Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Valdene Rodrigues Amancio
Uma clínica para o CAPS
Rio de Janeiro
2011
Valdene Rodrigues Amancio
Uma clínica para o CAPS
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós Graduação em
Psicanálise, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Pesquisa e Clínica em Psicanálise.
Orientador: Profº. Drº. Luciano da Fonseca Elia
Rio de Janeiro
2011
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
A484
Amancio, Valdene Rodrigues.
Uma clínica para o CAPS / Valdene Rodrigues Amancio. – 2011.
168 f.
Orientador: Luciano da Fonseca Elia.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia.
1. Psicanálise – Teses. 2. Serviços de saúde mental – Brasil –
Avaliação – Teses. 3. Pessoal da área de saúde mental e pacientes –
Teses. 4. Reforma psiquiátrica – Teses. I. Elia, Luciano da Fonseca.
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
III. Título.
nt
CDU 159.964.2
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
________________________________
Assinatura
________________
Data
Valdene Rodrigues Amancio
Uma Clínica Para o CAPS
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós Graduação em Psicanálise, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Pesquisa e Clínica em
Psicanálise
Aprovada em 30 de agosto de 2011.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Luciano da Fonseca Elia (Orientador)
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra Sonia Alberti
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Andréa Máris Campos Guerra
Instituto de Psicologia da UFMG
Rio de Janeiro
2011
DEDICATÓRIA
Aos atores da Reforma Psiquiátrica, aqueles que são dignos de serem chamados assim,
desejando que uma lufada oxigenante de desejo possa vir a arejar os tempos difíceis que
atravessamos nesse campo e ter efeito de nos unir coletivamente para prosseguirmos
reformando.
AGRADECIMENTOS
Parafraseando Clarice Lispector “que não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”
A Deus, o bíblico, da Teologia Reformada, causa primária de todas as coisas, que em
sua soberania conduziu as causas secundárias, ao mesmo tempo em que paradoxalmente me
colocou como um sujeito responsável e ativo por minha história.
Aos meus pacientes pelas questões que me puseram em trabalho e por colaborarem
com meu aprendizado da clínica da psicose.
A Luciano Elia pela presença na psicanálise em intensão e em extensão e durante toda
a pesquisa realizada. Que privilégio ter sido orientada por alguém que não se identifica com
sua douta posição e que transmite de maneira rigorosa e generosa os ensinos de Freud e
Lacan, que me proporcionou reflexões importantíssimas no campo da Reforma Psiquiátrica,
que me fez ultrapassar embaraços durante o percurso possibilitando a construção de uma outra
relação com a clínica e o saber. Para sempre minha gratidão.
Considero também de grande privilégio poder usufruir de uma banca examinadora do
quilate de Andréa Máris Campos Guerra e Sonia Alberti. As indicações de caminhos,
contribuições generosas e retificações importantes muito colaboraram para as questões de
nossa pesquisa.
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica da Psicanálise
da UERJ que de alguma maneira contribuíram com nosso percurso: Sonia Alberti, Sonia
Altoé, Marco Antônio Coutinho Jorge, Ana Costa, Ana Cristina Figueiredo, Doris Rinaldi,
Rita Manso e Heloísa Caldas.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise pelo apoio e às bibliotecárias da UERJ pelo zelo e precisão nas orientações.
Aos meus colegas de turma de mestrado que se tornaram amigos e companheiros de
jornada amenizando o cansaço dos 800 km de estrada, Marco Aurelio Silva, Paula Coutinho,
Ameli Fernandes, Fernanda Samico, Claudia Oliveira, Fernanda Cox, Claudia Fernandes,
Manoel Leite, Leila Mendonça, Leonardo Cabral, Henrique Martins, Renata Sales, Flavia
Bonfim e Cleuse Barleta do doutorado.
Aos meus colegas do CAPS de Varginha lugar da minha ausência maior em uma parte
da minha pesquisa, especialmente minha coordenadora e amiga Vanda Maria Silva Rodrigues
e também Anderson Michel Furtado, Rosana Maria Paiva Frota Vidal, Liliani Rodrigues
Magalhães, Anderson José de Souza, Neuza Maria Theodoro Castilho, Vânia Maria
Bernardes Carmácio, Maria Cristina Silva Pereira, Marta Regina Pícole, Lucimar Silva, Dalva
Maria Paiva Lemes, Talissa Fabiane de Lima Labre Sodré, Valéria Aparecida Silvério e
Juliana Pimenta Santiago que dividem comigo a desafiadora clínica de permanência-dia do
CAPS. Também aqueles colegas e amigos que fizeram parte de uma história clínica anterior
importante: Rejane Tecla Rodrigues, Vívian Leal, Luciana Maria de Resende Teixeira, Maria
Cristina Martins Leal, Vanessa Bíscaro Canela, Angela Amarante, Beatriz Vilela, Dhebora,
Alessandro Caldonazzo Gomes, Waldir José Assis, Carlos Augusto de Souza, Jovana Sério
Veiga, Jorge Geovane Tostes e Camila Comune.
A equipe do CAPSi Pequeno Hans por consentirem com minha presença durante todo
ano de 2009 e compartilharam comigo a sua rica experiência. Em especial, Nympha Amaral e
Katia Wainstock Alves dos Santos.
Aos membros do Laço Analítico Subsede Varginha, pares com quem percorro a
formação permanente em psicanálise.
Aos membros do Laço Analítico Subsede Rio, também meus pares, que nesse período
permitiram fazer da Subsede a minha casa.
Aos meus alunos da graduação e pós- graduação que me instigaram com suas
questões.
A Antônio Amâncio da Silva, meu pai. O ipê amarelo surgiu dias atrás como todos os
agostos, exuberante, lindo, impactante, me fazendo escutar mais uma vez a sua voz: "quando
você ver o ipê Valds, é porque meu aniversário está chegando...". Antes a árvore marcava sua
ausência, mas faz algum tempo que ela me traz sua presença carregada de bom humor, de
alegria e de seu amor por mim que nunca esquecerei.
A Maria de Lourdes Rodrigues Amancio, minha mãe, com quem aprendi dentre outras
coisas o amor pelo trabalho, pelos estudos e também a perseverar.
A Flávia Danielle Rodrigues Silva, com quem divido com seus pais o amor de uma
filha e que esteve sempre presente na minha vida, mas principalmente nesses anos de
pesquisa: obrigada pelo abraço singular no dia 11/09/2008, pela companhia nas viagens para
seleção do mestrado, por cuidar de mim na recuperação das minhas cirurgias, por continuar a
digitação dos meus trabalhos de mestrado quando eu já exausta, pelas nossas horas de lazer e
humor que parecem histórias de um seriado divertido. Sem você eu não teria conseguido!
A minha irmã e amiga Wanderleia Rodrigues Amancio, por sua companhia, única
testemunha, no único momento em que esmoreci.
Ao meu irmão e amigo Wanderney Rodrigues Amancio, tão longe, mas que soube
estar perto com seus telefonemas e palavras. Quanta falta você me faz!
Aos meus tios Niercides Batista Policarpo e Irene Policarpo, pelo apoio de várias
formas e por me acolherem sempre como filha.
Ao meu amigo e irmão Natanael Atilas Aleva, pelo incentivo para iniciar o mestrado,
pelas horas que se ocupou comigo na orientação do projeto preliminar e por ter me salvado
com seu telefonema naquela noite de "sangue, suor e lágrimas".
Ao meu amigo e irmão Luidi Figueiredo Braga, por ter estado ao meu lado, pelas aulas
de espanhol que me deu de presente, por ter muitas vezes largado as horas com a família para
me ensinar e por continuar usando seu humor para me fazer rir.
A todos os meus amigos e especialmente Lígia Gomes Aleva, Juliana Basques
Tavares, Fabiana Basques Tavares Braga, Rita Basques Tavares, Azenete Berto, Ana Cristina
Sather, Guilherme Demétrio Ferreira e Luciana Maria de Resende Teixeira, amizades eternas
que fizeram mais suave o meu caminho.
A Ademir Gomes Junior, por ter tido o abraço mais gostoso do mundo para me
encorajar.
A Igreja Presbiteriana de Varginha, especialmente Reverendos Ismael Elias da Silva e
Lucas Felipe Apolinário e aos meus alunos da EBD.
RESUMO
AMANCIO, Valdene Rodrigues. Uma clínica para o CAPS. 2011. 168 f. Dissertação
(Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise). Instituto de Psicologia, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2011.
A presente dissertação é uma pesquisa teórico-clínica sobre o dia-a-dia dos pacientes e
técnicos dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), especificamente no que diz respeito à
clínica neste dispositivo. O que é clínica? Temos uma clínica? Que clínica temos? Que clínica
para o CAPS? Como construí-la? A partir de um breve histórico sobre a Reforma Psiquiátrica
Brasileira, desde a criação de seu primeiro hospital público, na cidade do Rio de Janeiro, até a
constituição de um novo campo, que é o campo da atenção psicossocial percorremos os
principais episódios que contribuíram para a constituição deste campo, destacando as
resoluções das quatro conferências nacionais de Saúde Mental que colaboraram para a
sustentação do movimento transformando o Brasil no país que mais avançou no tratamento
oferecido aos doentes mentais. Por último levantamos a relação da Reforma Psiquiátrica com
o saber, com as teorias e com o ecletismo teórico. Discorremos sobre a teoria e clínica
psicanalítica da psicose abordando a teoria freudiana e a interpretação lacaniana através dos
três registros do real, simbólico e imaginário. A questão central - Uma clínica para o CAPS foi trabalhada levantando questões relacionadas ao que chamamos de herança do modelo
manicomial presente na atenção psicossocial e que dificultam a construção de uma clínica. Os
CAPS, em sua maioria, são cidadãos, inclusivos, reabilitadores sociais e exibem efeitos aos
quais não podemos recusar a dimensão de terapêuticos, mas isso não basta para dizermos que
existe uma clínica nos CAPS. A ênfase continua sendo a reinserção social e não o exercício da
clínica. A partir do estudo de algumas práticas institucionais realizadas a partir da psicanálise,
práticas que podem contribuir para a construção de uma clínica nos CAPS, tais como a
psicoterapia institucional de Jean Oury, a prática entre vários surgida na Europa com adeptos
também no Brasil e a psicanálise com muitos, clínica gerada e operante em alguns CAPSis do
Rio de Janeiro elegemos a psicanálise com muitos como melhor dispositivo para a clínica
com adultos devido a radicalidade de sua proposta desde o início em realizar de maneira
rigorosa as diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas de Saúde Mental no que diz
respeito a um centro de atenção psicossocial, bem como realizar o mais rigorosamente
possível as diretrizes teórico-clínicas e ético-metodológicas da Psicanálise quanto ao que seja
o exercício de sua práxis. Passamos a analisar outros aspectos importantes do cotidiano dos
Centros de Atenção Psicossocial com adultos e propomos quatro pilares para a construção de
uma clínica efetiva para este dispositivo: o diagnóstico estrutural, uma ética para o sujeito, a
psicanálise coletiva e a dimensão clínica de rede.
Palavras-chave: Centro de Atenção Psicossocial. Reforma Psiquiátrica. Saúde Mental.
Psicanálise.
RESUMEN
Esta disertación es una investigación teórica y clínica sobre la vida del día a día de los
pacientes y técnicos de los Centros de Atención Psicosocial (CAPS), específicamente con
respecto a la clínica de este dispositivo. ¿Qué es la clínica? ¿Tenemos una clínica? ¿Qué
clínica tenemos? ¿Qué clínica para el CAPS? ¿Cómo construirla? A partir de un breve
histórico de la Reforma Psiquiátrica brasileña, desde la creación de su primer hospital público
en la ciudad de Río de Janeiro, a la creación de un nuevo campo, que es el campo de la
atención psicosocial pasamos por los principales acontecimientos que contribuyeron a la
constitución de este campo, destacando las resoluciones de las cuatro conferencias nacionales
de salud mental que han contribuido para apoyo del movimiento transformando Brasil en el
país que ofrece más avances en el tratamiento de los enfermos mentales. Finalmente, plantear
la relación de la Reforma Psiquiátrica con el conocimiento, con las teorías y el eclecticismo
teórico. Hablamos de la teoría y la clínica psicoanalítica de la psicosis abordando la teoría
freudiana y la interpretación lacaniana a través de los tres registros de los archivos: real,
simbólico e imaginario. La cuestión central - Una clínica para el CAPS - se trató planteando
cuestiones relacionados con lo que llamamos el legado del modelo de manicomio en la
atención psicosocial y que dificultan la construcción de una clínica. CAPS, en la mayoría de
los casos, son los ciudadanos, incluidos, rehabilitadores sociales y muestran efectos a los
cuales no podemos rechazar la dimensión terapéutica, pero esto no es suficiente para decir que
hay una clínica en el CAPS. El énfasis continúa siendo la reinserción social y no la práctica
clínica. A partir del estudio de algunas de las prácticas institucionales realizadas de
psicoanálisis, prácticas que pueden contribuir a la construcción de una clínica en CAPS, tales
como la psicoterapia institucional de Jean Oury, la práctica entre varios surgida en Europa,
también con adeptos en Brasil y el psicoanálisis con muchos, clínica generada y operantes en
algunos CAPSis de Río de Janeiro elegimos psicoanálisis con muchos como el mejor
dispositivo para la clínica con adultos, debido a su propuesta radical desde el principio para
llevar a cabo rigurosamente los lineamientos establecidos por las Políticas de Salud Mental
con respecto a un Centro de Atención Psicosocial, así como realizar, la medida de lo posible,
las directrices teórico-clínicas y ético-metodológico de psicoanálisis de lo que es el ejercicio
de su práctica. Pasamos a examinar otros aspectos importantes de la vida cotidiana de los
Centros de Atención Psicosocial con adultos y proponemos cuatro pilares para la construcción
de una clínica efectiva para este dispositivo: el diagnóstico estructural, una ética para el
sujeto, psicoanálisis colectiva y la red de dimensión clínica.
Palabras clave: Centro de Atención Psicosocial. Reforma Psiquiátrica. Salud Mental.
Psicoanálisis.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Nó borromeano.................................................................................................
54
Figura 2 - Esquema L.........................................................................................................
58
Figura 3 - Grafo do desejo – 1 º estágio.............................................................................
59
Figura 4 - Grafo do desejo – 1º andar................................................................................
60
Figura 5 - Esquema R........................................................................................................
62
Figura 6 - Esquema I..........................................................................................................
79
Figura 7 - Grafo do desejo - “Che vuoi?” ........................................................................
83
Figura 8 - Grafo do desejo completo.................................................................................
85
Figura 9 - Nó borromeano com três e quatro anéis – Sinthoma........................................
106
LISTA DE SIGLAS
ABP
Associação Brasileira de Psiquiatria
CAPS
Centro de Atenção Psicossocial
CAPSi
Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes
CERSAM
Centros de Referência em Saúde Mental
CNSM
Conferênciaf -175.544 -20.4 Td 1rnc(C)3.55942(o)-1.91845tal de (N)2.1.156(S)1.31968(a)-1.91977
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO......................................................................................................
13
A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO: A ATENÇÃO
19
PSICOSSOCIAL....................................................................................................
1.1
A Reforma Psiquiátrica Brasileira - Breve histórico..........................................
19
1.2
História do CAPS-Breve histórico dos centros de atendimento Psicossocial...
25
1.3
A Reforma Psiquiátrica: ainda à procura de saberes?......................................
32
1.3.1 Aversão ao saber e ecletismo teórico clínico...........................................................
33
1.3.2 Universidade e Reforma Psiquiátrica......................................................................
34
1.3.3 A Reforma Psiquiátrica e a supervisão clínico – institucional................................
37
1.3.4 Exacerbação do resgate da cidadania e da normatização........................................
39
1.3.5 Uma direção proposta: a psicanalítica.....................................................................
41
2
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA PSICOSE..................................
46
2.1
A importância de reafirmar a psicose como uma estrutura clínica..................
46
2.2
O simbólico e a psicose..........................................................................................
54
2.2.1 A castração, um operador estruturante....................................................................
54
2.2.2 O complexo de édipo e seus três tempos.................................................................
55
2.2.3 A metáfora paterna..................................................................................................
57
2.2.4 Os fenômenos da linguagem na psicose..................................................................
65
O imaginário e a psicose........................................................................................
70
2.3.1 Narcisismo...............................................................................................................
71
2.3.2 Estádio do espelho...................................................................................................
72
2.3.3 Os fenômenos imaginários......................................................................................
74
2.3.4 O desencadeamento do surto psicótico....................................................................
76
O real e a psicose....................................................................................................
82
2.4.1 Realidade, realidade psíquica e fantasia..................................................................
82
2.4.2 Gozo e Psicose.........................................................................................................
84
2.4.3 Delírio.......................................................................................................................
86
2.3.4 Empuxo-à-mulher.....................................................................................................
89
A transferência na psicose.....................................................................................
90
2.3
2.4
2.5
Estabilização psicótica...........................................................................................
96
2.6.1 Passagem ao ato.......................................................................................................
96
2.6.2 Metáfora delirante....................................................................................................
98
2.6.3 Escrita.......................................................................................................................
101
2.7
Laço social e psicose...............................................................................................
105
3
HÁ UMA CLÍNICA NOS CAPS? .......................................................................
109
3.1
A Reforma Psiquiátrica e a herança do modelo manicomial.............................
109
3.2
Psicanálise e Instituição.........................................................................................
111
3.2.1 A psicoterapia institucional de Jean Oury................................................................
111
3.2.2 A prática entre vários...............................................................................................
114
2.6
3.2.3 A psicanálise com muitos......................................................................................... 117
3.3
A construção de uma clínica para o CAPS com adultos..................................... 121
3.3.1 O diagnóstico estrutural...........................................................................................
129
3.3.2 Uma ética para o sujeito...........................................................................................
136
3.3.3 A Psicanálise coletiva............................................................................................... 143
3.3.4 A dimensão clínica de rede......................................................................................
152
CONCLUSÃO........................................................................................................
157
REFERÊNCIAS....................................................................................................
160
13
INTRODUÇÃO
No início de nosso percurso no campo da Saúde Mental, há cerca de 20 anos atrás,
não tínhamos quase nenhum questionamento sobre a práxis exercida neste campo. Os
incômodos surgiram no decorrer dos anos de prática, com o avanço de nossa formação em
psicanálise e as mudanças sofridas pelo Serviço de Saúde Mental de nossa cidade, um
ambulatório clássico, transformado alguns anos depois em ambulatório com oficinas, e em
2005, em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
As várias mudanças do serviço foram resultados do trabalho e do desejo da equipe,
ou de parte dela, e coincidiam com os ideais do movimento da Reforma Psiquiátrica
Brasileira em plena militância nos últimos anos. Porém em 2005, paralelamente à
transformação do serviço em CAPS, a equipe multidisciplinar constituída há muitos anos
foi dissolvida pela gestão municipal restando apenas nós e outra colega da antiga equipe no
dispositivo. Os pacientes neuróticos passaram a ser atendidos na Atenção Básica
juntamente com psicóticos que estavam estabilizados. A chegada de pacientes graves que
antes eram encaminhados para os manicômios e a de profissionais com pouca ou nenhuma
experiência em Saúde Mental compôs um quadro de grandes dificuldades do cotidiano da
unidade, denunciando uma prática a-teórica mas que, mesmo negligente quanto a seus
pressupostos e fundamentos, caracterizava-se pelo mais franco organicismo e pela mais
clara vocação hospitalocêntrica, mesmo sobre o fundo de um ideário antimanicomial
sustentado pela equipe.
