordenação de mundo, uma “construção prodigiosa” relatada por Schreber em sua Língua Fundamental que é uma significação, uma significação delirante. Tal significação é heterogênea a todo consenso. Nas palavras de Lacan, “uma significação enorme que não se parece com nada - e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no sistema da simbolização - mas que pode, em certas condições, ameaçar todo o edifício” (LACAN, 1985, p. 102). Falaremos mais adiante sobre a metáfora delirante que pode trazer uma nova ordenação de mundo ao psicótico, a sua estabilização. 2.3.4 O desencadeamento do surto psicótico O Nome-do-Pai, ancoragem simbólica, faltando ao sujeito, faz com que este se sustente a partir de apoios imaginários. A ausência de articulação simbólica dos três registros, real, simbólico e imaginário, que os amarre como um nó, retira do sujeito a experiência da realidade psíquica e no lugar uma outra realidade é estabelecida. Tal realidade apresenta uma exacerbação do imaginário já que a amarração do simbólico não se encontra presente. Por uma série de acontecimentos na vida do sujeito os apoios imaginários que até então o sustentavam, sucumbem, desfazendo seus referenciais, os auxílios que o ajudavam a dar significação, fazendo-o desencadear a psicose. É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que o significante e significado se estabilizam na metáfora delirante (LACAN, 1998e, p. 584). 77 Voltemos ao esquema R de Lacan (ver Figura 5, p. 62). Como já exposto, quando a metáfora paterna não vigora o Nome-do-Pai ficará anulado, existindo em seu lugar apenas um buraco, um vazio. Sendo assim, o Outro primordial permanece em sua consistência absoluta não sendo possível a expressão do significante da falta do Outro S (Ⱥ). Ou seja, a falta do significante Nome-do-Pai faz oposição a que haja falta no Outro. O Nome-do-Pai sendo zerado, desconfigura o Esquema R, já que acarreta o desabamento da sustentação fálica do sujeito, restando apenas o campo da realidade, este que se encontra hachuriado no referido esquema (Figura 5). O campo da realidade tem como vértices I-m-i-M, onde m é o eu ideal, instância imaginária e um dos pólos da relação narcísica m-i, que no esquema L era representada pela a-a’; i é o outro, como pólo da relação narcísica, a imagem especular do corpo próprio; I é o Ideal de eu, e M é o significante do objeto primordial. Vemos no lado superior desse mesmo ternário, no ponto de ligação do sujeito (S) ao significante do objeto primordial ou Outro primordial (M), localizarem-se as relações objetais do sujeito, que no esquema L era representado por (a), o outro como semelhante, como objeto e aqui no esquema R passa a fazer parte do campo da realidade. Como o Ideal do eu (I), o significante primordial (M) também compõe ambos os ternários imaginário e simbólico. Observa-se que o (P) é o único componente do esquema R que não faz parte do ternário imaginário e de igual modo o (S) é o único que não compõe o ternário simbólico, disso trazendo conseqüências para nosso entendimento da estruturação do sujeito. No ternário imaginário temos o sujeito (S) ligado ao Ideal do eu (I) onde se situam as identificações do sujeito desde sua imagem especular até a identificação paterna. O Ideal do eu (I) situando-se no vértice inferior do ternário imaginário faz interseção com o ternário simbólico cuja base liga o (I) ao Nome-do-Pai (P) em (A). É graças ao Ideal do eu (I) estar nivelado com o Pai (P) que o sujeito (S) fica interditado quanto a ser o falo da mãe. O Ideal do eu (I) é uma coordenada para o sujeito, ele norteia a vida do sujeito. O sujeito (S) precisa tomar um elemento, o traço unário, da “enxurrada” de ditos do Outro da linguagem, desse Outro onipotente, e assim operar a redução do Outro. O dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade. Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse poder todo em potência, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu (LACAN, 1998f, p. 822). 78 O sujeito vai reduzir o Outro a um traço, formando dessa maneira o Ideal do eu. Quem vai permitir que o Outro se reduza a um traço é o Pai. O Ideal do eu é essa redução do Outro ao traço unário. O Outro reduzido vira um traço para o sujeito (S) com o qual ele pode montar seu esquema. Triturando o Outro em significantes, este Outro não permanece mais tão poderoso, tão onipotente. Na ausência dessa operação, é somente na condição de falo simbólico que ele poderá ser cancelado, anulado, pois não se pode cancelar uma imagem. Na psicose, assim como o Nome-do-Pai é zerado o falo também o será. Trata-se do falo simbólico, já que não se pode cancelar uma imagem, mas um significante sim. Será como falo simbólico que o falo será zerado na psicose. Já no neurótico, o falo simbólico ficará oculto, subterrâneo. É próprio dessa estrutura recalcar o falo, diferentemente da perversão que o exibe. O campo da realidade, que na neurose estava sustentado pelos pontos P (Nome-doPai) e S (Sujeito), principais suportes do esquema R, na psicose encontra-se esgarçado numa nova configuração que tem como objetivo sustentar o sujeito em sua precária estabilização psicótica, em sua reconstrução do mundo objetal. Figura 6 – Esquema I Com a desamarração dos pontos P em A e do Φ em S, tornando a valência de ambos zerados, o campo da realidade I–m- i–M se espalha conforme podemos ver na figura 6, que representa o esquema I construído por Lacan para representar a psicose estabilizada. No esquema R os vetores m-i e M-I eram retilíneos e no esquema I vão apresentar-se assintóticos, ou seja, do ponto m(eu) partirá uma curva que lançará o ponto i (eu ideal), infinitamente para o lugar onde no esquema R corresponderia ao vértice do 79 sujeito (S). De maneira semelhante, do ponto M (significante do objeto primordial) partirá outra curva que pelo efeito assintótico arremessa o ponto I (Ideal de eu) infinitamente em direção ao que no esquema R era próprio do lugar do Outro, o Nome-do-Pai. Pela desamarração dos pontos P e Φ, o sujeito S na psicose vai se reduzir à imagem narcísica do corpo próprio e M (significante do objeto primordial) se reduzirá à instância do Ideal do eu. Podemos dizer que o surto psicótico é a quebra do imaginário. O imaginário se quebra porque não foi possível lançar mão do significante do Nome-do-Pai e reconstituir as imagens em função das vacilações imaginárias. Não dispondo do significante do Nome-doPai que permitiria reorganizar o imaginário, o psicótico começa a reconstruir o mundo com as referências simbólicas que ele possui. Ele vai explicar as coisas da maneira que pode. No surto, o psicótico experiencia a invasão do real pelas vozes que escuta, pelas alucinações e pelas sensações hipocondríacas. O que acontece no real do corpo, o sujeito vai explicar com o delírio e de uma maneira que o narcisismo sobressaia. O psicótico se utiliza de um significante da identificação e se agarra a esse significante já que o Nome-doPai está foracluído. É uma tentativa de fazer uma operação simbólica, mas que não funciona o tempo todo, já que esse significante foi pego de empréstimo e possui uma referência efêmera. Na fala do paciente Antônio isso pode ser evidenciado. “Eu sou Davi e estava no cativeiro, sou Jesus Cristo e fui crucificado. Os que têm cabeça querem acabar comigo. Estou triste, nervoso e quero me suicidar.” Na paranóia teremos um S1 ideal. Na realidade, o sujeito é esse ideal. Podemos pensar na impossibilidade da metáfora paterna, mas que haveria um posicionamento do sujeito em relação ao Nome-do-Pai que não se conclui (ALBERTI, 2009). Para a psicanálise o desencadeamento da psicose se dá quando o sujeito se depara com Um-pai. Para que um sujeito apresente um surto psicótico é preciso que ele apele ao Nome-do-Pai. Mas como afirma Lacan “como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo sujeito no único lugar de onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve?” (LACAN, 1998e, p. 584). Lacan responde que o psicótico o chama através de um pai real que não necessariamente será o pai do sujeito, mas por alguém que funcione para ele como Um-pai, que funcione como Outro, onde o Nome-do-Pai, como lugar da Lei não adveio. É necessário que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo anteriormente, situando-se em posição terceira em uma relação imaginária com o eu e o objeto ou o ideal e a realidade. 80 Dizendo um pouco mais, o surto psicótico só pode advir mediante três condições: se um sujeito que possui uma estrutura que foi marcada pela foraclusão do Nome-do-Pai e que quebrou sua identificação imaginária com o desejo da mãe, dá de encontro com Umpai, condição específica para o desencadeamento (GUERRA, 2010). Dar de encontro com Um-pai é se deparar com uma pessoa ou situação em sua vida cotidiana que de um lugar terceiro se permeia ao sujeito interrogando-o no âmago de suas relações com o outro e exigindo-lhe uma resposta a nível do significante, resposta esta que o sujeito não tem para dar, já que não tem a garantia dada exclusivamente pelo significante Nome-do-Pai, única possibilidade da metáfora paterna e de toda significação fálica. Como não possui uma resposta, o mundo do psicótico desmorona, é o fim do mundo. “O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim” (FREUD, 1987d, p. 94). Diante do acima exposto pouco adiantará se um técnico de CAPS em uma, ou nas várias entrevistas de acolhimento, ficar interrogando o paciente a respeito de onde ele está, em que dia da semana ele se encontra, procurando verificar se o paciente apresenta um distúrbio da senso-percepção ou de orientação espácio-temporal, pois caso esteja diante de um psicótico, esse percipiens (sujeito que percebe) terá um outro perceptum (objeto que se percebe,mundo). É o Outro que fala. Ao invés de procurarmos distúrbios da sensopercepção ou fenômenos diversos próprios do campo da psicose, é preciso escutar o que para aquele psicótico específico funcionou como Um-pai, ou seja, um acontecimento, um episódio que esteja em oposição simbólica ao sujeito. Que se procure no início da psicose essa conjuntura dramática. Quer ela se apresente, para a mulher que acaba de dar á luz, na figura de seu marido, para a penitente que confessa seu erro, na pessoa do seu confessor, para a mocinha enamorada, no encontro com o ‘pai do rapaz’, sempre a encontramos, e a encontraremos com mais facilidade ao nos guiarmos pelas ‘situações’, no sentido romanesco desse termo (LACAN, 1998e, p. 584). Como dissemos anteriormente, o caos do psicótico dado por um imaginário despedaçado torna-o completamente desprotegido contra as invasões do Outro. Selma aponta para uma realidade que se repete sempre com o mesmo tema: “eu tô impregnada, eu tô impregnada... olha pra você ver, eu tô impregnada”, repete incessantemente, a toda pessoa que passa por ela no CAPS, enquanto agita sem parar os braços. Selma nunca teve impregnação medicamentosa, reação comum em alguns pacientes pelo uso da medicação antipsicótica. Sua impregnação é do Outro. 81 Isabel prossegue em seu testemunho desse Outro invasor. “Ponho duas calcinhas e um absorvente para a “queimação” não entrar em mim. Não quero que ninguém da minha família entre no meu quarto. Grito quando isso acontece. Se eles entrarem eu vou pegar a aparência deles”. O imaginário na psicose não tem condições de proporcionar uma imagem completa e consistente do corpo, funcionando em regime de autonomia em relação ao simbólico, criando um lugar aonde vêm se multiplicar fenômenos vários, marcadamente narcísicos, pertencente ao estádio do espelho, que é a estrutura responsável pela constituição do eu. Isabel tem muita dificuldade em sair de casa, em vir ao CAPS. Mesmo em sua casa não há um momento em que possa se livrar desse Outro avassalador. Não posso sair na rua. Eles pegaram minha aparência. Todo mundo está com minha aparência, meus irmãos, meus filhos, meu pai. Não posso tomar banho... Todos estão me vendo... Todos os vizinhos, todos que passam na rua. De vez em quando tomo banho, mas só de noite, no escuro e rápido pra ninguém me ver [...] Eles entram pelo meu estômago, pela minha vagina, na minha cabeça. Olhe meu braço! Está todo deformado. Estou feia [...] Eu limpo tudo, mas eles [os espíritos] vêm e sujam tudo o que eu faço. Sinto um fedor por onde passo, na minha casa, aqui no CAPS. Não posso vir aqui. 2.4 O real e a Psicose 2.4.1 Realidade, realidade psíquica e fantasia O real, conceito criado por Lacan e que em suas palavras se impôs a ele (Lacan, 2007), não se confunde com a realidade material e nem tampouco com a realidade psíquica. Para Freud (1987r, p. 233) a realidade psíquica é diferente da realidade material e é possibilitada pela existência de um mundo de fantasia de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio da realidade. Esse domínio desde então foi mantido livre das pretensões das exigências da vida, como uma espécie de ‘reserva’; ele não é inacessível ao ego, mas só frouxadamente ligado a ele. É deste mundo de fantasia que a neurose haure o material para as suas novas construções de desejo e geralmente encontra esse material pelo caminho da regressão a um passado real mais satisfatório. 82 A fantasia produz a realidade psíquica que é um mundo particular de cada sujeito desde que pague o preço de uma perda, que é a perda do objeto, das Ding, objeto perdido e reencontrado, porém sem que na verdade se o encontre. É pelo vazio deixado por das Ding que se organiza o mundo perceptivo do sujeito, sendo a fantasia a vestimenta que cobre o objeto perdido. A partir do inconsciente, o sujeito vai poder sair do lugar de “sua inefável e estúpida existência” para poder formular a questão “Che vuoi” (“que queres”) – pergunta direta sobre o desejo, portanto, e que retira o sujeito da inefabilidade e da estupidez, tomando as formas histérica – quem sou no desejo: homem ou mulher? – e obsessiva – estou vivo ou morto quanto ao desejo, questões portanto paradigmaticamente neuróticas e que dizem respeito a posições diante da procriação, da castração e da morte. É “a questão de sua existência que coloca-se para o sujeito”(LACAN, 1998e, p.555). Retomemos mais uma vez o grafo do desejo abordado por nós nas páginas 59 e 60. No segundo nível do grafo (Figura 7) elaborado por Lacan (1998f), nível da enunciação, ou do enigma implicado em todo enunciado, vemos surgir primeiramente o matema da pulsão, ◊ D, onde aparece o sujeito confrontado à demanda do Outro, e o lugar do “Che vuoi?” dirigido ao Outro. O “Che vuoi?” é resultado daquilo que na realidade não se resolve na demanda. Sai do que do ser se separa na alienação. Figura 7 – Grafo do desejo - “Che vuoi?” 83 Submetido às exigências de satisfação da pulsão, o sujeito se defronta no Outro com a sua falta. A partir daí ele construirá a fantasia com os restos da relação ao Outro. A fantasia se coloca então como o primeiro nível de velamento da verdade da falta do Outro. A fantasia é a resposta para a falta de significante no Outro. Ela é o efeito final da relação constitutiva com o Outro diferentemente da pulsão que é indizível. É esse indizível que vai constituir o desejo. Este desejo tem referências simbólicas, mas, por sua dimensão real, é impossível de dizer. A fantasia é uma resposta, uma invenção de sentido. Diante de um enigma do desejo do Outro o sujeito sofre a imposição de produzir uma resposta. A fantasia é uma resposta, é a assinatura mesma onde o sujeito se constitui. Na fantasia trata-se de uma significação obediente à lei fálica, lei paterna que funda um eixo de referência e uma filiação. Essa Lei que ao circunscrever um limite além do qual se estende o campo de um gozo, interdita e inaugura ao mesmo tempo uma região onde se abre o mundo ordenado de sentido e de possibilidades. O psicótico compartilha com o neurótico a escolha forçada de uma resposta. Não menos que este é afetado pelo desejo do Outro imanente ao fato da linguagem: “se isso fala isso quer” e logo, “alguém quer algo de mim”, “que queres?” Subjetivação mínima, a questão sobre o desejo do Outro é condição universal e necessária da existência de todo falante. Mas existe aí uma diferença. Essa diferença, verdadeiro divisor de águas que separa a neurose de um lado, psicose de outro, resiste no estatuto da resposta. O psicótico, sua resposta é da ordem não da particularidade, como é o caso da neurose, mas da ordem da singularidade – não conforme a norma, mas uma resposta que faz objeção à norma, uma resposta fora dos eixos, não submetida à lei do pai, à margem do regime de filiação (SOUZA, 1991, p.67) Lacan tratou a realidade como um campo, efeito da articulação do simbólico com o imaginário e da ex-sistência do Real, um aparelho comandado e sustentado pela fantasia onde em cujo âmago habita o desejo. A realidade é a veste da fantasia. Ao apresentar uma formulação topológica do campo da realidade e de suas relações entrelaçadas com a fantasia, Lacan identifica o campo da realidade como linha de corte, e que numa relação simultânea de conjunção e disjunção separa e une o sujeito e o objeto. Numa relação conjunção/disjunção, sujeito e objeto, articulados compõem a fantasia. O matema da fantasia será justamente ◊ a, onde é o sujeito barrado pelo desejo e a é o objeto perdido, objeto causa de desejo que fixa a errância do sujeito proporcionando-lhe consistência de ser e de gozo. E aqui tocamos com uma letra, o conceito de real, esse registro que concerne ao gozo. Essa letrinha, a, é um modo de escrever o real que só se aborda com a 84 escrita, só se escreve com letrinhas e que precisa ser isolado, excluído, elidido para constituir por sua própria ex-sistência – o real e-xiste ao simbólico e ao imaginário- a realidade, sua consistência e seu marco: ‘... o campo da realidade não se sustenta senão da extração do objeto a que no entanto lhe dá seu marco’ (SOUZA,1999, p. 47). A realidade pode ser definida como um conjunto ordenado de sentido, como o mundo. Já o real é a “ex-sistência do in-mundo, a saber, a ex-sistência disso que não é mundo- eis aí o real simplesmente” (LACAN, 1974-75). O real é barreira, resistência intransponível que não se submete à lógica, que não se deixa seduzir pelo imaginário, que é barreira ao simbólico, que não forma conjunto e nem se submete à unidade ou à totalização já que “é feito de cortes” (LACAN, 1958-59) e partes sem todo. “O real não é o mundo. Não há esperança alguma de atingir o real pela representação [...] o real, ao mesmo tempo, não é universal, o que quer dizer que ele só é todo no sentido estrito de que cada um de seus elementos seja idêntico a si mesmo, mas não podendo dizer-se todos.” (LACAN, 2001, p. 6). 2.4.2. Gozo e Psicose A partir da constituição da fantasia forma-se o sintoma. A estrutura do grafo do desejo revela os efeitos do confronto do sujeito ao desejo do Outro. A demanda do Outro é tomada pelo sujeito como objeto no fantasma, daí o matema ◊D. O movimento no nível superior do grafo do desejo (Figura 8) é do gozo à castração, sendo a castração "o que rege o desejo, no normal e no anormal", conforme diz Lacan "A castração quer dizer que é preciso que o gozo seja recusado para que ele possa ser atingido sobre a escala invertida da Lei do desejo” (LACAN, 1998f, p.841). Figura 8 – Grafo do desejo completo 85 O real concerne ao gozo no que este tem de impossível. Aqui não se trata do gozo sexual, fálico, mas de um gozo Outro do qual nunca poderemos saber nada, já que ele é apenas suposto aos que jamais poderão falar dele, como o animal e a planta. Lacan designou este gozo como gozo do Outro ou gozo do corpo que não coincide com o gozo dito fálico, inscrito no simbólico, gozo do Um, gozo significante ou gozo forado-corpo. Este corpo não é o corpo biológico, mas sim aquele tomado em sua dimensão de realidade significante, sendo então sinônimo do Outro, esse lugar da determinação significante do sujeito como cita Lacan (1998f) em Subversão do sujeito e dialética do desejo 86 É necessário fazer uma distinção entre a angústia neurótica - propriamente relacionada com o desejo e seus impasses, a incidência do objeto a no sujeito - e a angústia na psicose, já que não temos o direito de afirmar que, na psicose, não se trataria de forma alguma de angústia, mas que, dado que é justamente na relação entre o sujeito e o desejo que, na neurose, se situa a angústia, precisamos definir melhor o estatuto da angústia psicótica, tarefa que excede o âmbito deste trabalho, e fica aqui tão-somente apontada como uma questão a resolver na teoria e na clínica. 2.4.3 Delírio O delírio tem sua relação com o simbólico, mas pela seqüência de nossa exposição optamos por abordá-lo somente neste momento sustentando o delírio como uma forma de tratar o real pelo simbólico na clínica das psicoses. A psicose reside na não-entronização da fantasia inconsciente a partir da falha da ação do recalque originário. O psicótico tenta suprir a falta da instauração da fantasia por meio da produção do delírio. Luiz nos relata sua produção delirante: O cachorro pequinês da minha mãe me sufocou e implantou uma coisa em mim. O cachorro é filho do Scooby Doo da televisão... Eu nasci com um bip no ouvido [...] Meu cú está tampado... A bosta vai sair no bairro Vila Grande... Não devia ter matado o cachorro, mas tinha que fazer... Ele estava mandando raios laser para minha mente ficar assim do jeito que está. Na psicose é exatamente essa capacidade de frear o empuxo-ao-gozo, que a fantasia presentifica a todo instante para cada um de nós, que não aparece. É por isso que o psicótico tenta construir alguma coisa para fazer frente ao gozo. É o discurso analítico aquele que vai produzir S1 e é pela produção de S1 que o sujeito psicótico pode vir a fazer o laço social. Após uma longa internação Schreber estabilizou seu quadro psicótico pela via da construção de S1, que foi “ser a mulher de Deus”. Essa construção delirante foi sustentada pelo empuxo-à-mulher, que proporcionou a ele um corpo, com seios e nádegas femininas, dando-lhe um destino, uma inscrição simbólica na cultura que era copular com Deus para gerar uma nova raça de seres humanos. Também percebemos algo de seu gozo que foi localizado quando ele diz que gozava com a volúpia de uma mulher. Temos então os três registros: imaginário, simbólico e real, enodados pelo sintoma “ser mulher” (SARTORI, 2002). 87 Na esquizofrenia, não há uma localização total do gozo no campo do Outro; o gozo retorna ao sujeito nas alucinações, fenômenos corporais etc. Não há a constituição de um S1 que se articule a um S2, como no caso da paranóia, em que há tentativa de fazer laço social, pois nela “o significante representa o sujeito para outro significante”. No caso da esquizofrenia, a ausência de S1 promove uma dispersão dos significantes, manifesta também no delírio. O delírio de grandeza raramente vem sozinho, sendo acompanhado geralmente de idéias persecutórias. São freqüentes as idéias de “transformação pessoal” onde o paciente não é aquele por quem se toma. Ele acredita que mudou de sexo, de idade. Não é ele quem está pensando e agindo etc. Luiz, ao assinar seu nome na lista de controle de atendimento do CAPS, assina outro nome. Perguntamos por que ele assinou esse seu nome. Ele nos diz: “Mas eu não sou o Luiz. Sou o João. O Luiz está lá na minha casa com minha mãe.” Em outra ocasião tira um pedaço de papel de onde copia um nome para assinar na folha: “Esse é meu nome. Não sou o Luiz. Luiz está preso em São Paulo. Se eu assinar o nome do Luiz vão vir me prender... Eu tenho ouro guardado em lugar superior. Vou dar ouro pra dona Maria [sua mãe] que está cuidando de mim.” Na psicose o delírio possibilita o tratamento do gozo. Dessa maneira, “ao sujeito naufragado do Édipo resta uma ilha a ser construída pela paranóia” (GARCIA, M. 2002, p. 232). Ao identificar o gozo no lugar do Outro, o paranóico elege “um significante que o represente para outro significante”, que é uma das definições de sujeito no ensino de Lacan. Schreber cabe como exemplo quando se torna a “mulher de Deus”. O psicótico, no trabalho de cura, tenta fazer de um rasgo, uma abertura, uma borda em seu mundo destroçado, fazer uma nova superfície. Pela construção do delírio tenta fazer um significante, ensaiando colocá-lo em movimento e ordená-lo num encadeamento de significações, buscando estabelecer um texto, uma sintaxe. Trabalho de poeta às avessas, no que é próprio ao poeta se utilizar do significante para engendrar uma letra, criar “outras palavras” [...] Trabalho que gasta e desgasta o melhor da potência do sujeito consumido em fazer e refazer a teia de sentido que sustenta seu mundo. Trabalho sem férias, como a vida, para manter vivo o sujeito na trama das significações. Trabalho insano, diria o neurótico, recostado comodamente em sua realidade feita mais de sonho que de despertar, realidade-fantasia, essa montagem imaginária tecida por ficções e assentada em “fixões”, pontos fixos, onde habita o real e seu gozo (SOUZA, 1991, p. 67). A psicose em seu movimento de cura constitui-se numa tentativa de livrar-se do gozo excedente. São comuns episódios onde os pacientes do CAPS apresentam automutilações, práticas de auto-flagelamento, tentativas de suicídio e delírio. Para além do 88 impacto que tais acontecimentos podem causar nas famílias e nos técnicos é preciso entender aí o esforço de defesa, de uma busca de fabricar uma distância, uma separação. O delírio teria um lugar privilegiado na busca dessa separação sendo uma construção de superfície, traçado litorâneo. Á moda do traço unário, marca de um traço apagado que representa o sujeito na neurose, poderia se pensar no delírio como uma letra, uma outra letra que separa saber e gozo constituindo-se o litoral (LACAN, 2009, p.110) como dois domínios diferentes. O delírio seria uma solução de saber, letra-literal que vem substituir letra-real, solução letrada e elegante que de fragmentos desatados, restaura o mundo do psicótico. O psicótico em seu delírio, nas palavras de Souza (1991, p. 71) “fabrica um mundo e um estatuto civil - novo geógrafo de uma geografia, seu estilo é o trabalho decidido de mapear distâncias, cavar sulcos, côncavos, convexos, produzir recôncavo e litoral.” 