As dificuldades de articulação entre a teoria e a prática, a desafiadora clínica da
psicose que se impôs ao dia-a-dia do CAPS, os questionamentos dentro e fora da equipe
sobre a clínica psicanalítica em uma instituição pública, acrescidos das nossas próprias
interrogações sobre a clínica da psicanálise articulada ao campo da Reforma, a falta de
supervisão clínico-institucional e last but not least, a experiência de ensino na
universidade, justamente no campo da teoria e da clínica em Saúde Mental, fez-nos buscar
fundamentos para a nossa prática e apostar num possível bem-dizer sobre ela.
No início do percurso de elaboração desta dissertação relacionamos várias questões
referentes às nossas dificuldades no CAPS. As questões eram:
- Lacan conclama os psicanalistas a que não recuem diante da psicose. Se atualmente é
predominantemente nos CAPS que encontramos a possibilidade de tratamento da psicose,
não é neste dispositivo que a psicanálise deve também considerar sua atuação? Como o
14
psicanalista pode estar num CAPS e não recuar diante da psicose e ao mesmo tempo não
recuar do próprio rigor da psicanálise?
- Como se pratica a clínica nos CAPS que tem como direção a psicanálise e naqueles que
tem outra direção ou ainda nenhuma direção?
- Quais as contribuições que a psicanálise de orientação lacaniana pode dar aos desafios
enfrentados pela Reforma Psiquiátrica para que o modelo não repita o que com tanto
empenho combateu ao longo dos anos?
- De que modo deve se dar a estruturação do atendimento dos pacientes nesse dispositivo,
levando em conta o acolhimento, o atendimento à crise, as práticas em oficinas e tudo o
que envolve a convivência de técnicos e pacientes a partir da clínica psicanalítica?
- As práticas organicistas, comportamentais e humanistas somadas ao atendimento dito de
base psicanalítica podem repetir a lógica manicomial, hospitalocêntrica por não levar em
conta o sujeito do inconsciente?
Inicialmente ao levantar todas essas questões, entendíamos que alguma coisa não
caminhava bem no dia-a-dia dos pacientes e dos técnicos, não só no CAPS onde
atuávamos, mas em vários lugares do Brasil. No entanto não sabíamos diagnosticar,
nomear muito bem do que se tratava. Fomos avançando nossa pesquisa na história da
Reforma Psiquiátrica, nos modelos institucionais existentes e também na teoria
psicanalítica. Aos poucos uma palavra foi se delineando no horizonte: clínica. O que é
clínica? Temos uma clínica? Que clínica temos? Que clínica para o CAPS? Como construíla?
A partir desse delineamento passamos a intensificar nossa pesquisa com pacientes
adultos, portadores de grave sofrimento psíquico, psicóticos e neuróticos graves, atendidos
em regime de permanência-dia, em caráter intensivo, semi-intensivo e não intensivo nos
Centros de Atenção Psicossocial sem o referencial da psicanálise fazendo contraponto com
os CAPS que atendiam clinicamente dentro do dispositivo da psicanálise.
A pesquisa ocorreu predominantemente em um CAPS de atendimento de adultos
em Minas Gerais que não tinha o dispositivo de supervisão clínico institucional além de
trabalhar com uma direção teórico-clínica imprecisa ou, se quisermos ser benevolentes,
diversificada e em um Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes
(CAPSi) do Rio de Janeiro que atendia crianças e adolescentes com o dispositivo da
supervisão e a direção única da psicanálise. Pesquisamos também através de visitas
técnicas e entrevistas os CAPS de diferentes regiões do Brasil, como os do sul de Minas
Gerais, da região metropolitana de Curitiba-PR e do Rio de Janeiro-RJ.
15
Nosso modo de direcionar a pesquisa teve a ver com a maneira de conceber e de
fazer pesquisa em psicanálise que não coincide com o modo cientifico de conceber e fazer
pesquisa. Isso porque a relação da psicanálise com a ciência pode ser formulada em termos
de derivação da primeira em relação a segunda como propõe Lacan (1998g) no texto A
ciência e a verdade, dos Escritos. Passaremos a definir melhor o nosso método de pesquisa
antes de entrar em nossas questões propriamente dita.
A psicanálise deriva da ciência e tem no corte que inaugura a ciência moderna no
século XVI, com Galileu e Descartes, a sua condição de possibilidade. Apesar de derivar
da ciência a psicanálise não se reduz a ela, pois vai operar um corte em relação ao passo
inaugural da ciência. Trata-se de um rompimento discursivo que tem ligação direta com a
noção de sujeito. É em relação à posição dessa noção em cada um desses dois campos
discursivos, o da ciência e o da psicanálise, que melhor se esclarecem as relações entre
esses campos (ELIA, 2000).
Freud aspirou que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência. Ele nutria o
ideal de ciência. Já Lacan no resumo para o anuário da EPHE, colocou uma questão para a
ciência ao perguntar “O que é uma ciência que inclui a psicanálise?” (LACAN apud
MILNER, 1996, pg. 31). Tal questão diz respeito à psicanálise ter introduzido o sujeito na
cena discursiva, pois a ciência em sua fundação vai supor o sujeito, porém no mesmo golpe
vai excluí-lo. Sendo assim, a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado
do campo científico, contudo sem integrá-lo, já que subverteu o referido campo pelo viés
do sujeito.
Lacan, no que Milner (1996) denomina de seu Doutrinal de Ciência, faz a leitura
do passo cartesiano do Cogito como tendo introduzido um sujeito sem qualidades, já que
Descartes o reduz, por meio da dúvida metódica, a nada saber exceto do fato de que pensa,
e, se pensa, é. A psicanálise retomaria, para Lacan, este ponto inaugural da ciência, cujo
correlato, na expressão lacaniana, seria o Cogito, para fundar um sujeito do inconsciente
precisamente para o qual o despojamento de toda e qualquer qualidade seria uma condição
sine qua non: as qualidades humanas (anímicas, sensório-perceptivas, afetivas ou
intelectuais) constituirão os revestimos identificatórios e imaginarizantes do sujeito, que
tomam forma no “seu” eu. Tais revestimentos são guia de regra o que as ciências chamadas
“humanas” tomam como objeto de estudo e investigação. Quando dizemos com Lacan que
a psicanálise deriva do campo da ciência não habitando, contudo esse campo, afirmamos
que o sujeito com que a psicanálise opera é um sujeito sem qualidades.
16
Se o sujeito com quem operamos em psicanálise não pode ser senão o sujeito da
ciência como afirma Lacan (1998g) não cabe afirmar que a psicanálise é uma ciência
humana, pois não se trata nela de forma alguma, do homem, mas do sujeito. A psicanálise
tampouco se situa no campo das ciências físicas ou naturais. Com a obra de Lacan,
dizemos que a psicanálise não está mais contida no campo da ciência. A psicanálise
subverteu o sujeito suposto e excluído, a um só tempo, pela ciência e vai trabalhar a partir
da inclusão desse sujeito, no campo de sua experiência, inclusão essa que se fará pela via
do inconsciente.
Tais pressupostos metodológicos impedem, por exemplo, que façamos uma
pesquisa de campo tomando os sujeitos – no caso, os pacientes ou os técnicos do CAPS –
como objetos sobre os quais procuraríamos aplicar um saber, a fim de extrair, desses
objetos, algumas outras formas e níveis de saber além daquele que previamente teríamos
aplicado sobre eles. Os pressupostos que, de forma bastante sucinta, e aqui apresentados a
título introdutório precisamente por termos considerado que não seria necessário dar-lhes
maior desenvolvimento, visam a sustentar que uma pesquisa em psicanálise só pode ser
uma pesquisa clínica, pelo que queremos dizer, uma pesquisa em que os próprios sujeitos
serão colocados em posição de emissão do discurso e do saber a ser produzido, restando ao
pesquisador (que não ocupa na pesquisa em psicanálise o lugar do analista, uma vez que
não é o desejo de pesquisa que anima esta função) a posição de analisante, mas de um
analisante que toma o saber produzido pelo sujeito como fonte de elaboração teórica e de
reincidência sobre a clínica.
A partir da inclusão do sujeito pela via do inconsciente articulamos com Elia (2000)
outros princípios para direcionamento da presente pesquisa. Seguindo a recomendação de
Freud (1987e) em seu texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, o
segundo princípio para o pesquisador será que tratamento e investigação devem ser
coincidentes. Dessa maneira a clínica será tomada como o lugar de produção do saber e
não de sua aplicação.
Há outra recomendação freudiana que colocaremos como terceiro princípio para o
pesquisador que será “tomar cada caso como se fosse o primeiro”, já que o saber do
inconsciente não será apreensível por uma mera aplicação do saber acumulado pelo
pesquisador-analisante. O saber do inconsciente se recolocará a cada vez de maneira
inédita devendo ser lido segundo uma estrutura que, por sua vez, não coincidirá com o
saber universal e genérico da ciência clássica. Esse saber incluirá necessariamente o real
inapreensível pelo universal.
17
Como quarto princípio tomaremos a questão do campo de pesquisa. Pesquisar no
campo da psicanálise será tomar a clínica como campo de pesquisa. É a clínica a forma de
acesso ao sujeito do inconsciente e por esta razão ela será sempre o campo de pesquisa. É
que o pesquisador a partir do lugar definido no dispositivo analítico como sendo um lugar
que fará bascularem o lugar do analista com o do analisante (pelas razões que colocamos
acima), vai fazer operar a escuta, escuta analítica que não será guiada pelas qualidades de
valor da consciência, mas pela atenção flutuante orientada por Freud. Na clínica será
necessário pressupor o ato analítico e o desejo do analista.
Destacamos, assim, que será na posição de analisante que o pesquisador deverá
atravessar todos os momentos do desenvolvimento de sua pesquisa. “Pesquisar é antes uma
posição de trabalho [...], lugar do trabalho na transferência, de um sujeito dividido a partir
do saber constitutivo do campo do inconsciente, campo de pesquisa” (ELIA, 2000, p. 24)
como definimos anteriormente. Com essa exposição inicial passemos a falar dos pontos de
que vamos tratar nessa dissertação.
Na primeira seção fizemos um breve histórico sobre a Reforma Psiquiátrica
Brasileira, desde a criação de seu primeiro hospital público, na cidade do Rio de janeiro,
até a constituição de um novo campo, que é o campo da atenção psicossocial. Percorremos,
ainda que de maneira breve, os principais episódios que contribuíram para a constituição
deste campo, destacando as resoluções das quatro conferências nacionais de Saúde Mental
que colaboraram para a sustentação do movimento. Por último levantamos a relação da
Reforma Psiquiátrica com o saber, com as teorias, com o ecletismo teórico, levantando
outros aspectos importantes que influenciaram a relação da Reforma com o saber como a
supervisão institucional, a relação com a universidade e a exacerbação do resgate da
cidadania e da normatização. No final do capítulo vamos propor uma direção: a
psicanalítica.
Na segunda seção discorremos sobre a teoria e clínica psicanalítica da psicose
abordando a teoria freudiana e a interpretação lacaniana. Reafirmamos a importância do
diagnóstico estrutural e em seguida passamos a expor o caminho percorrido por Freud e
Lacan para a clínica da psicose, percurso esse de extrema importância para aqueles que
lidam com a clínica da psicose, porém desconhecido pela maioria dos técnicos de CAPS.
Depois do desenvolvimento das seções mencionadas, necessários para a nossa
questão central - a clínica nos CAPS - chegamos a terceira seção levantando questões
relacionadas à herança do modelo manicomial presente na atenção psicossocial que
dificultam a construção de uma clínica. Em seguida apontamos algumas práticas
18
institucionais realizadas a partir da psicanálise, práticas que podem contribuir para a
construção de uma clínica nos CAPS, tais como a psicoterapia institucional de Jean Oury,
a prática entre vários surgida na Europa com adeptos também no Brasil e a psicanálise
com muitos, clínica gerada e operante em alguns CAPSis do Rio de Janeiro.
Para finalizar abordamos alguns equívocos referentes à psicanálise, especialmente
no que diz respeito à sua presença nas instituições passando em seguida a apresentar
algumas direções que podem colaborar na construção de uma clínica para os centros de
atenção psicossocial.
Esperamos que ao ler essa dissertação, os técnicos dos CAPS, assim como nós,
possam se reconhecer no seu laborioso dia-a-dia nos CAPS e desejamos que a teoria e
clínica da psicanálise que propomos para a clínica nesse dispositivo não sejam para alguns
como um “lacanês” incompreensível ou para outros como o conto de Lima Barreto do
“homem que falava javanês”, analogia que um amigo e colega nosso de CAPS gosta de
usar, mas que seja um despertar para um mergulho na teoria e clínica psicanalítica
relacionando-a com a política e a clínica da Reforma Psiquiátrica. Assim também que as
dificuldades apontadas no campo da Atenção Psicossocial possam servir para avançarmos
reformando.
19
1 A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO: A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
1.1 A Reforma Psiquiátrica – Breve Histórico
Em 1830 a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro realizou um diagnóstico sobre a
situação dos loucos na cidade que a partir de então passaram a ser considerados doentes
mentais e merecedores de espaço próprio para reclusão e tratamento. Devido denúncias da
insalubridade dos porões da Santa Casa de Misericórdia e das péssimas condições em que
viviam os loucos da cidade, em 1841, Pedro II sanciona o decreto de criação do primeiro
hospício do Brasil que foi inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com o nome
de Hospital Psiquiátrico Pedro II e conhecido popularmente como o “Palácio dos Loucos”.
É desse mesmo ano a criação da primeira lei que regulamenta a assistência aos doentes
mentais no Brasil (OLIVEIRA, 2009). Instituições semelhantes foram construídas em
outros estados como São Paulo (Juqueri, em 1898), Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
Assim como acontecia na Europa a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro ressaltava a
necessidade de um tratamento que tendia desde o início para a exclusão (MINAS GERAIS,
2007).
Quatro anos após a sua criação, em 1856, relatórios do hospício Pedro II acusavam
sua superlotação devido à entrada indiscriminada de pacientes em todos os estados,
curáveis e incuráveis, com problemas mentais ou meros indigentes.
Os anos que se
seguiram até o término deste século não viram grandes mudanças na forma de tratamento
da loucura, verificando-se apenas a consolidação do ensino e da prática da psiquiatria no
país, que se tornou especialidade médica autônoma em 1912 (OLIVEIRA, 2009).
Em 1919 é criado o Manicômio Judiciário que se encarregou dos doentes mentais que
cometiam delitos e em 1925, Osório César, pioneiro na utilização das artes plásticas como
método terapêutico, assume a direção do Hospital do Juqueri em São Paulo. Em 1934 o
decreto de № 24.559 reforma a lei de assistência aos doentes mentais que continua sendo
através da exclusão.
Nas décadas de 40 e 50 encontramos inaugurações importantes realizadas pela
psiquiatra Nise da Silveira que apontavam para as mudanças que iriam ocorrer
posteriormente. Temos nessa época a inauguração da Seção de Terapêutica Ocupacional e
20
Reabilitação (STOR) em 1946 no Centro Psiquiátrico Nacional, a inauguração do Museu
Imagens do Inconsciente em 1952 e a da Casa das Palmeiras em 1956, que funcionava em
regime de externato (OLIVEIRA, 2009).
No final dos anos 50, havia nos hospitais psiquiátricos uma grave situação
caracterizada por superlotação, deficiência de pessoal, maus-tratos, falta de vestuário e de
alimentação, parcos cuidados técnicos e condições físicas precárias. Por conta da má fama
dos hospícios públicos houve a entrada da iniciativa privada nesse campo. E de 1964, ano
do golpe militar no Brasil, até os anos 70, tais clínicas se proliferaram. Os hospitais
funcionavam como depósitos humanos, visando benefícios financeiros para os
proprietários de hospitais através de convênios que mantinham esse quadro (MINAS
GERAIS, 2007).
Uma das peculiaridades da Reforma Psiquiátrica é a sua associação a medicina
higienista. Oswaldo Cruz e Juliano Moreira foram dois nomes que se destacaram no
governo de Rodrigues Alves, e tiveram a missão de “limpar” a cidade do Rio de Janeiro do
risco de infecção produzida pela falta de saneamento e planejamentos urbanos, tanto da
massa de desempregados quanto a de indigentes que habitavam as ruas da cidade. Uma das
medidas tomadas por Juliano Moreira, que foi ao encontro a essa determinação do
Governo, foi a “de recolher as sobras humanas do processo de saneamento, encerrá-las
num asilo e tentar, se possível, recuperá-las de algum modo” (RESENDE, 1987, p. 45).
Juliano Moreira reuniu toda esta população e ao fazer o levantamento de seu perfil,
percebeu que havia um alto número de estrangeiros, bem como de seus descendentes
diretos. Moreira chegou à conclusão que a doença mental provinha da corrupção da pureza
indígena produzida pelos europeus que vieram para o Brasil, idéia baseada na pureza dos
donos das terras.
Juliano Moreira, recorrendo-se da sua ciência, em seus aspectos heredobiológicos, e
partindo do argumento de que “a terra era boa e o índio sadio” (antes da chegada dos
colonizadores) concluiu que a Europa nos mandava a sua “escumalha”, e propôs-se a
bater “as portas” dos consulados estrangeiros pedindo a repatriação do material
“defeituoso” que nos enviavam. Sem dúvida, uma das primeiras práticas preventivas
entre nós (RESENDE, 1987, p.46).
A ideologia burguesa do trabalho como indicador da cidadania e do bom
comportamento do cidadão, sendo o termômetro do normal e do anormal, foi associada à
psiquiatria brasileira, colaborando para que outra medida largamente utilizada fosse a
criação de hospitais colônias, instalados em muitas cidades do Brasil. Foi utilizado o
trabalho agrícola como meio de tratamento aos doentes mentais, sendo que a concepção de
21
sociedade rural, onde o paciente desenvolvia uma atividade e depois de recuperado seria
devolvido a sociedade, foi muito tempo afirmado como melhor maneira de tratamento dos
doentes mentais. O projeto não foi adiante, e os hospitais agrícolas deixaram de prover a
sociedade de sua verdadeira função, ou seja, a exclusão dos doentes mentais em locais
geograficamente distantes. A ideologia do trabalho como contribuição da sanidade
influenciou também a internação daqueles que não eram considerados doentes, pois o
enclausuramento passou a ser a solução para várias questões que não tinham resolução da
parte do governo.
De fato, quem se dispuser a examinar a população das nossas colônias de
alienados, vai encontrar amalgamadas à massa de crônicos, tornada
indiferenciada pela cultura mesma do asilo, desde pessoas que lá chegaram após
uma passagem por um hospital psiquiátrico, até indivíduos em cuja historia de
vida consta como determinante da internação, “doenças” como a de moças
namoradeiras que foram desvirginadas e desonradas, crianças que se tornaram
órfãos, mendigos e arruaceiros que, pela intermediação do chefe de polícia local
ou delegado de polícia encontrava no encaminhamento ao hospício a solução
definitiva (RESENDE, 1987, p.52).
Durante a era Vargas, as instituições desse modelo não sofreram grandes mudanças,
acontecendo apenas reforma e ampliação das instalações existentes.
Foram fundados
outros hospitais em larga escala, de modelo colônia agrícola, todos financiados pelo
Governo Federal.
As políticas públicas de Saúde Mental no Brasil tiveram como mola mestra o
modelo manicomial, que só veio a ser contestado a partir do final da década de 1960. Vale
dizer que na década de 60 houve um fator que gerou conseqüências para a política de saúde
de nosso país, que foi a privatização dos hospitais psiquiátricos prestadores de serviço. Tais
hospitais privados recebiam subsídio do Estado e eram favorecidos por políticos, gerando
renda aos proprietários que, no entanto, muitas vezes, mantinham as condições de
tratamento muito piores que as dos hospitais públicos, além de provocarem um inchaço do
número de internações desnecessárias, superlotando os manicômios de desempregados,
indigentes, pobres, mendigos, já que quanto mais pacientes internados, mais lucro para
seus donos.
É na década de 70 que a política de exclusão começa a ser contestada e com ela as
condições das instalações dos manicômios, do trabalho da equipe, da superlotação dos
internos etc. Três eventos políticos importantes colaboraram para o questionamento da
Política Pública de Saúde Mental vigente até então. Segundo Delgado (1998) um dos
22
eventos foi o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que aconteceu entre os meses de agosto e
setembro de 1977 em Santa Catarina, na cidade de Camboriú. O autor cita também o I
Congresso Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental ocorrido em janeiro de 1979 em
São Paulo, e o Congresso Mineiro de Psiquiatria, em novembro de 79, que teve como tema
a violência praticada nas instituições psiquiátricas. Esteve presente neste último evento o
psiquiatra Franco Basaglia que trouxe sua experiência de Trieste e com isso estimulou o
movimento da Reforma Psiquiátrica em nosso país.
Nesse momento da história da Reforma não havia preocupação em realizar o
fechamento dos hospitais psiquiátricos, sendo que as reivindicações reclamavam por
melhores condições de trabalho dos profissionais, autonomia e questionamento da
privatização dos leitos, bem como das internações desenfreadas e das fraudes encontradas
no setor privado, além da mercantilização da doença mental.
Amarante (2001) defende que a Reforma Psiquiátrica possui as seguintes dimensões:
dimensão epistemológica, técnico-assistencial, jurídico-política e cultural.
A dimensão epistemológica citada pelo autor refere-se a conceitos que fundamentam
a Reforma e que autorizam a contestação do modelo asilar. A desinstitucionalização funda
outro modelo de tratamento diferente do modelo de exclusão, substituindo a internação
pela possibilidade de recuperação dos vínculos sociais e da produção da subjetividade que
foi excluída em detrimento da doença.
O movimento da Reforma tem como conseqüência a desmanicomialização e a
redefinição de doença mental. Ao colocar em questão o conceito de doença, as relações das
pessoas envolvidas no campo de Saúde Mental foram se transformando, viabilizando a
modificação dos serviços dos dispositivos e dos espaços, retirando do paciente a
estigmatização produzida pela doença. Segundo Amarante, isso não quer dizer uma
negação da doença e sim sua problematização bem como das conseqüências que a
centralização do entendimento da patologia trouxe à maneira de se tratar a doença.
A segunda dimensão, a técnico-assistencial, operou o questionamento do modelo
manicomial por seus pressupostos baseados na tutela, na disciplina, na punição corretiva,
no tratamento moral e na medicação exacerbada, instituindo o doente como incapacitado
de decidir sobre o seu tratamento, propondo, através de um cunho corretivo e moral, a
imposição do tratamento a todo aquele que procurava os serviços de psiquiatria, além de o
tratamento ser realizado em instituições fechadas e longe do convívio social. O asilo era
considerado o lugar mais adequado de tratamento, por tornar viável a observação dos
23
doentes e assim proporcionar o melhor entendimento da doença. Tal discurso era
justificado pelo que se entendia por ciência.
Verificou-se que os efeitos gerados pela exclusão agravavam o quadro do paciente,
assim como tornavam quase nulo o prognóstico de melhora. Ingressar num hospital
psiquiátrico indicava que a permanência de um paciente na instituição seria longa, podendo
durar o resto de sua vida. Ao questionar o modelo asilar, ocorreu também uma tentativa de
reformulação dos serviços e o modo de entender a doença mental.
Na década de 80, aconteceu a reforma e ampliação de alguns hospitais psiquiátricos. O
modelo ambulatorial de Saúde Mental como suplemento ao manicômio foi ampliado,
colaborando para atender as exigências dos primeiros anos da Reforma. O ambulatório
público foi estratégia prevalente de prevenção de internação ainda como suplemento ao
modelo asilar. Desde esse momento houve ênfase na rede básica de saúde visando a
descentralização do ambulatório, porém não se constitui efetivamente um trabalho em
equipe de Saúde Mental.
Desponta nesse período a presença dos psicanalistas entre os psiquiatras e psicólogos
que trabalhavam nos ambulatórios nos grandes centros da região sudeste, com ênfase nas
psicoterapias individual e em grupos e consultas psiquiátricas (FIGUEIREDO, 2004).
Uma questão colocada nessa época e ainda presente nos dias de hoje como grande
desafio foi a proposta de extinção das emergências em hospitais psiquiátricos e
deslocamento para as equipes de Saúde Mental em hospitais gerais (FIGUEIREDO, 2010).
Nesta mesma década, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental ganha
prestígio contando com a participação de pacientes que estiveram internados e familiares
de internos, além dos profissionais da área. Em 1987 é levantada a bandeira "Por uma
sociedade sem manicômios" na I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM)
realizada na cidade do Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), já que humanizar os manicômios passou a ser pouco. O Movimento passou a
denunciar a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de uma
rede privada manicomial, e fazer crítica ao saber psiquiátrico e ao modelo
hospitalocêntrico (FIGUEIREDO, 2010).
No relatório da I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), constam
resoluções importantes para esta década as quais elenco com Figueiredo (2010) e Brasil
(1988).
24
•
Estatização da indústria farmacêutica brasileira com monopólio do Estado na
importação de matéria-prima químico-farmacêutica e desenvolvimento da indústria
química de base para garantir a soberania nacional no setor químico e farmacêutico.
•
Formação de Conselhos de Saúde em níveis local, municipal, regional e estadual
com participação plena da sociedade no planejamento, execução e fiscalização dos
programas e estabelecimentos.
•
Reversão da tendência "hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica“, com prioridade ao
sistema extra-hospitalar e multiprofissional como referência na estratégia de
desospitalização.
•
Proposta de não credenciamento ou instalação de novos leitos psiquiátricos em
hospitais psiquiátricos, e redução progressiva dos leitos existentes deslocando-os
para hospitais gerais públicos ou serviços inovadores alternativos à internação
psiquiátrica.
•
Proposta de ruptura com a prática da internação hospitalar (hospitais psiquiátricos
ou hospitais gerais) no modelo manicomial.
•
Regulação das unidades de internação psiquiátrica a partir do centro de saúde,
ambulatórios e pólos de emergência da rede pública.
•
Implantação de recursos assistenciais alternativos aos asilares, tais como: hospitaldia, hospital-noite, pré-internações, lares protegidos, núcleos autogestionários e
trabalho protegido.
•
Descentralização e maior capacitação técnica dos ambulatórios da rede pública,
visando melhor poder de resolubilidade.
•
Implantação de equipes multiprofissionais em unidades da rede básica, hospitais
gerais e psiquiátricos, de forma a reverter o modelo assistencial organicista e
medicalizante, propiciando visão integral do usuário do setor, respeitando a
especificidade de cada categoria.
Outros fatores que contribuíram para a Reforma foram a constituição federal de
1988, a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) sem os quais a
Reforma não teria se efetivado.
Através do projeto de lei 3657, apresentado ao Congresso Nacional pelo deputado
Paulo Delgado em 1989, inicia-se em nível nacional o movimento crescente de alterações
das políticas públicas de Saúde Mental. É Delgado (2001) que sugere que no lugar dos
termos psiquiátrico, psicológico e psicanalítico seja utilizado o termo atenção psicossocial,
que englobaria o usuário em diferentes pontos de vista e não apenas no seu tratamento.
25
O projeto proporciona abertura das portas dos hospitais psiquiátricos para os
técnicos e pesquisadores de diversas áreas e também para alta de vários pacientes que
permaneciam internados há muitas décadas, sem interrupção. O debate sobre uma futura lei
de Saúde Mental é aberto, já que a lei em vigor datava de 1934 e se baseava
exclusivamente no modelo de exclusão dos pacientes em conformidade com a primeira
legislação brasileira específica sobre assistência a doentes mentais que datava de 1903
(OLIVEIRA, 2009).
Chamamos de Reforma Psiquiátrica ao conjunto de modificações acontecidas a partir
dos anos setenta no modelo de assistência psiquiátrica pública, bem como na teoria, na
metodologia, na ética e nas práticas que as sustentam. Tal processo envolve aspectos
políticos, econômicos e sociais e tem caráter multidisciplinar, convocando todos os saberes
relacionados com a saúde e a sociedade de modo crítico: psicologia clínica, psicologia
social e institucional, psiquiatria social, psiquiatria clínica, psicanálise, história, filosofia,
antropologia, sociologia ciência política, direito, pedagogia e demais áreas técnicas do
campo do cuidado a doentes mentais que é por estrutura pluriprofissional: assistência
social, terapia ocupacional, musicoterapia, enfermagem, e outras especialidades médicas,
tais como neurologia, clínica médica e pediatria. Esse processo assume a dimensão de um
movimento social que tem por objetivo principal a retirada do manicômio como a
assistência única de saúde mental no Brasil.
1.2 História do CAPS - Breve histórico dos centros de atenção psicossocial no Brasil
No início dos anos 90, inicia-se a era nomeada por Figueiredo (2010) de “era
psicossocial”, a partir da insuficiência dos ambulatórios na formação de uma rede de
atendimento para prevenir, evitar ou reduzir internações psiquiátricas.
Um dos principais dispositivos da Reforma Psiquiátrica é Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS). Tais dispositivos foram criados oficialmente a partir da Portaria GM
224/92 e foram definidos como:
unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita
definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários
entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de
quatro horas, por equipe multiprofissional (BRASIL, 2004 b, p.12).
26
Surge o primeiro CAPS do Brasil, o CAPS Luis da Rocha Cerqueira, conhecido como
CAPS da Rua Itapeva, inaugurado em março de 1986 na cidade de São Paulo (BRASIL,
2004a) funcionando de modo experimental na orientação da “clínica ampliada” atraindo
profissionais e estudantes.
Tanto a criação do primeiro CAPS como a de outros fez parte de um intenso
movimento social, inicialmente de trabalhadores de Saúde Mental que lutavam pela
melhora da assistência no Brasil bem como denunciavam a precária situação dos hospitais
psiquiátricos que eram o único recurso destinado aos usuários que necessitavam de
tratamento. Foi nesse contexto que em vários municípios do país surgiram os serviços de
Saúde Mental como dispositivos eficazes na diminuição de internações e na mudança do
modelo assistencial (BRASIL, 2004a).
Com a regulamentação do CAPS a internação deixou de ser o único recurso disponível
para o tratamento da loucura e passou a ser um recurso aplicável, indicável, necessário e
em alguns casos indispensável desde que articulada a uma rede de cuidado, cuja lógica
pautada nas ações comunitárias, territoriais, intersetoriais, não é a lógica da segregação, da
exclusão, da internação como exclusão social no próprio seio da sociedade.
Em 1989 vemos acontecer a chamada “revolta de Santos” com o fechamento da Casa
de Saúde Anchieta e criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) a partir de 1989
que também funcionavam como CAPS. A partir desse mesmo ano tramita no Congresso o
“projeto de lei Paulo Delgado” que redireciona o modelo de assistência em Saúde Mental,
dispondo oficialmente sobre a redução de leitos psiquiátricos e a extinção progressiva dos
manicômios, bem como sobre a não construção de hospitais especializados e controle das
internações involuntárias. Tal lei foi sancionada apenas doze anos depois, com
modificações, a Lei 10.216 em 6/4/2001. Neste momento, porém, o financiamento da
assistência em Saúde Mental girava ainda, em torno de 90% para hospitais psiquiátricos
(FIGUEIREDO, 2010; BRASIL, 1992).
Pela entrada de outras disciplinas e técnicos, bem como à atenção a Saúde Mental, a
Reforma Psiquiátrica passou a reivindicar o resgate da cidadania. A Reforma ampliou o
seu campo, não ficando mais restrita apenas à psiquiatria, além de tornar-se um problema
de cunho social e político, sendo que a assistência em saúde pública se tornou apenas um
de seus aspectos. Houve consolidação da Luta Antimanicomial como movimento político
organizado com a forte participação de usuários, familiares e profissionais engajados nas
propostas radicais da Reforma que vai tomando lugar sobre o Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental na cena política.
27
Temos dois fatos significativos nesse período que são a Declaração de Caracas
(1990) e II Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em 1992, em
Brasília, com o tema “Atenção Integral e Cidadania”, havendo participação efetiva do
Ministério da Saúde com proposta na via de consolidação do SUS (BRASIL, 1992).
Das propostas da II CNSM constou a articulação dos recursos existentes na
comunidade, favorecendo a integração do usuário dos serviços de saúde e fortalecendo os
movimentos identificados com as novas reformas da saúde. Também foi proposto valorizar
e incentivar a atenção informal em saúde mental desenvolvida por religiosos, grupos de
auto-ajuda, organização de familiares, organização de pais e outras e efetivar a interação
democrática com os recursos formais dentro da nova política de atenção à Saúde Mental,
promovendo a criação de grupos de ajuda mútua entre usuários e trabalhadores de Saúde
Mental para melhor resolução nas ações de saúde coletiva.
Uma das propostas que merecem destaque é a efetivação do trabalho em equipe
multiprofissional com profissionais de outros campos do conhecimento, tais como os
trabalhadores das áreas artística, cultural e educacional.
A entrada do século XXI viu ser sancionada a Lei 10.216, em 06/04/2001 que
reorientava o modelo assistencial em Saúde Mental e também de novas portarias do
Ministério da Saúde. O argumento da “atenção psicossocial” foi estabelecido pela Lei
Federal 10.216, colocando a Reforma Psiquiátrica em outra fase, já que trazia o debate
sobre cidadania e as políticas públicas. Tais considerações trazem a dimensão jurídicopolítica, terceira dimensão da Reforma, defendida por Amarante (2001). A internação de
involuntária passou a ser voluntária, salvo em casos em que se justifiquem os motivos. O
respeito à capacidade civil do louco que antes era desconsiderada passou a existir. O
paciente ao solicitar um benefício por incapacidade de executar suas atividades laborais
perdia seus direitos civis, ficando sob curatela. A lei 10.216 possibilita argumentar sobre a
garantia de determinados direitos, afirmando que a capacidade civil não necessariamente
precisa ser anulada por conta da incapacidade de trabalho.
Além da Lei 10.216 acontece também em 2001 a III CNSM com o lema “Cuidar sim,
excluir não!”, proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a Saúde Mental,
com a participação de convidados internacionais, Organização Pan-Americana da Saúde
(OPAS) e OMS e ampla participação de usuários. Como propostas da conferência,
relacionamos (BRASIL, 2001a):
•
Extinção de todos os leitos em hospitais psiquiátricos do país (88% do orçamento
da Saúde Mental) até 2004 para consolidar o movimento de “Sociedade sem
28
Manicômios”. Internação como “hospitalidade diurna e/ou noturna” como parte do
projeto terapêutico.
•
Abolição da eletroconvulsioterapia por ser prática de punição, de suplício e de
desrespeito aos direitos humanos.
•
Ampliação da criação do cargo de coordenador de Saúde Mental em níveis
municipal, estadual e federal, devendo a votação do coordenador se dar em
processo democrático com participação do gestor, dos trabalhadores, dos usuários e
dos Conselhos de Saúde.
•
Referência ao trabalho interdisciplinar, incentivo à criação das Residências
Terapêuticas, atenção à infância e adolescência e a usuários de álcool e drogas. A
política intersetorial nesse momento ainda está em sua gênese.
A Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 regulamentou os serviços
substitutivos que surgiram no Brasil, tais como o CAPS, o Núcleo de Atenção Psicossocial
(NAPS) e o Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) integrando-os à rede do
Sistema Único de Saúde (SUS) e reconhecendo e ampliando o funcionamento e a
complexidade dos CAPS que tem como missão dar atendimento diuturno às pessoas que
sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo
cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo
hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da
inclusão social dos usuários e de suas famílias (BRASIL, 2004b).
Tem início o processo de implantação nacional dos CAPS, havendo no ano 2000
mais de 240 CAPS contra apenas 03 em 1990 (BRASIL, 2001b). A proposta é definir
unidades tipo CAPS como referência local, micro regional e regional para a assistência em
saúde mental como serviços substitutivos ao hospital, com um CAPS para cada 70.000
habitantes. Em 2004 celebra-se no I Congresso Brasileiro de CAPS, promovido pelo
Ministério da Saúde na cidade de São Paulo, a implantação de 500 CAPS.
A publicação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004a), destinada a informar os
profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS sobre o que são e para que servem os
serviços de Saúde Mental, chamados Centros de Atenção Psicossocial(CAPS), define-o
como
serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema único de Saúde (SUS). O CAPS é o
lugar de referência e tratamento para as pessoas que sofrem com transtornos mentais,
psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência
justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário,
personalizado e promotor de vida (BRASIL, 2004a, p.13).
29
Dentro de sua área de abrangência, o CAPS tem como objetivo oferecer
atendimento à população, realizando acompanhamento clínico e a reinserção social dos
usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos
laços familiares e comunitários. Foi criado para ser substituto às internações em hospitais
psiquiátricos.
Os CAPS devem prestar atendimento em regime de atenção diária, gerenciando os
projetos terapêuticos e oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado. Além disso,
visa promover a inserção dos usuários através de ações intersetoriais que envolvam
educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de
enfrentamento dos problemas. Em virtude desse objetivo, os CAPS têm a responsabilidade
de organizar a rede de Saúde Mental de seu território, dentro do qual deve dar suporte e
supervisionar a atenção à Saúde Mental.