2.4.4 O empuxo-à-mulher Reservamos um tópico a parte para falar sobre o empuxo-à-mulher, já que durante a convivência entre técnicos e pacientes, é muito comum esse fenômeno psicótico ser confundido com homossexualidade e inclusive se ouvir dos técnicos que a família do paciente devia parar de recriminar suas tendências homossexuais e deixá-lo “assumir”a sua (suposta) opção sexual. Porém, como no caso de Schreber e de muitos outros psicóticos, não é disso que se trata. Pinçamos aqui uma fala de Antônio: Vocês aqui no CAPS são tudo bandido e ficam capando as pessoas. As pessoas aqui ficam me capando e depois a noite ficam fazendo relação sexual e rindo da minha cara [...] O problema é que tão querendo me capar e me deixar brocha, fazer eu virar mulherzinha. São os médicos que estão fazendo isso comigo. Não sou bandido. Não entendo porque tão fazendo isso comigo. Quero a felicidade de todos vocês [do CAPS]. Quero que vocês transem e fiquem felizes. Não posso viver assim. Um dia vão me achar nas “quebradas” com os pulsos cortados [...] Os gays estão me perseguindo e jogando encosto. Não quero virar mulherzinha. Há na psicose uma posição subjetiva em relação à castração que é de tal ordem que aquilo que Lacan formulou como a inexistência d’A Mulher torna-se algo insuportável na experiência do psicótico. Seja qual for a prática sexual concreta de cada sujeito psicótico, podemos nela identificar a não-incidência da norma fálica, e portanto a não-simbolização do ato sexual, que, permanecendo não mediatizado pela ordem significante que determina seus efeitos no imaginário dos sexos, faz com que o sexo seja experimentado como uma 89 invasão no plano corporal, que reduplica uma invasão do Outro, do Outro do sexo, já que o sexo como Outro, o Outro sexo, não se funda na não-existência d’A mulher. Resta ao sujeito a homossexualização por uma via significante, o que é muito diferente de uma homossexualidade objetal que se desenha no imaginário como escolha-de-objeto, como nos homossexuais efetivos (neuróticos ou perversos – e até mesmo, por que não? – em alguns psicóticos, pois a detecção do empuxo-à-mulher como fator estrutural determinante dos fenômenos que se expressam como homossexualidade na psicose não nos autoriza a recusar a um psicótico uma escolha de objeto qualquer que seja). Trata-se, assim, de uma posição subjetiva determinada por uma lógica gramatical. É o significante que é homossexual e não o objeto. Como o psicótico não reconhece a lei da castração, ele fica transtornado quanto ao sexo, não conseguindo formular para si mesmo que não existe a categoria Mulher. Antônio continua com sua fala nessa direção: o Vera Fischer [funcionário do necrotério apelidado com nome da atriz, homossexual conhecido na cidade por supostamente ter relações sexuais com cadáveres] abre as pessoas e cospe e caga dentro delas.Ninguém vai escapar da cidade do Vera Fischer[...] Estava no banheiro com o Pedro porque ele é um pajé. Ele estava me mostrando o pênis dele pra curar o meu. Diferente do perverso que recusa a mulher, o psicótico faz a mulher existir. Lacan (1998e, p. 572) afirma, quanto à psicose de Schreber, que: “na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens.” Foi no buraco que se abria onde a significação fálica deveria operar essa presença/ausência, que a intuição delirante de ser uma mulher, a mulher que falta aos homens, surgiu precocemente para Schreber. Nesse momento do ensino de Lacan, portanto, mesmo que por sua inexistência, o falo era o significante sexual por excelência, e se sua operação resultava em um corpo esvaziado de gozo, a não operação não deixava de também delimitar um campo. A formalização do objeto a foi o que permitiu substituir essa prevalência do falo, multiplicando as possibilidades de leitura das respostas singulares do sujeito. 2.5 A transferência na psicose Não é desconhecido dos analistas o fato de que a nossa clínica é a clínica do amor. É o amor a condição fundamental sem a qual a experiência analítica não se dá, bem como 90 nas palavras de Freud, a resistência fundamental que ameaça torná-la impossível (FREUD, 1987h). Na clínica psicanalítica não cessamos de nos oferecer ao amor (ANDRÉ, 1998). A psicanálise acolhe o sujeito na questão do amor e o maneja para que a transferência seja a via de passagem para outro lugar. Na relação entre analista e paciente, a libido refaz seus caminhos até a possibilidade de uma relação de amor com o analista, que abre esta possibilidade para a vida do analisando. O amor apela ao “somos um” e a psicanálise vai se valer desse apelo e manejar a questão. Quando o neurótico quer que o amor dê sentido, na verdade está querendo “amarrar” a evanescência do ser, em algo que dê consistência. O amor tenta anular a hiância entre o um e o ser, mas esta não se anula. O que se está visando por trás da apreensão do ser é na verdade apreensão do gozo, da plenitude, da não falta, da não parcialização. O que diz respeito a fazer um no amor tem a ver com a identificação que se suporta na imagem, que é veste do ser, fantasia. O eu quer se identificar com algo que diga quem ele é, que o faça parecer com alguma coisa, que faça cessar essa peregrinação (MAURANO, 1998). Tomaremos o manejo transferencial como sendo o instrumento capaz de “destranstornalizar” as situações vivenciadas na clínica, na medida em que, colocando-se na posição de objeto, o analista desloca o que transborda, entorna, perturba, confunde, atordoa e desorganiza (AMANCIO, 2010). Em seu texto, Observações sobre o amor transferencial, Freud (1987h) faz importantes colocações sobre a questão, apontando para o transtorno que a transferência pode trazer não só para o paciente, mas para aquele que se coloca na posição de analista. Freud vai dizer que a transferência traz uma completa mudança de cena, fazendo uma analogia ao surgimento da transferência como quando um grito de incêndio se ergue durante uma representação teatral e diz que “nenhum médico que experimente isto pela primeira vez achará fácil manter o controle sobre o tratamento analítico e livrar-se da ilusão de que o tratamento realmente chegou ao fim” (FREUD, 1987h, p. 211). No início do artigo diz que todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de início, pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução do reprimido. Quando chega a ocasião, contudo, logo aprende a encarar estas dificuldades como insignificantes, ao invés, fica convencido de que as únicas dificuldades realmente sérias que tem de enfrentar residem no manejo da transferência (FREUD, 1987h, p. 208). 91 Lacan (1998d) afirma que na análise o paciente não é o único com dificuldades em entrar com sua quota, referindo-se que o analista tem que pagar com palavras, com sua pessoa e com seu ser. Parece-nos que por vezes, diante da psicose, o analista vislumbra uma quota ainda mais alta, já que terá outro manejo no que diz respeito à interpretação, à transferência e ao ser do analista. Diversamente da clínica das neuroses onde o psicanalista ocupa, pela transferência, o lugar de “sujeito suposto saber”, uma vez que é um saber que o sujeito busca no analista, na psicose, ao contrário, o sujeito parte de um saber já constituído, a certeza delirante. Nesse sentido ele não demanda um sujeito suposto saber, mas um testemunho dessa certeza. Por isso Lacan (1985) indica um lugar preciso para o psicanalista na clínica da psicose: o de secretário do alienado. Para Freud, os psicóticos seriam incapazes de estabelecer o amor transferencial, isso devido ao seu modo singular de estruturação psíquica produzida pelo desinvestimento libidinal, no caso da esquizofrenia. A paranóia, devido à rica apresentação delirante, tornase muito mais acessível à análise do que a esquizofrenia, cujo delírio é fragmentário. O paranóico e o esquizofrênico, ambos psicóticos, apresentam uma falha no recalque originário, sendo que o paranóico em sua estrutura comporta a organização do estágio do espelho no qual se fixou, e do qual derivam todas as suas produções delirantes altamente imaginarizadas e, portanto, ligadas à imagem especular e ao duplo, ao outro imaginário: perseguição, ciúmes, erotomania. Já o esquizofrênico permanece numa posição infinitamente mais fragmentária do que o paranóico. Os fenômenos, as vivências de despedaçamento corporal, tão presentes na esquizofrenia, atestam os efeitos da nãoobtenção da unidade imaginária, narcísica, que é conquistada no estádio do espelho. A partir da imaginarização de um eu unificado no corpo, o paranóico constitui-se como objeto de investimento que opera de maneira especular com os outros. A subjetivação do paranóico é de um Outro denso, pleno e tirano, devido à especularidade e ausência de inscrição da falta operada pelo Nome-do-Pai no campo do simbólico. É comum encontrarmos em caso como estes a certeza psicótica, que tem a mais íntima relação com este Outro não marcado pela falta. O paranóico se coloca como objeto de gozo desse Outro e o que vai acontecer na transferência é que ela será marcadamente persecutória, ou ainda erotômana. Já na esquizofrenia a energia libidinal se volta para o corpo (auto-erotismo) e não procura um outro objeto. Ou seja, não há investimento nos objetos, instalando no dizer de 92 Freud “uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto” (FREUD, 1987i, p.201). Sendo assim o que o que o esquizofrênico experiencia é um corpo despedaçado. Na melancolia, a dor de existir, que é uma condição de todo vivente, de todo falante, toma configurações extremamente particulares. A libido se dispersa no eu (identificação ao objeto perdido), e isto está associado a uma perda fundamental, à perda do ideal que encobriria a falta da castração no campo do Outro. Em Freud (1987b), o que ocorre na melancolia é um “furo no psiquismo” que chega ao auge numa “hemorragia de libido”. Também para Lacan trata-se de um furo do gozo próprio a estrutura da linguagem. O investimento objetal e a libido livre se retiram para o eu devido à perda no nível do ideal, através da identificação com o objeto perdido “a sombra do objeto cai sobre o eu”. Para o melancólico, o Ideal do eu vai ocupar o lugar da referência simbólica para o sujeito, suprindo a ausência ou foraclusão do referencial simbólico, o Nome-do-Pai. Quando esse arranjo se desfaz, o eu pede o revestimento narcísico, dando mostras de seu status de objeto. Ao se desnudar, a foraclusão deixa evidente o furo no simbólico, transformando uma perda objetal em uma perda do eu, para qual se dirigem as recriminações que antes eram referidas ao conflito, advindas da ambivalência na relação com o objeto. Somam-se as essas recriminações as autodepreciações e autoacusações, decorrentes do sentimento de culpa. O eu, identificado ao objeto, atrai para si a cólera do supereu. Em O Seminário, Livro 3: As psicoses, Lacan (1985) situa que a diferença entre um neurótico e um psicótico coloca-se no fato de que, para este último, o amor é morto. O amor promove uma abolição do sujeito na psicose. O amor na psicose pode ser mortificante, exigindo que o sujeito se ofereça como objeto, sacrificando-se em nome do Outro absoluto (MUÑOZ, 2010). Na falta de uma regulação prévia, a relação com um parceiro pode estar na base de um desencadeamento ou de uma desestabilização. Na impossibilidade de encontrar algo que venha fazer função de mediação, pode-se viver o amor não enquanto agente, mas enquanto vítima dele. O excesso do Outro faz com que o sujeito não encontre outro lugar que não seja o de se fazer de seu objeto. Se há dificuldades do psicótico do lado do amor, isso se intensifica muito mais ainda em relação à sustentação do laço transferencial. Como pode se dar o tratamento do sujeito psicótico, se a transferência se localiza primordialmente do lado do Outro e não do lado do sujeito? Esse Outro é uma dimensão do campo do sujeito, mas que na psicose não é reconhecido como tal, há uma abolição de fronteiras distintivas entre sujeito e Outro como lugar Outro no próprio sujeito, à maneira do inconsciente. A erotomania, a transferência erótica e a perseguição são, por isso, riscos concretos no horizonte desse tipo 93 de tratamento. O sujeito não vive a paixão enquanto agente e pode ser, portanto, amado, traído ou odiado por aquele que aceitar se colocar no lugar do Outro. O analista que se dispõe a escutar um paciente psicótico deverá estar sempre pronto a acompanhar as soluções que ele mesmo constrói. A transferência pode ser uma forma de apaziguamento, valendo-se da erotomania (RIGUINI, 2005). Como lidar com a intrusão que pode advir da proximidade da convivência cotidiana em um dispositivo tal como o CAPS? Não é incomum que usuários se afastem do dia-a-dia do serviço em momentos nos quais a transferência, experimentada por relação a determinado técnico, se torna muito intensa ou que o técnico se veja transtornado com as vias em que a transferência se apresenta. Como exemplo, citamos o caso de Luiz, paciente de grande porte físico, que freqüenta o CAPS em regime intensivo, ou seja, diariamente, de quem nos tornamos técnico de referência. Podemos dizer que além de referência, nos tornamos “técnico de transferência”, pois desde sua chegada, que foi em franca crise psicótica, ficou evidente por suas palavras e gestos a manifestação da transferência. Por ser o início da nossa experiência em CAPS, não conseguimos nos colocar na posição de analista. Habituados com a clínica com neuróticos e já suficientemente prevenidos de que um analista não deve atender a qualquer demanda, não conseguimos conduzir o caso assim, devido às dificuldades frente à manifestação de extrema agressividade e uma transferência de fundo erótico muito intensificado pelo paciente, que dizia a todo o momento, por exemplo, que queria “acasalar” com a analista. A uma simples pergunta do paciente sobre o nosso estado civil, que devolveríamos ao neurótico com a clássica resposta “fale-me mais sobre isso”, respondemos afirmativamente, crendo que dessa maneira barraríamos as investidas do paciente. Luiz nos responde e ao mesmo tempo nos ensina sobre a psicose: “Não tem pobrema. Nóis mata ele”. Só a posteriori pudemos constatar que na verdade pelo temor de sermos agredidos e mortos por Luiz, como inclusive ele havia feito respectivamente com seu irmão e seu cachorro de estimação, não pudemos suportar suas palavras e investidas. As dificuldades no saber fazer, no manejar com a transferência podem acarretar grandes transtornos para a condução do caso. Depois de um certo tempo de atendimento, Luiz já não fala de sua intenção de se “acasalar” conosco. Passa a nos dizer que a tampinha do seu “cardan” (palavra que ele inventou para nomear seu órgão sexual) não está funcionando e por esta razão não tem mais jeito de acasalar, evidenciando assim que conseguiu fazer barreira ao gozo sexual que transbordava, sem lei, na transferência, e 94 introduzindo, nesta operação de barreira ao gozo, um certo nível de saber sobre o nãofuncionamento da ordem do falo, em sua sexualidade e em sua subjetividade. O coletivo institucional pode ter um peso excessivo para o sujeito psicótico que, por vezes, pode não suportar o convívio e a proximidade com aquele que se oferece para ser o destinatário de suas produções (MUÑOZ, 2010). Antônio, outro paciente do CAPS, passa a cantar constantemente no período que está no pátio que dá para nossa sala de atendimento. Canta as músicas de vários cantores, todos da MPB (Música Popular Brasileira). Certa manhã percebemos que cantava músicas com letras particularmente tristes. Em um momento quando vem em nossa sala, começa a falar das músicas de que gosta e relata: acho que magoei você... Cantei uma música pra você na janela... Foi uma música muito triste que até bandido chora. Fiz isso porque vi você atender outro homem e fiquei enciumado. Com a música você ficou soluçando... Tenho medo de perder vocês aqui do CAPS... Vocês me ajudam a organizar as idéias. Suas palavras revelam o início de uma transferência. Antônio nos diz que tem muitos amigos no CAPS, mas que somos sua melhor amiga. Passa a trazer sonhos constantes onde nos encontramos sempre presente. O problema é que Satanás me fez falar o nome dele num copo com água e aí o espírito se apossou de mim e comecei a fazer um tanto de coisa errada. Vocês me desculpem. Fiquei pensando em fazer relação sexual com vocês, mas foi por causa de Satanás. Agora não estou pensando mais assim. Entreguei meu espírito pra Cristo... Estava com saudades de você. Penso muito em você. Esses dias sonhei que nóis tava conversando [...] Sonhei com você. Você tava comigo e chegava um home e dava tiros em nóis... Acho que é seu marido que pensou que nóis tinha um caso... Posso ir pra outra cidade e arrumar mulher e esquecer que estou apaixonado. Desta vez, menos transtornados pelos efeitos transferenciais da clínica da psicose respondemos: “conversar comigo pode”. Saindo o analista de seu transtorno, o paciente pôde também não mais se transtornar com seus pensamentos e sonhos e avançar no tratamento. “Se o analista não recua diante da psicose”, se ele se dispõe a sair dos seus transtornos e impasses, “o psicótico avança diante do analista” (ELIA, 1991, p. 43). Temos percebido como o atendimento individual pode ser dificultado pelas particularidades transferenciais próprias e é aí que o dispositivo da psicanálise com muitos pode ser uma estratégia interessante para operar com a transferência na clínica com psicóticos que permanecem na instituição por um certo tempo em contato constante com a equipe, posto que tal dispositivo pluraliza o Outro, que com isso perde uma consistência para o sujeito. Oferece-se assim um certo desdobramento para a transferência, servindo 95 também de suporte para certas intervenções a partir da triangulação em uma cena. Sobre tal dispositivo, falaremos mais detalhadamente na seção 3. Para a psicanálise, cada caso deve ser tratado de maneira singular. Mas de maneira geral, a duração do tratamento na psicose tem a ver com a tentativa de operar uma maneira de circunscrição do gozo ou apropriação de objetos nos quais o gozo torne-se saturado, desviando-se do corpo do sujeito. É necessária a intervenção sobre o Outro já que a interpretação está do lado do sujeito e não do analista. Todo o problema da transferência na psicose gira em torno da questão de que o analista nunca poderá ocupar a posição de sujeito suposto saber, já que, à medida que o amor e o gozo encontram-se aí intrincados, ocupar o lugar de saber na transferência pode equivaler a firmar-se na posição de Outro gozador. O lugar do analista é vazio de gozo, precavendo-se de encarnar o Outro e assim poder produzir um corte capaz de convocar o sujeito na psicose. É preciso barrar o gozo do Outro, para que sujeito possa se instalar através da criação de intervalos. A demanda de análise do psicótico provém diretamente da foraclusão do significante do Nome-do-Pai. O ponto de partida de sua demanda é aquilo que pode ser denominado como significação em suspenso. O neurótico é um sujeito cuja estrutura lhe dá condições de chegar à análise com uma questão, enquanto que o psicótico tem que operar contra o funcionamento da estrutura psicótica para isso. Via de regra, o psicótico traz uma resposta. Vem para dar uma significação que pode aparecer ora sob forma de intuição, ora de uma idéia delirante, que é trazida para o analista a fim de torná-lo testemunha desta significação ou para que avalize. O saber na psicose está e deve permanecer, portanto, do lado do sujeito. É ele quem sabe sobre as investidas do Outro, que podem se apresentar, por exemplo, sob a forma de amor, de gozo desmedido ou de alucinação. É preciso esquivar-se da posição do Outro todo, sem furo, mantendo-se, ao mesmo tempo, à distância do lugar do igual, dado o risco de um resvalamento inadvertido para o lugar indesejado do rival (MUÑOZ, 2010). Sendo assim, o analista que conseguir manejar a transferência poderá se valer do amor, sempre presente na clínica psicanalítica, sem, no entanto, ser capturado pelos transtornos desse amor. 96 2.6 Estabilização psicótica Freud apontou o trabalho com o delírio, a elaboração delirante, como forma de estabilização na psicose – tentativa de cura, nas palavras de Freud – o que Lacan formalizou como a metáfora delirante e Lacan acrescenta a passagem ao ato e a escrita. Tais experiências são singulares de sujeitos específicos, mas podem possibilitar tirar princípios universais tornando possível a condução clínica de casos tão difíceis que particularmente compõe a demanda dos Centros de Atenção Psicossocial. 2.6.1 Passagem ao ato Em sua tese de doutorado, Lacan trabalha o caso de Aimée, que é uma paciente que por motivação delirante desfecha um golpe de faca contra uma famosa atriz parisiense. Durante os vinte dias que Aimée permanece presa, sua posição quanto a certeza do ato permanece a mesma até que seu delírio se interrompe. A hipótese de Lacan é que essa reação acontece somente após Aimée ser abandonada e reprovada pelos seus, e também depois que identificada com os criminosos com quem compartilhou a prisão. O ato de Aimée é paradoxal, na medida em que atinge tanto a si mesma, através do alívio afetivo de seu choro como provoca a queda súbita do delírio. Através do mesmo acontecimento Aimée torna-se culpada diante da lei e também atinge a si mesma. Ao longo do seu ensino Lacan estabelece orientações que permitem estabelecer a diferença entre a passagem ao ato e o acting-out. No texto A direção da cura e os princípios do seu poder, Lacan (1998d) analisa o acting-out como relativo à intervenção do analista, a partir de um caso de neurose. É em O seminário, Livro 10, A angústia que Lacan estabelece uma clínica diferencial entre acting-out e passagem ao ato formulando-os angústia e objeto, através do caso freudiano de uma jovem homossexual. Finalmente Lacan estabelece a relação de ato analítico em O Seminário, Livro 15, O ato psicanalítico de 1967-68. Nesse seminário, Lacan concebe independentemente da estrutura clínica, a dimensão do agir, em duas grandes vias: a via do Outro ou do significante, que concerne ao acting-out e a via do objeto, referida a passagem ao ato (GUERRA, 2010). A passagem ao ato, que consiste em separar a vida de sua tradução simbólica, de sua transposição no Outro, é um momento em que não é possível nenhuma mediação, mas que mesmo assim traz um caráter resolutivo. Por não se inscrever no campo simbólico, a 97 passagem ao ato não pode ser interpretada, sendo conjugada com o objeto, que é inassimilável pelo significante e concerne ao gozo. Diz respeito ao que Lacan denominou de objeto a, ponto que ele situa como sendo a causa e o efeito da cadeia de significantes, aquilo que significa seu deslize na busca de sentido. E que dela cai pela impossibilidade de tudo vir a se reduzir ao campo semântico. Se no acting-out o sujeito endereça seu ato esperando uma resposta do Outro, na passagem ao ato o sujeito sai de cena. O que acontece na psicose é que a extração do objeto a não se dá. E como conseqüência não há operação da castração com seus efeitos de organização simbólica. Outra conseqüência importante é a não constituição da fantasia. Na neurose, esse ponto será ocupado pela significação do falo, significante da ausência, que testemunha a inscrição da castração. Na psicose, no lugar da tela ausente protetora da fantasia, o sujeito encontra-se diante do real da castração. A cena que na neurose é montada na fantasia e que funciona como proteção ao mal-estar de sentido da existência, não pode ser constituída ao psicótico, posto que ela diz respeito à resposta ao horror decorrente do objeto que cai como o impossível de significar no complexo de castração, o objeto a. A fantasia é tela que enquadra a realidade, estendendo-a na relação simbólica com o significante. Ela é um véu sobre o qual pinta-se a ausência. Essa cortina assume para Lacan o seu valor e sua consistência, por ser justamente aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência. É daí que o falo adquire seu valor simbólico. A castração implica o recorte de gozo, que localizado, separa o sujeito do campo do Outro. Como na psicose o objeto a não é extraído, o gozo não articulado e contido pela linguagem, retorna como real em excesso. Por essa razão, o psicótico permanece identificado à posição de gozo do Outro, oferecendo-se como objeto no lugar da falta que não se inscreveu pela castração. Na passagem ao ato, é desse objeto duplicado na relação imaginária com o outro, que se encontra ali em excesso, que o sujeito tenta se desvencilhar. No ato, o sujeito realiza o efeito de separação que o simbólico operaria pela linguagem, efeito de negativização e individualização do ser, de morte pela palavra. A mutilação real surge em proporção à falta de eficácia da castração. A passagem ao ato na psicose seria uma tentativa de realizar a castração simbólica pelo real. É a tentativa psicótica de obter a extração desse objeto, ponto de gozo que o invade e o submete. Extrair esse objeto representa uma possibilidade de libertação para o sujeito, já que se trata dele mesmo do campo do Outro. A passagem ao ato não pode ser encorajada na clínica da psicose, pois não favorece o laço social, muito pelo contrario, desfaz suas possibilidades, seja auto ou heteromutilador. A passagem ao ato 98 traz agressividade, violência e até crime. Podemos, no entanto, aprender com a passagem ao ato na psicose, no sentido de nos ajudar a pensar o campo das estabilizações. O excesso que não caiu sobre a forma de objeto a invade o sujeito e exige a construção de uma barreira, seja de sua extração real ou simbólica, ou ao menos sua localização. 