No aspecto de organizar a rede de seu território é missão do CAPS regular a porta
de entrada da rede de assistência em Saúde Mental de sua área, dar suporte e supervisionar
a atenção à Saúde Mental na rede básica, Programa de Saúde da Família (PSF) e Programa
de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Além disso, deve coordenar com o gestor
local as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu
território e manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que utilizam
medicamentos para a Saúde Mental.
A cartilha do Ministério da Saúde especifica que os CAPS devem contar com
espaço próprio para atender à sua demanda específica e ser capaz de oferecer um ambiente
continente e estruturado, contando com consultórios para atividades individuais, salas para
atividades grupais, espaço de convivência, oficinas, refeitório, sanitários e área externa
para oficinas, recreação e esporte. As práticas realizadas nos CAPS devem acontecer em
ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Muitos dos projetos
ultrapassam a própria estrutura física, já que buscam rede de suporte social, que pode
potencializar suas ações. Dessa forma, deve voltar-se para o sujeito e sua singularidade,
sua história, cultura e vida.
O CAPS vem sendo a base do processo de substituição do manicômio nos últimos
20 anos, daí constituir-se como a referência primordial no que se intitulam os serviços
substitutivos. Sendo o CAPS a unidade de base da Reforma Psiquiátrica Brasileira, serviço
de atenção diária, diurna e intensiva, de base territorial, ele não se define como um mero
estabelecimento de Saúde Mental onde se aplicam técnicas e tratamentos diversos. O
30
CAPS é antes de tudo o ordenador da rede e porta de entrada, um pólo de encaminhamento
de demandas psicossociais diversas em determinado território, do qual provêm respostas a
demandas e ações e intervenções dirigidas a diferentes instâncias e dispositivos desse
território.
Os serviços criados inicialmente como alternativos são agora considerados
substitutivos ao manicômio. Além de um rearranjo administrativo, de uma racionalização
de recursos financeiros, da desativação de leitos em hospitais psiquiátricos, o movimento
de luta antimanicomial visa tornar possível um convívio real entre a loucura e a sociedade,
criando enlaces no campo da saúde, da cultura e do trabalho, colocando em cena a família
e o Ministério Público.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu grandes avanços políticos, sociais e
clínicos, escrevendo o Brasil como um dos países mais avançados no campo da assistência
ao portador de sofrimento psíquico, tornando como diretriz legal a atenção psicossocial,
que tem como paradigma uma ampliação do alvo das intervenções, no sentido de tratar a
psicose no próprio meio social e promover as condições de preservar ou resgatar os laços
de pertencimento do paciente. Esse objetivo tem sido amplamente atingido no Brasil que
figura hoje entre os países que mais operaram mudanças na humanização e na qualificação
dos cuidados aos seus doentes mentais, tal como foi verificado no Encontro chamado
“Carta de Caracas: 15 anos depois”, realizado em Brasília em 2005, em que se
comemoraram os 15 anos da Carta de Caracas, que estabeleceu tarefas políticas aos países
que dela participaram, e que, após 15 anos, no evento considerado, foi feita a verificação
de que o Brasil foi o país que mais fez em relação ao estabelecido em 1990, em Caracas.
(BRASIL, 2001 c).
Chegamos a 2010 com a IV CNSM, primeira conferência oficialmente intersetorial,
com apoio significativo da Secretaria de Direitos Humanos além da participação maciça de
usuários e familiares. O tema este ano foi “Consolidar avanços e enfrentar desafios”. Em
relação às conferências anteriores a intersetorialidade representou um avanço fundamental,
atendendo as exigências concretas a partir das mudanças do modelo de atenção. O lema da
conferência vai justamente nessa direção: “A saúde mental é ampla demais para ficar nos
limites da saúde”, com extensa participação dos municípios e regiões, e de todos os estados
nas conferências preparatórias para a IV CNSM. A partir da IV CNSM verificamos a
consolidação da rede de atenção psicossocial na perspectiva da intersetorialidade.
Os CAPS se consolidam efetivamente como dispositivo estratégico da Reforma
Psiquiátrica. No final de 2004 verificou-se a criação de 605 CAPS e em 2010 são 1.541
31
CAPS no Brasil. Em 2003 eram 206 beneficiários do Programa “De volta pra Casa”,
programa que contempla os pacientes que passaram por um período de longa internação
psiquiátrica e como o próprio nome diz, estão voltando para suas famílias ou Residências
Assistidas. Em 2010 foram registrados 3.574 benefícios (SAÚDE..., 2010).
Além de questionar o modelo manicomial bem como a psiquiatria e a assistência
vigente, a Reforma proporciona uma transformação do lugar social da loucura,
introduzindo a dimensão cultural, quarta e última afirmada por Amarante (2000). Podemos
exemplificar tal argumento a partir da criação das várias associações de usuários e
familiares em todo país, assim como cooperativas, estabelecimento de contratos com
empresas privadas visando a inserção do louco no mercado de trabalho, a produção de
oficinas de geração de renda, além da adesão dos usuários a vários grupos tais como
associações comunitárias, clubes, igrejas e lazer de suas cidades.
Vemos que o processo de redução planejada e programada de leitos em hospitais
psiquiátricos ao longo dos anos foi acompanhado por significativa expansão da rede de
atenção comunitária. Foram fechados cerca de 16.000 leitos em Hospitais Psiquiátricos no
período de 2002 a 2009, através do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços
hospitalares (PNASH) /Psiquiatria e do Programa de Reestruturação da Assistência
Psiquiátrica (PRH). Até 25 de junho de 2010, a cobertura foi de 63% com 1541 CAPS
(BRASIL, 2010).
Segundo dados do Ministério da Saúde desde 2002 os hospitais psiquiátricos vem
ficando menores. Hoje 44% dos leitos em hospitais psiquiátricos estão situados em
hospitais de pequeno porte, enquanto que em 2002 apenas 24% dos leitos estavam nesses
hospitais. Esta mudança – conseqüência desejada pelo PRH – gerou a necessidade de
atualizar as classes de remuneração dos hospitais psiquiátricos, que levam em conta porte
dos hospitais. Com a publicação da Portaria GM 2.644/09, de 28 de outubro de 2009,
houve reagrupamento dos hospitais psiquiátricos em quatro classes. Os hospitais de menor
porte são melhor remunerados. A expansão e qualificação de leitos de atenção integral à
Saúde Mental nos Hospitais Gerais ainda é um grande desafio para a rede de Saúde
Mental. Tais leitos, articulados aos CAPS III, às emergências gerais e aos Serviços
Hospitalares de Referência para Álcool e Drogas devem oferecer acolhimento integral ao
paciente em crise, em diálogo com outros dispositivos de referência para o usuário. A
regulação desses leitos de atenção integral é fundamental para garantir acessibilidade e
resolutividade, especialmente nos grandes centros. Para estimular a qualificação destes
leitos, como parte do Plano Emergencial para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e
32
Outras Drogas (PEAD) no SUS, houve reajuste dos procedimentos para a atenção em
Saúde Mental em Hospitais Gerais ao final de 2009 (PT GM 2.629/09). A partir desta
portaria, pela primeira vez, os procedimentos de psiquiatria em Hospital Geral passam a ser
mais bem remunerados do que os procedimentos em Hospitais Psiquiátricos (Brasil, 2010).
O que pode um CAPS? Passando de organizador a articulador da rede de Saúde
Mental, qual o seu mandato hoje? Qual o alcance desses dispositivos de convivência tais
como o acesso, o acolhimento e o acompanhamento dos pacientes, o atendimento à crise,
as consultas com os diferentes profissionais, a convivência diária, as oficinas, a geração de
renda, a inclusão social, dentre outros? Ficamos por hora com essas questões.
1.3 A Reforma Psiquiátrica: ainda à procura de saberes?
A Reforma Psiquiátrica Brasileira é o movimento mais importante na história da
psiquiatria de nosso país, tanto por sua dimensão revolucionária referentes às práticas
sociais e clínicas que produziu no atendimento aos que sofrem de loucura, como pela sua
dimensão ético-política de colocar em questão e em discussão os valores que atravessam o
dia-a-dia de nossa vida profissional e pessoal, pública e privada mesmo em campos não
diretamente relacionados à assistência no campo da Saúde mental (ELIA; GALVÂO,
2000).
Com sua ação a Reforma se opõe frontalmente ao sistema econômico vigente e ao
funcionamento da sociedade moderna. Por esta razão as resistências a ela são grandes
(FRANÇA NETO, 2009). Não se trata neste trabalho de levantarmos críticas infundadas
contra a Reforma, haja vista aos grandes ataques externos recebidos pelo movimento nos
últimos anos, sempre reiterados pelos setores privados em nome de seus interesses
econômicos. É preciso, contudo, que os méritos e virtudes de um movimento não se
transformem, por força de nossos próprios receios, em fatores silenciadores da reflexão
crítica, pois se cairmos na cerimônia de tomar uma prática discursiva como intocável,
deixamos de poder colaborar para que ela acerte seus rumos, retificando suas eventuais
distorções.
Tomemos para introduzir nossa questão, a afirmação de Saraceno (1996) em seu
trabalho intitulado Reabilitação Psicossocial: uma prática à espera de teoria. O autor
afirma que o campo psicossocial é sem teoria, e também que não existem práticas
33
eternamente sem teorias. Garcia, C. (1997) observa que há uma prática rica e fecunda
acumulada pela atenção psicossocial no atendimento da loucura, porém examina a falta de
teoria vinculada à clínica antimanicomial. Por estar atrelada ao compromisso de inserção
social, ela relega ao segundo plano a dimensão clínica. É a partir dessas afirmações, que
abrimos a discussão para uma interrogação: estaria a Reforma Psiquiátrica uma década e
meia após a afirmação de Saraceno e Garcia, ainda à procura de uma teoria? Que lugar a
Reforma confere ao saber, ou seja, à elaboração teórico-clínica que se tece em torno do
sujeito?
1.3.1 Aversão ao saber e ecletismo teórico-clínico
Primeiramente lembramos que um dos principais fatores determinantes da Reforma
e que tem a ver com a sua História é a enérgica crítica do processo de medicalização da
loucura. O discurso médico-higienista e pedagógico substituiu a opressão de isolamento
pela opressão discursiva e de igual modo de isolamento, “transformando a loucura em
doença mental e confinando-a sob os rótulos de uma nosologia de exclusão, que
desconstitui o sujeito da doença mental de toda condição cidadã” (ELIA; GALVÃO, 2000,
p. 76).
Em conseqüência do rechaço ao discurso médico, o movimento reformador acabou
tomando uma espécie de aversão a todo e qualquer saber formalmente constituído, sob a
forma de teoria da clínica, adotando, além disso, um ecletismo teórico-clínico. É nessa
direção a afirmação de Elia e Galvão quando discutem essa questão:
recusa do teoricismo e do clinicismo, e adoção de uma fenomenologia de fundo
social. Como corolário, um explícito e orgulhoso ecletismo teórico-clínico, que
não deixa de estar fundamentado, de modo coerente, em toda a lógica que rege
esta postura. Se a meta é evitar a hegemonia de um saber teórico que pudesse
orientar a prática clínica e ser, ao mesmo tempo, por ela afetado, nada mais
eficaz do que pluralizar as correntes teóricas, aceitar todas, afirmar a
multiplicidade de orientações como regra vigente (ELIA; GALVÃO, 2000,
p.77).
Contribuindo nessa direção, o DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística da
Associação Norte- Americana de Psiquiatria) e a CID (Classificação Internacional de
Doenças), cânones psiquiátricos seguidos em larga escala também dentro dos novos
dispositivos da Reforma, como por exemplo, nos CAPS, adotam o a-teoricismo, uma
34
postura desvinculada da qualquer escola de pensamento, sendo que o diagnóstico é feito na
base da combinação de vários sintomas observáveis por qualquer indivíduo, em qualquer
tempo e lugar.
É evidente a aproximação da ciência psiquiátrica com o atual modelo econômicocultural vigente conhecido como globalização. A direção é uniformizar o diagnóstico e
também o tratamento, seguindo à risca o ideário da clínica médica. Dessa maneira, uma
vez que os pacientes sofrem de sinais e sintomas equivalentes, eles sofrem da mesma
doença, não se levando em conta as particularidades de sua subjetividade excluindo assim
toda a possibilidade da escuta do sujeito (FRANÇA NETO, 2009).
A crítica de Tenório (2001) segue na mesma direção, apontando o empobrecimento
da psiquiatria e a redução da semiologia à contabilidade descritiva dos sistemas
classificatórios atuais, à redução da clínica, à aplicação do fármaco e a redução da ação
institucional.
O saber psiquiátrico tradicional tal como é transmitido nos hospitais e também
ainda em muitos dos atuais dispositivos da Reforma e novamente citamos como exemplo,
o CAPS, coloca-se ao abrigo de qualquer imprevisto e protegido das interpelações do
inconsciente. Ao incluir o doente numa classificação nosográfica que determinará o valor
de sua palavra, o paciente é emudecido, bem como também o próprio médico, que se
preserva das perturbações que a loucura traz, ao invocar esse outro em nós mesmos do qual
recusamos tomar conhecimento (RINALDI, 2000). Sobre essa questão, afirmamos com
Alberti (2010) que a psicanálise é uma teoria atrelada à prática, uma teoria da clínica, que
surgiu das questões da clínica e que sempre retorna à clínica.
É verdade que às vezes a política da Reforma pode tomar a forma de um
mandamento exterior a tudo que se observa no cotidiano da clínica, a ponto de
ser possível encontrar experiências que, em nome da reforma psiquiátrica, exilam
a clínica do atendimento aos usuários... e então se trabalha para a Reforma e não
para os pacientes que, no lugar do sujeito do pathos ( ), sujeitos do sofrimento,
sustentam o modelo da Reforma da mesma forma que o proletário pode sustentar
o capitalista no lugar de S1 no discurso do mestre (ALBERTI, 2010, p. 22).
A Reforma Psiquiátrica é hoje uma esperança de vir a dar o ambiente suficiente
para levar a efeito o convite de Lacan de não recuar diante da psicose, desde que ela
também possa se instrumentalizar pela psicanálise (ALBERTI, 2010).
35
1.3.2 Universidade e Reforma Psiquiátrica
Outro aspecto da dificuldade em relação ao saber e entre a relação da teoria e a
prática é o que aponta Elia (2005 b), quando diz que a Universidade sedia pesquisas que
tomam por objeto questões diversas do social, mas que conduz essas pesquisas sem
nenhum compromisso de retorno a este campo. Por outro lado, a instituição assistencial
pública encontra-se sem amparo do saber, saber este que poderia servir de arrimo para as
várias intervenções necessárias em seu campo. Como não existe um norteamento teórico
por parte dos técnicos, há um mergulho na empiria, tornando as instituições de Saúde
Mental inertes e ineficazes no que diz respeito ao enfrentamento das questões que
constituem seu objeto de intervenção. Investigação e intervenção segundo o autor parecem
exercer entre si uma força centrífuga, que as expele uma para cada lado.
Lobosque (2009) afirma que o movimento da Reforma foi capaz de influir na
legislação do país, na forma de se empregar o dinheiro público e na definição da sua
modalidade de assistência. No entanto no que diz respeito à relação com a universidade,
não conseguiu obter êxito. A autora levanta algumas questões referentes a esse tema tais
como: competiria a universidade se posicionar contra ou a favor da Reforma? Deveria dar
visibilidade às divergências e abster-se de tomar partido? Poderia propiciar uma avaliação
crítica do processo mantendo-se independente, porém ativa?
A única resposta, qual seja o silêncio, vem excluindo todas as alternativas acima.
Trata-se de um silêncio peculiar: não consiste em proibir ou expulsar
determinado assunto, e sim em abordá-lo de forma tal que as questões por ele
suscitadas não venham a atingir o corpo mesmo do ensino (LOBOSQUE, 2009,
p. 20).
As universidades de maneira geral não se ocupam da legislação, da política pública
de Saúde Mental, das experiências que se desenvolvem nos serviços substitutivos. Ao
invés disso, o modelo centrado em consultório, com consultas, sessões individuais ou em
hospitais psiquiátricos e ambulatórios continuam sendo o ensino vigente. A apresentação
de paciente em hospitais psiquiátricos prossegue sendo a principal forma de contato dos
alunos com os pacientes graves, em parceria com a prescrição de psicofármacos e/ou
sessões de psicoterapia ou psicanálise para pacientes com sofrimento mental leve.
Em nossa observação percebemos que a maioria dos currículos dos cursos de
formação dos profissionais de saúde em geral não aborda questões ligadas ao campo de
Saúde Mental, e quando tratam do assunto, se restringem a trabalhar a história, a legislação
36
e aspectos meramente descritivos do campo, estando ausente o manejo clínico nas
instituições. É pouco conhecida pelos acadêmicos e também pelos estudantes de cursos
técnicos, como por exemplo, os de enfermagem, a atuação dos CAPS e outros serviços
substitutivos ao hospital psiquiátrico e muito menos a noção de rede, universalidade de
acesso, território, cidadania, acolhimento, etc.
Na universidade onde lecionamos por quatro anos a disciplina denominada “Clínica
nas Instituições”, onde o carro-chefe era a clínica psicanalítica nos dispositivos de Saúde
Mental, isto só foi possível pela flexibilidade do currículo que permitia ao colegiado,
acrescentar temas diversos que poderiam ser psicologia jurídica, psicologia do trânsito
entre outros. Vale a pena lembrar que apesar de várias publicações importantes sobre a
Reforma Psiquiátrica e sua clínica, as bibliotecas das universidades ainda possuem poucos
exemplares em seu acervo para consulta dos acadêmicos.
Lobosque (2009), na mesma direção, levanta a questão que talvez a universidade
estivesse esperando o estabelecimento de verdades reconhecidas, depois de vencidos a
polêmica, verdades que se possam tomar como objeto do saber, para poder aplicar sua
atenção na legislação, na Política Pública para a Saúde Mental e nas experiências que se
desenvolvem nos CAPS.
Sobre esse aspecto queremos destacar a criação dos programas de Residências
Multiprofissionais que estão surgindo pelo país, especialmente no Rio de Janeiro, onde os
acadêmicos podem experienciar outra abordagem dentro do campo de Saúde Mental. Esta
realidade, porém não é a da maioria dos universitários do país.
É de suma importância de que o Ministério da Educação, de forma intersetorial,
intervenha na reformulação dos currículos de cursos como a Medicina, que formam
profissionais que nada conhecem acerca da Rede de Saúde Mental e que por esta e outras
razões, ao ingressarem em equipes de Saúde Mental ou em outra de saúde em geral,
chegam a ter aversão por reuniões, debates, fóruns e demais dispositivos. Também se faz
necessário modificar os planos de ensino de outros cursos de futuros profissionais que
atuam no campo da Reforma Psiquiátrica, tais como serviço social, enfermagem,
psicologia, musicoterapia, etc. Faz-se necessário intensificar a pesquisa através de
incentivo maior nas iniciações científicas, monografias, dissertações e teses.