2.6.2 Metáfora delirante Vimos anteriormente as conseqüências nefastas que a foraclusão do Nome-do-Pai determina, impedindo a metáfora paterna. Porém, é nesse mesmo ponto que vem se dar um trabalho de reconstrução por parte do psicótico, criando um novo mundo de significações. Será pela metáfora delirante, colocada no lugar do Nome-do-Pai que podemos pensar a psicose em suas relações com o registro do imaginário. Recordemos o que Freud diz sobre esse momento: E o paranóico constrói-o de novo, não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após a catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente (FREUD, 1987d, p. 94). O neurótico, sustentado por uma realidade bem situada, pode se dar ao luxo de acreditar ou de duvidar sem correr o risco de se desestruturar. O psicótico não dialetiza sua certeza. No lugar da crença, fenômeno tipicamente neurótico, que testemunha a divisão do sujeito, fenômeno que separa o sentido que se apreende e o que se desfaz no lugar da crença, o que se coloca ao psicótico é a certeza. Ele tem uma certeza inabalável, irredutível, certeza de que tudo o que acontece tem a ver com ele: o carro vermelho que passa, a chuva que cai às três da tarde, uma criança que derruba um brinquedo. Essa certeza é o que surge com ponto de ancoragem para o sujeito, é o que lhe advém como seu mais precioso expediente na tentativa de recuperar o sentido (FREUD, 1987i). Pela certeza delirante o psicótico tem novamente um lugar no mundo, um lugar de significações e de fala que foram suspensos no momento em que ocorreu a quebra do imaginário. Nessa certeza não há dialetização, compreensibilidade, trata-se de uma certeza irredutível, constituindo-se um dos fenômenos elementares da experiência psicótica, no sentido que a certeza é a base onde se assentam as produções delirantes e alucinatórias do paciente e onde se ordenam dúvidas secundárias que estão todas subordinadas a essa 99 certeza delirante que nunca se exclui, pelo contrário, faz determinar todas as outras questões. É através dessa certeza que ele pode fazer a tentativa de recuperar o sentido, de sua ancoragem. Essa certeza é o âmago da significação delirante, que diferentemente da significação fálica, apresenta-se para o sujeito como certeza total, como verdade toda. A metáfora é resultado de um trabalho psíquico, subjetivo: por exemplo, se em Schreber transformar-se em Mulher de Deus é uma metáfora delirante é porque resulta de um trabalho no qual esta “solução”, à qual enfim ele chega e que retoma, totalmente reconfigurada, a posição já prenunciada na alucinação hipnagógica do momento prépsicótico: “como seria belo ser uma mulher em vias de se submeter ao coito”, suprime os efeitos devastadores que as etapas de sua psicose lhe custaram. É uma metáfora delirante, já que produz um significado novo. Dessa maneira, o psicótico constrói uma significação viável e funda uma forma original de filiação onde o sujeito se acha implicado num elo com o Pai, mesmo que a referência a esse pai se determine no registro do real. A metáfora delirante pode ser vista como operação funcionando como terceiro termo entre o psicótico e o Outro, tirando o primeiro da posição de objeto de uma demanda incessante e indeterminada desse Outro. É o delírio que vem proporcionar ao sujeito a reconstrução da realidade, realidade delirante que ignora fronteiras e desconhece impossibilidades, como é o caso de Luiz, paciente em permanência intensiva no CAPS, que me conta que tem caminhado pela estrada que leva de sua cidade até a cidade vizinha, ao lado dos Power Rangers, personagens que possuem super poderes e que descem de suas naves para estar com ele. De seu cachorro, animal que na verdade matou em um surto psicótico, me diz que é primo do Scooby Doo, do conhecido desenho de Hanna Barbera, construindo uma realidade onde o cachorro além de vivo é também dotado de características especiais. Ou de Francisco, que após ficar cerca de vinte anos internado em um manicômio, onde vivia totalmente alienado, como a maioria de pacientes que passaram por esta experiência, sem vida própria, sem administrar sua aposentadoria e seus bens, constrói em seu delírio uma outra Campo Largo (nome fictício da cidade onde reside). Na “Campo Largo” de seu delírio tem uma loja que administra e é bem sucedido. Nessa “Campo Largo” seu mundo antes despedaçado pode ser reconstruído. O trabalho de construção da metáfora delirante é quase que coextensivo com toda a direção da análise dos psicóticos, segundo as orientações que Lacan nos deu no início de seu ensino. Na verdade, trata-se de fazer com que o sujeito venha a fazer uso dos próprios elementos de seu delírio para articular alguma relação entre significantes (aqueles que são 100 primordiais em seu delírio) com significações igualmente prevalentes, mas de forma a que algum elo novo se faça entre significante e significado capaz de estancar o deslizamento de outro modo indefinido da significação. A metáfora delirante é, assim, o que permite o ponto de basta – point de capiton – na cadeia, noção cara ao ensino de Lacan em seu período inicial – e que produz o efeito clínico da estabilização. Só se pode explicitar o modo como a metáfora delirante se produz em uma análise de psicótico, portanto, através da singularidade concreta de cada caso. No caso de Schreber, a metáfora delirante consistiu na posição, assumida pelo sujeito, de tornar-se a mulher de Deus: só assim a posição de dejeto manipulado pelo bel prazer e gozo do Outro pôde encontrar um paradeiro. Há que se observar ainda que a metáfora delirante é um recurso restrito à paranóia, e que tem o caso de Schreber como paradigma. Com a pluralização posterior dos Nomes-do-Pai e a abertura de possibilidades de nodulação estabilizante para o psicótico a partir da idéia de invenção – que substitui, com vantagem, o recurso sempre substitutivo e postiço da metáfora delirante em relação à metáfora paterna, que seria o recurso legítimo, ou seja, que traz a idéia de um fazer ativo ali onde antes se tratava de um recobrir um déficit do que deveria estar em operação na estrutura – o recurso à metáfora delirante torna-se bastante periférico como direção de análise nas psicoses. 2.6.3. Escrita Podemos ver que o interesse pela escrita está presente desde cedo na obra de freudiana. Freud (1987c) aponta a descoberta de um dos fatores que participa na transformação dos pensamentos do sonho em conteúdo onírico que é a consideração à representabilidade no material psíquico próprio do sonho. O aspecto imagético do material onírico deve submeter-se a um rigoroso sistema de escrita, o que revela que, longe de tratar-se, neste material, de elementos do imaginário (apesar de serem imagens que aparecem nos sonhos), trata-se na verdade de elementos de escrita. Lacan (1998c) em A instância da letra no inconsciente assinala que no texto freudiano A interpretação dos sonhos, trata-se em todas as páginas, daquilo que ele chama de letra do discurso, visto que esse texto abre a via régia para o inconsciente. O sonho é um rébus que “Freud trata de estipular que é preciso entendê-lo” (LACAN, 1998c, p. 513), e que Lacan afirma que é entendê-lo ao pé da letra. Assim como a figura não natural do barco sobre o telhado trazida por Freud, “as imagens do sonho só devem ser retidas por seu 101 valor de significante, isto é, pelo que permitem soletrar do ‘provérbio’ proposto pelo rébus do sonho” ((LACAN, 1998c, p. 514). Freud exemplifica que o valor do significante da imagem não tem a ver com sua significação. Quando escreve a respeito dos sonhos ele compara–os a hieróglifos do Egito para explicar como os sonhos devem ser decifrados. A associação da elaboração onírica com hieróglifos se deve à permanência de uma figurabilidade na composição entre letra e desenho. Ele aproxima o sonho dessa escritura que não apresenta um texto unívoco e que mantêm os sentidos antitéticos, assim como a condição de figurabilidade entre letra e desenho. Nessa escrita, Freud vai se orientar por certos empregos do significante que se apagaram na nossa. Lacan observa que o psicanalista de hoje admite que decodifica, ao invés de fazer as paradas necessárias para compreender o que se decifra. “Fazer essas paradas [...] é continuar na Traumdeutung” (LACAN, 1998c, p. 514). Em Lacan o tema da escrita terá diferentes propostas. Temos outros textos representativos dessas propostas, como o texto A carta roubada, o seminário O saber do psicanalista e passagens em O seminário, Livro 9, A Identificação. Lacan (1998h) em O seminário sobre A carta roubada destaca o valor da escrita, em particular da letra, ao caracterizar o inconsciente a partir de sua estrutura de linguagem. A função prevalente nesse primeiro tempo de Lacan é que ele não vai diferenciar letra de significante e vai definir letra como suporte material do significante, sem, no entanto diferenciar a primeira do segundo. Como entender o significante? Diz Lacan que a carta letra1 é enigmática. Não se sabe o que tem dentro. Ela só se torna significante a partir do ato do sujeito, a partir do velamento. É o ato que implica o sujeito e que faz com que a letra se torne significante. O ato do ministro do conto de Poe que velou a carta faz com que ela se torne significante. Assim, o significante é aquilo que vela, que produz desvio, mas é esse desvio que permite dizer que algo falta em seu lugar. O determinismo da letra não é a significação, mas sim a possibilidade de que ela seja desviada e nesse desvio haja produção de falta. Lacan vai dizer que uma carta sempre chega ao seu destino. Essa afirmação referese a algo que está na pele ou nas bordas corporais, algo de que não dá pra se livrar. Se não é possível eliminar o que é estruturante, o furo, as bordas, é possível fazer destinatários. Os parceiros amorosos seriam parceiros destinatários, pois permitem que o sujeito se leia, que se devolva a perda imaginária, porém não são da mesma ordem que a letra e o destino. São 1 Essa história de carta letra deve-se ao fato de que, em francês, a palavra que designa carta – missiva – é lettre, a mesma que designa letra. 102 parceiros destinatários para se viver algo na vida. Já quando alguém publica algo que circula no mundo também está fazendo destinatários e de uma outra ordem (COSTA, 2009). Em O saber do psicanalista Lacan (1997) vai destacar o enigma da escrita trabalhando um texto bíblico do profeta Daniel que relata que Belsazar, imperador da babilônia, durante um banquete viu uns dedos de mão de homem escreverem na parede do palácio real as seguintes palavras: “Mene, mene, tequel, parsim”. Aterrorizado o rei manda convocar todos os magos para que dessem a interpretação daquelas palavras, mas nenhum foi capaz, até que Daniel, profeta e nobre judeu, que se encontrava cativo na babilônia, apresenta-se para dar a interpretação a partir da revelação concedida pelo Deus de Israel. A interpretação daquela escrita faz Belsazar encontrar seu destino mortal (BÍBLIA,1999). Lacan demonstra que o destino conduz a um pensamento de determinismo, mas ao mesmo tempo pode-se pensar numa direção contrária a isso. A interpretação analítica desarticula o destino no sentido que reintroduz pelo funcionamento da linguagem a equivocação e a metáfora. Ali onde pesava o destino com o sentido cristalizado e fixo ela dá a ouvir outro sentido (GUYOMARD, 1996). Posteriormente Lacan irá aproximar a letra cada vez mais do registro do real, como faz no seminário sobre Joyce, ao dizer que a escrita o interessa “porque historicamente foi por pequenos pedaços de escritas que se penetrou no real, a saber, que se cessou de imaginar. A escrita de letrinhas, letrinhas matemáticas, é isso que sustenta o real” (LACAN, 2007, p. 68). A partir do traço unário, que propõe com base na expressão einziger Zug, formulada por Freud (1987o) na teoria da identificação, Lacan vai abordar a função da escrita no inconsciente e na constituição do sujeito. Ele ao retomar essa noção, dá-lhe um caráter estrutural, como marca primeira que inaugura o sujeito. Lacan vai dizer que o traço unário é a inscrição da diferença e que é da inscrição desse traço que será possível ao sujeito neurótico não se confundir com os objetos, diferentemente do que acontece na paranóia onde há a construção de um objeto total, e na esquizofrenia que há um esfacelamento do objeto (COSTA, 2009). O traço unário inscreverá uma diferença a partir da qual o sujeito poderá se inserir na série simbólica. Como letra, ao mesmo tempo em que representa o sujeito em sua origem possibilitando uma identificação simbólica, traz a lembrança de um gozo perdido, que inicia o processo de repetição característico do movimento inconsciente. Há, portanto, 103 como ressalta Rinaldi (2007), algo da ordem de uma escrita primordial que marca o sujeito na sua singularidade, onde se articulam letra e gozo. O significante é uma invenção a partir de uma coisa que já está lá para ser lida. Não se trata, portanto, na experiência analítica apenas da escuta, mas do que se lê no que se escuta. Trata-se de uma releitura, já que a própria fala do sujeito, seus sonhos, sintomas e fantasias são da ordem de uma primeira leitura das marcas primordiais que recebeu do Outro, ao fazê-las suas (RINADI, 2007, p.275). Lacan vai dizer que a relação sexual não existe a partir do traço unário, pois o gozo estará perdido e o que foi perdido não é exatamente recuperado pela instância fálica. O traço unário implica castração, perda de objeto. É o registro de um diferencial, a possibilidade de que alguém possa dizer “eu minto” falando a verdade. Para a psicanálise não importa se o que o sujeito diz é verdade ou mentira, mas de que modo o sujeito se dirige ao Outro. Em O seminário, Livro 9: a identificação, Lacan (2003), nos traz a função do traço unário como escrita primordial que funda o sujeito. Lacan assinala que os primitivos faziam marcas nos ossos para contar os animais abatidos e que não havia uma equivalência entre o traço e a coisa. O que chama a atenção de Lacan é que havia uma série de traços iguais. Esses traços e traçados encontrados em material pré-histórico são marcas significantes que podem ser chamadas de letras. Os ideogramas apresentam algo muito próximo de uma imagem, mas que se torna um ideograma na medida em que se apaga cada vez mais o caráter de imagem. A escrita cuneiforme teve seu nascimento assim. Os traços saem de algo figurativo, mas trata-se neles de um figurativo apagado, recalcado ou mesmo rejeitado. O que vai ficar é da ordem do traço unário que funciona como distintivo, como marca (RINALDI, 2007). O traço unário como traço distintivo tem uma função de bastão na constituição do sujeito. Quanto mais estiver apagado tanto mais terá valor distintivo, pois é na medida em que se reduz ao traço sem qualidades, ou seja, quanto mais ele é semelhante mais ele funciona como suporte da diferença. Como no real não há nada desta ordem, será isso que introduzirá no real do ser falante a diferença como tal. “O traço unário é significante, portanto, não de uma presença, mas de uma ausência apagada que, a cada volta, a cada repetição, presentifica-se como ausência” (RINALDI, 2007, p. 276). Em O Seminário, Livro 18: De um discurso que não seria do semblante, na lição sobre “lituraterra”, Lacan (2009) retoma uma série de diálogos que ele fez antes, no texto O seminário sobre a carta roubada. Lituraterra antecipa o seminário 23, que é a escrita 104 dos nós, outra proposta de estrutura e escritura clínica, que é o sinthoma. Nesse texto, a letra vai estar como lixo, como resto e como produção de buraco no saber. Aqui estamos no que Lacan chamou de litoral. A letra não estará do lado da referência fálica, do significante, mas vai se situar naquilo que cai, naquilo que resta (COSTA, 2009). A letra fará litoral entre o saber e o gozo e como ponto de virada sempre buscada no movimento de repetição que constitui o inconsciente, transformará em literal. O traço unário, herança do Outro, vai se situar exatamente aí, como um sulco que a linguagem faz no real do ser falante e será ao mesmo tempo, de seu apagamento e de sua repetição que nascerá o sujeito como uma invenção a ser sustentada permanentemente. A verdade será constituída nesse movimento, verdade sempre fictícia, sempre marcada pela parcialidade, mas que determinará sua diferença. A escrita vai cavar sulcos no real ao apropriar-se dos efeitos do significante, recortando pedaços de real, através da letra (RINALDI, 2007). Guerra (2010) defende que a obra pode ser tomada como escrita ou como pintura, como por exemplo, o estudo sobre Joyce e o caso de Van Gogh respectivamente, que mostram um trabalho do real sobre o real, através da produção de uma obra inaugural. Os dois exemplos citados abrem um precedente para se pensar na criação artística como uma saída na psicose. A autora aponta outras soluções que podem oferecer a estabilização, tais como as sublimações criadoras, identificação imaginária, e a relação transferencial. A identificação imaginária comparece mais como fenômeno que pode favorecer uma forma precária de apaziguamento. Uma solução que se aproxima da metáfora delirante é a sublimação criadora, que diferentemente da metáfora faz laço social, como no caso da obra filosófica de Rousseau. Tais tratamentos apontam as saídas inventadas pelo sujeito psicótico para os embaraços que sua posição na linguagem acarreta, levando-nos com Lacan a tirar o psicótico da posição deficitária. 2.7 Laço social e psicose É possível dizer que é em torno dessa repetição que remete ao objeto perdido, como impossível de ser reencontrado, no caso neurose, ou como objeto não extraído na psicose, que se pode articular o laço social. Como essa repetição necessariamente engendra alguma perda, todo discurso rateia, nenhum deles sendo mais conveniente do que o outro. Segundo a formalização dos discursos proposta por Lacan (1992), é necessário que os quatro elementos – S1, S2, a e , estejam individualizados para que ocupem lugares na estrutura. 105 Esse requisito impõe um limite teórico à utilização dos discursos estabelecidos para situar o ser falante cuja estrutura não resultou das operações de alienação e separação, como é o caso do psicótico. Como conceber a construção de laço social na psicose, se o Édipo ou o Nome-doPai, como operador simbólico que subjaz a esse laço não é o recurso que funciona na resposta do sujeito psicótico à realidade? Ressaltamos que em Lacan é a subtração de gozo que corresponde à noção de laço social. Enquanto na formulação anterior sobre a metáfora paterna, em O Seminário, Livro 5: As Formações do Inconsciente a subtração de gozo é concebida como efeito da interdição (1999), nos Escritos, no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan (1998f) indica que essa subtração é efeito da castração sobre todo falante. Deslocando do complexo de Édipo para a pluralização dos Nomes-do-Pai, Lacan (2007) distingue o pai como nome e o pai como nomeador, indicando que a nomeação será um quarto elemento, e que esse não é, necessariamente, simbólico. Neste caso, o acento está colocado na função de fazer nó, isto é, de manter os registros articulados, o que é diferente de ser um suporte para o simbólico. Nessa formulação, sobressai uma nova concepção de laço social, a da pluralização dos Nomes-do-Pai, que remete a modalidades de suplência à relação sexual que não existe. Na perspectiva da topologia, o sinthoma é o que vem fazer suplência à falta de relação sexual, fixando o gozo que não está submetido a um ciframento. Figura 9 – Nó borromeano e nó borromeano com 04 anéis – sinthoma 106 O Nome-do-Pai, significante central no ensino de Lacan vai se pluralizar então sob a forma de versões do pai. Será a partir da teoria dos discursos e da topologia borromeana que Lacan dará uma nova formulação da clínica psicanalítica que pluralizará os nomes do pai, transformando o sinthoma em uma forma particular de permitir surgir a singularidade do sujeito. O sinthoma vai nodular as dimensões dos três registros, real, simbólico e imaginário, sendo a possibilidade de uma amarração que se expresse pela via de um falso nó que poderá, inclusive, atestar uma amarração não borromeana. Portanto, enquanto Lacan singulariza os sintomas no sinthoma, pluralizará o Nome-do-Pai em Nomes-do-Pai. É o que ele diz no seminário sobre Joyce: o pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse quarto elemento [...] sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real. Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma. Na medida em que o inconsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, podemos dizer que Joyce [...] identifica-se com o individual. [...] Ao fazer assim, introduzo alguma coisa de novo, que dá conta não somente da limitação do sintoma, mas do que faz com que, por se enodar ao corpo, isto é, ao imaginário, por se enodar também ao real e, como terceiro, ao inconsciente, o sintoma tenha seus limites. Porque ele acha seus limites, é que se pode falar de nó (LACAN, 2007, p. 163-164). Desta maneira, o sinthoma é o elemento decisivo do nó borromeano permitindo que o arranjo do nó a quatro seja o que articula os três registros e os gozos admitindo que cada um se particularize pelo modo de nodulação que daí se produz. O sinthoma será o modo pelo qual o sujeito vai assumir a versão do pai que se constituiu em sua articulação borromeana, sendo, deste modo, Nome-do-Pai na medida em que este é definido como ato de nomeação. O sinthoma vai passar a ser um elemento comum tanto da neurose como da psicose. O sinthoma vai nodular de forma sistemática os três registros, real, o simbólico e o imaginário e fazer versão do pai. O Nome-do-Pai será um sintoma na medida em que, como sinthoma, ele articula uma operação significante com uma localização do gozo. O Nome-do-Pai que preside o arranjo neurótico é um caso particular de sinthoma. O Complexo de Édipo, a partir daí, será um sinthoma, que “enquanto nome do pai é também pai do nome que tudo sustenta”. É a partir dessas elaborações que Lacan retirará a psicose do lugar de déficit, reorientando a clínica da psicose, já que será necessário abordar o sujeito a partir de seu enodamento borromeano e não de um déficit de significante (AMARAL, 2009). 108 3 HÁ UMA CLÍNICA NOS CAPS? 3.1 A Reforma Psiquiátrica e a herança do modelo manicomial Podemos afirmar que uma instituição é fechada não apenas no sentido de não ser aberta ao livre movimento do ir e vir de seus usuários, como ocorria, por exemplo, no modelo manicomial, mas quando é fechada a todo e qualquer saber e a todo e qualquer fazer que possa interrogá-la em seus princípios, isto quando são encontráveis tais princípios, já que o fechamento pode chegar a tal ponto que nem mesmo princípios sejam localizáveis. Assim, uma instituição pode ser considerada fechada em “seus modos de funcionar, em sua existência institucional, reduzida à inércia e à repetição morta e mortificante do mesmo” (ELIA; GALVÃO, 2000, p. 71). Diante da Reforma Psiquiátrica Brasileira, incansavelmente exaltada por nós na seção 1 desta dissertação, movimento que denunciou a falência do modelo manicomialista, substituindo a assistência no campo da Saúde Mental por serviços abertos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial, onde se promove a inclusão social e o resgate da cidadania, ousamos levantar duas questões. Primeiramente perguntamos até que ponto os objetivos do movimento de luta antimanicomial têm sido plenamente atingidos, já que a hegemonia do discurso médico, a medicalização excessiva, a concepção organicista e comportamental, somadas a uma concepção equivocada da psicanálise por alguns e a promoção de autonomia e suficiência dos usuários a partir do ideal dos técnicos e não dos pacientes, tem novamente colaborado para silenciar o sujeito, arriscando o CAPS a ocupar o lugar de substituto do modelo manicomial, numa precária analogia que fazemos com o sujeito que ao dizer que não repetirá os passos do pai, preso pelas amarras da neurose não encontra outro caminho a seguir que não a repetição. A segunda pergunta diz respeito à clínica. Começamos por analisar os fatores que levaram os primeiros momentos do processo histórico da Reforma Psiquiátrica Brasileira a um afastamento da dimensão clínica. Encontramos o receio da reintrodução da medicalização e da manicomialização como contribuição para que a categoria da clínica e tudo que com ela se associava fossem rejeitadas. 109 A clínica significava a entrada, pela porta dos fundos, daquilo mesmo que se tinha tido muito trabalho para expulsar pela da frente. Tratava-se de produzir um discurso em que não apenas o engendramento da loucura fosse situado nos fatores exclusivamente sociais e históricos, como também o modo de tratá-la, de operar com ela, deveria ser igualmente “social”: cidadania, interação social, convivência, reabilitação, competências, geração de renda, ativação dos vínculos produtivos no território, tudo menos clínica (ELIA, 2005 a). Após o momento inicial, momento em que a Reforma teve seus motivos para priorizar uma reabilitação desclinicizada, efetivados os objetivos da Reforma Psiquiátrica, com toda sorte de conseqüências positivas que analisamos na seção 1, poderíamos afirmar que a posição frente à clínica foi alterada? Diante de tão evidente vocação para a reinserção social, teve também a Reforma o desejo de tratamento da loucura? Foi desejo da Reforma ter um dia uma clínica, desejo adiado, como muitos neuróticos apresentam, desejo colocado apenas no horizonte para atender a necessidade tomada como prioritária de resgate da cidadania ou na verdade a Reforma nunca teve essa intenção? Podemos dizer que os CAPS, em sua maioria, são cidadãos, inclusivos, reabilitadores sociais e que exibem efeitos aos quais não podemos recusar a dimensão de terapêuticos. Nos CAPS, os pacientes ficam melhores, deliram e alucinam menos e estabelecem laços com atividades e pessoas. Revertendo-se o quadro de exclusão, são atingidos efeitos terapêuticos extraordinários, efeitos concretos e surpreendentes, porque resultam de uma mudança radical nas condições de vida dos sujeitos. Mas qual o efeito clínico dessas ações? Podemos dizer que há mudança subjetiva, ou seja, mudança na posição do sujeito? O gozo desses sujeitos é tratado? É claro que algo se opera nos CAPS, pois os psicóticos possuem inúmeros recursos para fazerem seu percurso mesmo sem existência de clínica. Schreber sem analista conseguiu estabelecer uma metáfora delirante e se estabilizar. Nas palavras de Lacan (2003c, p.512), “uma prática não precisa ser esclarecida para operar.” Apesar dos efeitos terapêuticos comprovadamente observados isso não basta para dizermos que existe uma clínica nos CAPS. A ênfase dos Centros de Atenção Psicossocial continua sendo a reinserção social e não o exercício da clínica. Se a doença mental existe como posição discursiva e estrutural e não é mero resultado de processos político-sociais de exclusão, tratar, portanto, não será simplesmente incluir e resgatar a cidadania perdida dos usuários. Na perspectiva da estrutura, a loucura não se reduz a mero efeito da exclusão social, ela se sustenta como um funcionamento próprio, irredutível a outros. Hoje ouvimos falar constantemente em clínica ampliada, escuta do sujeito, entre outros dizeres de cunho fundamentalmente clínico, porém isso não garante que haja uma dimensão clínica nos espaços do CAPS. Figueiredo (2001) demonstra como motes 110 consagrados da psicanálise são tornados triviais. São exemplos disso: acolher o desejo do paciente, valorizar o dito, supor a existência do inconsciente, trabalhar a transferência, etc. Porém, as equipes continuam praticando um cuidado desclinicizado, baseado exclusivamente na lógica da inclusão, acolhendo sem tratar. É notório como muitas vezes as equipes não entendem por que as situações de crise e violência sem manejo eficaz assolam os CAPS e ficam admiradas com a evasão dos pacientes que não aderem ao projeto terapêutico proposto pelos técnicos de referência. “Por que ele falta tanto? Pelo menos aqui ele tem comida, fica limpinho, não apanha na rua [...]” O que entendemos por clínica? Podemos afirmar que só haverá clínica se houver implicação do sujeito no ato. Se há implicação do paciente e do técnico no ato que os une podemos dizer que há clínica. Se não há implicação nem responsabilidade, então não há clínica. O que acontece nos CAPS é clínica? Ou na verdade o CAPS é promotor de trato e não de tratamento? Colocamos ainda uma última questão em nossa introdução. Sabemos da importância da Reforma Sanitária em nosso país que resultou no estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), fator decisivo para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. A Saúde Mental no atendimento aos seus usuários segue os mesmos princípios preconizados pelo SUS, a saber, acesso universal, integralidade das ações, equidade, descentralização e controle social, todavia a clínica de Saúde Mental não deve reduzir-se a balizas estritamente sanitárias, no mesmo sentido em que a própria psiquiatria, como ramo da medicina, destacou-se dela exatamente por não caber inteiramente dentro dela, dentro de parâmetros estritamente de saúde, sendo sempre cindida entre o orgânico e o mental, este não cabendo na acepção neural de mente, mas implicando a dimensão psíquica, cultural, social, enfim, propriamente humana. Esta divisão do campo psiquiátrico encontra sua mais fecunda expressão na divisão que Karl Jaspers foi levado a fazer ao abordar fenomenológicamente o campo da clínica psiquiátrica. Como se sabe, este filósofo e psicopatólogo estabeleceu a divisão epistemológica entre as ciências da natureza e as ciências da cultura. Voltaremos e esses pontos no decorrer de nossa exposição. Passaremos a analisar brevemente algumas práticas clínico-institucionais que se utilizam da psicanálise e que trazem grande contribuição para o campo da clínica da psicose em instituição e, portanto para o avanço de nossa pesquisa sobre a clínica nos CAPS. 111 3.2 Psicanálise e Instituição 3.2.1 A psicoterapia institucional de Jean Oury Jean Oury é o criador da Psicoterapia Institucional e trouxe importantes contribuições para se pensar o atendimento de pacientes dentro de uma instituição. Um de seus livros, “O coletivo” publicado em 1986 e traduzido para o português em 2007 é a transcrição de seus seminários sobre o tema, após quarenta anos de experiência com pacientes psiquiátricos, conforme relata Almeida e Souza no prefácio do livro para a língua portuguesa. A importância em destacarmos o pensamento de Oury em nossa dissertação deve-se ao fato de que o autor vai trabalhar a possibilidade de reconhecimento da singularidade do sujeito em tratamento nas instituições psiquiátricas, o que pode contribuir para nossas discussões nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Sobre esse ponto Oury (2009) vai dizer em seu livro que se o esquizofrênico é um sujeito que “descarrilhou” do simbólico não podemos tentar recolocá-lo no trilho para que ele possa circular de novo, mas produzir alguma coisa que permita que haja novamente sujeito. O referencial teórico de Oury é a psicanálise, que vai lhe oferecer as principais ferramentas para pensar em um tratamento para os psicóticos, especialmente os esquizofrênicos. Vai propor oferecer espaços coletivos, pois estratégias terapêuticas que não levem em consideração algum tipo de dimensão coletiva tendem a fracassar com o psicótico (VERZTMAN; GUTMAN, 2001). Oury coloca como paradoxo a questão de por em prática sistemas coletivos que preservem a dimensão da singularidade de cada um e é nessa bifurcação que ele vai definir o que ele chama de Coletivo. O Coletivo de Oury não se confunde com uma lógica de simples discursividade, de serialidade ou de simples Gestalt, porém uma lógica que respeita uma quase infinidade de fatores de cada um. Diz o autor que se trata “das possibilidades de criar sistemas coletivos, nos quais se possa viver de um jeito bastante personalizado” (OURY, 2009, p. 22). Oury vai dizer que o coletivo pode apresentar-se como uma tablatura, uma combinatória do que constitui o Simbólico, um certo “lugar” no qual há um encadeamento complexo de significantes. Parece-me que se poderia formular o que está em questão como alguma coisa que se aproxima do que Lacan chama de o grande Outro barrado (Ⱥ) (OURY, 2009, p. 213). 112 Constatamos em nossa experiência que o atendimento individual de psicóticos onde fica condensado a figura única do analista ou terapeuta torna-se insuportável para o paciente. Ao comentar sobre esse aspecto Oury (2009, p. 225) diz que as coisas se passam melhor quando se investe , mesmo parcialmente , em diferentes lugares. Isto coloca em questão um certo número de significantes. Na multiplicidade disjunta dos seus investimentos transferenciais, o recurso provocado de uma maneira muito artificial arrisca acentuar a dissociação por um modo de erotização maciça e dispersa (transferência erótica psicótica). É então necessário encontrar para ele outros modelos de acolhimento baseados na multiplicidade de pessoas que devem cuidá-lo, assim como encontros materiais que, de certa forma complementares, devem ser separados e mais leves. Uma das características para a construção de um sistema coletivo apontadas por Oury (2009), é que os enfermeiros, e podemos aqui incluir qualquer outro membro de uma equipe multidisciplinar de CAPS, tem seu lugar no tratamento que não é um lugar de “psicanalista”, mas ainda assim é um lugar, de analista, desde que isto seja articulado em conjunto. O autor trabalha nesse ponto a desarquierização da equipe valorizando a iniciativa em situações do dia- a dia da instituição. No trabalho com o psicótico pela via do coletivo, Oury valoriza o que ele chama de heterogeneidade. Se houver identificação imaginária, histérica, onde tudo é uniformizado, o paciente não tem a possibilidade de escolher e tudo fica imposto. É importante promover a heterogeneidade nos espaços de oficinas, nas relações, nas funções, etc., colocar em prática a distinguibilidade que favorece a passagem de um sistema para o outro, de um lugar a outro lugar, de um técnico a outro técnico. Outro aspecto que queremos apontar de nossa leitura de Oury é o que ele chama de efeito do Coletivo que é o encontro. Cita Lacan (1990), em O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise quando este fala da túche (a fortuna, o encontro, a boa e a má fortuna) que põe em questão algo da ordem do Real. Esse encontro se é verdadeiro, provocará mudança estrutural. O autor cita que podemos desenvolver as correlações entre o conceito de encontro e as diferentes formas de transferência. Na mesma direção, Oury cita um artigo seu de 1968, sobre Psicoterapia Institucional onde ele insiste que a transferência não pode ser uma inter-relação egóica, e sim, o que permite a manifestação do sujeito através da emergência do dizer. Oury denuncia que “a maior parte das organizações passa ao lança–chamas toda possibilidade de emergência do dizer” (OURY, 2009, p.31). Outra atribuição do Coletivo segundo Oury é o que ele chama de diacrítico que é o que se “diz dos sinais gráficos destinados a distinguir a modulação das vogais ou a 113 pronúncia de certas palavras” (FERREIRA, 1993), como o acento agudo, a acento circunflexo, etc. Oury vai articular esse conceito dizendo da necessidade do coletivo operar a distinção num meio amorfo, serial, ou “prático-inerte” para que haja uma “totalidade destotalizada”. Assim poderá haver algo que se move e que não fique na estase, no entorpecimento. Por último citamos o termo entorno empregado por Oury ao invés do meio. O entorno ao variar pode modificar alguma coisa do sujeito. Aqui estendemos o entorno de Oury para a noção de território do CAPS. Muitas vezes esse território precisa sofrer variação, modificar em benefício do próprio paciente. Ele não pode ser tomado como meramente geográfico, mas indo além do espaço físico tendo em conta os espaços intersubjetivos. A nosso ver, a dimensão do coletivo de Oury com os conceitos de heterogeineidade, desarquierização da equipe, encontro, diacrítico e entorno por nós aqui mencionados, muito pode contribuir na construção de uma clínica para o CAPS. 3.2.2 A prática entre vários Jacques-Alain Miller deu o nome de prática entre vários a uma modalidade de trabalho que se iniciou em 1974, com crianças e adolescentes autistas e psicóticos na instituição Antenne 110, situada nas proximidades de Bruxelas (DI CIACCIA, 2005). Há também duas outras instituições – Le Courtil e Nonette, na Bélgica e na França respectivamente – todas surgidas na mesma época da Antenne 110 e a Mish’olim criada posteriormente em Tel-Aviv que trabalham com a prática entre vários. Essas instituições fazem parte de uma Rede Internacional de Instituições infantis, a R13 (PINTO, 2007). A prática entre vários é uma estratégia para operar com a transferência na clínica com psicóticos que permanecem na instituição por um certo tempo em contato constante com a equipe. A clínica psicanalítica que se pratica nessas instituições não se exerce através do atendimento individual, mas dispondo as crianças e adolescentes entre muitos pacientes e muitos técnicos. A proposta, no entanto como veremos a seguir, não coincide com a de uma clínica em grupo ou de uma oficina, modalidades muito comuns nas alternativas à psicanálise em clínica institucional, inclusive no âmbito da Reforma 114 Psiquiátrica Brasileira. O que distingue a prática entre vários de outras modalidades de trabalho em equipe é a articulação entre significante e gozo na linguagem e não a idéia de trabalho em equipe como acontece em um grupo (FIGUEIREDO; GUERRA; RANGEL, 2006). Segundo Di Ciaccia, essa modalidade de trabalho faz referência à psicanálise de Freud e ao ensinamento de Lacan, porém não prevê a utilização do dispositivo analítico propriamente dito. O que fazem não é uma “psicanálise entre muitos”, e sim uma “prática entre vários” não considerando que o que fazem é a psicanálise stricto sensu. Di Ciaccia (2003) propõe três eixos para a instituição na prática entre vários. O primeiro eixo repousa sobre o modo como a prática entre vários vai operar nas reuniões clínicas. Pelo discurso analítico, o saber prévio da equipe sobre determinado caso será deslocado, sendo substituído por uma interrogação. Será o sujeito que responderá a essa interrogação, mostrando a equipe sobre o seu modo singular de lidar com o gozo excessivo a partir da falta de regulação do Outro. Pela relação transferencial de determinado sujeito com os membros da instituição e seu relato na reunião de equipe será possível mapear significantes ou atos que se repetem, possibilitando que haja a construção do caso clínico. A partir da formulação final de Lacan, trabalhada por nós no capítulo 2, no que diz respeito aos registros do real, simbólico e imaginário, onde outras formas de enodamento dos três registros são possíveis além da referência fálica em torno do Nome-do-Pai, será possível uma equivalência entre sinthoma e laço social. A prática entre vários vai sustentar a construção de um sinthoma com a finalidade de localizar, nomear e circunscrever o gozo, por meio de significantes (ZENONI, 2004). Como segundo eixo apontado por Di Ciaccia, teremos a função do responsável terapêutico. Tal função será “encarnada por qualquer um, mas não um qualquer da equipe.” Aquele que a encarna deve permitir a cada um da equipe atuar na primeira pessoa, bem como confirmar, ou não, o axioma de Lacan sobre a inscrição da criança autista na linguagem e dos psicóticos de um modo geral. Nesse ponto, a prática entre vários vai possibilitar a pluralização do Outro, a partir do atendimento entre muitos técnicos e muitos pacientes, deixando esse Outro de ser consistente para o sujeito. A transferência poderá ser desdobrada e servirá de suporte para as intervenções a partir da triangulação em uma cena. Sendo assim, como defende Stevens (2003) a prática entre vários não se confundirá com uma prática em equipe interdisciplinar, já que o analista não será o especialista que trata 115 das questões do sujeito ou do gozo. Cada membro da equipe poderá vir a se autorizar e a intervir em nome próprio e de maneira contingente, pela palavra ou através de um ato que só poderá ser apreendido em seus efeitos no a posteriori e que poderá via a surpreender tanto o técnico como o paciente. A referência teórica e clínica de orientação lacaniana é o último eixo proposto por Di Ciaccia. Não se trata de toda a equipe ser de psicanalistas, mas de ter a teoria e a clínica como referência. Vale ressaltar que o dispositivo de tratamento em grupo traz a idéia do todo diferente do coletivo que não se sustenta no todo. Se a corrente gestaltista afirma que o todo é mais do que a soma das partes, pela psicanálise se afirmará que não há todo na soma das partes. Admitindo-se a inexistência do todo pode-se admitir a fenda que permitirá que no interior da equipe o próprio paciente venha a fazer furo no suposto todo da equipe possibilitando uma construção de saber que esteja do lado dele e não do técnico. Como trabalhamos anteriormente no tópico sobre a transferência, o analista ou técnico não ocupará o lugar de sujeito suposto saber, lugar prevalente na clínica da neurose, mas de sujeito suposto não-saber. Desta forma haverá indicação para o sujeito de que o Outro não é consistente, esvaziando assim a atribuição de saber e poder que muitas vezes é endereçada pelos pacientes aos técnicos da equipe. O coletivo da prática entre vários difere do coletivismo igualitário, garantia de uma equipe numa proposta dita democrática. O coletivo nessa vertente é uma proposta que não se sustenta na garantia, mas numa direção de trabalho que porta um risco calculável. Esse cálculo só pode ser realizado a partir do primeiro ato de intervenção. Trata-se de um ato solitário, porém transmissível (FIGUEIREDO; GUERRA; RANGEL, 2006). A experiência de coletivo da prática entre vários com certeza tem importantes contribuições para se pensar a clínica no CAPS, tais como a distinção entre atendimento coletivo e grupal, as reuniões clínicas, a construção de um sinthoma com a finalidade de localizar, nomear e circunscrever o gozo, a questão da pluralização do Outro pelo atendimento entre muitos técnicos e pacientes que difere de equipe interdisciplinar com seus especialistas e etc. A interrogação que lançamos à prática entre vários (la pratique à plusieurs, expressão que ficou consagrada e que colocamos no original francês para que os que nos lêem possam ter acesso às ressonâncias semânticas da expressão à plusieurs aqui aplicada 116 a uma pratique) é a seguinte: por que psicanalistas que, em outro espaço de sua prática clínica, não hesitariam em dizer que praticam a psicanálise stricto sensu, quando se trata de operar a clínica em uma instituição de um modo integralmente orientado pela psicanálise titubeiam em dizer que sua prática é a própria psicanálise, ou antes, não titubeiam, mas decidem nomeá-la de prática e não de psicanálise entre vários? Acaso supõem que o que fazem não é psicanálise? Essa restrição, longe de salvaguardar o rigor do que seria uma psicanálise propriamente dita – precaução que parece mover esta escolha – reafirma que psicanálise propriamente dita é só aquela que se pratica em consultório, com neuróticos (ou mesmo com psicóticos), mas a dois, no modelo de dispositivo freudiano construído para os neuróticos. Não consideram que o muitos (modo como, seguindo uma indicação de Elia (2009), preferimos traduzir o plusieurs, em vez de vários – já que este termo implica variedade ali onde se trata de quantidade de uns, mais multiplicidade que variedade) respeita a estrutura mesma do funcionamento psíquico dos sujeitos de que se trata nesta clínica. Para nós, seria antes por razões clínicas do que sócio-institucionais que optamos por um dispositivo coletivo, entre muitos, e por isso preferimos nomeá-lo de psicanálise com muitos, que abordaremos em seus fundamentos na sub-seção que se segue. 3.2.3 A psicanálise com muitos Os Centros de Atenção Psicossocial quando atendem a demanda da infância e da adolescência recebem um “i” no final de sua sigla CAPS, tornando-se a sua nomenclatura CAPSi. Assim como o CAPS para adultos, o CAPSi é um serviço de atenção diária destinado a atender pacientes com comprometimento psíquico grave. Nessa categoria estão incluídos os autistas, psicóticos, neuróticos graves e todas aquelas crianças e adolescentes impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais (BRASIL, 2004). O manual do CAPS afirma que a experiência permite indicar algumas situações que favorecem as possibilidades de melhora de crianças e adolescentes, principalmente quando o atendimento tem início o mais cedo possível, observando-se determinadas condições tais como a permanência do paciente em seu meio familiar, a participação das famílias no tratamento ao invés de tratar a criança ou adolescente isoladamente, o tratamento com 117 estratégias e objetivos múltiplos envolvendo ações não apenas da clínica, mas também intersetoriais etc. Na Reforma Psiquiátrica Brasileira a psicanálise teve uma presença muito mais forte nos CAPSis pois foi por esta porta que ela entrou mais fortemente. Nesse tópico reuniremos o pensamento de vários autores, psicanalistas e pesquisadores brasileiros que atuam em instituição pública de Saúde Mental e que já demonstraram a viabilidade de uma clínica institucional psicanalítica da psicose através do dispositivo estabelecido por Elia (2009) e denominado psicanálise com muitos. A fundamentação teórico-clínica da psicanálise com muitos foi de fundamental importância para nossa pesquisa. O CAPSi Pequeno Hans, CAPSi que foi o primeiro do Brasil, e portanto também o primeiro da rede municipal do Rio de Janeiro, é uma unidade de CAPSi concebida há 13 anos – abriu suas portas em setembro de 1998 – para ser um serviço cuja clínica fosse inteira e estritamente dirigida pela Psicanálise. Este CAPSi foi o campo privilegiado onde se pesquisou e se comprovou a validade do dispositivo da psicanálise com muitos na clínica com crianças autistas e psicóticas, assim como posteriormente o CAPSi Eliza Santa – Roza criado em 2001 também na cidade do Rio de Janeiro. Outros serviços do campo da Saúde Mental da infância e adolescência existiram antes do Pequeno Hans, mas não se constituíram como CAPSi, por não seguirem a concepção territorial da Reforma e não se integrarem às diretrizes das políticas públicas para a infância e adolescência, até mesmo porque existiam antes de que tais políticas tivessem sido implantadas pelo Ministério da Saúde (SANTOS; ELIA, 2005). A equipe do Pequeno Hans tomou por base dois princípios para dar direção ao seu posicionamento que se resumem em realizar o mais rigorosamente possível as diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas de Saúde Mental no que diz respeito a um centro de atenção psicossocial infantojuvenil, bem como realizar o mais rigorosamente possível as diretrizes teórico-clínicas e ético-metodológicas da Psicanálise quanto ao que seja o exercício de sua práxis, tomando como campo deste exercício uma unidade de saúde mental infanto-juvenil sob a forma institucional de um CAPSI (SANTOS; ELIA, 2005, p. 111). Afirmamos com Santos (2001) a originalidade do CAPSi Pequeno Hans na sustentação do dispositivo analítico, enquanto experiência clínica estruturada pelo saber psicanalítico tanto no âmbito da assistência pública quanto no campo da psicanálise, sendo uma proposta única de sustentação do dispositivo analítico, enquanto um dispositivo capaz de propiciar a emergência do sujeito. A proposta é única no sentido de propor uma só 118 clínica, a clínica psicanalítica, como sendo aquela que necessita do ato do analista para se agenciar, e, no sentido de não haver, no momento de seu surgimento, nenhuma similar no que se refere ao estabelecimento de um funcionamento que fosse integralmente determinado pelo dispositivo analítico, sem ressalvas ou relativizações, e sem estabelecer uma divisão entre o momento de atendimento realizado por um técnico em um consultório instalado no interior do serviço e o das atividades e /ou oficinas terapêuticas que constituíam as atividades da vida diária, tal como acontece em muitos CAPS do Brasil. Pelo contrário, no Pequeno Hans o dispositivo analítico se encontra disposto em toda a extensão da unidade clínica, é o dispositivo analítico ampliado (SANTOS, 2001; ELIA, 2006; PINTO, 2007). Dizemos que o dispositivo analítico se estende a toda a unidade, pois ele não é o consultório particular, não é coextensivo a um consultório particular. Freud recebeu seus pacientes assim e a partir dessa forma pôde constituir uma estrutura da prática que nomeou psicanálise, mas o dispositivo analítico é esta estrutura inventada por Freud e não se reduz a nem se confunde com nenhuma configuração espacial. Sendo assim, esta estrutura pode operar também em outros espaços que não o consultório e nos espaços públicos das instituições. O que os psicanalistas e pesquisadores que atuam com a psicanálise com muitos verificam é que na clínica com muitos sujeitos, em um mesmo espaço, favorece-se a emergência do sujeito. Em um dispositivo com muitos, desde que o psicanalista se mantenha em seu lugar, o sujeito tem a chance de comparecer no laço com este analista na posição de analisante. Embora permaneçam entre muitos pacientes e entre muitos técnicos do CAPSi, ocorre com freqüência que dois se destaquem em posições respectivas de analista e analisante, sem necessariamente estar em um consultório,em uma sala fechada com quatro paredes, com apenas o analista em uma poltrona. Por vezes os técnicos poderão optar pela configuração espacial definida por uma sala de consultório, porém ela não será adotada por se achar que é a configuração espacial que determinará o que é setting analítico ou que determinará se uma prática é psicanálise. É modificado o dispositivo apenas em sua configuração espaço temporal, mas não em sua estrutura (ELIA, 2002). Como assinalamos, uma das diferenças entre a prática entre vários e a psicanálise entre muitos é que a primeira não considera que sua prática seja a psicanálise stricto sensu afirmando apenas que aquilo que fazem é atravessado pela psicanálise. Já a psicanálise entre muitos vai afirmar e fundamentar que o que fazem está dentro de todo rigor da doutrina psicanalítica. Mas há outros fundamentos para esta distinção. Em termos teórico- 119 discursivos lacanianos, a prática entre vários é uma modalidade da psicanálise aplicada (no caso, aplicada