Por outro lado é importante ressaltar o que a Reforma faz com a Universidade.
Existe um equívoco por parte do movimento social da Reforma Psiquiátrica sobre a
Universidade. A Reforma, na voz de alguns de seus pensadores, tem uma relação de
preconceito com a Universidade. Para estes a Universidade quer ter certeza, é asséptica,
37
puritana, não é ideológica, trabalhando apenas com rigor conceitual. Isto faz parte do
pensamento do movimento social que está dentro da Reforma Psiquiátrica Brasileira e não
necessariamente é o pensamento da Reforma. Trata-se de atores diferentes. O Estado não
trabalha com o preconceito com que a luta antimanicomial trabalha. Tal preconceito
impede o diálogo entre esta última e a Universidade.
Ainda que a Universidade não tenha colocado a Reforma como frente de trabalho,
há trabalhos isolados na graduação e pós-graduação. A Terapia Ocupacional fez um
trabalho nessa direção assim como algumas cadeiras de Residências de Psiquiatria e
Residências Multiprofissionais de Saúde Mental, assim como alguns cursos de Psicologia.
Em termos de formação universitária, o grande problema ficou mesmo nos cursos de
Medicina e especializações em Psiquiatria, que tomaram uma direção cada vez mais
privatista, organicista e anti-Reforma. As políticas públicas voltadas para o campo da
Saúde Mental e da Atenção Psicossocial esqueceram-se, ao que parece, da preocupação, de
ordem intersetorial, com a formação dos agentes médicos psiquiatras que estariam no
amanhã – que já é hoje – do processo.
Fazendo referência aos quatro discursos propostos por Lacan, a saber, discurso do
mestre, da histeria, do universitário e do analista, Alberti (2010) questiona se no discurso
da universidade os pacientes da Reforma são justamente os sujeitos jogados fora, já que
não servem para corroborar a eficácia da multidisciplinaridade da Reforma, onde todas as
práticas e todos os saberes são equivalentes.
1.3.3 A Reforma Psiquiátrica e a supervisão clínico- institucional
Barleta e Elia (2010) defendem que se a supervisão clínica é considerada parte da
política pública ela não pode ser contingencial, casual ou periférica. No entanto, a maioria
das equipes dos CAPS em nosso país vive em grandes dificuldades por não poder contar
com a supervisão clínica.
Sabemos de muitas histórias de tentativas bem sucedidas apesar da falta desse
recurso, mas são inúmeras as outras que em tempos de Reforma mais parecem lenda, como
por exemplo, o episódio acontecido em um determinado CAPS, de chamar o corpo de
bombeiros para conter o surto de um paciente. Se é extremamente comum a chegada de
pacientes em surto, trazidos pelas viaturas do Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Guarda
Municipal, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o que será que levou esse CAPS a
38
fazer justamente o contrário? Ao invés de poder operar clinicamente de alguma forma
diante do caso, porque teve que se valer de uma outra instituição para lidar com a loucura?
Não sabemos detalhes sobre esse episódio, porém podemos supor que os que integravam a
equipe desse serviço, não contavam com instrumento da supervisão, como inclusive
preconiza a Portaria MS № 1174 - 7/7/ 2005 e Mensagem Circular № 028/2007 19/11/2007 do Ministério da Saúde, para que pudessem juntos trabalhar as dificuldades
encontradas em seu dia-a-dia no CAPS e na rede intersetorial, em seu território.
Muitas vezes, diante de situações de crise dos usuários, que se impõem no universo
do CAPS, não há respostas, e só no a posteriori é que algo pode se dar. Esse é justamente
um dos aspectos onde a supervisão pode atuar, levando os técnicos ao invés de se
posicionarem, seja diante de casos graves ou daqueles de aparência mais simples, como
uma equipe que pode ter uma visão completa, holística, integral de um caso clínico, a
conceber a insuficiência e a parcialidade de cada técnico, de cada especialidade, serviço e
setor (BARLETA; ELIA, 2010). Não para ficarem na impotência, como demonstra o
exemplo em questão, “mas poder despir-se de cada especialidade de modo a tornar-se
passível de afecção pela direção clínica que se delineia no trabalho coletivo sobre
supervisão, e operar sua função psicossocial a partir desta direção.” Ainda podemos ser
mais radicais quanto essa questão, a partir da afirmação de que
pode-se inferir ainda que “sem a supervisão, a equipe sequer se forma". Se a
supervisão é o que deve ser introduzido em uma equipe para que ela se torne
verdadeiramente uma equipe, isso não se opera à maneira de um fermento, um
acréscimo que adiciona, que faz crescer, mas como uma operação de subtração.
O que a supervisão “acrescenta” é a perda de ilusão de autonomia, de “autogestão”, que se define pela possibilidade que uma equipe pode se dar de saber a
priori o que deve ou não ser feito, o que deve ou não ser levado à supervisão, o
que deve ou não ser priorizado, ao invés de abrir-se aos efeitos de um trabalho
que lhe escapa, e do qual só poderá produzir algum saber a posteriori
(BARLETA; ELIA, 2010, p. 4).
O supervisor clínico deve promover um espaço onde a equipe possa falar sobre os
impasses, as angústias, as dificuldades, que são presentes na prática de todo técnico que
trabalha em uma equipe de Saúde Mental, seja em CAPS ou em outro dispositivo da
Reforma Psiquiátrica, e com isso possibilitar a construção de práticas teórico-clínicas que
sejam consonantes com o terreno da Reforma.
Principiante ou experiente, cada técnico terá sempre enormes dificuldades de
exercer seu ato clínico, e será sempre surpreendido em seu encontro diário
marcado com aqueles que ele tem em tratamento, sob sua responsabilidade
técnica. Se o técnico não mais se surpreende, se não experimenta dificuldades,
39
algo está certamente muito errado. E cabe, aqui também, ao supervisor,
interrogar isso, “cutucar” situações aparentemente amenas, brandas ou
competentes, que exibem o ar de correrem muito bem em trilhos azeitados
(ELIA, 2005b, p. 2).
Lacan usou o termo êxtimo para indicar um lugar para o inconsciente como o que
há de mais externo e íntimo ao sujeito. A equipe de CAPS necessita se reunir regularmente
com um supervisor que deve cumprir essa função de êxtimo, de ser ao mesmo tempo
interno e externo à equipe (FIGUEIREDO, 2005). Por isso um supervisor nunca poderá ser
um membro da equipe, porém um profissional escolhido pelos técnicos.
Diferente do trabalho de transferência que deve ser sustentado pelo psicanalista em
sua relação com um analisante, o supervisor, segundo Figueiredo (2007), vai sustentar a
transferência de trabalho e a construção do caso na equipe para operar como garantia. Sua
ação quanto à transferência de trabalho se traduz em barrar o gozo da pulsão de morte
presente nas rivalidades imaginárias entre os membros da equipe, que tem conseqüências
no real, e pode ser devastador no dia-a-dia de um CAPS. Já no que diz respeito à
construção do caso, a tarefa principal do supervisor será tomar os fragmentos de saber
produzidos no dia-a-dia do CAPS fazendo circular seus efeitos na equipe para colocá-la na
direção do trabalho partilhado.
O supervisor tem uma função singular na equipe que passa ao largo da figura do
‘professor’, ou do ‘inspetor’ /‘interventor’. Ele deve garantir o trabalho da equipe
(análogo à função do ‘mais um’ no cartel), mais do que portar o saber. Sua tarefa
implica em sustentar e, mesmo, afirmar as ações de cada um, a cada caso, desde
que haja uma direção construída conjuntamente. Conseqüentemente, implica em
sustentar a transferência de trabalho e a construção do caso na equipe para
operar como garantia (FIGUEIREDO, 2007, p. 7).
Talvez fosse mais preciso dizer que o supervisor sustenta a transferência no
trabalho, guardando a expressão transferência de trabalho para o sentido que esta
categoria assume no ensino lacaniano, como resultado da análise da transferência e
possibilidade de sustentação de laços de trabalho entre analistas em uma Escola de
Psicanálise, no cartel, por exemplo.
40
1.3.4 Exacerbação do resgate da cidadania e da normatização
A percepção da loucura vigente no movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira
foi marcada pela exclusão social e privação da cidadania. Sendo assim, a estratégia da
assistência foi ao encontro do princípio da reabilitação social, resgate da cidadania e da
valorização dos laços sócio-afetivos, familiares e comunitários. Porém, tomadas em
primeiro plano, a politização e a cidadania podem gerar apenas um imperativo a ser
seguido e obedecido pelos usuários e técnicos (FRANÇA NETO, 2008) Como assinala
Viganò (apud Tenório, 2001), as propostas de reabilitação, e em um aspecto mais geral, a
própria psiquiatria oficial, vão na direção a abdicar ao tratamento dos sintomas através da
exclusão da clínica, já que acolhem o psicótico sem levar em conta o discurso. Desse
modo, afirmam o modelo de exclusão e segregação do manicômio.
Tenório (2008) cita um exemplo clínico bastante ilustrativo a esse respeito. Relata
o caso de um paciente de CAPS que se encontrava com sua moradia em péssimas
condições, com janelas e portas quebradas e demais partes da casa em situação precária.
Apesar das intervenções da equipe na tentativa de ajudá-lo, o paciente, que era psicótico,
permanecia firme na sua certeza delirante que teria um dinheiro para receber do Exército
brasileiro e seria com esse dinheiro que arrumaria sua moradia. Após algum tempo, a
equipe conseguiu convencê-lo a receber ajuda para a reforma. Ao chegarem à residência do
paciente no dia marcado para os consertos e limpeza, o paciente havia saído. Esperaram
bastante por ele e como tinham que levar em conta a dificuldade que era juntar todos
aqueles trabalhadores e como estava tudo previamente combinado com o paciente, a equipe
do CAPS e os trabalhadores da prefeitura foram adiante em seu intento. Podia-se esperar
que no registro de uma realidade compartilhada, as preocupações da equipe com o bom
funcionamento da casa do paciente, com a ordem e a higiene eram pertinentes e que o
paciente em questão provavelmente ficaria mais feliz. Porém, qual não foi a surpresa para a
equipe ao saber que o paciente ao chegar a sua casa quebrou novamente tudo o que havia
sido consertado alegando que tudo o que precisava viria da indenização do Exército e não
de outra parte qualquer.
Como vemos pelo exemplo acima, a psicose tem uma lógica própria que não entra
totalmente nas nossas tentativas de normatização. É necessário considerar essa lógica nas
tentativas de ações terapêuticas. No exemplo narrado pelo autor, a equipe do CAPS
interveio em um registro da realidade, fazendo com que o paciente perdesse o lugar onde
41
ele se sustentava como sujeito. O paciente em questão recusou o conforto oferecido pelos
técnicos para poder prosseguir sustentado pelo seu delírio (TENÓRIO, 2008).
Comprometer a escuta na perspectiva do cuidado é, de certa forma, segundo Rinaldi
(2000), dissolver o que ela pode trazer de realmente novo numa atitude que tem a
pretensão de humanista, onde a possibilidade de uma verdadeira solidariedade, a partir do
reconhecimento das diferenças em nosso destino comum se desfaz numa prática que se
confunde com o exercício da piedade.
Protocolos, planos terapêuticos, linhas de trabalho são criados nos CAPS sem o
mínimo de embasamento teórico-clínico. Os técnicos comumente empregam medidas
adaptativas, moralistas, visando uma inclusão do paciente. França Neto (2009) defende
que os profissionais da Reforma, em suas tentativas de inclusão aparentemente necessárias,
são quase sempre vistos menos como facilitadores e mais como obstáculos, pois tais
tentativas se apresentam para os pacientes como intervenção externa, e, portanto, como
assujeitamento. Se aos agentes da Reforma cabe a inclusão dos pacientes, “nem por isso
eles deixam de ser um dos Outros contra os quais os usuários deverão necessariamente
resistir para assegurarem uma existência não assujeitada” (FRANÇA NETO, 2009, p. 9).
Zenoni (2000) nesta mesma direção formula uma importante questão: como
presentificar para o sujeito um Outro que não seja a encarnação do querer do Outro?
Dentro de um CAPS, o sujeito não está somente diante dos técnicos, mas também de outros
pacientes. Nesse convívio é comum o problema da violência, de roubos, insultos, injúrias,
uso de drogas e etc. O autor responde que em certo sentido somos representantes da lei
para esses sujeitos e devemos garantir a coexistência de todos. Porém, a manobra consiste
em não presentificar a vontade do Outro, mas em presentificar um Outro que é ele
submetido a uma lei. Não se trata de ficar numa posição paterna ao considerar que nós
mesmos introduzimos a dimensão da lei, mas nos mostrarmos nós mesmos enquanto
submetidos à lei. Não devemos personificar um Outro que quer, mas um Outro do querer
que é submetido á lei. Assim, evitaríamos dois riscos. O primeiro é o da “regra pela regra”
que deve ser mantida a qualquer preço. O outro é o da regra terapêutica, regra que é
aplicada ou não segundo o estado de saúde do sujeito, como podemos ver no exemplo
citado anteriormente, regra que decide se o sujeito é ou não responsável. Zenoni (2000) vai
dizer que o fato de considerar o paciente sempre responsável, nunca tem efeitos nefastos
sobre ele enquanto que ás vezes considerá-lo não responsável pode ter efeitos de
desencadeamento.
42
1.3.5 Uma direção proposta: a psicanalítica
Reestruturar tecnicamente os serviços ou propor novas e modernas terapias para o
campo da Saúde Mental não abrange todo o processo de desinstitucionalização. É
necessário um complexo processo de estabelecimento de novas relações e reconstituição de
saberes e práticas. Criar a rede de Saúde Mental não garante, por si só, a transformação dos
modos tradicionais de lidar com a loucura. Contestar de maneira radical a nossa relação
com o louco enraizada em nossa cultura faz-se necessário e não apenas reformar a
assistência através da criação social e administrativa de novas formas de tratá-lo.
(RINALDI, 2000).
Sabemos que uma práxis deve ser regida por princípios e diretrizes que lhe dão sua
orientação ética e, caso ela se insira em um campo de saber, científico ou dele derivado,
também sua orientação metodológica, sustentada por um eixo conceitual. A clínica em
Saúde Mental deve ter seus princípios e diretrizes éticas e metodológicas bem definidas, e,
como deriva da ciência, deve ter também uma orientação conceitual. No entanto, por força
de outro fator, ele próprio elevado à condição de princípio, o campo da Saúde Mental, por
suas características próprias, históricas, epistemológicas, políticas, sócio-institucionais,
enfim, por seu modo operatório, não admite uma orientação teórica única, prevalente ou
hegemônica. Não cabe, no campo da Saúde Mental, tentar impor uma orientação teóricoclínica exclusiva ou única (ELIA, 2005a).
Contudo isso não significa que não se extraiam, de algumas das orientações
existentes, os conceitos que se revelam capazes de dar sustentação teórica a posições que
devem ser sustentadas precisamente em função dos princípios e diretrizes éticos e
metodológicos mencionados acima, princípios entre os quais se situa, por sua vez, aquele
que interdita uma orientação teórica única.
Para Elia (2005a) isto significa que determinado campo de saber, dotado, como ele
deve ser de unidade e consistência conceituais, só pode ser tomado como referência para a
Saúde Mental se ele atender a duas condições logicamente interligadas. A primeira
condição é que sua construção discursiva deve depreender dois planos distintos: o de
princípios e o de conceitos propriamente ditos. Já a segunda é que seus princípios devem
possuir harmonia com a direção ética proposta pela ação do cuidado em Saúde Mental e
dar sustentação a esta ação. Para este autor, os conceitos devem guardar, com os princípios,
uma relação de homologia e conformidade, de modo que a ação que deles originam, ou
43
seja, por eles afirmadas, não apenas não fira como também se apóie nos princípios éticos
que os regem.
Incontestavelmente a psicanálise já se apresentou como um desses saberes. Não é
necessário que adotemos todos os enunciados da psicanálise para que façamos a
verificação de que o sujeito de que trata a psicanálise é um sujeito que não pode deixar de
ser responsável, exigência ética que a psicanálise estende até o plano do próprio
inconsciente. Podemos acompanhar autores que demonstram que vários outros saberes
permitem a mesma disjunção operatória entre princípios e conceitos, e que se constitui de
uns e outros perfeitamente articuláveis com o campo da Saúde Mental. A concepção
marxista do sujeito, por exemplo, sustenta que o sujeito só se realiza em um trabalho de
que ele não esteja divorciado em seu desejo, um trabalho no qual ele não realize o
propósito alheio – caso em que Marx diz que o trabalho é estranhado (entfremdte Arbeit)
(ELIA, 2007).
Há também alguns saberes filosóficos que se reúnem com o modo de pensar
requerido pelo campo da Reforma Psiquiátrica. Citamos com Elia (2007) a fenomenologia
e o existencialismo, “sobretudo quando o humanismo neles implicado é submetido a uma
crítica interna (como em Heidegger ou Sartre), que o retira de uma ingenuidade
rousseauneana, samaritana ou – em um plano mais degradado – até mesmo rogeriana.”
Arendt (2004) faz uma importante colocação sobre responsabilidade que também
pode contribuir para nosso entendimento sobre esta noção:
Essa responsabilidade vicária por coisas que não fizemos, esse assumir as
conseqüências por atos de que somos inteiramente inocentes, é o preço que
pagamos pelo fato de levarmos a nossa vida não conosco mesmos, mas entre
nossos semelhantes, e de que a faculdade de ação, que, afinal, é a faculdade
política par excellence, só pode ser tornada real numa das muitas e múltiplas
formas de comunidade humana (ARENDT, 2004, p.225).
Em todas essas orientações teóricas é possível sustentar a categoria de um sujeito
responsável e ativo. Responsável porque o sujeito, tanto na perspectiva do inconsciente,
para a Psicanálise, quanto na perspectiva histórico-dialética, para o Marxismo, não é mero
joguete de forças que o determinam, mas toma parte nelas, ainda que sem sabê-lo. E ativo
porque é só na dimensão do ato que o sujeito assume as determinações que recebe do que
lhe é externo e alteritário. Só a Psicanálise concebe um efeito ativo – em geral a causa é
ativa, o efeito, passivo. Mas o sujeito da psicanálise é efeito em ato, efeito ativo. E é disso
mesmo que ele tem que responsabilizar-se, sobre o que lhe concerne, mas que ele não
deliberou. Lacan, expressando o que para nós serve como fundamento desta colocação, diz,
44
em O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico, que “só podemos nos responsabilizar
verdadeiramente pelo que ainda não sabemos responder” (LACAN, 1984).
Tais enlaces entre os saberes, “se arejados pela lufada oxigenante do marxismo ou
se regados pelo bom vinho da fenomenologia existencial não avinagrada pelo humanismo
vitimizador” (ELIA, 2005), podem se tornar poderosos instrumentos conceituais e clínicos
para o exercício de toda práxis que se pretenda consistente e conseqüente no plano da
Saúde Mental, como por exemplo, os CAPS.