à clínica institucional), tal como Lacan a concebeu em seu Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris (LACAN, 2003a). Já para a psicanálise com muitos, se ela é, tal como a prática entre vários, igualmente situada no campo da psicanálise aplicada, na medida em que não se situa do lado da psicanálise pura (concebida por Lacan em dualidade com a psicanálise aplicada no mesmo escrito citado), por outro lado ela é concebida como uma prática clínica que se insere no campo da psicanálise em intensão (e não em extensão), uma forma de tratamento psicanalítico em sentido estrito mas que se exerce em dispositivo diverso do dispositivo freudiano clássico, estruturado em afinidade com o modo de funcionamento da neurose. A prática entre vários admite que em uma instituição pública uma prática psicanalítica possa ser exercida, mas a psicanálise propriamente dita, ou seja, a experiência que Lacan denominou de psicanálise em intensão só pode ocorrer entre psicanalista e psicanalisante. Os teóricos da prática entre vários acreditam que a condição “psicanalista e psicanalisante” não possa se estabelecer no ambiente institucional. No entanto, Elia (2009) verificou que a relação analista-analisante se estabelece efetivamente em uma clínica institucional cujo funcionamento é o dispositivo psicanalítico entre muitos. Constatou-sese que havia: A) demanda de uma intervenção estritamente analítica. Através dos casos clínicos foi verificado dados tais como endereçamento transferencial, condições de vínculo com o serviço, etc. B) Condições e disponibilidade do técnico em questão para dar uma resposta adequada a esta demanda. C) Relação identificável como analista-analisante destacada do fundo coletivo do entre muitos. Além disso, foi corroborado que o dispositivo psicanalítico ampliado entre muitos pode ser considerado stricto sensu psicanalítico. Os autores e pesquisadores brasileiros da psicanálise com muitos defendem que a efetivação da possibilidade de polarização entre analista e analisante terá como base o fato de que o “entre muitos” não é sinônimo de grupo que faz coesão ou unidade. O espaço coletivo manterá a fragmentação necessária possibilitando que, um por um, cada técnico e cada paciente possa ocupar posições subjetivas de maneira singular. Para que isso seja possível, é condição fundamental e determinante que haja quem possa ocupar a posição de psicanalista em tal dispositivo através de seu desejo (AMARAL; ELIA, 2008). Na clínica com crianças psicóticas e mais particularmente com autistas, o espaço intervalar que se traça entre um e outro técnico faz muitas vezes efeito de abertura do sujeito autista ao estabelecimento de um laço transferencial do que simplesmente a existência dos muitos técnicos em um mesmo espaço. É pela inclusão intervalar entre dois 120 ou mais técnicos nos movimentos, atos, relatos (quando há), na trama do sujeito, é no vão, na hiância, que o sujeito encontra a possibilidade de se localizar e de se incluir no trabalho para posteriormente incluir algum técnico. Este achado clínico tem sua fundamentação teórica relacionada com o estatuto do Outro para o autista, que é constituído pela criança autista como invasivo e avassalador. Assim sendo, o atendimento feito no caso de uma criança autista pode ser muito opressivo e menos adequado em uma situação dual do que o atendimento coletivo. O fato de no coletivo haver muitos técnicos, ao invés de potencializar o Outro que estaria multiplicado por muitos, na verdade o divide. Para o autista os técnicos representam divisão, fragmentação, parcialização do Outro, desde que esses técnicos não façam time, grupo ou legião de técnicos (ELIA, 2009). A psicanálise aplicada e em intensão que é realizada no CAPSi Pequeno Hans orienta a direção clínica não sendo apenas uma prática que tem orientação psicanalítica, mas como já dissemos, é a psicanálise stricto sensu. Isso quer dizer que o discurso da psicanálise é a proa do trabalho (PEREIRA, 2009). Durante todo o ano de 2009 nosso campo de pesquisa foi privilegiadamente o Pequeno Hans onde pudemos fazer a verificação dos efeitos da psicanálise com muitos e a partir dessa experiência prosseguimos a pesquisa em 2010 exclusivamente em CAPS com adultos visando a construção de uma clínica nesse dispositivo. 3.3. A construção de uma clínica para o CAPS com adultos Os analistas, comprometidos que são com sua práxis, estão constantemente levantando questões sobre como a psicanálise entra em um dispositivo institucional. Em que lugar ela se insere e qual a relação que, a partir daí, assume com as outras disciplinas com que de alguma forma terá que realizar seu trabalho? Qual trabalho é possível neste sentido para uma proposta que tome a psicanálise como direção? Como isso se realiza? Quais as dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas que avançam na direção do que Lacan designou como “psicanálise em extensão”, ao exercerem sua prática nas instituições, sustentando o desejo do analista? Como se dão os encontros e desencontros entre o discurso psicanalítico, o discurso médico e o discurso da Reforma psiquiátrica? Como podemos pensar a direção do tratamento psicanalítico neste espaço coletivo? (ELIA 2006 b; RINALDI, 2003). 121 Apesar das ricas experiências apresentadas no tópico anterior sobre a psicanálise nas instituições, são vários os equívocos e as objeções levantadas por alguns, desconhecedores que são da psicanálise, no que diz respeito à prática da psicanálise nas instituições. Primeiramente destacamos o discurso corrente de que é preciso acrescentar “ingredientes” de outras linhas teóricas a prática dita analítica, sem os quais não será possível algum resultado satisfatório no tratamento. Assim, alguns profissionais nomeiam sua prática de “terapia de base analítica” e justificavam uma prática “híbrida”, acreditando alcançar bons resultados com uma pitada de comportamentalismo, outra de humanismo, acreditando ser possível atuar ao mesmo tempo com linhas teóricas tão diferentes como psicanálise e humanismo, psicanálise e psicologia do comportamento, sujeito do inconsciente e indivíduo etc. Não estamos falando aqui dos vários saberes que encontramos no campo da Reforma Psiquiátrica, mas do profissional que em sua prática, tal como a figura mitológica do minotauro, metade homem e metade touro, permanece preso em um labirinto sem saída, em uma prática que nada tem a ver com a psicanálise. Sejamos rigorosos como foi o criador da psicanálise e como aquele que fez o retorno a Freud. Lacan em seu texto Variantes do tratamento padrão alerta que variantes não quer dizer adaptação do tratamento nem variedade dos casos e sim uma preocupação inquieta com a pureza nos meios e fins. Trata-se de um rigor de alguma forma ético, fora do qual qualquer tratamento, mesmo recheado de conhecimentos psicanalíticos, não pode ser senão psicoterapia (LACAN, 1998b, p. 326). O tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial deve ter como direção tomar a escuta do sujeito. Isso marca a diferença fundamental entre psicanálise e outras práticas, norteadas por outros saberes, uma vez que nem mesmo a dimensão burocrática pode colocar de lado a dimensão da clínica. As contribuições que a psicanálise pode dar aos desafios enfrentados pela Reforma Psiquiátrica passam, assim, pela ética da posição subjetiva e requer que façamos uma clínica da singularidade, barrando qualquer resposta que pretenda tratar os casos como gerais. Outro equívoco em relação à clínica psicanalítica é o citado por Barreto (2004) em que freqüentemente a psicanálise é vista como tendo uma função apenas nos extratos sócio econômicos mais abastados. Para os acostumados com a visão dos consultórios psicanalíticos de luxo com sessões caras é importante desmistificarem tal ponto de vista, 122 pois o próprio Freud recebeu pacientes que não tinham como pagar-lhe em dinheiro, auxiliando inclusive alguns para que pudessem permanecer em Viena para o tratamento, como por exemplo aconteceu com um de seus casos famosos, o paciente que ficou conhecido como Homem dos lobos (ALBERTI, 2010). Vemos que Freud (1987m, p. 210) também previu a inserção da psicanálise no setor público, como vem acontecendo há algum tempo nos Centros de Atenção Psicossocial e outros dispositivos da Reforma anteriores a esse dispositivo. Já no século retrasado ele diz que é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente quanto o tem agora à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixados aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto ocorrer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para os quais serão designados médicos analiticamente preparados. (...) tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe esses deveres. (...) Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos a isso. Um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes. O não elitismo da psicanálise também é defendido por Quinet (2007) afirmando não haver nenhuma contra indicação dessa clínica no campo público. Porém, não se trata de propor duas psicanálises como divulgaram na mídia alguns analistas tempos atrás, uma gratuita para pobres por quatro meses que podem se prolongar por mais quatro e outra para os ricos que continuaria a levar sua duração pelo tempo da subjetividade. Uma proposta como esta não se fundamenta nos princípios éticos, teóricos e clínicos da psicanálise. O sujeito do inconsciente, tomado pela psicanálise, é um sujeito sem qualidades ou valorações essenciais e não admite atribuições sociais tais como negro/branco, pobre/rico, culto/inculto, entre outras. Por último citamos a idéia equivocada de que, quando aplicamos a psicanálise à clínica institucional, não o fazemos em situações de crise (Barreto, 2004), mas apenas como recurso sistemático e habitual de uma clínica fora-da-crise, de longo prazo, e depois de estabelecidas condições mínimas para a escuta e a intervenção do psicanalista, ou seja, a relativa “calmaria crônica” (ELIA, 2005 a, p.3) que sucede uma crise aguda, efeito, geralmente, da medicação tranqüilizante ou dopante. Aquilo com o que os técnicos dos CAPS se deparam no cotidiano do CAPS é com “a miséria do mundo” (LACAN, 2003c, p. 516) em termos das condições sociais, situações econômicas e afetivas daqueles que procuram os serviços públicos, bem como com 123 situações clínicas extremamente severas, seja de psicose ou de neurose grave, ou mesmo outros estados que implicam em risco eminente de passagens ao ato (RINALDI, 2003). Diante de tais situações, e mesmo na ausência do psiquiatra que atendendo as expectativas, prescreveria uma medicação ou outro método de contensão, o psicanalista, mesmo não possuindo um saber prévio sobre o paciente em crise, é chamado a dar uma resposta que esteja sustentada por um eixo ético, teórico e clínico. No que diz respeito ao tratamento à crise, é bem comum que excetuando-se os médicos e os técnicos de enfermagem, o restante da equipe do CAPS se exima de ter qualquer ação, acreditando que diante do paciente agitado, verborréico, com alucinações visuais e auditivas e muitas vezes em péssimas condições de higiene não há nada que se possa fazer. Não poucas vezes presenciamos o atendimento de pacientes em crise que foram encaminhados diretamente para o psiquiatra, como se o responsável pelo acolhimento não tivesse nada a fazer nesses casos. O psiquiatra por sua vez não escutava o paciente, a não ser para constatar que ele delirava, alucinava ou apresentava outro sintoma fenomenológico qualquer. Na seqüência prescrevia uma medicação para a crise e que por dezenas de vezes foi realizada através da coação pela presença de um ou mais elementos da guarda municipal que foi acionada com essa intenção. Como ilustração, citamos o caso de Sônia, psicótica, usuária antiga do CAPS, considerada de difícil manejo por toda equipe que foi trazida em crise pela guarda municipal para ser atendida pelo CAPS. Como não havia médico presente, a equipe, a começar da recepção e do técnico responsável pelo o acolhimento naquele dia, não se dispôs a recebê-la, como se não houvesse nenhuma abordagem a ser discutida e/ou colocada em ação na ausência do médico, contrariando um princípio básico do CAPS que é o acolhimento universal. A paciente foi encaminhada à Unidade de Pronto Atendimento e só voltou ao CAPS no dia seguinte, quando o médico estava presente. Em contrapartida contrariando a hegemonia médica, houve outra ocasião em que Julia chegou em surto maníaco, apresentando grande agitação, recusa ao tratamento, apresentando risco de morte, tanto dela como de terceiros, já que se atirava na frente dos carros com um bebê que havia pego do colo de uma transeunte, em um dia que também não havia psiquiatra no CAPS. O técnico responsável pelo acolhimento éramos nós e sustentados pela clínica da psicanálise e com o apoio da equipe, conseguimos manejar o caso a ponto da paciente conseguir ser medicada, não à força, mas com sua concordância. Já nesse primeiro atendimento conseguimos estabelecer uma relação transferencial que se 124 prolongou durante todos os anos que a paciente permaneceu no CAPS. O atendimento durou horas e era conduzido ora na recepção, ora na rua, ora na sala, de acordo com o movimento da paciente que ao final, numa referência à sua psiquiatra de cabelo loiro, disse: “a Dra. Carmem é meu anjo loiro. Você é meu anjo moreno”. A partir dessa frase a paciente que antes não queria ficar no CAPS pôde aceitar vir na permanência diária. Com isso evitou-se encaminhá-la para internação psiquiátrica, pedido veemente da família, claro que não sem um longo trabalho de escuta de seus membros. Lacan (1998d) nos Escritos, no texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder, através de uma metáfora vai apontar três níveis da prática psicanalítica que são a tática, a estratégia e a política. Ele vai dizer que o analisante não é o único a contribuir com sua quota. Na empreitada analítica o analista também terá que pagar, e Lacan vai estruturar em três níveis esse pagamento, referindo cada um a um dos três níveis da operação militar, estabelecendo através desses três níveis a liberdade de ação do psicanalista. Parece-nos que por vezes, diante da psicose, o analista vislumbra uma quota ainda mais alta, já que terá outro manejo no que diz respeito à interpretação, transferência e ao ser do analista. Lacan conclama que diante da psicose o analista não recue, porém, é claro que podemos estar diante desta clínica e, dependendo do manejo ou da falta dele, recuar, pois não recuar, não será simplesmente estar diante do paciente, recebê-lo em uma sala ou em uma oficina, mas poder manejar a clínica da psicose com todos os percalços que ela apresenta. Dentro do que temos pensado sobre uma clínica antimanicomial apontamos com Lobosque (1997) os princípios da singularidade, limite e articulação. O princípio da singularidade não deve ser confundido com o privado ou com o individual. Trata-se de uma singularidade que não se deixa amarrar por perspectivas de unidade ou totalização, mas da produção de um coletivo constituído pela articulação de diversas singularidades entre si. Trata-se de interpelar tal singularidade convidando o sujeito a sustentá-la com o estilo que é seu. José vasculhava os lixos da cidade e sempre chegava ao CAPS mal cheiroso, sujo. Além disso, irritava as auxiliares porque sempre guardava os objetos que pegava no lixo dentro de seu armário do CAPS. Por mais que fosse instruído o comportamento de José não apresentava mudanças, pois o valor socialmente aceito de andar limpo, não mexer nos lixos por fazer mal a saúde e etc. não era uma realidade compartilhada por José. Certa ocasião um membro da equipe pergunta a José o que ele tanto procurava no lixo. José 125 responde que estava atrás de uma aliança e conta a história de uma antiga noiva que ele teve. A partir desse relato feito por José pode-se ser trabalhado algo da singularidade desse sujeito. Com o tempo José começa a fazer várias alianças de papel, com canudos plásticos e até de material de latinhas de refrigerante nas oficinas que participava no CAPS. Parou de vasculhar o lixo atrás da aliança e pôde construir outras alianças não só nas oficinas, mas no tratamento no CAPS e nas relações com as pessoas do seu convívio. Não foi através do ensino de boas maneiras, mas através de uma escuta que isto se tornou possível. Afirmar que “cada caso é um caso” é ficar no óbvio. A clínica antimanicomial deve ser uma clínica que convide o sujeito a sustentar sua diferença, sem excluir-se do social contrariamente às clínicas que visam adaptar o sujeito ao meio social, diluindo o particular no geral. O tratamento tem como direção levar o sujeito a seguir o caminho que lhe é próprio, ao mesmo tempo em que o comporta nos limites da cultura. Seguindo a recomendação de Freud em seu texto (1987e) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, o trabalhador de Saúde Mental deve saber que tratamento e investigação devem ser coincidentes. Dessa maneira a clínica será tomada como o lugar de produção do saber e não de sua aplicação. Há outra recomendação freudiana que relembramos aqui que será “tomar cada caso como se fosse o primeiro”, já que o saber do inconsciente não será apreensível por uma mera aplicação do saber acumulado pelo profissional. O saber do inconsciente se recolocará a cada vez de maneira inédita devendo ser lido segundo uma estrutura que, por sua vez, não coincidirá com o saber universal e genérico da ciência clássica. Esse saber incluirá necessariamente o real inapreensível pelo universal. O movimento antimanicomial e sua clínica devem levar em conta o problema do limite. A cultura tradicionalmente impõe limites ao que a loucura traz de excessivo ou desordenado. Não é desse limite que estamos falando. Falamos do limite como construção por parte do clínico a partir de um problema lógico e não de um imperativo moral. Assim podemos dizer que uma intervenção será antimanicomial quando o recurso às diversas formas e aos graus de contenção – a medicação, a internação eventual, a freqüentação de um serviço de saúde mental- não se fizer pelo viés da autoridade, mas como exercício de “fazer caber”; quando buscar-se o traçado de um contorno, e não o processamento de uma exclusão (LOBOSQUE, 1997, p. 23). Tomamos como exemplo o caso da paciente Lia que nos chegou em um dos dias que estávamos responsáveis pelo acolhimento de pacientes. Uma das vizinhas da paciente procurou o CAPS bastante preocupada com o que vinha acontecendo há alguns dias. Disse- 126 nos que ela e outros vizinhos não sabiam mais o que fazer. A paciente estava falando alto durante todo tempo, incluindo em várias horas da noite. Chegou a agredir algumas pessoas, um homem em um supermercado e uma criança de 08 anos, ambos através de empurrões. A paciente estava sem tratamento fazia algum tempo. Fomos informados por alguns membros da equipe do CAPS que a paciente era resistente a tomar medicação. Morava com o filho que também tinha problemas mentais. É de outra nacionalidade. Veio para o Brasil com o ex-marido de quem se separou faz alguns anos. Não possuia nenhum outro parente ou amigo na cidade. As outras vezes que tinha vindo ao CAPS foi trazida pela Polícia Militar ou Guarda Municipal e acabou sendo “forçada” a tomar a medicação devido a presença de membros dessas instituições. Tais episódios provocaram mais resistência a que ela viesse aderir a um tratamento no CAPS. Enquanto alguns membros da equipe se encaminham para a residência da paciente na intenção de trazê-la ao CAPS sem a ajuda da Guarda Municipal discutimos com o psiquiatra da equipe como poderíamos intervir. Ele nos confirma que já atendeu a paciente por várias vezes, sempre trazida pela Polícia e que ela muito provavelmente resistiria a se consultar com ele. Conta-nos que em certa ocasião a paciente esteve em vias de agredir um membro de sua família que estava com ele em uma das ruas da cidade. Decidimos que diante do relatado o psiquiatra não atenderia a paciente, mas apenas nós e a partir do nosso atendimento o restante da equipe daria o suporte indireto. Não tínhamos uma resposta pronta sobre o que fazer com aquele caso que mobilizava toda uma vizinhança, que apresentava riscos para as pessoas e para a paciente mas dispomos a ouví-la no momento em que ela chegou ao CAPS e aceitou a nos acompanhar até o nosso consultório. Contou-nos que era de fora e que não entendia muito bem as regras do Brasil. Quer saber se pode reclamar das coisas que estão acontecendo com ela. Disse-nos que queria fazer denúncias e que nós levássemos para a televisão. Depois de algum tempo percebemos que ela nos identifica como Fátima Bernardes, a âncora do Jornal Nacional da Rede Globo e por esta razão quer nos contar as coisas estranhas que lhe acontecem. Não sabe se é a água, se é o ar, mas nesse país é tudo muito estranho. Lia depois de certo tempo se sente ameaçada e intrigada. Quer saber o que queremos com ela. Pergunta se temos marido, se gostamos de mulher, se queremos alguma coisa com ela. Ela nos diz: “Cubra esses peitos. Você tem peito e eu não. Não quero ver esses peitos. O que você quer comigo?”. Aos poucos se tranqüiliza. Ainda não entende o nosso desejo de analista, mas aceita continuar conversando conosco e falar daquilo que lhe perturba. Admite que anda “nervosa”. Fala que está com fome. Aceita tomar café e pão 127 conosco. Depois de quase uma hora de escuta pela primeira vez aceita espontaneamente tomar alguma medicação desde que seja pela nossa mão. Nosso colega psiquiatra prescreve a medicação, nós entregamos a Lia que toma e em seguida concorda em voltar para conversar conosco no outro dia. No caso relatado, se fosse seguido o que chamaríamos de habitual, ou seja, o paciente chegar em crise, ser atendido pelo plantonista que avalia a necessidade também de avaliação psiquiátrica, ser avaliado psiquiatra que prescreve a medicação, ser encaminhado para a farmácia e etc. não teríamos tido uma conduta antimanicomial, não teríamos promovido uma inclusão, mas de alguma forma repetido o modelo manicomial. Por se tratar de um caso recente, não sabemos quando Lia aceitará a consulta com o psiquiatra e as demais intervenções do restante da equipe, mas sabemos que nesse primeiro momento a resposta que construímos para esse caso específico, através da direção dada pela paciente, foi o que possibilitou algum trabalho possível. Ao questionar a exclusão, a clínica antimanicomial faz mais do que simplesmente incluir o louco. Tal condução leva a cultura a conviver com uma certa falta de cabimento levando ela também a refazer seus limites. Não é possível a desconstrução dos manicômios sem que a sociedade se reestruture, sem que os CAPS diante de cada caso, a cada vez posso dar uma resposta singular. Apontamos como terceiro princípio, a articulação. Podemos dizer que cabe a clínica antimanicomial o estabelecimento de parcerias com outros setores, articulando-se com setores que tomem posição política em prol da cidadania, como preconizou a IV Conferência Municipal de Saúde, oficialmente intersetorial. Além disso, a clínica precisa levar em consideração as configurações da ordem pública em que se inscreve, modificando-as quando necessário, já que ocupar-se das questões públicas pode garantir a possibilidade do trabalho com o paciente. Exemplificamos com uma situação vivida pelo CAPS recentemente. A empresa de ônibus que fazia o transporte dentro do município implantou a sistema de cartão eletrônico para todos os passageiros. Com isto, os pacientes que tinham isenção de pagamento de passagem tiveram que passar por uma perícia médica contratada pela empresa para avaliação se continuariam a ser beneficiados com a isenção ou não. Muitos deles, apesar do laudo psiquiátrico, por encontrarem-se estabilizados não conseguiram o benefício por não poder ser encontrado nenhum problema visível como acontecia com os portadores de problemas físicos. Isso foi de grande transtorno para os pacientes, pois no período de transição a freqüência dos pacientes no CAPS ficou ameaçada. Foi necessário a intervenção da equipe junto a Secretaria de Assistência Social para poder garantir que o 128 tratamento não fosse interrompido e envio de proposta à prefeitura para que a decisão da isenção de pagamento do transporte público ficasse na mão da prefeitura municipal, através de criação de lei municipal, e não da empresa de transporte urbano licitadora. Passaremos a analisar outros aspectos importantes do cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial e proporemos quatro pilares para a construção de uma clínica efetiva para este dispositivo: o diagnóstico estrutural, uma ética para o sujeito, a psicanálise coletiva e a dimensão clínica de rede. 3.3.1 O diagnóstico estrutural Por ocasião da tragédia acontecida no bairro de Realengo, Rio de Janeiro, em abril de 2011, exaustivamente noticiado pela mídia, onde um jovem de nome Wellington, entrou em uma escola e disparou tiros em crianças, matando várias delas e ferindo inúmeras e se matando em seguida, vimos vários “especialistas” emitirem opiniões através da imprensa sobre o diagnóstico do protagonista, alguns deles afirmando que ele apresentava "transtorno de personalidade" e outros, “psicose”. Em princípio, ambas as posições apresentadas tinham em comum o que podemos classificar por um "furor diagnosticandi”, ou seja, a exigência de dizer o que o Wellington era ou o que ele tinha, como se isso produzisse algum saber de real valor na compreensão dos fatos; e um saber a priori, isto é, que se constitui antes e fora do que o sujeito em questão possa dizer ou do que se possa recolher dele com mais atenção, sem precipitação em conhecer, coisa que só poderia ter sido feita se o autor dos crimes estivesse vivo (ELIA, 2011a). Já em outros pontos, os dois diagnósticos, “transtorno de personalidade” e “psicose” são muito diversos. Trata-se não apenas de pontos de vista diferentes, mas cada um deles está contextualizado por um caldo ideológico, histórico, político-social e ético que precisa ser considerado para que não caiamos em uma ilusão de purismo ideativo, meramente conceitual (até porque um desses pontos de vista, o do DSM-IV, é deliberadamente anticonceitual), de neutralidade científica.” (ELIA, 2011a). O que nos horroriza e angustia, como o episódio de Realengo e várias situações que nos chegam nos atendimentos de urgências do CAPS, como passagens ao ato, automutilações, tentativas de suicídio, homicídios e etc., na maioria das vezes não tem nem saber nem palavras, pelo menos não imediatamente, e ao invés de obturarmos com um 129 falso saber precisamos aprender a suportar um pouco mais o horror e a necessidade de respostas prontas. Só assim existirá a possibilidade de poder entender o que puder ser entendido, o que nunca abrangerá compreender tudo. Lacan assinala: comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da idéia do mal-entendido fundamental. [...] É sempre no momento em que eles compreenderam, em que se precipitaram para satisfazer o caso com uma compreensão, que eles falharam na interpretação que convinha ou não fazer (LACAN, 1985, p. 30-31). Muitas vezes nós que trabalhamos em um CAPS não sabemos o que fazer diante de um acontecimento, de um surto psicótico, de uma passagem ao ato. Às vezes a única coisa que nos resta é escutar e suportar o horror até que o paciente, e não nós, possa construir um saber. As situações vividas em um CAPS devem fazer com que os profissionais se aproximem de um caso com outros instrumentos que não os habituais marcados pelo relógio, pela agenda de marcação de consultas ou pelo calendário. O tempo de nossa prática bate em função do acontecimento. Não bate com o tempo do relógio de ponto, nem com a grade dos itens da burocracia, nem com o que está pré-estabelecido em um Plano Terapêutico do paciente ou se amolda às tentativas de construção de protocolos que se ajustem a todos os casos. Quando propomos o fim dos manicômios não se trata apenas do fim dos prédios e dos muros, mas do fim de um olhar que não suporta a diferença. O modelo manicomial não se resume apenas ao hospital psiquiátrico, mas inclui também um certo modo de olhar, um certo modo de saber sobre o louco com o qual precisamos romper de forma radical. Não podemos compactuar com o pensamento de que um episódio tão monstruoso como este de Realengo, se enquadre em uma categoria clínica que se possa identificar assim tão rápido, sem elementos clínicos, como fizeram a mídia e os vários “especialistas” que se posicionaram com um certo modo de olhar e com um certo modo de saber sobre Wellington e ainda,com um certo modo de olhar e saber sobre os efeitos e conseqüências que teriam as vítimas da tragédia, um saber que não teve tempo para ser construído, posto não ter havido tempo para compreender e muito menos concluir. Tal posicionamento é uma posição que classificamos como manicomial. Quando os especialistas afirmaram que o Wellington tinha transtorno de personalidade implicou algumas conseqüências. Na opinião de Elia (2011) primeiramente afastou a possibilidade de ser aplicada a um ato irracional como aquele qualquer lógica racional e o inseriu em uma classificação deliberadamente a-teórica, não etiológica, que é a do DSM-IV que é assumidamente descritivo, impedindo sua inteligibilidade possível. De 130 igual maneira admitiu uma seriação, ou seja, outros transtornados poderiam via a cometer os mesmos atos, o que não é impossível de acontecer, mas nem por isso é provável. O que essa afirmação acarretou foi a retirada da singularidade, da especificidade do ato de Wellington, que, uma vez devidamente lida, constituiria o único recurso confiável, do ponto de vista de uma cientificidade real pouco praticada nos dias de hoje, de intervir em casos que venham a apresentar aspectos homólogos aos que exibia Wellington. Pensar em psicose, em contrapartida na opinião do autor anteriormente citado, com o cuidado de não afirmá-la nem diagnosticar o assassino como fizeram os ditos especialistas, não só respeita alguns elementos delirantes, que ele reiteradamente faz em escritos e depoimentos auto-gravados, como abre um campo no qual a inteligibilidade teórico-clínica da boa e velha psiquiatria que era voltada para o saber extraído da clínica e da psicanálise aplicada ao campo das psicoses seria preservada e, o que é mais importante, garantiria que o caso pudesse ser, no tempo devido, situado em sua singularidade não serial, estancando a paranóia social que foi produzida com todo apoio da mídia. Recorremos ao episódio de Realengo para estabelecer um paralelo ao que muitas vezes tem acontecido com os pacientes da Reforma. É necessário discutir as concepções de doença mental que atravessam o campo da assistência em Saúde Mental, pois as estratégias de tratamento e cuidado clínico, institucional e social dependem estritamente das concepções que as sustentam. Nas equipes de Saúde Mental existe uma lógica marcada pelo reducionismo biologizante da abordagem dos transtornos mentais associada à prescrição indiscriminada de psicofármacos constituindo uma estratégia terapêutica única e universal (LOBOSQUE, 1999). A tendência é reduzir o tratamento à remissão desses sintomas e excluir a loucura como um arranjo que diz respeito à existência de um sujeito e às questões que estão postas para todo sujeito humano (TENÓRIO, 2008). Se os neurolépticos são indispensáveis para o tratamento dos sintomas psicóticos, eles são impotentes para obter qualquer modificação estrutural; se, como todas as drogas, atuam no organismo, funcionam tanto melhor quando sua prescrição leva em conta a questão do sujeito (LOBOSQUE, 1999). É pertinente citar o que nos disse Luiz em determinada ocasião, levando-se em conta toda exposição anterior sobre o delírio já realizado no capítulo anterior. Ele nos diz: “Eu tinha muita historia pra lhe contar, mas a injeção que me deram fez tudo acabar.” Rinaldi (2003) avança a discussão dizendo que não podemos deixar de levar em conta a importância que o discurso médico ainda ocupa na configuração dos Centros de Atenção Psicossocial e no imaginário de todos os envolvidos nas atividades do CAPS. 131 Aponta para a forma como pacientes, familiares e membros da equipe se relacionam com esse discurso no cotidiano do CAPS, seja através da forte demanda de tratamento medicamentoso por parte dos usuários e seus familiares, seja através das intervenções terapêuticas de controle de psicotrópicos levadas a efeito por parte da equipe, ou ainda das dificuldades encontradas no trabalho clínico quando da eventual ausência de psiquiatras nos serviços. Um bom exemplo disso é o pedido que nos chegou certa vez para acolher uma paciente que havia acabado de chegar ao CAPS. “Quero que você atenda a Cristina que está chegando aqui pela primeira vez em crise e eu estou preocupada porque ela é sobrinha do José, que é psicótico.” A suposição de quem estava nos encaminhando o caso era de que a paciente provavelmente fosse uma psicótica, já que tinha em sua família uma pessoa com esse diagnóstico, ou seja, uma suposição genética na etiologia da psicose, que exclui as condições de determinação estrutural da subjetividade. Não rechaçamos a demanda, mas acolhemos sem ficar na posição de confronto de saberes e suposições apenas perguntando ao técnico o porquê dessa hipótese. O técnico sorriu e nos respondeu: “É mesmo, não tem nada a ver uma coisa com a outra.” Tal pensamento é extremamente presente na rede intersetorial como ficou evidente em determinada ocasião em que equipes de PSFs se recusaram a comparecer à reunião de apoio matricial do CAPS onde realizamos nossa pesquisa, pelo motivo do psiquiatra se encontrar de férias. Ou seja, se não há possibilidade de discutir a conduta medicamentosa, não havia o que se discutir. A psicose não é um caos ou uma desordem, mas o que Lacan chama “de uma ordem do sujeito”. Esta ordem certamente é subvertida em relação à ordem do neurótico, porém assim mesmo uma ordem. Na direção desta tese lacaniana, é importante não ficar na postura de bom samaritano em relação ao psicótico, sendo condescendente ou adepto da posição de “segregação política da anomalia” (SOLER, 2007), além de impedir que consideremos a psicose como um fenômeno orgânico. Sabemos que nos manuais de diagnóstico, como o Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Norte–Americana de Psiquiatria (DSM), em sua versão IV e a Classificação Internacional das Doenças (CID) em sua versão X, não se encontram mais os tipos clínicos clássicos da neurose, como histeria, neurose obsessiva e fobia e dos tipos clínicos da psicose encontramos apenas a esquizofrenia, e não mais a paranóia e a melancolia. As doenças da psiquiatria clássica foram substituídas por transtornos, subtraindo-se assim a possibilidade de uma clínica onde cada caso seja efetivamente um 132 caso e onde os fenômenos sejam considerados sintomas, ou seja, formações de compromisso entre diversas instâncias do aparelho psíquico (QUINET, 2008). Olivier-Martin (1989 apud, Quinet, 2008), defende que é discutível a decisão de ateorismo dos autores do DSM assim como uma classificação fundada na prática terapêutica. Faz-se necessário avaliar, diagnosticar, pensar no tratamento baseando-se nos sintomas do paciente e suas relações com as estruturas clínicas. O que observamos hoje é uma clara inversão do processo, onde os medicamentos determinam os diagnósticos. A nova psiquiatria parece não estar voltada para o saber que se extrai da clínica, como sustenta Nancy Andreasen, uma das grandes defensoras e apologistas do DSM-IV anteriormente e hoje uma de suas maiores críticas, afirmando que este Manual destruiu a fenomenologia na América (ANDREASEN, 2006, apud Elia, 2011). Nos CAPS há dificuldade por parte das equipes em diferenciar a neurose da psicose, no sentido de não valorizar a construção de um diagnóstico para com base nele, definir a conduta do caso. Os membros da equipe sabem descrever os fenômenos apresentados pelo paciente, mas se surpreendem se questionados qual o diagnóstico do caso. Muitos técnicos dos CAPS acabam por tratar os pacientes neuróticos e psicóticos da mesma maneira, não levando em conta a diferença entre as duas clínicas, exceto na identificação dos fenômenos da psicose que supõem não existir na neurose. Ora os técnicos tentam “corrigir” o juízo de realidade do psicótico, ora embarcam num “delírio coletivo” com intervenções que não visam nenhum objetivo clínico. A categoria “bordeline” ou expressões semelhantes são usadas com freqüência para definir os pacientes que supostamente não se encaixam no campo da neurose ou no campo da psicose. Para muitos psiquiatras e psicólogos, estes pacientes encontram-se num estado limite entre uma e outra categoria, como que podendo tomar uma ou outra direção a qualquer momento ou ficar no meio do caminho para sempre. Também é comum que um mesmo paciente receba o diagnóstico de esquizofrenia somado a outros do campo da neurose, ou seja, um mesmo paciente portando diagnóstico de duas estruturas psíquicas completamente diferentes. Como exemplo disso mencionamos a situação em que se encontrava na anotação feita por um dos técnicos do CAPS em vários prontuários: Hipótese diagnóstica: F20 (esquizofrenia) + F48(outros transtornos neuróticos) ou F20.0 (esquizofrenia paranóide) + F48.8 (Outros transtornos neuróticos não especificados). 133 Para que o diagnóstico não seja uma etiqueta ou um simples procedimento classificatório digno de um ‘jardim das espécies’ apropriado para a botânica ou para o zoológico é necessário que ele cumpra a função de remeter a estrutura que o condiciona. Como não temos na psiquiatria a autópsia que venha confirmar a doença da qual o sintoma seria o sinal, é na construção do caso clínico -a partir de um saber sobre a subjetividade particular de cada paciente que a psicanálise permite elaborar- que um diagnóstico aparecerá como conclusão do processo de investigação (QUINET, 2008). Ao construir as entidades clínicas da psicanálise, Freud tomou como base a nosografia da psiquiatria clássica. Soler (1996, apud Quinet, 2008), assevera que as categorias usadas pelos psicanalistas provêm da psiquiatria clássica e que a cada categoria pode-se fazer uma correspondência com um nome da história pré-psicanalítica. Cita Kraepelin para a paranóia, Bleuler para a esquizofrenia, Krafft-Ebing para a perversão e Charcot para a neurose. Quinet defende a inclusão do sintoma no diagnóstico, sintoma que remete à estrutura e ao sujeito, pois o que vemos atualmente é uma clínica dos transtornos, sendo que o tratamento corresponderia à supressão desse transtorno, um retorno à norma da função do órgão. Essa lógica vai ao encontro do pensamento que parece dominante na Reforma Psiquiátrica Brasileira, onde a direção muitas vezes é o rápido atendimento e eliminação do transtorno, com sua eficaz dissolução e uniformização no meio social. Com isso tem-se a impressão de que o que se pretende é fazer do louco um igual, denegando a diferença, quando o que se trata é da inclusão da diferença, pois por mais que se tente domá-la a loucura não se submete a esses artifícios. O paciente da Reforma é um “politranstornado” (QUINET, 2006) e nessa direção de pensamento recebe uma fieira de “CIDs” acompanhados de uma quantidade de medicação que com certeza vai ao encontro do interesse das indústrias farmacêuticas, que não se entristecem com a saída dos pacientes dos manicômios, sendo inclusive patrocinadoras de eventos, como o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, já que continuam com um grande filão vindo das medicações receitadas para os pacientes atendidos nos CAPS. São inegáveis os avanços das neurociências em oferecer medicamentos mais modernos e com menos efeitos colaterais, porém o tratamento medicamentoso não pode substituir as tentativas de cura que são inerentes ao sujeito. Uma das questões levantadas por Quinet (2006) é até que ponto o desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia não tem se prestado ao discurso do capitalista? A evolução da ciência na psiquiatria estaria produzindo os “males”, pseudos novos males, para que sejam tratados pelos medicamentos que ela fabrica. 134 Restituir a função diagnóstica nos CAPS seja ele realizado pelo psiquiatra, psicólogo, musicoterapeuta, psicanalista, por qualquer outro técnico, ou mais corretamente falando a partir do que já foi exposto, construindo um diagnóstico a partir da relação transferencial do sujeito com toda a equipe, é ir contra a dissolução da clínica, que tem sido substituída pelo binômio “norma x transtorno”. Na direção contrária, deve-se privilegiar o sintoma como uma manifestação do sujeito. O caráter da medicação será paliativo e nãoresolutivo do sofrimento mental. Não é possível existir clínica sem levar em conta a subjetividade. “Eis aí a ética da diferença, que a psicanálise contrapõe à prática normativa da psiquiatria enquanto serva do capital” (QUINET, 2006). O mundo contemporâneo carece de discussão epistemológica, carece de politização das idéias e práticas. Na democracia mais real e verdadeira, não se trata apenas de fingir de acolhemos "diferenças" e "convivemos pacificamente com elas", só para eliminá-las por trás da cena, nos bastidores do poder. Travar um debate democrático é passar da ingenuidade servil ao poder, a uma posição crítica e combativa, que defende pontos de vista e combate outros, apontando-lhes as intenções de um saber "científico" que jamais é neutro, sem querer, no entanto eliminá-los pela força bruta ou pela do dinheiro dos laboratórios farmacêuticos que compram cientistas, revistas ditas científicas e jornais e revistas (ELIA, 2011a). Retomemos a questão do desencadeamento da crise psicótica trabalhada na seção 2 através de um fragmento clínico. Anita, 18 anos, psicótica, chega ao CAPS acompanhada do pai. A entrevista no acolhimento transcorreu sem ficarmos investigando os antecedentes hereditários ou os distúrbios da senso- percepção. A paciente relata ouvir vozes falando na sua cabeça e ver coisas que lhe assustam. Menciona que não é deste mundo. Apresenta idéias de autoextermínio e também desejo de matar seu filho nascido há poucos meses. É mãe solteira. Mora com o pai e os irmãos em uma casa extremamente desorganizada e suja. A mãe faleceu quando ela tinha sete anos. Até um mês antes de procurar o CAPS não apresentava nenhuma manifestação da psicose. Sou um monstro e meu filho também. Nós dois não pertencemos a esse mundo. Quero me jogar nas águas junto com ele pra voltar ao meu lugar. Esse homem aí, esse tal de seu Vítor diz que é meu pai, mas não é. Ele é pai dos meus irmãos... Não, eles também não são meus irmãos. Não quero dar de comer pra meu filho. Tem uma coisa por dentro que me comanda [...] Na televisão começou a aparecer umas coisas estranhas que só eu vejo. Fiquei com medo e mandei desligar... Tem uma voz falando na minha cabeça. 135 Podemos supor que Anita não fez a operação da metáfora paterna, ficando o Nomedo-Pai foracluido, mas que mesmo assim a paciente estava sustentada em “bengalas” imaginárias. Durante o tratamento com a paciente percebemos que essas “bengalas” tinham a ver com seu pai, que após a morte da mãe de Anita tem com ela uma relação atípica, havendo inclusive suspeitas de que mantivessem relações sexuais. Nem todos os tamboretes tem quatro pés. Há os que ficam em pé com três. Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um senão a coisa vai mal [...] É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito, numa certa encruzilhada de sua história biográfica, é confrontado com esse defeito que existe desde sempre (LACAN, 1985, p. 231). Esse Nome-do-Pai “jamais advindo no lugar do Outro” (LACAN, 1998e, p. 584) foi invocado através da irrupção de um certo acontecimento na vida de Anita, um dado advindo do real que desencadeou a psicose. Anita engravidou de um homem com quem ela estava saindo e algum tempo após o parto veio a apresentar alucinações visuais e auditivas. Podemos supor que após o nascimento do filho Anita se encontra com Um-pai “no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes” (LACAN, 1998e, p. 584). É interessante observar que Lacan denomina de Um-pai aquilo com que o sujeito se encontra no desencadeamento da psicose. Um-pai é o que pode evocar o Nome-do-Pai, é algo da ordem do pai, mas é Um-[P], justamente um artigo-definido, por não poder ser o Nome-do[Pai], um Pai com artigo e sem nome. Esse Um-pai, no caso de Anita, foi o pai de seu filho que se a se situou na posição terceira na relação de Anita com seu bebê, que tinha por base o par a – a’. Podemos supor que um “ímpar” foi introduzido em um par, fazendo surgir uma pergunta sem resposta, já que os arranjos anteriores de Anita, seu “banquinho de três pernas” foram insuficientes nesse momento. Seu mundo se abala completamente. Daí uma de suas frases durante a primeira entrevista: “nós dois (ela e o filho) não pertencemos a esse mundo. Quero me jogar nas águas junto com ele pra voltar ao meu lugar”. O diagnóstico estrutural deve ser buscado no registro do simbólico, pois é nesse registro que são articuladas a questão fundamental do sujeito quando da travessia do complexo de Édipo. Pelo simbólico podemos constatar três modos de negação do Édipo correspondente às três estruturas clínicas. O modo do neurótico através do recalque (Verdrangung), o do perverso pelo desmentido (Verleugnung) e a foraclusão (Verwerfung) que é o modo do psicótico (QUINET, 1997) como o de Anita acima exposto. 136 3.3.2 Uma ética para o sujeito A estrutura de linguagem do inconsciente é o que faz Lacan definir sua ética do bem dizer. Essa é a ética que tem relação com o sujeito do inconsciente. Sendo assim, não vamos ditar regras, normas, ensinar um modo de agir segundo um universal válido para todos. A ética da psicanálise é uma ética que leva o sujeito a se implicar, comprometer-se com seu sintoma. Assim prevenido o técnico do CAPS pode evitar o furor sanandi de exigir a qualquer custo a suspensão do sintoma. O sintoma não deve ser combatido, pois é lá que está o sujeito. Ao invés de atacá-lo ele deve ser abordado como uma manifestação subjetiva para assim fazer emergir o sujeito. No texto Projeto para uma psicologia científica, Freud (1987a) vai fazer uma articulação com a moral. Vai dizer que os problemas morais estão ligados ao abandono e que as questões do bem e do mal são muito menos de fundamento do que de interesses, desejos, etc. A questão da moral já está posta desde o princípio tentando cobrir a falta e dar conta do desejo. Já Lacan (1991) afirma desde o início de O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise que pretende falar de ética e não da moral. Para ele, a ética está para além do sentimento de obrigação, do mandamento, da lei da sociedade. Lacan indica a diferença da ética psicanalítica em relação à moral. A psicanálise em sua ética parte da universalidade do desejo para enfatizar a sua particularidade. O que é universal é a diferença. O desejo não se submete a normatização e não tem caráter de uma lei universal. A reflexão que faz ao longo dos seus seminários sobre a função do desejo aponta para a diversidade das tendências humanas quanto à sexualidade e o seu caráter profundamente desarmônico e particular. A questão da verdade vai estar no centro da discussão ética e a psicanálise entenderá essa verdade, como a verdade do desejo. A verdade será parcial, não toda, e se apresentará para cada sujeito em sua especificidade íntima. Para Lacan o desejo está vinculado à lei, que institui o simbólico. Lacan parte do texto freudiano Projeto para uma psicologia científica para indicar a originalidade da concepção freudiana. É no Projeto que vai buscar a noção de das Ding. Em torno dessa noção, Lacan articula a proposta de uma ética da psicanálise, em que a ação humana esteja orientada por uma referência ao real. Lacan propõe uma topologia para dar conta dessa particularidade da Coisa freudiana que é a extimidade - uma exterioridade íntima. 