O dispositivo de escuta inaugurado por Freud corresponde à regra fundamental da
psicanálise denominada associação livre, onde o paciente deve dizer tudo que lhe vem à
cabeça. O analista deve apenas escutar, sem se preocupar se está retendo alguma coisa e
sem estabelecer uma seleção do material. A isso Freud denominou atenção flutuante. Freud
propõe a partir dessa regra, a geração do tratamento a partir de uma abertura inconsciente e
não de um saber a priori, onde o analista deve, antes de qualquer coisa, abrir mão de seus
preconceitos, permitindo a ele escutar as particularidades do discurso de cada sujeito.
Mesmo no caso do psicótico, que não pode se reconhecer naquilo que diz, pode-se seguir o
princípio colocado por Freud e assim o paciente se dará a conhecer ao analista (RINALDI,
2000).
No campo do saber e da experiência do homem a psicanálise traz a dimensão do
sujeito do inconsciente. Portanto, o princípio de que o paciente deva ser tomado como um
sujeito, e não como um objeto é um princípio que deve ser acolhido, afirmado e tomado
como indispensável, entretanto isso não será suficiente, se alguém for tomado como sujeito
estabelecendo a esse sujeito apenas a dimensão de seus direitos humanos, tais como
educação, saúde, lazer, etc.
Teríamos, então, um sujeito de direitos, mas não um sujeito de
responsabilidades, e, mesmo que se tome nesta segunda categoria, a própria
responsabilidade precisaria ser definida, na medida em que ela poderia ser
reduzida ao plano dos deveres cidadãos (obrigações sociais, jurídicas e
comunitárias, por exemplo) e não no plano de uma responsabilidade subjetiva,
isto é, responsabilidade por sua condição psíquica, mental, por seu pathos, e
pelos destinos que se lhe podem dar. O sujeito do direito teria que ser
transmutado em sujeito de desejo. Estamos aqui diante de uma impossibilidade
tão lógica quanto ética: o sujeito, uma vez tomado apenas em seus direitos,
deixaria, no mesmo golpe, de ser um sujeito, e se tornaria um objeto – vítima
social, vítima familiar, vítima dos processos de exclusão. Como se vê,
independentemente do saber teórico com que operamos, impõe-se-nos a idéia de
que a categoria de sujeito implica, internamente, a de responsabilidade, sob pena
de desfazer-se como categoria de sujeito, a rigor. Se há sujeito, então ele é
responsável (ELIA, 2005a, p 3).
45
Como a Reforma Protestante do século XV, iniciada por Lutero e continuada por
teólogos como Zwínglio, Calvino, Knox e outros, movimento que produziu um corte
profundo em um status quo que estava insustentável, já que a Igreja Católica Romana era
conivente com vários procedimentos patrocinados pelos clérigos contrários aos
ensinamentos apostólicos, tais como com a venda de indulgências e relíquias,
peregrinações, intercessões pelos mortos e etc., a Reforma Psiquiátrica que queremos e
buscamos é aquela que não cesse de avançar na direção de se reformar, para enfrentar as
questões que ela mesma criou ao ter a coragem de combater o quadro manicomial que a
assistência exibia no Brasil há décadas atrás aos que sofrem gravemente com a loucura.
Gisbertus Voetius, reformado holandês, propôs à época do Sínodo de Dort (16181619), um moto que era “Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” (Igreja
Reformada Sempre se Reformando) que as igrejas e os teólogos calvinistas seguem até o
dia de hoje. O slogan tem como direção o retorno constante aos pilares da Reforma
Protestante, Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo Gloria.
Voetius, defensor dos pontos doutrinários calvinistas (eleição incondicional, depravação
total, expiação definida, graça irresistível e perseverança dos santos) claramente presentes
nas epístolas paulinas e em Santo Agostinho, não negou o princípio da reforma constante,
mas destacou que o alvo era sempre retornar às Escrituras, que tinham sido a base da
Reforma Protestante. Assim, A Reforma Psiquiátrica deve seguir na direção de uma
reforma contínua que também não desvie de seus pilares.
Ao se colocar na posição de continuar à espera de uma teoria – sustentando que não
a tem, ou ao se manter em uma posição avessa à discussão teórica e epistemológica, a
Reforma Psiquiátrica corre o risco de se encontrar de certo modo com a visão
hospilatocêntrica, no cruzamento das esquinas do saber a priori, com a da ausência de
crítica epistemológica, e a do silenciamento do sujeito. Se continuar eternamente como
afirmam Saraceno (1996) e Garcia, C. (1997), mas na verdade com seus referenciais pouco
explicitados e velados, o campo da Saúde Mental pode ser “achado” por teorias que só
aparentemente lhe seriam tão estranhas assim e não completamente forasteiras ao seu
campo, tais como já deu mostra a medicina do comportamento, com seu organicismo
violento associado a um comportamentalismo cognitivo e adestrador. Se quiserem manterse coerentes com os princípios que a Reforma preconiza, os profissionais devem ter em
vista que sua ação deve implicar, desde o princípio, a construção de um saber onde prática
e clínica estejam relacionados e afinados com a Política Pública de Saúde Mental.
46
2 TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA PSICOSE
2.1 A importância de reafirmar a psicose como uma estrutura clínica
Para abordarmos a questão de nossa pesquisa, - a clínica nos CAPS – que
desenvolveremos destacadamente na seção 3, tomaremos nesta seção, a teoria e clínica
psicanalítica estabelecida por Freud e sistematizada por Lacan.
A psicanálise é uma teoria que está em conjunção com a clínica, desde a sua
invenção por Freud, pois foi a partir de suas questões com a clínica que ele pôde abrir o
inconsciente à sua formalização, levando-o a teorizar e a ela retornar de maneira contínua.
O que fundamenta a experiência da psicanálise? Muitos poderão responder
apressadamente que será o dispositivo criado por Freud, que tem como ponto central a
associação livre, regra fundamental, citada por nós no final do capítulo anterior, que
somada ao estabelecimento do setting analítico, com a determinação do tempo das sessões,
sua freqüência, etc. garantiria um bom andamento ao tratamento analítico, porém faz-se
necessário ir um pouco mais longe para estabelecermos nossos fundamentos.
Freud (1987f, p. 165) em seu texto Sobre o início do tratamento descreve a função
do diagnóstico levando em conta especialmente os psicóticos. Em suas palavras:
Estou ciente de que existem psiquiatras que hesitam com menos freqüência em
seu diagnóstico diferencial, mas convenci-me de que, com a mesma freqüência,
cometem equívocos. Cometer um equívoco, além disso, é de muito mais
gravidade para o psicanalista [...] ele não pode cumprir sua promessa de cura se o
paciente está sofrendo, não de histeria ou de neurose obsessiva, mas de
parafrenia, e, portanto, tem motivos particularmente fortes para evitar cometer
equívocos no diagnóstico.
Quanto à cura como efeito terapêutico esperado numa análise, Lacan vai dizer que
um sujeito é incurável (LACAN, 1984), já que mesmo que atravesse a fantasia e cheque ao
final de análise, isso no caso do neurótico, o inconsciente nunca vai deixar de se
manifestar, sendo o sujeito testemunha de sua persistência. Quanto à promessa de cura, no
caso da psicose, diz respeito ao analista não poder prometer inserir o psicótico na norma
fálica, não poder inseri-lo numa “norma” já que a norma é regida pelo Édipo e pelo
complexo de castração cujo resultado é o significante fálico, isto para ambos os sexos. Não
é possível fazer um psicótico tornar-se um neurótico.
47
Se o sujeito é um neurótico ou um psicótico, é importante que um técnico de CAPS,
seja este analista ou não, o saiba, pois a condução de um tratamento precisa ter como
referência o Nome-do-Pai e a castração no primeiro caso, e não poderá ser conduzido desta
maneira no último. Dessa maneira é fundamental que se detecte a estrutura clínica do
sujeito desde as entrevistas, chamadas nos CAPS, de acolhimento, e nos momentos
subseqüentes de permanência do paciente no dispositivo, para a conduta correta do caso.
Muitas vezes o que vemos acontecer é uma desvalorização do diagnóstico em prol da
avaliação de transtornos, levando-se assim a uma clínica confusa e desnorteada. Muitos
neuróticos são conduzidos como se fossem psicóticos. De igual modo, os psicóticos são
tratados no cotidiano como se fossem regidos pela norma fálica, ou seja, como os
neuróticos.
Se Freud contra-indicava a psicanálise para os psicóticos, Lacan vai trazer uma
importante recomendação aos analistas, que transmitimos e transferimos para os técnicos
dos CAPS: “a paranóia, quero dizer a psicose, é para Freud absolutamente fundamental. A
psicose é aquilo diante do que um analista não deve, em caso algum, recuar” (LACAN,
1977, p.12).
Resta saber, porém, de que maneira devemos avançar, pois se com os neuróticos a
condução da clínica exige um manejo adequado, o que diremos então da clínica da
psicose?
A direção do tratamento deve ter como base de estratégia a transferência da qual o
diagnóstico não deve estar dissociado, já que o analista será convocado a ocupar o lugar do
Outro para o sujeito, a quem ele dirigirá suas demandas, e, a partir deste campo assim
constituído, o desejo inconsciente encontrará o analista na posição de objeto a. Será, assim,
de profunda importância detectar qual a modalidade da relação do sujeito com o Outro e
com o objeto, pois como veremos posteriormente, é pela transferência que poderemos lidar
com os transtornos que podem advir da clínica com pacientes psicóticos, especialmente
aqueles que convivem diariamente em um dispositivo como o CAPS.
Em seu texto Neurose e psicose, Freud (1987q) define neurose e psicose como
estruturas clínicas e distintas entre si, o que foi corroborado por Lacan posteriormente
quando recoloca a clínica psicanalítica distinguindo a diferença entre a demanda de análise,
a direção de tratamento e os critérios de final de análise entre uma estrutura e outra. No
texto em questão, Freud define a neurose como um conflito entre o eu e o isso devido ao
recalcamento secundário da pulsão, tendo como conseqüência a inibição, restrição ou
interdição da realização do desejo em prol de uma primazia da realidade. Diferente da
48
neurose, a psicose não se submeteria à realidade, havendo então conflito entre o eu e a
realidade. Dessa maneira, não se constitui a realidade como “mundo interno da fantasia”,
concebido por Freud como lugar psíquico para onde converge a libido ao ser retirada dos
objetos, nos neuróticos. Para o psicótico, o eu que rompeu com o mundo externo, recriaria
o último sob o comando do isso, ficando assujeitado a essa instância.
Freud (1987r) no texto A perda de realidade na neurose e na psicose, retifica o que
havia dito em Neurose e psicose no que diz respeito à relação com a realidade. Vai dizer
que em ambas as estruturas haverá perda ou afastamento da realidade e o que diferenciaria
a neurose da psicose seria o que adviria no lugar disso que é perdido. Na neurose, a defesa
iria se ligar a um fragmento da realidade e na psicose, no lugar da realidade perdida, seria
recriado um mundo que não se liga a nenhum fragmento da realidade. A defesa se
levantaria contra a realidade e seria bem sucedida em seu intento de rejeitá-la.
A concepção freudiana da psicose afirma uma unidade necessária do campo, que é
determinada por uma espécie única de mecanismo responsável pela produção da paranóia e
da esquizofrenia, tipos clínicos fundamentais dessa estrutura. Trata-se da retirada libidinal
no mundo dos objetos culminando no auto-erotismo ou interrompendo-se antes, ao nível do
narcisismo, determinando respectivamente a posição esquizofrênica, em que o estádio do
espelho não se estrutura e o narcisismo não se constitui, e a paranóia, que se caracteriza, ao
contrário, por uma regressão tópica ao estádio do espelho.
É com as Notas psicanalíticas sobre o relato autobiográfico de um caso de
paranóia (dementia paranoides), que toma como tema de suas análises as memórias de
Schreber que Freud (1987d) traz sua maior contribuição para o estudo das psicoses.
Contradizendo o pensamento de que o delírio seria a manifestação da doença, Freud eleva
o delírio à condição de tentativa de cura para as psicoses, um movimento rumo à
estabilização.
Ao se debruçar sobre as memórias de Schreber, Freud pela primeira vez tematiza a
relação da paranóia com a sexualidade além de identificar na primeira uma forma própria
de estruturação e não somente um mecanismo específico de defesa como havia dito
anteriormente (ELIA, 1992).
A análise de Freud é centrada na referência paterna, apontando assim a vertente
estrutural. O pai para Freud não coincide com o pai genitor, mas com o pai como
referência simbólica. Elia (1992) defende que o recurso de Freud à tese de um conflito
entre o eu e os impulsos homossexuais na base da paranóia tem o sentido que toda análise
das “Notas psicanalíticas” assume no todo da obra freudiana, que é a de construir uma
49
teoria analítica sobre as psicoses que tenha como eixo a teoria da libido. O atributo
”homossexual” desta libido tem na gênese do delírio (que é a gênese da consciência crítica,
a Gewissen, precursora do que será posteriormente o supereu, radicalmente distinta da
Bewusstsein, que seria a consciência perceptiva, sob forma regressiva), antes o sentido de
atestar o caráter narcísico, identificatório, na vertente imaginária do “duplo” do eu, do que
fazer qualquer alusão à escolha de objetos homossexuais, como é o caso da interpretação
de Schreber.
Muitos anos antes, nos primórdios da Psicanálise, no artigo Psiconeuroses de
Defesa, Freud (1987) já escrevia que na psicose existe uma espécie de defesa muito mais
enérgica e eficaz que na neurose. Já nas análises das Memórias de Schreber, Freud (1987d)
vai partir da premissa de que na base da paranóia há a posição subjetiva exprimível pela
sentença “Eu (um homem) o amo (um outro homem).” Há três maneiras pelas quais a
proposição pode ser negada resultando em três configurações do delírio paranóico, a saber,
a perseguição, a erotomania e o ciúme.
A primeira configuração da forma de negação seria a partir da proposição básica
que afirma “Eu o amo” para em seguida negar com a sentença “Não, eu não o amo”. O
terceiro passo é a inversão do verbo na sentença “Eu o odeio” que inverte o valor do afeto
em jogo em seu contrário. O passo seguinte é a formulação “Ele me persegue”, que projeta
com interversão entre o sujeito e objeto a forma final do delírio de perseguição. Antes de
ser objeto de ódio e perseguidor, pela seqüência das operações gramaticais e discursivas,
percebe-se que o objeto foi amado, e que através da projeção, ele é percebido desde fora,
tornando-se assim odiento e consciente, o que ocorre sem recalque.
Como segunda forma de negação, Freud apresenta a erotomania. A proposição
básica “eu o amo” seria negada, não com inversão do verbo, como na proposição anterior,
mas invertendo o objeto, onde após o sujeito formular a frase “Não, eu não o amo”, passa a
formular a frase “Eu a amo”. Em seguida por projeção com interversão entre o sujeito e o
objeto, acompanhada de uma generalização (em que o caráter ilimitado do Outro faz ver
claramente que o psicótico não o reduz ao outro, mas amplia este no Outro como um
campo sem demarcação ou contorno imaginário), a frase passaria a ser “Elas (todas as
mulheres) ou eles (todos os homens) me amam”, culminando na erotomania.
O ciúme é a terceira forma de negação apontada por Freud. Nesta última a
proposição básica, “Eu o amo” é negada, sendo que o sintagma que sofrerá alteração será o
sujeito, por sua inversão. A frase “Não, eu não o amo” passaria a ser formulada como “Ela
(e não eu) o ama.”
50
Ainda como quarta forma de negar a proposição “Eu o amo”, Freud apresenta a
radicalização do narcisismo na megalomania. A frase ficaria “Não amo de modo algum,
não amo ninguém, só a mim mesmo.”
A mesma unidade do mecanismo psíquico da psicose que encontramos em Freud
será reencontrada em Lacan. São três momentos principais em que Lacan dedica-se ao
tema da Psicose. O primeiro deles foi em sua tese de doutorado, datada em 1932, intitulada
51
É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do
Nome-do Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que
apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura
que a separa da neurose (LACAN, 1998e, p. 582).
Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação simbólica que
ocorre no nível da linguagem, e ressignifica a noção de defesa no que diz respeito às
relações do sujeito com a estrutura. Para Freud, a noção de defesa envolvia um processo
bem mais amplo que o do recalque (Verdrängung), envolvendo outras estratégias e
mecanismos que são a rejeição (Verwerfung) na psicose e recusa (Verleugnung) na
perversão. O efeito dessa defesa constitutiva modifica a relação do sujeito com a
linguagem, no momento da constituição do sujeito. Para Lacan a defesa também assume
formas diversas. Ele segue as formas diferenciadas de defesa para as diferentes estruturas
clínicas: neurose, psicose e perversão.
Para Freud, o pensamento e a função do julgamento somente são possíveis a partir
da existência do símbolo da negativa, favorecendo o pensar de uma primeira medida de
liberdade em relação às conseqüências do recalque. O juízo de atribuição e o juízo de
existência são duas funções supostas por Freud que possibilitam a ordem do discurso na
origem do pensamento humano. Quanto ao juízo de atribuição, Freud vai afirmar que
envolve introjetar o que é bom e expelir o que é mau, estabelecendo, respectivamente, um
dentro e um fora. Se for bom quero ingeri-lo e sou eu. Se é mau quero cuspi-lo e é não-eu
(FREUD,1987t).
O juízo de existência não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva
ser acolhido ou não no eu. Vai referir-se ao fato de que algo existente no eu, como
representação, possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real estará
só dentro, enquanto o outro, real, também existirá fora. A oposição entre subjetivo e
objetivo não é dada desde o início. A realidade psíquica, para a psicanálise, nem sempre
coincidirá com a realidade material (GUERRA, 2010).
A prova da realidade terá como objetivo primeiro não encontrar um objeto que
corresponderia ao representado na percepção real, mas reencontrar tal objeto desde sempre
perdido. Há um intervalo entre o objeto da percepção, desde sempre perdido, e a
representação. É nesse intervalo que o inconsciente se institui como diferença, como
estrutura que porta este ato.
Qual a importância da função do julgamento? Trata-se do fato de que ela é uma
ação intelectual que decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à procrastinação do
pensamento. A função do julgar conduz do pensar ao agir, e também é uma continuação do
52
processo original através do qual o eu integra ou as expele de si, conforme o princípio do
prazer. Freud denominou de afirmação (Bejahung) e de denegação (Verneinung) o
movimento que se realiza em dois tempos dessa função. A afirmação (Bejahung) implica
que ao se afirmar uma inscrição no aparelho psíquico, outra seja expulsa (Ausstosung).
Assim, a última confirma a anterior.
No curso ulterior do ensino de Lacan encontraremos o riquíssimo processo de
pluralização dos Nomes-do-Pai e sua correlata diversificação de possibilidades de resposta
dadas pelo sujeito às exigências do real. Essa diversificação não dirá respeito apenas às
psicoses, embora tenha sido inspirada pela clínica da psicose. Abordaremos, em momento
posterior desta dissertação, esse processo em maior detalhamento. Neste ponto nós apenas
o assinalamos, seguindo a exploração das vicissitudes da incidência ou não do Nome-doPai.