137 (MAURANO, 1995) É alguma coisa no si mesmo que é desconhecida. É algo que não se pode aproximar demais por possuir algo de mortal. [das Ding] indica esse vazio central em torno do qual se tece a rede significante, objeto perdido, nunca tido, impossível de alcançar, que comanda o desejo do sujeito. É o índice, ao mesmo tempo, do anseio de plenitude e da sua impossibilidade (RINALDI, 1996, p. 69). O princípio do prazer é a referência mais imediata a esse reencontro, mas que não se constitui a não ser como mediação para ele. Como exemplo, temos a alucinação do bebê quando o seio não se encontra presente. O princípio do prazer revela, aqui, as suas insuficiências como parâmetro para a experiência de constituição do sujeito no campo do desejo – que exigirá que Freud vá além do princípio do prazer – e portanto também suas insuficiências teóricas, já que em Psicanálise a teoria acompanha de perto a experiência. A idéia de homeostase, de redução de tensão, de investimento alucinatório do traço do objeto como operador de descarga esbarra com o real que exige do sujeito a consideração da realidade como falta, e use o significante para nortear sua ação na realidade que assim é admitida como faltosa. É nesse sentido que Lacan propõe que se conceitue o princípio de realidade, sempre em referência dialética ao princípio de prazer, e não como mero substituto adaptacionista dele. É o princípio da realidade que vai empurrar o sujeito – primeiro para o reconhecimento do objeto enquanto perdido – e, por conseguinte, para a substituição do objeto perdido. O objeto não se encontra lá e só vai ser reencontrado em partes. A realidade é uma maneira de segurar algo do real que é intangível, impossível, não representável (MAURANO, 1995). Através da discussão dos bens, Lacan vai formular a distinção entre ética e política, tomando a tragédia como parâmetro para uma revisão ética, uma vez que ela pode ser pensada como modo de questionamento da ação humana. Em uma sociedade de consumo o sujeito ilude-se quanto à questão do desejo. E por isso a experiência psicanalítica deve repudiar qualquer ideal de bem. Lacan questiona a ambição de curar chamando de “falcatrua benéfica” o querer o bem do sujeito. Se a psicanálise coloca para si o horizonte da cura, esta deve ser em relação ao sujeito a de “curá-lo das ilusões que o retém na via de seu desejo” (LACAN, 1991, p. 267), dentre as quais se coloca a promessa de acesso aos bens. A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que se chama serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando 138 à dimensão que se expressa e o que se chama de experiência trágica da vida (LACAN, 1991, p. 375). Lacan retoma os textos de Sófocles para situar a ética da psicanálise na dimensão da experiência trágica, onde surge a relação fundamental entre o desejo e a morte. Tanto em Édipo em Colono como em Antígona, Lacan aponta o confronto trágico do herói com os valores da Cidade. Lacan vê na peça de Sófocles o drama da incomensurabilidade entre a paixão de Antígona e a lei da Cidade, sustentada por Creonte com seu suposto bem ou justiça. Segundo Rajchman (1993), na visão lacaniana da peça, Creonte torna-se a imagem da burrice, que reside em depositar a fé num Bem que os homens possam conhecer. “O erro de Creonte consistiu num Bem que estava ou poderia estar integralmente incorporado na justiça da Cidade e nas suas leis escritas” (RAJCHMAN, 1993, p. 94). A advertência lacaniana é que “o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso” (LACAN, 1991, p. 314) e são dessas conseqüências fatais que nos adverte a tragédia. Antígona faz-nos ver o ponto de vista que define o desejo. Ela dá a si mesma a lei de sua fidelidade à família e aceita sofrer os efeitos. A lei a que Antígona se refere não é a da Cidade, mas a lei do desejo, o desejo que vem no lugar do imperativo categórico. Em Antígona se observa uma fidelidade ao desejo, que é levada aos seus limites, no confronto com uma lei que se apresenta como justa para a comunidade. Antígona é vista como um ser “desumano, sem medo nem piedade”, diferente de Creonte “demasiadamente humano”. Creonte representa as leis da Cidade, conduzindo a comunidade para o bem de todos. Ele situa-se no âmbito dos serviços dos bens, definindo o que é justo, o que pode se constituir como um bem, fundamentando-se na ordem do poder demasiadamente humano (RAJCHMAN, 1993). Antígona, representando a ética do desejo, em oposição à moral do poder de Creonte, situa-se no lugar da “segunda morte”, morte simbólica em que o sujeito reconhece a castração que o constitui. O lugar onde se situa Antígona é o de das Ding, lugar vazio, núcleo traumático em torno do qual o simbólico se organiza. Para Lacan, a ética estaria mais bem fundada no direito do desejo do que no imperativo do supereu. Trata-se aqui da dimensão inconsciente do desejo e não de uma crença na onipotência do desejo. Ou seja, insistência, repetição, indestrutibilidade do desejo não é a mesma coisa da onipotência imaginária. O desejo de que fala Freud no final da Interpretação dos Sonhos, entidade do desejo indestrutível, é diferente dos desejos. Lacan separa o desejo dos desejos específicos, e o identifica como “corte significante”, que 139 é para ele o nome do indestrutível desejo de Antígona. Lacan determina o desejo puro como o desejo de castração (GUYOMARD, 1996). Ao tomar a tragédia grega como referência para falar da ética da psicanálise, Lacan enfatiza a descontinuidade entre uma ética do desejo, enquanto ética da subjetividade, e a política, como expressão da moral do poder que opera sobre o ordenamento do serviço dos bens. O poder não está interessado no desejo, porém Lacan defende uma forte ligação entre desejo e Lei. Essa lei, no entanto não se confunde com as leis que operam no âmbito do “serviço dos bens”. Nas instituições a psicanálise encontra um espaço paradoxal. De um lado temos a exigência do mestre de que as coisas funcionem bem e que o sintoma não atrapalhe. Tal exigência é fortalecida pela eficácia da ciência. De outro lado encontramos a religião e as psicoterapias com a exigência de sentido. Ou seja, de um lado está a ciência que contribui para desenvolver o gozo dos sujeitos, mas não para tratá-lo. Do outro lado estão os discursos que são modos de uso do gozo. A psicanálise contrariamente aos tratamentos “psis” é um tratamento do sentido pelo não sentido através da extração dos significantes mestres e não um modo de gozar do sentido conferido por um significante mestre. Ela vai tratar não pela linguagem e pela escuta, mas pelo “traumatismo da linguagem pela escrita formal do sintoma. Ela não identifica, ela descompleta” (BROUSSE, 2007, p. 23). No tratamento analítico haverá um redimensionamento do desejo possibilitando uma alteração na ordem do serviço de bens, já que os falsos bens aprisionam o sujeito. O desejo seria um lugar a se chegar como homens comuns e não como heróis. Ao revisar a ética, Lacan formula o seguinte postulado: “agiste conforme o desejo que te habita?” (LACAN, 1991, p. 376), partindo do desejo como motivação legítima da ação e implicando na responsabilização de todo sujeito. Lacan (1998g, p. 873) afirma que “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”. Sendo assim, na perspectiva analítica, “a única coisa da qual se possa ser culpado é de ter cedido de seu desejo” (LACAN, 1991, p.382). Brousse (2007) evocando os três S do matema utilizado por Lacan ao formalizar a transferência (Sujeito-Suposto-Saber) propõe os elementos operatórios no tratamento analítico para que o discurso analítico não se dissolva. O primeiro elemento operatório seria o sujeito. A psicanálise que se faz em instituição, que para nós é a psicanálise aplicada e também como dissemos anteriormente a psicanálise em intensão, permanece sendo questão de sujeito e não de indivíduo, de agente identificatório ou de pessoa. Se o sujeito é resultado do exercício da linguagem ele é 140 representado por significantes. Sendo assim, o sujeito não pode ser abordado por categorias ontológicas que remetem aos significantes e que fazem patrulha ao gozo: toxicômano, criança, louco e etc. Na instituição “temos que nos haver com sujeitos divididos e entre efeito de significantes e objeto de gozo desse Outro do significante” (BROUSSE, 2007, p. 25). O sintoma é do sujeito e não do social. Quanto à suposição, segundo elemento, a autora introduz o estatuto do Outro em psicanálise. O Outro seria enquanto matéria significante, um real traumático, porém ele não é um parceiro que o sujeito devota-se a se propiciar através de seu fantasma. O Outro não é uma lei, uma garantia ou uma referência ou um ideal para o eu. Na verdade o Outro não é. Ele não existe, a não ser como ficção, ou seja, como semblante afetado de crença para o neurótico ou de certeza pelo psicótico. O Outro é relativo à estrutura definida pelo funcionamento da linguagem em um discurso. O psicanalista se orienta por esse ponto e é do matema A barrado que provém a ética do discurso analítico. Como conseqüência disso temos a recusa do serviço de bens, mesmo que seja sob a forma de um bem soberano, que faz pesar o fardo dos soberanos sobre o ombros do sujeito. Como último elemento teremos o saber, que não é referencial, mas textual. Lacan (2003b, p. 254) na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola retoma a recomendação de Freud de abordarmos cada novo caso como se fosse o primeiro, porém escreve que isso não autoriza o psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de saber. O que ele tem de saber pode ser traçado pela mesma relação “em reserva” pela qual opera toda lógica digna desse nome. Isso não significa nada em “particular”, mas se articula numa cadeia de letras tão rigorosas que, sob a condição de não se errar nenhuma, o não sabido ordena-se como o quadro do saber. Desenvolvemos o pensamento lacaniano sobre a questão da ética para fundamentar uma outra dimensão que deve pautar a clínica no CAPS, que não deve ser aquela de buscar o bem do sujeito. Se isso é desastroso na clínica com neuróticos, muito mais na psicose que tem uma lógica própria que não entra totalmente nas nossas tentativas de normatização. Essa lógica tem que ser considerada nas tentativas de ações terapêuticas. Nesse ponto de vista, segundo Guerra e Generoso (2010), o fora-da-norma não deve se apresentar aos técnicos como “desadaptação” ou “exclusão”, e sim ser acolhido, ganhando seu valor central na forma de resistência, de invenção subjetiva. Laurent (apud Guerra e Generoso, 2010), afirma que se não há satisfação plena para nenhum sujeito e se não há norma, o que subsiste a cada um é inventar uma solução particular que se apóia sobre o seu sintoma. 141 Cada um terá uma solução mais ou menos típica, mais ou menos apoiada pela tradição e pelas regras comuns, podendo contrariamente desejar realçar a ruptura ou certa clandestinidade. O diferencial que a inserção da psicanálise traz ao movimento da Reforma é a luta por um espaço onde se possa dar vez e voz a uma clínica do sujeito, este concebido como um ser da fala, da subjetivação. A direção da psicanálise não pode ser a da adaptação da singularidade às normas. Pelo contrário, ela trata a impotência do sujeito em alcançar a satisfação plena, buscando conseguir que cada um encontre certo acordo de convivência consigo mesmo e com a civilização. Assim, é possível abrir novas vias que permitam ao sujeito extrair o necessário saber-fazer com seu sintoma, para que possam ultrapassar os obstáculos e as conseqüências subjetivas da desinserção (GUERRA; GENEROSO, 2010). Contudo, ao priorizar o sujeito, não se pode considerar que a psicanálise é uma luta anticoletiva, uma vez que, um trabalho sendo realizado com a singularidade não exclui a possibilidade do resgate das suas atividades do ponto de vista coletivo. Tenório (2001) irá dizer que propor um tratamento possível da psicose dentro do referencial psicanalítico é levar em conta o inconsciente e suas formações, fazendo com que o sujeito enderece o seu sofrimento como uma questão e não como uma demanda de reabilitação para o convívio social. Essas considerações podem ser de grande valia para as instituições de Saúde Mental que lidam primordialmente com sujeitos psicóticos, constituindo, uma contribuição da psicanálise à Reforma psiquiátrica, na medida em que poderiam operar como uma advertência em atribuirmos aos psicóticos ideais que são nossos e não deles, como a autonomia e a suficiência na inserção social. Freud foi veemente quanto a isso: recusamo-nos da maneira mais enfática a transformar um paciente que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos ideais e com o orgulho de um criador, a formá-lo a nossa própria imagem e verificar que isso é bom (FREUD, 1987m, p. 207). Sendo assim, guiados pela inclusão da foraclusão do Nome-do-Pai na Reforma, o técnico de CAPS estará atento não somente com seu furor sanandi, mas também ao seu furor includenti , ou seja, estará precavido contra seu desejo de inclusão do louco. A direção da clínica não pode ser exigir do psicótico aquilo que é de valor fálico para o neurótico, mas deixá-lo fazer sintoma sem Nome-do-Pai (QUINET, 2006). Assim, é possível entender que se os ideais da Reforma não forem trabalhados com o sujeito em seu processo singular de construção de um laço social possível, eles podem vir 142 a transformar-se em impedimento para a construção de uma relação com o Outro mais moderada e, desta forma, provocar o surto e não a estabilização. Um exemplo que pode nos ajudar em nossa reflexão é o de um técnico de CAPS ao ser comunicado por uma auxiliar de enfermagem que Luís, um usuário do CAPS, psicótico grave, que inclusive estava se recuperando de um surto recente, havia sido encontrado portando drogas. No afã de normatizar, sem mesmo discutir o ocorrido com outro membro da equipe, o técnico resolve chamar a polícia para tomar providências. Note-se que mesmo os policiais que vieram atender a ocorrência se admiraram de que o técnico do CAPS quisesse que o paciente fosse conduzido à delegacia. Posteriormente, na reunião de equipe, o mesmo técnico com muita veemência defendia a criação de um protocolo que determinasse que toda vez que um usuário do CAPS fosse encontrado portando drogas, a polícia devesse ser acionada. Outros técnicos defendiam que isso não deveria ser feito porque o paciente, sendo psicótico, não deveria ser responsabilizado. Ambas as posições não estavam embasadas em fundamento teórico-clínico válido, mas em valores e atitudes de uma prática moral normatizadora que em nada é diferente da época anterior à Reforma: a culpabilização moralista que substitui a intervenção clínica, de um lado, e a irresponsabilização paternalista, não menos moralista, ainda que permissiva, e que em nada concerne ao sujeito como tal, de outro. 3.3.3 A psicanálise coletiva Segundo o manual do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004) sobre os Centros de Atenção Psicossocial as oficinas terapêuticas são uma das principais formas de tratamento oferecido nos CAPS. Na própria descrição da atividade percebe-se que não há nenhuma referência ao caráter clínico dessa atividade. As oficinas terapêuticas são definidas como “tendo em vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, o exercício da cidadania” (BRASIL, p. 20) Continuando em sua descrição, o manual cita os tipos de oficina tais como as oficinas expressivas, as oficinas geradoras de renda e as de alfabetização. 144 As oficinas terapêuticas, muitas vezes são direcionadas no sentido pedagogizante ou de entretenimento e não sustentados pela clínica. Greco (2008) dirá que nas oficinas, de certo modo, agrupam-se semelhantes, pois são todos psicóticos, mas no mais se trata de fazer conviver diferenças, singularidades absolutas, inibições absurdas e certezas plenas. O fato de se trabalhar em grupo não permite uma generalização de movimentos e das posições subjetivas nas atividades. Sendo um grupamento de singularidades tão explícitas, só nos resta escutá-las uma a uma. O autor denuncia a perigosa posição de Um-pai na condução das oficinas. Sabemos que nada é menos seguro que a posição de Um – pai na psicose. Assim, o professor, pai de estilos, que cobra definições estilísticas dos seus alunos, o escritor, pai de letras que recompensa com seu aval e o doutor, pai da garantia que delimita os significados, estão definitivamente excluídos do convite a esse banquete (GRECO, 2008, p.88). Outra questão é que muitos profissionais de Saúde Mental optam pelo atendimento em oficina e ainda em grupo, não por questões teórico-clínicas, mas pressionados pela demanda e muitas vezes por avaliarem que determinados pacientes possuem “baixa abstração” ou “dificuldades em trabalhar conteúdos internos, subjetivos” e que por isso não responderiam ao tratamento analítico clássico ou psicoterápico. A esse respeito é bom lembrar que os CAPS recebem predominantemente pacientes de baixo poder aquisitivo e nível de instrução, porém estes fatores não podem ser considerados como impeditivos para fazer o inconsciente operar, já que este, não é pobre ou rico, burro ou inteligente. A dimensão clínica precisa atravessar os espaços de convivência do CAPS para que não sejam orientados sobre o eixo da interação sócio-afetiva. As oficinas terapêuticas não podem visar apenas a expressão, a ocupação terapêutica, o entretenimento e o lazer, mas cada atividade dessas deve implicar uma dimensão clínica. A atividade nos CAPS, como defende Lobosque (2009) não devem se basear numa prática de saber que tem o consultório como centro e onde grupos, oficinas, visitas domiciliares são atividades menores, secundárias, derivadas. O que acontece nessas práticas deve ser tão clínico como o que acontece numa consulta psiquiátrica, numa sessão com psicólogo ou psicanalista ou em outro atendimento. É pelo viés da clínica que questões sobre o uso de grupos e oficinas devem ser colocadas. Podemos nos perguntar se a melhor alternativa ao atendimento individual é o grupal ou o modelo de oficinas tão amplamente defendido nos CAPS. A julgar pelo que encontramos em nossa pesquisa teórico-clínica, através das dificuldades suscitadas pela 145 própria clínica que nos fez recorrer à teoria para em seguida retornar à clínica, verificamos que o dispositivo psicanalítico coletivo (já abordado anteriormente através das experiências da psicoterapia institucional de Oury, a prática entre vários e a psicanálise com muitos) que se distingue claramente do grupo e de oficinas terapêuticas, apresenta resultados clínicos incomparavelmente superiores à mera ocupação dos pacientes em oficinas de entretenimento terapêutico. Há um conceito de “coletividade” que não coincide com o de grupo, e que responde muito melhor à dimensão clínica do estar entre muitos, entre muitos pacientes e entre muitos técnicos, entre muitos espaços e atividades. O grupo reúne indivíduos, cada um mantendo sua individualidade quando no grupo, ou, quando a dissolve, é em nome de uma identificação com um traço comum, do líder ou com um lema. O coletivo atravessa sujeitos, porquanto é em nome de um traço de cada um, sem significação a priori ou imediata, que o laço se faz (ELIA, 2004, p. 03). Já no ano de 2000, quando o ambulatório de Saúde Mental foi transformado em ambulatório com oficinas, tínhamos dificuldades com esse o dispositivo, no sentido de percebê-lo como mero artifício para ocupar pacientes, atender a demanda das listas de espera de pacientes que não “aderiam” ao tratamento individual. Em contrapartida tínhamos questões de como tratar clinicamente os psicóticos que não respondiam ao tratamento no espaço físico do consultório da unidade. Em 2001 tivemos a oportunidade de realizar uma visita técnica ao CAPSi Pequeno Hans, na época com poucos anos de existência. Ficamos surpresos com os efeitos da clínica feita por muitos técnicos e com muitos pacientes, a maioria extremamente graves e que melhoravam significativamente. Porém, como atendíamos predominantemente neuróticos graves esta questão não se impôs de maneira radical em nossa clínica. No ano de 2005 quando a equipe do ambulatório foi dissolvida pela gestão e ao mesmo tempo passou a funcionar em nossa unidade um serviço dentro da modalidade dos Centros de Atenção Psicossocial, a clínica da psicose se impôs não mais de maneira contingente, levando-nos a sucessivos questionamentos de como conduzir o nosso trabalho e foi essa uma das razões que nos levou a estudar e a voltar no que vivenciamos no Pequeno Hans. Um dos episódios marcantes foi receber Mateus em um dia que estávamos no acolhimento no CAPS. Sua avó nos conta que Mateus, agora com 18 anos, não sai de casa desde os 13 desde que presenciou o suicídio de seu pai que morreu se esfaqueando. Mateus desde esse episódio só fica dentro do seu quarto, não toma banho e não se comunica com as outras pessoas. Já colocou fogo em suas cobertas. A avó enfatiza que ele tem medo das 146 pessoas, que não pode ficar no meio delas porque ficará nervoso. Mateus, apesar de bastante arredio, aceita vir ao CAPS novamente para falar conosco. Inicialmente atendemos Mateus em um dos consultórios do CAPS, já que ele não suportava o contato com outras pessoas. Como ele se negava a usar o recurso da fala tentamos estabelecer algum outro recurso que pudesse funcionar como linguagem. Dispomos jogos pela sala sem sugerir nada. Aos poucos Mateus escolhe entre o dominó, o jogo de damas ou o quebra-cabeça para poder nos dizer algo. Em determinado dia apanhamos pães e café que eram servidos para os pacientes do CAPS e levamos para ele no consultório. Mateus começou a proferir alguns monossílabos quando nós perguntávamos algo. Às vezes não respondia nada. Mesmo assim prosseguimos falando com ele e tentando colocar alguns significantes de acordo com sua história. De vez em quando ria sem motivo. Aos poucos conseguimos servir-lhe o café não mais na sala de atendimento, mas na sala de estar do CAPS, momento onde ele começa a ter contato não apenas conosco, mas com outros pacientes e técnicos que circulavam por lá. Em determinado dia sem saber no que aquilo iria dar, convidamos Mateus para a área onde ficavam os pacientes da permanência-dia e jogamos com ele na presença desses pacientes. Surpreendentemente Mateus não ficou assustado com as pessoas como sua avó dizia e à medida que o tratamento foi avançando passa a jogar não apenas conosco, mas também com outros pacientes. Passamos a atender coletivamente não apenas ao Mateus, mas a todos os pacientes que estavam presentes no CAPS naquele horário. Assim, surgiu a primeira oficina coordenada por nós, que foi denominada inicialmente “oficina de jogos” porque o que acontecia eram basicamente jogos de várias modalidades. Apesar de a atividade ter sido denominada por nós de oficina, até porque naquele momento não sabíamos nomeá-la de outro modo, desde o início ela se diferenciou do que o Manual define como oficina. Isso foi detectado inclusive por um dos auxiliares de enfermagem que nos acompanhou neste início e que participava também de outras oficinas. Um dia nos fez uma observação: “essa oficina é diferente das outras. Aqui acontecem umas coisas que eu nunca vejo nas outras.” Algo começou a operar apesar de nosso conhecimento ainda incipiente sobre a psicanálise coletiva. Verificamos que precisávamos ir além do que tínhamos alcançado, pois além das nossas dificuldades teórico-clínicas somavam-se a falta de supervisão institucional e a heterogeneidade de práticas e de direção da equipe. Foi então que em 2008 encaminhamos nosso projeto preliminar de pesquisa para o Programa de Pós Graduação em Psicanálise da UERJ com a intenção de avançar nessa direção. 147 No ano de 2009 iniciamos e priorizamos nossa pesquisa no CAPSi Pequeno Hans que deu subsídios para depois continuarmos nossa pesquisa exclusivamente na clínica com adultos a partir de 2010. Propomos para a equipe do CAPS uma reestruturação do atendimento clínico e começamos a nos reunir para discutir e estudar alguns princípios do que seria essa clínica. Apresentamos a sugestão de abandonar o modelo de oficinas terapêuticas propostas pelos técnicos e a começar a construção de um atendimento dentro da dimensão coletiva. Em um mesmo espaço foram organizados vários materiais como jogos, revistas, livros, material de tapeçaria, colagem, pintura, artesanato e etc. Os pacientes que vinham para a permanência-dia passaram a chegar e se dirigir para alguma atividade segundo a escolha deles ou mesmo a não se dirigir a nenhuma não sendo priorizado a ocupação ou o entretenimento, mas a dimensão clínica. Os princípios de uma clínica coletiva começaram a ser esboçados. No espaço de atendimento coletivo do CAPS muitos episódios acontecem ao mesmo tempo e o tempo todo. João e Pedro fazem seus tapetes enquanto conversam animadamente. Rose às vezes cisma de aprender entrelaçar os fios, mas gosta mais dos jogos. Assis toca várias “modas” de viola e às vezes alguns o acompanham. Selma chega movimentando os braços com sua tradicional frase “eu tô impregnada” sem que isso seja verdade. Os técnicos acolhem, fazem alguma intervenção e de repente ela esquece a tal “impregnação” e participa por alguns momentos com todo mundo. Anita chega pela primeira vez, mas não quer ficar. Chora, grita e se agita. Sandra que já esteve assim um dia conversa e lhe diz algumas palavras: “ficar aqui me ajuda a organizar as idéias. Vai lhe ajudar também.” E logo Anita se acalma. Julia chega em seguida agitada. Convida os pacientes para rezar puxando uma “Ave Maria” Fala para todos nós: “Me disseram que sou bipolar, mas eu só gosto de aventuras, de desafio, de sentir calor, frio, alegria, raiva. Raiva não.” Em seguida chora, diz que os bichos estão subindo pelas suas pernas. No que diz respeito ao projeto terapêutico, é clara a diferença entre uma posição de tratamento que toma o paciente como objeto de cuidados e uma outra, que propõe um tratamento que esteja adequado ao caso e que toma o paciente como sujeito oferecendo a possibilidade de manter abertas as questões que surgem para inicialmente fazer ouvir em qual projeto o sujeito está metido. Portanto, conceber uma estrutura capaz de estar dirigida ao sujeito é antes de tudo sustentar a possibilidade de acolher aquilo que vier a surgir. Não será equivalente a proporcionar uma assistência mais humana, mais completa, através do argumento de que não se deve focalizar exclusivamente a doença, mas o ser humano de 148 forma integral. Tampouco é equivalente a propiciar a execução de uma clínica bem feita, aquela que desapareceu da assistência pela exigência de produtividade imposta pela mentalidade capitalista (SANTOS, 2001). Em vários episódios pudemos verificar os efeitos do atendimento coletivo nos pacientes atendidos nesse dispositivo. Através de alguns fragmentos clínicos podemos demonstrar tais efeitos. Mateus, um dos pacientes que nos levou a pesquisar a psicanálise coletiva passou a ser atendido exclusivamente nesse dispositivo e não mais individualmente. O efeito foi surpreendente. De um jovem arredio, que não saía de casa e que quase não se comunicava pela fala quando iniciou o seu tratamento conosco no dispositivo de consultório, passou cada vez mais a estabelecer contato com outros técnicos e outros pacientes. Passou a conversar, a se despedir das pessoas quando ia embora e aprendeu e se tornou um bom jogador de xadrez. Intensificou seus treinamentos nas aulas de judô na academia da irmã, culminando suas mudanças com sua volta para a escola. Podemos corroborar que o atendimento coletivo proporcionou um Outro menos intrusivo, menos ameaçador para Mateus possibilitando que ele pudesse estar de outro modo no laço social. Carina que chegou em surto na recepção do CAPS grita com os olhos arregalados para nós:” Prostituta! prostituta! Porque você se pinta assim?” Podemos supor aqui uma localização do gozo fora do corpo e que Carina fixa um ponto de retorno do real quando nos dirige essas frases. Posteriormente a paciente olha para nós e diz que acha que eu também sou de alguma igreja evangélica. Sendo assim, pode conversar comigo. Iniciamos o atendimento individual com a paciente que de prostituta nos coloca como irmã na fé. Reclama com muito sofrimento das vozes que a perturbam. Diz que a voz é de sua sogra que não lhe dá sossego. A voz fica dizendo que o marido está com outra. Vê sua sogra por todo lugar que vai. A medicação não diminui seu sofrimento e nem tampouco os atendimentos conosco. Carina passa a participar também do atendimento coletivo e a trabalhar com os tapetes. Um dia após algum tempo de tratamento nos diz que as vozes lhe deram um pouco de sossego. Diz que colocou um paninho (um pedaço de retalho usado na confecção de um dos tipos de tapete feitos no CAPS) no ouvido. Detectamos aí que a transferência inicial dirigida a nós foi deslocada: “com o ‘paninho’ agora só entram as vozes boas”. Pelo atendimento coletivo Carina pôde amenizar sua relação com o Outro que se dividiu entre os muitos técnicos. 149 Alguns meses depois, saímos de férias em um final de ano e demoramos mais do que o habitual para retornar ao CAPS. Ao retornarmos Carina diz que as vozes voltaram a perturbá-la. Perguntamos do “paninho” e ela responde “Ele caiu. Preciso colocar ele de novo.” Percebemos que apesar da transferência dissolvida com muitos técnicos, Carina nos colocava em um lugar prevalente em seu tratamento. Dissemos na ocasião: “Estou aqui. Eu e o restante da equipe”. Pouco tempo depois as vozes novamente não a perturbaram mais. Numa outra ocasião em que nos afastamos Carina se manteve estável. O “paninho” dessa vez não caiu. Em uma referência ao esquema L, concebido por Lacan e trabalhado por nós na seção 2 (ver pág. 58), diremos que na medida em que os técnicos de CAPS se recusam a responder do lugar de semelhante do eixo a- a’, eixo imaginário, sobre o qual se sustenta o registro da demanda, e que, nas relações que se estabelecem entre os seres falantes, incluindo os pacientes, compreende o amor, a amizade, a confidência, etc. este se torna reduzido de modo a diminuir os efeitos que mascaram a estrutura do discurso e com isso abre-se o campo possível para a transmissão operada pelo outro eixo A (SANTOS, 2001). Podemos evidenciar esta questão com outro fragmento do atendimento coletivo. Rose tem relatos constantes de sentir um forte impulso de bater a cabeça contra a parede. Quando não está bem é esse o recurso que utiliza para lidar com as vozes que persistem em perturbá-la. É assim que ela lida com o Outro. A equipe sempre tinha respostas de consolo, de amizade, mas não analíticas. “Não faça isso, você vai se machucar”, “Nossa! Porque você faz isso? Não pode!”, “Coitada dela! Está mal hoje.” Em determinada manhã ela chega e fora do seu habitual, passa por nós e pelos outros pacientes sem cumprimentar. Dizemos bom dia, mas ela responde: “Hoje estou com vontade de bater a cabeça na parede” se dirigindo para fora do espaço. Ao invés de uma resposta a nível do imaginário tentamos ali no espaço coletivo marcar outra coisa, já que o sujeito com que trabalhamos em psicanálise não é o sujeito absoluto e nem tão pouco o da subjetividade. Não se trata do sujeito de funções, de qualidades. O analista vai lidar com questões subjetivas tornando-as objetiváveis. Entre a “cabeça” e “batida na cabeça” tentamos produzir um intervalo, uma escansão que retirasse o sujeito do real da cabeça. Dissemos: “Existem outras coisas para fazer com a cabeça”. Rose então volta para o espaço coletivo, pega as peças de dominó e passa a jogar com os outros pacientes. Diferente das outras vezes em que fala que vai jogar a cabeça na parede e parte para a execução ou fica amuada em um canto, pôde inventar 150 outra coisa para sua cabeça. Nunca mais o recurso da cabeça contra a parede foi relatado pela paciente. Antônio gosta de nadar na piscina do CAPS. Na ocasião era inverno e a água não é aquecida permanecendo gelada. Antônio com as mãos para o alto e em tom profético grita: “Moisés! Moisés! Esquenta essa água!”. Em seguida pula dentro da piscina que continua com a água gelada e diz: “Moisés, seu filho da puta! A água está fria!”. Pensamos depois do ocorrido na ausência da metáfora paterna na estrutura psicótica e que para Antônio se encarnou em “Moisés” que não lhe veio em socorro deixando Antônio a mercê do Outro. Claro que não se tratava de convencer Antônio da impossibilidade da água se tornar quente, mas possibilitar que Antônio, mesmo sem “Moisés”, pudesse se colocar frente ao Outro de maneira diferente. Nessa proposta trata-se de deixar falar o sujeito em vez de falar dele ou sobre ele, falar para ele o que ele deve fazer é uma das conseqüências a que uma concepção como esta conduz, pois é a partir da fala que a divisão do sujeito se apresenta. Sendo assim, ao invés dos técnicos oferecerem sugestões, informações, esclarecimentos ou mesmo um projeto terapêutico a partir de uma discussão com ele, trata-se de oferecer a possibilidade de que eles venham a formular uma interrogação. “O que você vai fazer sem Moisés, Antônio?” Quando o técnico de CAPS renuncia à busca rápida de um atendimento para as questões e as demandas que se apresentam não significa não ter o que oferecer, mas oferecer a única resposta capaz de propiciar que os pacientes possam encontrar um caminho que tenha como destino a possibilidade de desatar-se da dimensão de sugestão que se apresenta na alienação, presente nas relações com o outro. Antônio passa a pegar o violão de Assis e cantar músicas sem parar. É a via principal que encontrou para lidar com o Outro que fala com ele e lhe persegue. As paredes do espaço coletivo ficam completamente cheias de palavras que ele escreveu nos últimos meses evidenciando seu percurso. “A nossa vida é órbita, óbiti, morti, remédio”, “Masculino, vacilão, caguete”, “Nóis quer saber do motivo”, “Marginal, Tonhão. Ladrão, Tonho. Trombadinha, Toninho. Delegado, Antônio.” Percebemos que ele vai se deslocando de ser o “Tonhão marginal” que se defende do Outro intrusivo, perseguidor, que pode matá-lo quando ele estiver usando drogas ou tomando a “pinga” em alguma “quebrada”, para virar o “Delegado Antônio”. Tanto é que nessa mesma direção ele nos diz: “Você não deve confiar em ninguém da cidade. São todos uns caguetes. Não quero que nenhum mal aconteça com vocês. Eu era bandido agora não sou mais e vou defender 151 vocês”. Também no caso de Antônio o tratamento do gozo do Outro através do coletivo propiciou a mudança frente ao Outro. Luiz sempre chega falando sua língua singular: “tem um cotoco na mulher... Por isso precisa ser uma virgiana senão não tem jeito... [...] A Angelina [paciente do CAPS] mandou aplicar uma injeção de tangara em mim... Mas eu sou homem não uso tanga... Estou com problema na tampinha de pó da minha cabeça... Meu cardan (palavra com que ele designa seu órgão sexual) não funciona mais”. Luiz atesta da impossibilidade da questão sexual. Quando iniciamos seu atendimento em consultório ainda não se dava conta dessa questão. Ele insistia em querer “acasalar” conosco. Pelo coletivo algo fez barreira. A clínica do coletivo no CAPS com adultos foi por nós aqui apenas esboçada. Muitas dificuldades são encontradas no CAPS onde realizamos a segunda parte de nossa pesquisa devido a não existência de supervisão clínica. A clínica psicanalítica com adultos no dispositivo clínico ampliado através do coletivo continuará a ser alvo de nossa próxima pesquisa visando colaborar para que a Reforma confira um lugar ao saber, ou seja, à elaboração teórico-clínica em torno do sujeito inserido no tratamento nos CAPS, tal como abordamos no capítulo 1 dessa dissertação. 3.3.4 A dimensão clínica de rede A Quarta Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial realizada em 2010 reiterou cada vez mais a importância da intersetoriedade das ações de Saúde Mental. Como já dissemos anteriormente é missão do CAPS regular a porta de entrada da rede de assistência em Saúde Mental de sua área e, além disso, promover a inserção dos usuários através de ações intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamento dos problemas. Um CAPS não pode sozinho dar conta das complexas questões que estão envolvidas no campo de Saúde Mental. O CAPS ao conceber o território precisa visualizá-lo para além de um recorte geográfico levando-se em conta os laços singulares que cada sujeito vai tecendo nesse espaço, espaço este que está para além das instituições, já que é também intersubjetivo. Se a clínica estiver ausente, se a clínica for surda à palavra do sujeito, o território será construído a partir dos interesses dos técnicos ou motivado pelo desejo de atender ao que 152 se supõe ser o bem para aquele sujeito. Um território “clinicizado” será um território que vem a existir a partir da palavra do sujeito. Há uma questão atual e polêmica que é a retirada do CAPS do lugar de ordenador de rede passando essa atribuição para o PSF. Depois de nossa exposição parece-nos desnecessário afirmar que é de suma importância que o CAPS continue em sua posição central na rede, como articulador das ações de Saúde Mental e não como um mero integrante da atenção básica. Não se trata de definir o CAPS como um serviço especializado, e esta é justamente a defesa da prevalência da atenção primária. Ele só é especializado à luz da atenção primária. O CAPS tem uma especificidade, mas todo especialismo ou especialidade ou especialização são avessos à lógica da atenção psicossocial. No entanto tais ações articuladas pelo CAPS não devem ser realizadas divorciadas da clínica. Abordamos este aspecto, pois muitas vezes percebemos que as reuniões do CAPS com os diversos dispositivos da rede muitas vezes são tomadas como enfadonhas e/ou burocráticas e desclinicizadas. Faz-se necessário que em rede, o CAPS continue com a direção de clínica ampliada e no direcionamento da construção de caso. Se é importante que o paciente esteja inserido nos vários dispositivos e que todos os profissionais da rede estejam juntos na construção dos laços de pertencimento do paciente, pouco efeito surtirá na vida do paciente se o CAPS não tomar todas estas questões como pertencentes a clínica. O CAPS tem como poder, ao ocupar o lugar de ordenador da rede, “o da permanente (e sempre parcial) pactuação coletiva, intersetorial, que, quando bem praticada, é eminentemente clínica, ou, mais ainda é a própria clínica exercida sob a forma lógica da intervenção ampliada que funda o ato do CAPS” (ELIA, 2005c). Em nossa avaliação o CAPS não tem conseguido exercer esse poder na rede. Sabemos da importância da inclusão das ações de Saúde Mental na Atenção Básica e PSFs e da importância do apoio matricial do CAPS, mas podemos dizer que essa assistência tem funcionado no Brasil de maneira geral? A direção de que a Atenção Básica deveria incluir a Saúde Mental como incluía a hipertensão, a diabetes e outros quadros, nos pareceram pertinentes no início, mas com o passar do tempo temos feito questionamentos quanto a isso. É possível mesmo que isso se dê? O caminho é dissolver a diferença? A direção de tratamento nesses moldes não privilegia uma clínica sanitária e não provoca mais desassistência do que o contrário? Trazemos outra questão polêmica que é a questão do ambulatório na rede. Um dos informativos do Ministério da Saúde (Brasil, 2010) define ambulatório como serviço constituído por ao menos quatro profissionais de Saúde Mental, não sendo considerado 153 “ambulatório de Saúde Mental” os centros de saúde ou serviço em hospital geral. O mesmo documento diz que a relação dos ambulatórios públicos de Saúde Mental ainda muito é precária, apresentando em geral baixa resolutividade e um funcionamento pouco articulado à rede de atenção à Saúde Mental. O informativo diz da necessidade de se discutir com mais profundidade o papel destes dispositivos no campo da Reforma Psiquiátrica e por esta razão abordamos nesse tópico a questão. Com a criação do CAPS, a dissolução de vários ambulatórios e o atendimento de casos menos graves prioritariamente na Atenção Básica e PSF, vemos um aumento do consumo de benzodiazepínicos por parte dos pacientes, além de muitos serem medicados de maneira incorreta pelos clínicos ou ficarem desassistidos por não haver psicólogos para todas as unidades ou vagas suficientes com os médicos. Se não há vagas com os médicos, muitos psicóticos estabilizados acabam ficando sem assistência e como nessa condição, não costumam solicitar ajuda como os neuróticos, terminam por entrar em crise novamente. Também em vários CAPS o que tem acontecido é que no atendimento da psiquiatria continua havendo um “ambulatório” dentro do CAPS. Os pacientes não freqüentam o CAPS na permanência-dia, mas comparecem para consultas porque não existe outro profissional na rede para atendê-los. Estes casos ficam na maior parte vistos apenas pelo psiquiatra, sem discussão com uma equipe, o que é um retrocesso em relação ao que acontecia no ambulatório. Além disso, os pacientes passam pela velha história de receber uma receita e voltar daqui a dois, três meses sem serem avaliados adequadamente, pelo motivo de que existem muitos pacientes para serem atendidos. Ou seja, continua existindo um “ambulatório extra-oficial” dentro de muitos CAPS e uma desassistência na Atenção Básica. Se a placa do lado de fora é de um CAPS, a lógica vigente em uma parte do atendimento do CAPS é ambulatorial, e ambulatorial no pior sentido do termo. Não seria mais adequado criar políticas com um dispositivo que possa realizar as ações de Saúde Mental para que os casos que não são demanda de CAPS sejam atendidos de maneira satisfatória? Não é mais adequado que exista uma equipe que trabalhe esses casos em um lugar onde existam profissionais “psis” que de verdade possam trabalhar a demanda existente, que poderia ser um ambulatório, desde que regido pela lógica do CAPS? Entendemos perfeitamente que a Reforma privilegiou o atendimento aos pacientes psicóticos e neuróticos graves através dos CAPS e era o que tinha que ser feito, mas porque há tanto rechaço ao ambulatório? O que tem de ser rechaçado não é o modelo de ambulatório desarticulado da rede? 154 Como ficam os pacientes que necessitam de atendimento e não se encaixam na população de CAPS? Se a Reforma teve que privilegiar o tratamento da psicose, no entanto ela não pode ser “psicóticocêntrica” e ignorar o sofrimento produzido pela neurose. A criação e sustentação do CAPS não necessariamente têm que ser excludente com a continuação do ambulatório. O que precisa ser desconstruído é o funcionamento segundo uma lógica anterior a do CAPS. É preciso que os ambulatórios existam e sejam regidos pela lógica do cuidado que o CAPS encarna e representa. Assim como o CAPS deve ordenar os vários dispositivos da rede, pode e deve fazer com os ambulatórios existentes. Podemos concordar que os PSFs ou as Unidades Básicas tratem, façam clínica, mas nos parece uma clínica que vai mais ao encontro de “sanitarizar” do que tratar. Com certeza podemos dizer que há um trato, mas não um tratamento. Ouvimos certa vez de uma coordenadora regional de Saúde Mental a declaração que na Atenção Básica as senhoras de meia idade, poliqueixosas, que não respondiam aos tratamentos psis poderiam muito bem passar a serem atendidas pelos médicos e participarem de oficinas para ocuparem seu tempo. Sabemos que benzodiazepínicos e oficinas terapêuticas nunca poderão mudar a posição subjetiva de um sujeito e o que está acontecendo atualmente é uma desassistência para aqueles que não são pacientes de CAPS. Podemos ingenuamente celebrar que um paciente que é acometido por um surto seja rapidamente atendido numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ou mesmo em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), de uma maneira mais “despsiquiatricizada” possível e, depois de medicado ser encaminhado a um CAPS ou para outras instâncias do território, de maneira que sua crise dure o mais breve possível, através de intervenções médicas “eficazes”, porém, o que está acontecendo é que a loucura está sendo tratada apenas como um mal orgânico qualquer. Há dessa maneira, um tratamento médico, sanitário, mas não psíquico e muito menos uma clínica do sujeito. Não se trata de uma psicoterapia, uma psicanálise e nem uma psiquiatria. A loucura está sendo incluída como uma apendicite, uma hérnia ou um mioma, a tal ponto que o ápice da inclusão seria sua total dissolução, como um câncer, um furúnculo ou uma infecção, caso isso fosse possível. Podemos nos perguntar que inserção é essa que elimina toda a diferença, que trata a loucura como um mal a ser eliminado, ao invés de poder ser admitida como uma experiência singular e radical do humano. O desejo da civilização, desejo do mestre, desejo de que tudo funcione sem falhas, de maneira homogênea é o que conduz a isso. A psicanálise sabe que a falha é irredutível, que o gozo não se erradica e que o que é singular não faz norma. Uma das contribuições da psicanálise à coisa pública é a de mostrar que o 155 gozo não se estanca, porém pode se tornar possível e domesticado pela via do sintoma. Uma das maneiras de contribuir com o pacto civilizatório seria suportar o que faz exceção. A “exclusão” assim, em psicanálise, é lógica e necessária para que, do vazio que dela se instala, o sintoma possa advir como amarração possível do sujeito ao campo do Outro. O sintoma, nesta perspectiva, é menos proliferação do mal-estar que seu tratamento possível no laço civilizatório. Ele é a conseqüência lógica e estrutural da constituição do sujeito, e não o mal a ser extirpado (GUERRA; GENEROSO, 2010). 156 CONCLUSÃO Nossa dissertação trouxe em certo sentido um paradoxo, já que ao mesmo tempo em que exalta a Reforma Psiquiátrica no Brasil como movimento reconhecidamente revolucionário e eficaz faz severas críticas aos aspectos que ainda não foram contemplados pela Reforma e que dizem respeito particularmente a clínica nos centros de atenção psicossocial. Se como citamos anteriormente, o Brasil é reconhecidamente o país que mais operou mudanças estabelecendo políticas decisivas para a humanização e qualificação dos cuidados aos doentes mentais, mudando radicalmente a realidade dos pacientes e de suas famílias, alcançando de maneira abrangente toda a sociedade, vimos que a ênfase na inclusão, na reabilitação e na normatização não pode sustentar uma clínica no cotidiano do CAPS e nem tão pouco as políticas públicas de Saúde Mental. A Reforma Psiquiátrica Brasileira passa por um momento preocupante. Fatos recentes nos dão notícias de que os pilares básicos da Reforma estão sendo solapados avultadamente. A determinação da internação compulsória de jovens usuários de crack em situação de rua pelo Secretário de Assistência Social do Rio de Janeiro, a suspensão das reuniões dos colegiados em Minas Gerais, o credenciamento de Comunidades Terapêuticas para o tratamento de álcool e drogas, a nomeação de coordenadores estaduais de Saúde Mental nos estados de São Paulo e Minas Gerais ligados a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), instituição que sempre se posicionou contrária a Reforma Psiquiátrica, e a publicação no site oficial da ABP em junho de 2011 informando que o Ministério da Saúde teria concordado em audiência com os representantes da instituição em rever a atual Política de Saúde Mental do Governo Federal e em analisar a eficiência dos 1.560 CAPS e os serviços que eles prestam em todo o Brasil denotam a gravidade da situação. Com certeza avaliar os serviços dos CAPS, melhorar sua qualidade e rever as suas formas de funcionamento faz parte da observância dos deveres do poder público garantindo à população o direito a um atendimento adequado em Saúde Mental. A questão é por onde andará o campo de Saúde Mental se for de mãos dadas com as propostas da ABP, que vão de encontro à Política Nacional de Saúde Mental, propostas tais como a criação de ambulatórios de psiquiatria, contratação de psiquiatras para as emergências ou criação de ambulatórios especializados tais como ambulatórios de Esquizofrenia, de 157 Transtorno de Humor Bipolar (THP) e de Neurolépticos de Ação Prolongada(NAP) e outra ações que demonstram uma posição política totalmente contrária a todas as diretrizes e concepções da Reforma que foram definidas para o seu campo através de um longo processo histórico-político. O que esperamos que aconteça ao nos manter completamente esfacelados e sem maior clareza do que queremos para o campo de Saúde Mental? Perguntamos com Elia (2011b, p. 4) se nós que estão inseridos nesse campo “queremos algo que seja comum a um número significativo de nós, que possa ter, hoje, o lugar de causa para algum movimento”. Até quando nos manteremos em uma posição avessa à discussão teórica e epistemológica permitindo que saberes com seus referenciais pouco explicitados e velados encontre o campo da Saúde Mental com suas teorias que só aparentemente lhe são tão estranhas e não completamente forasteiras ao seu campo, tais como já deu mostra a medicina do comportamento, com seu organicismo violento associado a um comportamentalismo cognitivo e adestrador? Com essa posição permitimos que o saber implicado continue velado, fazendo-se passar por ausência de teoria ou de saber, para com isso fazer pactuações com não importa que saberes, conforme os diferentes interesses. Há um saber que se faz velar, camuflar assim como uma ambigüidade dos saberes utilizados pela Reforma para evitar um compromisso teórico mais conseqüente e responsável. Apresentamos a teoria e clínica psicanalítica da psicose através das balizas estabelecidas pelo inventor da psicanálise, Sigmund Freud e da estruturação sustentada por Jacques Lacan, teoria muitas vezes tomada como de difícil compreensão, porém decididamente a que pode dar sustentação de maneira satisfatória frente à impactante clínica que é a da psicose, especialmente no dispositivo dos CAPS. Por outro lado trouxemos uma questão polêmica, esta especificamente para os psicanalistas, que diz respeito ao que se faz dentro do campo de Saúde Mental. Se ainda hoje os que não são psicanalistas questionam a presença da psicanálise nas instituições e se por outro lado, algumas Escolas de Psicanálise declaram não ser psicanálise o que se faz no campo público, outros, porém defendem que o que se faz pode ser atravessado pela psicanálise e produzir uma mudança na clínica institucional sem, no entanto reconhecer em sua prática a psicanálise stricto sensu, como é o caso da prática entre vários. Em outra direção temos os pesquisadores e autores da psicanálise com muitos que afirmam praticar a psicanálise com todo o seu rigor ao mesmo tempo em que cumprem os princípios da Reforma Psiquiátrica através de uma psicanálise coletiva. Esta última posição é a que 158 apontamos como uma direção para a construção da clínica, ausente nos CAPS que atendem a população de adultos. Só uma clínica, e uma clínica que tenha sustentação teórico-clínica consistente como é a da psicanálise, que leve em conta o diagnóstico estrutural, sustentada pela escuta do sujeito, levando em conta a dimensão transferencial, pode ser recurso para a permanência dos pacientes no dispositivo de uma maneira a propiciar que o paciente construa e fortaleça seus laços de pertencimento de uma maneira eficiente bem como influenciar a política do campo de Saúde Mental a permanecer dentro de seus pilares. Podemos dizer que assim como proposto no início de nossa pesquisa pudemos experienciar além dos princípios da inclusão do sujeito pela via do inconsciente, de fazer da clínica o lugar de produção do saber fazendo coincidir tratamento e investigação, tomando cada caso como se fosse o primeiro em nosso campo de pesquisa que foi a clínica, pudemos provar os efeitos de nos colocar numa posição de trabalho, posição de analisante frente a pesquisa, de nos colocar como um sujeito dividido a partir do saber constitutivo do campo do inconsciente. Dois intervalos marcam os efeitos descritos acima. Durante o ano de 2009 nos afastamos do CAPS com adultos em Minas Gerais para desenvolvermos a primeira parte de nossa pesquisa no CAPSi Pequeno Hans no Rio de Janeiro. Esse intervalo atesta uma mudança subjetiva frente à clínica. Ao retornar em 2010 para prosseguir nossa pesquisa no CAPS, éramos como um estrangeiro. O CAPS era o mesmo, com muitos dos pacientes de antes, mas a pesquisadora não. Foi surpreendente ler algumas de nossas anotações antigas em alguns prontuários como, por exemplo, “o paciente apresenta-se inadequado, incoerente”. Ao ler as anotações pudemos verificar que a inadequação o tempo todo era nossa. Aquele paciente de quem nós revíamos as anotações no prontuário, bem como todos os outros, sempre estiveram totalmente coerentes em sua norma não fálica e nos falaram coisas que nunca pudemos ouvir. Os pacientes estiveram presentes como sujeitos esperando um analista que desejasse e pudesse estar na clínica em uma posição freudiana de investigação e tratamento. O segundo intervalo entre 2010 até o final da presente pesquisa testemunha outra mudança subjetiva, dessa vez frente ao texto freudiano e lacaniano podendo haver uma possibilidade de mais diálogo frente aos textos e certa autoria. A pesquisadora que iniciou essa pesquisa nunca mais foi vista. Uma outra pôde continuar se colocando em trabalho e prosseguir a pesquisa. Essa dissertação é o resultado desse percur 159 REFERÊNCIAS ALBERTI, S. Anotações do seminário teórico clínico de psicanálise do mestrado em pesquisa e clínica em psicanálise. Rio de Janeiro: UERJ, 2009a. ______. Esse sujeito adolescente. 3. ed. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; Contra Capa, 2009b. ______. Psicanálise e discurso: a clínica no campo social. In: GUERRA, A. M.; MOREIRA, J. O. (Org.). A psicanálise nas Instituições Públicas. Curitiba. Editora CRV, 2010. AMANCIO, V. R. O amor e seus transtornos na neurose e na psicose. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL,9., 2010, Curitiba e CONGRESSO NACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 10., 2010, Curitiba. O amor e seus transtornos. Curitiba : Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, 2010. Cópia Impressa. AMARAL, N. A foraclusão dos Nomes do Pai. In: JORNADA BRASILEIRA DE CONVERGÊNCIA, 8., 2009, Niterói, RJ. Os nomes do Pai. (Cópia mimeografada). AMARAL, N.; ELIA, L. 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