Quando ocorrer algo que mexa com a Gestalt do sujeito, como por exemplo, na
puberdade, onde não há reconhecimento do corpo, e a Gestalt é totalmente bombardeada,
haverá uma vacilação enorme na imagem. Por mais que a imagem seja mutante, é
necessária uma outra referência que diga que o sujeito ainda é ele mesmo, apesar das
mudanças. Essa outra referência é dada por Bejahung. O Nome-do-Pai é que permite isso.
Ou seja, quando o Nome-do-Pai se faz presente, é possível para o sujeito se reorganizar e
continuar com sua referência simbólica. Por mais que o mundo se quebre, que a imagem do
sujeito se quebre, é possível resgatá-la. Esse resgate permite superar a crise no imaginário.
Isso só será possível se existir o Nome-do-Pai para dar lastro, para dar ancoramento, pois
se não houver o Nome-do-Pai, o sujeito dissolve-se com sua imagem. Se o sujeito buscar
uma referência no Outro (A) e não encontrar, o mundo dele se quebrará, bem como o outro
(a), ocorrendo a invasão do real (ALBERTI, 2009).
Lacan vai reafirmar posteriormente a Bejahung como dimensão fundadora da
ordem simbólica. Sendo assim, para que um sujeito não queira saber de algo, no sentido do
recalque, é necessário que esse algo tenha aparecido pela simbolização primordial, e assim
ter sido constituído uma dimensão no sujeito que a representação não atinge. Ou seja, tratase do real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização. Para
Lacan (1985), na psicose haveria uma etapa em que uma parte da simbolização não se
efetivaria previamente a qualquer articulação simbólica. Algo de primordial quanto ao ser
do sujeito não ganharia representação, sendo antes foracluído. Há possibilidade de uma
Verwerfung primitiva, na relação do sujeito com o símbolo, sendo que, o que não foi
simbolizado se manifesta no real retornando no real. Lacan propõe que ao nível da
53
Bejahung é estabelecida a primeira dicotomia, onde o que foi submetido à Bejahung, à
simbolização primitiva teria vários destinos. Já o que cai sobre o golpe da Verwerfung terá
outro. Na origem haveria Bejahung, ou seja, a afirmação do que é ou Verwerfung, rejeição,
foraclusão.
Na estrutura neurótica haverá uma apresentação que se inscreve e que recalcada
deixa livre o afeto a ela correspondente, produzindo assim derivados que retornam com
revestimento simbólico e substitutivo.
Para Lacan (1985), a foraclusão quer dizer que uma operação não foi inscrita em
tempo hábil, caducando sua função e seus efeitos simbólicos. Pode-se perceber, então, que
os efeitos da carência significante retornam como gozo no real. Ao implicar uma não
representação de uma marca perceptiva inaugural, a foraclusão ou a Verwerfung
modificaria estruturalmente esta marca, tornando-a real. Apesar de a percepção receber um
primeiro registro, ela não pode se transformar em lembrança conceitual por falta da
inscrição que amarraria a função da exceção do pai que corresponderia a um traço
inconsciente, que é o traço unário. O resultado disso é um estado de percepção que não
passa ao estado de representado. “É desde o exterior, desde que pensado como remetido a
uma não inscrição, que se dá o ‘desde fora’ freudiano.” Podemos concluir que aquilo que
foi abolido internamente, retorna desde fora: o que não se escreve simbolicamente pelo
contorno do significante retorna sobre a forma de alucinação no real.
A foraclusão do Nome-do-Pai é um acidente que traz conseqüências. Trata-se de
uma ocorrência simbólica que produz um retorno real que tem efeitos imaginários, de um
real que retorna trazendo desassossego e estranheza, desmantelando a teia de significações
pela qual o mundo do sujeito era constituído. A foraclusão do Nome-do-Pai implica e
refere-se ao real, ao simbólico e ao imaginário que são “três dimensões habitadas pelo
falante” (LACAN (1998i), três registros que contribuíram para que Lacan construísse sua
teoria dos nós a partir de sua leitura da obra freudiana.
Lacan indica uma relação distinta entre os três registros em sua teoria dos nós
borromeanos. Primeiramente ele definiu a supremacia do registro simbólico em relação ao
real e ao imaginário e a exclusão destes do real pulsional. A partir de 1970, Lacan passa a
falar não mais da supremacia do simbólico, porém de uma interdependência entre real,
simbólico e imaginário, vinculados entre si.
É através do nó borromeano que Lacan vai definir a estrutura do sujeito, na medida
em que, onde há sujeito há uma amarração borromeana do real, simbólico e imaginário.
54
Figura 1 - Nó borromeano
Na elaboração final de seu ensino, Lacan vai individualizar os três registros. No nó
borromeano de três anéis, os três apresentavam a mesma consistência que é a consistência
imaginária, característica que não é própria do simbólico nem do real. Se a característica
do imaginário é a consistência, a do simbólico é a insistência da cadeia significante e o real
a ex-sistência aos outros registros (LACAN, 2001). Mas este é o final do ensino de Lacan.
Passemos a falar das relações da psicose com esses três registros, real, simbólico e
imaginário e através desse modo de exposição continuar nossa incursão à teoria freudiana e
lacaniana da clínica da psicose até chegar ao momento da clínica dos nós.
2.2 O Simbólico e a Psicose
2.2.1 A castração, um operador estruturante
A psicose é uma estrutura singular que longe de excluir o sujeito, implica-o em suas
relações com a linguagem. Para pensar a psicose a partir da psicanálise, é necessário nos
debruçarmos em um conceito central da teoria que é a castração, operador estruturante que
possibilita toda experiência, seja na estrutura da neurose, da perversão ou da psicose.
Para Freud (1987p) a experiência da castração é centrada na fantasia de que o pênis
foi castrado nas mulheres e que nos homens pode vir a sê-lo. O complexo de castração
seria estruturado a partir da primazia, não dos órgãos genitais, mas do falo, onde tanto
meninos e meninas atribuem o pênis universalmente, tanto a homens quanto às mulheres e
55
inclusive a objetos inanimados. Porém, ao deparar-se com a questão da diferença, meninos
e meninas terão a difícil missão de significantizá-la.
A castração, com o ferro em brasa do significante, marca o vivente o e
transforma em sujeito, excluindo a experiência do corpo como real, desterrando o
gozo do corpo, banindo-o para o exterior, instituindo assim um gozo
propriamente sexual, fálico, gozo fora-do-corpo, e inaugurando um tempo de
desejo, experiência exclusiva dos falantes, seres que habitam o universo
simbólico, universo do discurso (SOUZA, 1999, p.10).
2.2.2 O Complexo de Édipo e seus três tempos
Diante da constatação da diferença anatômica, os meninos vão negar a falta e
acreditar que o órgão da menina irá crescer. Posteriormente chegarão à conclusão muito
importante de que a menina possuía um órgão como o seu, mas que foi privada da posse.
Essa falta do pênis na menina é interpretada como castração.
Se tal fato aconteceu a ela, surge no menino o temor de que o mesmo possa suceder
a ele. Temos aqui a ameaça da castração que reforça a interdição do desejo ligado às
fantasias do menino em torno da mãe. Aqui chegamos ao âmago do Complexo de Édipo,
que nos meninos encontra no temor da castração seu ápice e declínio. Ao escolher
abandonar a mãe como seu objeto de desejo e conjuntamente tomar o pai como objeto de
identificação o menino toma a via do que é próprio da sexualidade masculina.
Ao verificar a diferença anatômica, as meninas reagem de maneira diferente.
Rapidamente fazem juízo diante do que viram e sabem que não tem o pênis e que
gostariam de tê-lo (Freud, 1987s). A menina é tomada pela inveja do pênis, elemento
fundamental da sexualidade feminina e principal manifestação de seu complexo de
castração, sendo o seu ingresso no Complexo de Édipo, caminho que percorrerá as ruas
intricadas de sua sexualidade, num incessante tornar-se mulher.
É a fantasia da castração que viria dar sentido à diferença sexual anatômica e
organizar os destinos dos sujeitos, em posições sexuada masculina e feminina, para além
da anatomia. Temos aqui a dimensão simbólica da castração que instaura a função do falo.
Trata-se do falo e não do pênis, pois não se trata de uma imagem ou de uma fantasia, mas
de um significante, o significante do desejo (LACAN, 1999).
O falo seria um atributo universal e não o pênis ou clitóris. Não é um dado da
realidade corporal e sim uma dimensão da contingência que marca todo objeto como
podendo ser infinitamente diferente de si mesmo (MILNER, 1996), por isso sempre “outra
56
coisa”, que na verdade não é coisa, e por isso o falo marca todo objeto como objeto do
desejo, é um nome para o desejo. Sendo o falo um significante, tem função organizadora
da sexualidade infantil e a castração fica como a lei que ordenaria o desejo. Esta é a
concepção lacaniana da castração: a castração como lei e não como fantasmagoria
imaginária.
A consideração do complexo de Édipo no texto freudiano gera a impressão de que,
para Freud, a menina é castrada e o menino teme a castração. Por isso, a dualidade
introduzida por Freud é “fálico X castrado”, que depois se desdobra em “ativo X passivo”
e “masculino X feminino”, mas sempre com base no ter ou não ter o falo. O embaraço
freudiano neste ponto é evidente (pois Freud nos dá indicações de que esta formulação é
insuficiente – a relação da menina com o falo e a castração não se resolve como um
simples “não ter”, e os desenvolvimentos freudianos sobre a fase pré-edipiana da menina,
sua relação longa e complexa com a mãe, subterrânea ao Édipo “como a civilização minomiceniana que jaz sob o esplendor da civilização grega!” (Freud, 1987u, p. 260) bem o
atestam. Com o recurso teórico do significante, e do falo como um significante, a questão
do falo pode ser colocada não apenas como um órgão ou objeto que se tem ou não se tem,
mas como algo que se pode ser ou não ser. E por isso Lacan permite sair do impasse
freudiano sobre o édipo feminino.
Lacan vai colocar a castração no centro do Complexo de Édipo concebendo-o em
três momentos lógicos (LACAN, 1999).
O primeiro momento é o da identificação da criança com o falo, como aquilo que a
mãe deseja. A questão que se coloca para a criança é ser ou não ser o falo e assim
satisfazer o desejo da mãe. O Outro tem uma lei que vigora. Lacan, em O Seminário, livro
5, As formações do inconsciente dirá que no primeiro tempo do Édipo o pai incide como
que velado, “por trás da cortina”, diz Lacan, sem “dar as caras”. A lei é puramente
simbólica, é aquela lei do Nome-do-Pai que incide sobre a mãe e permite a simbolização
do desejo da mãe como sendo o desejo do falo, daí a identificação da criança com o falo,
situado como objeto desse desejo da mãe. É uma forma simbólica de incidência da
castração, que exigirá outras formas de incidência, bastante diferentes, nos tempos
seguintes – segundo e terceiro – para que o Édipo como estrutura seja subjetivado.
O Édipo em seu segundo momento tem inscrita uma nova forma de incidência da
lei da castração, que é a intervenção do pai sob sua forma de pai imaginário, pai castrador,
que enunciaria – e Lacan dá a essa enunciação uma forma bíblica – “Não reintegrarás teu
produto” – proferido à mãe e “Não serás o falo para ela” – proferido ao filho. Este pai é
57
privador, e permite a elaboração pela criança do fato real de que a mãe é privada do falo,
como objeto simbólico. O pai não dá nada, só priva, mas essa privação é um grande dom,
se admitido, para a seqüência da subjetivação da estrutura do Édipo, do desejo e da
castração.
Sendo assim, no terceiro momento do Édipo o desejo vai ter como arrimo a questão
do ser, e não mais do ter o falo. Nesse momento, abandonando a mãe, será no pai, como
suposto ser aquele que detém o falo, que tanto meninos quanto meninas irão procurar o
objeto de desejo. O menino irá fazer do pai seu objeto de identificação e afirmará com ele
ter o falo. Já a menina, tomando-o como seu objeto de amor e modelo para os demais
objetos, buscará aí o que sabe não ter (FREUD, 1987o).
2.2.3 A Metáfora Paterna
Lacan se utiliza do Esquema L, um esquema linear, para mostrar a dialética da
intersubjetividade, a oposição entre simbólico e imaginário. Justamente por sua
preocupação dialética, Lacan promove uma discussão crítica, epistemológica, trazendo
com isso conseqüências teóricas e clínicas para a clínica da psicanálise.
Diferentemente dos kleinianos que vão pensar a relação mãe-bebê como dual,
Lacan mostra que para se pensar em um único sujeito é preciso quatro termos. Lacan
(1983) em O Seminário, Livro 1: os escritos técnicos de Freud, na lição sobre relação de
objeto e relação intersubjetiva vai assinalar que o manejo da relação de objeto como dual
estaria fundado no desconhecimento da autonomia da ordem simbólica, que acarretaria
automaticamente uma confusão do plano imaginário e do plano simbólico e também do
real. Se a relação primária fosse dual, a mãe diante de suas necessidades fisiológicas
poderia vir a engolir a criança, assim como faz o bebê ao sugá-la enquanto mama. A mãe
não age dessa maneira porque de antemão está referida a uma ordem terceira, simbólica, da
linguagem, que é a lei paterna.
Para formular a relação do sujeito (S) com o Outro (A) que é o inconsciente, Lacan
(1985), em O seminário, Livro 3: As psicoses, se vale do Esquema L, que já havia sido
apresentado no ano anterior. Em seu famoso escrito da mesma época, De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose, vai dizer que o esquema significa que “o
estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O que
nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)”
58
(Lacan, 1998e, p. 555). Lacan vai mostrar as relações do sujeito com o Outro o
desdobrando em Outro (A) e outro (a), simbólico e imaginário, respectivamente.
Figura 2 - Esquema L
Do lado esquerdo temos o sujeito (S), com “sua inefável e estúpida existência”
(LACAN, 1998e, p.555), referido ao campo simbólico, que é anterior a ele, e que por esta
razão o determina. O sujeito (S) é sem imagem havendo necessidade de projetar-se para
possuir um eu (a’). O eu será uma projeção do objeto do lado do sujeito, onde aí sim
haverá imagem. Do lado direito temos os objetos imaginários (a) do sujeito (S) e por
último o Outro (A) que é o campo da linguagem, do tesouro dos significantes, “o lugar de
onde pode se colocar a ele a questão de sua existência” (LACAN, 1998e, p. 555). O sujeito
(S) está alienado no campo do Outro (A) e é a partir dessa relação simbólica, que ele se
estabelece como eu (a’) podendo então investir nos objetos (a).
No esquema L o Outro (A) dá sustentação à relação imaginária que vai de (a’) a (a).
Para se criar uma imagem, para se especularizar alguma coisa, é necessário estar ancorado
nos significantes. Se nesse tesouro dos significantes (A), faltar um significante
fundamental, o Nome-do-Pai (NP) a imagem começará a vacilar e o sujeito não construirá
uma imagem, não conseguirá fazer associação significante alguma. Voltaremos ao
esquema L mais tarde.
Tomemos agora o grafo do desejo. A forma definitiva do principal esquema
elaborado por Lacan em O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente chamado
posteriormente de “grafo do desejo”, encontra-se nos Escritos, no texto Subversão do
sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
Esse grafo completo é ali
precedido por formas que representam as etapas de sua construção e podemos fazer através
do grafo que foi construído por Lacan para a neurose, um contraponto com o que acontece
com a psicose.
No texto dos Escritos, Subversão do sujeito já citado, Lacan (1998f) esclarece que o
grafo ali produzido foi construído para o seminário sobre as formações do inconsciente.
59
Comenta ainda que o grafo servirá para apresentar onde se situa o desejo em relação a um
sujeito definido por sua articulação significante.
Nesse grafo está o Outro (A), com toda sua potência, onde o sujeito vai se
identificar a partir de um traço unário, que o aliena em uma identificação primeira
constituinte do Ideal do eu (I). A estrutura é quaternária, representada por quatro pontos de
interceptação do discurso do Outro, a nível do enunciado e da enunciação, em movimento
retroativo.
No primeiro nível, do enunciado, lugar do desconhecimento, da alienação, um
ponto de interseção é o A, o outro é o s(A), significação, lugar privilegiado do sintoma. O
primeiro estágio do grafo do desejo (Figura 3) descreve o encontro do sujeito e a
conseqüente mensagem que ele recebe nesse encontro, em função da interpretação que o
Outro primordial faz do seu choro, que não queria dizer nada inicialmente, apenas que ele
estava descarregando uma energia.
Figura 3 – Grafo do desejo – 1º estágio
A partir da página 822 da edição brasileira dos Escritos, no texto Subversão do
sujeito, Lacan (1998f) vai introduzir outros termos no grafo e teremos então o grafo 2
(Figura 4). Nesse ponto, Lacan vai substituir S barrado do vetor retrógrado por I(A),
fazendo com que o primeiro se transponha de sua extremidade para sua partida. Sobre essa
retroversão Lacan diz que
o sujeito, em cada etapa,transforma-se naquilo que era, como antes, e só se
anuncia “ele terá sido”,no futuro anterior. Aqui se insere a ambigüidade o de um
desconhecer [méconnaître] essencial ao conhecer-me [me connaître]. Pois tudo
de que o sujeito pode se assegurar, nessa retrovisão, é de vir a ser essa imagem,
esta, antecipada, que ele tem de si mesmo em seu espelho (LACAN, 1998f,
p.823).
60
Figura 4 – Grafo do desejo – 1º andar
O movimento do sujeito no terceiro tempo do Édipo, isto é, o movimento de
identificação com o pai através do qual ele poderá sair do complexo de Édipo e assumir um
ideal do eu como seu herdeiro, como dirá Freud, ocorre porque o sujeito quer ter o falo que
ele atribui ao pai. No momento em que a mãe falta, o sujeito percebe que ela está com
alguém que tem alguma coisa que ela quer e que ele não tem. Esse alguém é alguém que
faz exceção ao que acontece com o sujeito e com a mãe e o sujeito vai querer ser como
esse alguém que a mãe quer. O sujeito que era uma incógnita no desejo da mãe vai desejar
ter o falo, isso que falta a mãe, e que ele atribui ao pai ter.
Desde o primeiro tempo do Édipo, quando desejava ser o falo significado como
objeto de desejo da mãe, o sujeito já era desejante, porém referido a um Outro primordial
com o qual vivia uma relação de suposta completude. O pai, como terceiro termo, já se
encontrava presente desde o primeiro tempo, como pudemos ver pelo esquema L
anteriormente representado. Ou seja, toda estrutura do Édipo já era tríadica desde o início,
e na verdade quaternária. A Lei não vai se inscrever no terceiro tempo apenas, porém nesse
momento, o que vai acontecer é que na medida em que essa Lei vai se inscrever furando o
Outro, no instante em que esse Outro faltar, abrir-se-á um buraco, um furo, e é nesse lugar
que se inscreverá a Lei do Pai que franqueia ao sujeito o desejo. No momento em que o pai
entra, ele irá barrar o desejo da mãe e em conseqüência, o sujeito deixará de ser o objeto de
desejo da mãe para ser um sujeito identificado com o pai, e esse Nome-do-Pai é que vai
incluir no outro o falo.
Lacan faz notar que a presença do pai no ambiente familiar não garante,
necessariamente, uma função operante, assim como a carência simbólica do pai não tem,
necessariamente, relação com sua ausência na família. É nesse sentido que, em O
Seminário, Livro 5, As formações do inconsciente, ele afirma que "mesmo nos casos em
61
que o pai não está presente, em que a criança é deixada sozinha com a mãe, complexos de
Édipo inteiramente normais [...] se estabelecem de maneira exatamente homóloga à dos
outros casos" (LACAN, 1999, p. 173). Para Lacan, "a questão de sua posição na família
não se confunde com uma definição exata de seu papel normatizador. Falar de sua carência
na família não é falar de sua carência no complexo" (LACAN, 1999, p. 174).
Até esse ponto do ensino de Lacan, a pergunta sobre o "que é um pai para uma
criança?", seria respondida como: é o pai proibidor, que interdita o acesso da criança à
mãe, não a uma mãe qualquer, mas à mãe que dá à palavra do pai seu devido valor,
simbolizando plenamente a castração para a criança e, conseqüentemente, livrando-a da
neurose e da necessidade do sintoma.
No entanto, uma leitura menos “moralizante” do conceito de Nome-do-Pai em
Lacan aponta que esta interdição, esta dicção-entre, faz na verdade o efeito de abrir ao
sujeito a via do desejo, na medida em que o pai do terceiro tempo do Édipo não é mais o
pai temível e privador do segundo tempo, o pai imaginário, mas o pai real, que desde O
Seminário, livro 4 é o agente da castração (operação simbólica que incide sobre um objeto
imaginário – o falo imaginário, φ minúsculo e é agenciada por uma instância real – o pai
real) que se coloca como lugar da castração mesma, pai do desejo, que transmite a
castração não por autoridade, mas por estar submetida a ela.
A imagem advém dos ditos do Outro em relação ao ideal que o sujeito deve poder
alcançar. Freud (1987j) em Luto e Melancolia associa essa questão à identificação ao pai.
São referências simbólicas de Ideal e não imagens narcísicas. O grande Outro apresenta,
introduz, indica os ideais do Outro para o sujeito naquela cultura, naquela situação, naquela
família e naquele contexto.
A imagem que o bebê encontra no espelho é a imagem que passa pelo Outro, que se
encarna, por exemplo, no investimento através do olhar do outro materno. Lacan (1998a)
chamará isso de estádio do espelho e Freud (1987g) de Narcisismo.
O eu como instância imaginária só se constituirá no momento em que o sujeito
puder identificar-se com a imagem do corpo próprio, investida pelo Outro materno, numa
triangulação Mãe-sujeito-imagem. O eu é antes de tudo um outro, o que se verifica no nível
especular em se estabelece a relação dual e imaginária entre o eu e sua imagem, base da
relação com o semelhante, relação que não é pensável fora do registro simbólico. Ou seja,
a relação imaginária não se sustenta sem o grande Outro.
Mas, retomando a questão do plano simbólico e não no plano do imaginário da
formação do eu, podemos dizer que, no psicótico, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar
62
do Outro, a sua não inscrição, impede o sujeito de ter presente a significação fálica,
indispensável, impedindo-o de nomear-se, e de constituir-se na dialética do desejo. Não há
possibilidade de formulação do Che voui para o psicótico. Nesse lugar, formula-se uma
resposta que vem de fora, do real. Na psicose, como defesa, trata-se de uma resposta e não
de uma projeção, como, aliás, Freud supôs nos primórdios de seu pensamento (FREUD,
1987), ponto de vista que veio a corrigir na sua análise do Caso de Schreber: se se tratasse
de projeção, teria que haver algo que tivera sido inscrito antes. A resposta que toma o lugar
da projeção é o retorno, vindo de fora, do que fora originariamente abolido de dentro
(FREUD, 1987d).
O esquema R (figura 5) construído por Lacan, esquema da estruturação do sujeito,
surge como um desdobramento do L, apresentando regiões, e vai permitir que adentremos
um pouco mais na teoria lacaniana neste momento. No esquema R (Figura 5), o grande
Outro (A) que no esquema anterior (esquema L) era apenas um ponto é representado por
um triângulo inteiro. Teremos o Outro desdobrado em Outro da linguagem (M) - a mãe
simbólica, simbolizada em sua ausência, a mãe do fort-da de Freud, o significante do
objeto primordial adquirido por meio da função paterna - e o Outro da Lei, o Nome-do-Pai
(P) no Outro.
I
Figura 5 - Esquema R
Contrariamente à concepção genética da constituição da psicose, o pensamento
freudiano e a interpretação lacaniana tomam a concepção estrutural como causa, onde a
instância paterna, chamada Nome-do-Pai para Lacan, não se encontraria inscrita no sujeito.
O sujeito, como mostra o esquema R, estaria referido ao Outro da linguagem (M) e ao
Outro da Lei (P) no caso da neurose, e apenas ao primeiro no caso da psicose.
O Nome-do-Pai (P) incidindo sobre o desejo da mãe (M) que para o sujeito é uma
incógnita, faz com que esse desejo se signifique como desejo do falo. A mãe ao querer o
falo, faz com que o sujeito queira ser o falo para ela (reencontramos aqui, no esquema R, a
63
formulação que fizemos sobre o primeiro tempo do Édipo, anteriormente – ver pág. 55). O
sujeito (S) é sustentado pela significação fálica, que é instigada pelo Nome-do-Pai (P)
através da metáfora paterna. É o Nome-do-Pai (P) o instrumento legal dessa operação. Pela
metáfora o sujeito se define como marcado e assujeitado à lei simbólica, que é a castração
e seus incrementos imaginários.
É a metáfora paterna que define a sorte do neurótico e do psicótico na medida de
sua presença no primeiro ou sua ausência no segundo. A principal conseqüência da
metáfora paterna é a função fálica.
Para formular a metáfora paterna é necessária a fórmula geral da metáfora
M: ƒ S (S’/S) S
S (+) s
Que se lê: a metáfora (M) é a função [ƒ] do significante [S] tal que a substituição de um
significante S por outro significante S’ [S’/S] na cadeia dos significantes [S] produz [ ]
uma nova significação [s], um “a mais” no plano da significação, simbolizado pelo sinal +,
que indica também que houve transposição da barra [ ] que separa o nível do significante
(acima da barra) do nível do significado (abaixo da barra resistente à passagem da
significação) produzindo o acréscimo de significação.
E que também pode ser representada sob a forma de duas frações, dos termos:
S’ . _S_
S
x
Que se lê: a metáfora é a substituição de um significante S por um significante S’ na cadeia
de significantes, sendo que o significante S, substituído, tem um significado incógnito para
o sujeito (x). Esta fórmula pode ser complementada com o resultado da metáfora, o lado
direito, da seguinte forma:
S’ . S_
S
x
S’. 1_
s
em que o segundo termo tem no nível do significante o número 1, resultado matemático da
elisão do significante S por seu corte possibilitado por estar sobre e sob a barra em uma
equação na qual a multiplicação opera (S/S = 1), restando o significante metafórico S’ e o
64
termo 1 / significado advindo no lugar da incógnita x do primeiro termo da metáfora,
antecedente à sua resolução.
Na metáfora paterna, como Lacan (1998e, p. 563) assim formulou teremos:
NP . DM_
DM
x
NP . A_
φ
O Nome-do-Pai é o significante metafórico NP, que substitui o significante
metonímico DM, o desejo da mãe, que deslizava continuamente na cadeia tendo um
significado incógnito para o sujeito, fazendo com que este sujeito permanecesse
impossibilitado de dar uma significação ao desejo da mãe que não implicasse seu próprio
ser, ou seja, uma significação fálica, entendendo por isto uma significação que engendra o
seu próprio deslizamento na cadeia inferior, a cadeia do significado, uma significação que
é, assim, sempre “outra coisa”. O deslizamento ininterrupto do desejo da mãe e seu
significado incógnito (x, do primeiro termo da metáfora, anterior à operação metafórica
propriamente dita) é interrompido pelo Nome-do-Pai (NP) produzindo um significado
novo para o sujeito: a significação fálica (φ) , que funciona como ponto de basta (point de
capiton) na significação metonímica e incógnita (x) do desejo da mãe (DM). Ao elidir o
desejo da mãe a metáfora paterna introduz, para além do Outro da Linguagem, o Outro da
Lei. “O Nome-do-Pai é o significante que significa que, no Outro como lugar do
significante, é o significante do Outro como lugar da Lei” (LACAN, 1999, p.153). Se o
Outro da linguagem não opera mais sem lei, não pode se constituir para o sujeito como
uma lei sem limites, uma lei do capricho. Assim, o Outro da lei impede que o sujeito seja
usado como objeto de puro gozo da linguagem de um Outro absoluto, poderoso, sem
limites. Ao ser bem sucedida, a metáfora possibilita que o falo entre como um significado
novo para o desejo da mãe. Essa significação nova, que é o falo, induzida pelo Nome-doPai, será suporte para o sujeito, razão pela qual no esquema R temos em seu vértice, o falo.
O que falta à mãe? Seja o que for, seja qual for o objeto do seu desejo, a resposta
que o sujeito passa então a poder dar é que é uma falta. Seja o que for que faltar a essa mãe
também faltará ao sujeito. Se não há significação fálica, se a metáfora fracassa em seus
propósitos, fracassa por conseguinte a representação simbólica do sujeito. O sujeito não
tem como produzir uma resposta, já que ao apelar para o Nome-do-Pai encontrou somente
um buraco, um vazio no simbólico. No lugar de uma resposta possível pela significação
65
fálica, o sujeito vai responder com o próprio ser, e com o seu próprio corpo, oferecido ao
gozo desse Outro absoluto. Por esta razão Lacan vai dizer que o gozo do Outro é o gozo do
corpo, ou seja, gozo não fálico, que não é obtido pela operação da metáfora, pela
significação do falo como faltoso, um gozo não sexual.
Se assim é, se o psicótico não acede à significação fálica, devido o fracasso da
metáfora paterna, ele é um sujeito fora-do-sexual sendo regido por uma dimensão nãosexual.
Na psicose, “onde o Nome-do-Pai falta, o Outro não barrado é o supereu, que exige
um gozo do sujeito; um gozo imperativo que retorna no ponto em que falta o gozo fálico”
(ALBERTI, 2009, p. 112). Como vimos, o gozo fálico é constituído na metáfora paterna
pelo Nome-do-Pai. Este é o significante, no lugar do código, em A, por meio do qual, no
lado da mensagem, a significação fálica emerge retroativamente. Na psicose o Nome-doPai está foracluído, isto é, não está inserido no simbólico. O Nome-do-Pai está no real para
o psicótico e é de lá que retorna, em geral como alucinação verbal. Pode-se dizer que na
psicose, uma das faces do suicídio é a tentativa do sujeito de se livrar do assédio
insuportável do real (ALBERTI, 2009).
2.2.4 Os fenômenos de linguagem na psicose
É comum encontrarmos na psicose e, portanto nos pacientes que freqüentam os
CAPS, particularmente na esquizofrenia, uma abundância de neologismos, frases partidas,
repetição de letras, palavras, enfim um modo particular de dispor as palavras e a escrita.
Para fornecer alguns exemplos sobre este fenômeno, assinalamos o caso de uma
paciente psicótica que havia sido revendedora dos produtos da Avon e que tinha sido
notificada de uma dívida pelo advogado da empresa que não procedia. Ela relata o que as
vozes incessantemente ficam lhe dizendo: “a vontade... a vontade..a vontade...” Um
segundo exemplo é a reação de um paciente psicótico na permanência–dia do CAPS que se
deitou no chão em total relaxamento após a auxiliar de enfermagem ter aferido a sua
pressão arterial e antes anunciado o que ia fazer dizendo de maneira coloquial: “Vou tirar
sua pressão”. Ao ser questionado por ela sobre sua atitude ele responde: “Você não tirou a
minha pressão?” Uma outra situação ocorrida na recepção do CAPS demonstra a
manifestação desse fenômeno de linguagem. Ao ser solicitada a carteira do SUS a um
paciente ele disse que não tinha. Ainda sem perceber que o paciente era um psicótico a
66
recepcionista prosseguiu solicitando no lugar, a carteira de identidade. O paciente
novamente diz que não tem. Ao perguntar se o paciente não tinha nenhum outro
documento como, por exemplo, a carteira de motorista, o paciente tira do bolso e lhe
entrega uma gravura de automóvel recortada de uma revista, com a certeza de que enfim
ele tinha o que ela lhe pedia. Pergunta em seguida à recepcionista: “quer a carteira de moto
também?”.
Sobre tal fenômeno Freud (1987i) vai assinalar que há nos esquizofrênicos grande
número de modificações na fala. As frases seriam construídas por uma desorganização
peculiar, tornando-se incompreensível para as pessoas. As observações dos pacientes quase
sempre ganham destaque pelas referências a órgãos corporais ou a inervações. Freud
assinala o exemplo da paciente de Tausk que após uma discussão com o amante queixa-se
de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. A paciente justificava o ocorrido
dizendo que não compreendia o amante, que ele era hipócrita, um entortador de olhos,
termo que em alemão tem o sentido figurado de enganador. Ela agora tinha olhos tortos,
não tinha mais os olhos dela e via o mundo com outros olhos. Freud destaca o significado e
a origem da formação de palavras esquizofrênicas dizendo que a relação da paciente com o
órgão corporal (olho) atribuiu-se a si a representação de todo conteúdo dos pensamentos
dela. A manifestação oral esquizofrênica torna-se “fala do órgão” ou “fala
hipocondríaca”, exibindo uma característica hipocondríaca (FREUD, 1987i). Lembramos
com Freud que uma histérica em situação semelhante teria entortado os olhos
convulsivamente sem apresentar qualquer pensamento consciente concomitante ou a
capacidade de expressar quaisquer pensamentos posteriormente, como no caso do exemplo
dessa esquizofrênica.
Será a predominância do que tem a ver com as palavras sobre o que tem a ver com
as coisas que emprestará o caráter de estranheza ao sintoma esquizofrênico. O que vai ditar
a substituição não será a semelhança entre as coisas denotadas, mas sim a uniformidade das
palavras empregadas para expressá-las.
Assim como no processo primário que interpreta as imagens oníricas dos
pensamentos oníricos latentes, na esquizofrenia as palavras estão sujeitas a mesma
interpretação. “Passam por uma condensação e por meio de deslocamento transferem
integralmente suas catexias de uma para as outras” (FREUD, 1987l, p. 227). Porém há uma
diferença entre a elaboração de sonhos e a esquizofrenia. Nos sonhos, o que está sujeito a
modificação pelo processo primário é a apresentação da coisa à qual as palavras foram
levadas de volta e não as próprias palavras nas quais o pensamento pré-consciente foi
67
expresso, como no caso da esquizofrenia. Há nos sonhos livre comunicação entre catexias
da palavra (pré-consciente) e catexias da coisa (inconsciente) o que é interrompida na
esquizofrenia (FREUD, 1987l).
Há uma fronteira que separa coisa e palavra, mas na psicose isso não se dá como
também não acontece a separação entre corpo e linguagem, profundidade e superfície
como podemos ver nos exemplos anteriormente citados. Os psicóticos têm todos esses
ingredientes misturados. Uma das mais expressivas manifestações da transformação da
palavra em coisa é o chamado neologismo na psicose, uma palavra incomum e que não
remete a nenhuma significação. Pelo neologismo é subvertida a qualidade essencial do
significante como também é corrompido a natureza da significação que é remeter sempre a
um novo significante e reenviar a uma nova significação O neologismo encerra e aprisiona
em si toda significação.
Palavra e coisa se imbricam, interpenetram-se, encaixam-se. As palavras perdem
seu estatuto singular, confundem-se com as coisas. Ganham substância, textura
física, tornam-se sons penetrantes, letras cortantes, farpas que afetam, invadem o
corpo. A palavra se transforma em som e o som em coisa. Exemplo, a queixa
aflita de B.: ... as vozes ficam me sacaneando. Elas ficam falando assim:
‘maracujá’, ‘cuador’, ‘feliz ânus novo!’ (SOUZA, 1999, p. 17).
Podemos citar também um outro efeito da palavra que perde o sentido que é o de
perseguição e tirania.
A palavra coisificada tiraniza, violenta, obriga a pensar, a procurar significação.
O mundo se transforma num vasto lençol de hieróglifos. A palavra que perde o
sentido torna-se signo, representa algo para alguém, algo enigmático que é
preciso interpretar, algo que força, coage, obriga a decifrar. Tudo se torna signo:
gestos, sensações, atos, fatos, olhares, falas, escritos (SOUZA, 1999, p. 19).
Ao tornar-se signo, a palavra passa a ter um sentido cristalizado, que não desliza na
cadeia, passa a representar algo para o psicótico que precisa ser interpretado, porém nessa
estrutura, devido à ausência da metáfora paterna e da significação fálica, não é possível
chegar a uma significação. Nenhuma significação é o bastante para barrar o movimento
incessante que obriga o psicótico a pensar. Uma palavra remete a outra de maneira
contínua sem ponto de basta. Esse fenômeno é denominado pela psiquiatria clássica de
diferentes formas: verborréia, fuga de idéias ou descarrilhamento do pensamento.
Lacan (1985) deu destaque à alucinação verbal como sendo um dos fenômenos que
apontam para um desarranjo da linguagem. Esse transtorno não se reduz ao registro
68
simbólico, mas consiste no reaparecimento de algo que não foi simbolizado, de um real
irredutível, de um acaso traumático que não contém nenhum sentido.
A alucinação verbal é uma das manifestações clínicas mais importantes no caso da
psicose. O paciente experimenta como se um Outro falasse com ele, sendo que na verdade
trata-se de palavras e frases articuladas pelo próprio paciente sem seu conhecimento, à sua
revelia. Como é bem evidente, o Outro como tal não fala, em estrutura clínica alguma, mas
no real da experiência do sujeito psicótico, é o Outro que fala, ele não reconhece como sua
a fala e a voz que ouve, não se constitui a instância subjetiva como lugar de recepção
invertida da mensagem provinda do Outro, operação que é eminentemente ocasionada pelo
inconsciente no regime do recalque. As alucinações podem ser cenestésico-verbais,
motoras verbais completas ou impulsões verbais. Em ambas os pacientes se queixam de
que estão ouvindo as vozes.
A alucinação verbal é o paradigma lacaniano da estrutura psicótica, diferente das
alucinações psicopatológicas dos manuais, que articulam as alucinações aos diferentes
órgãos dos sentidos, como se, na alucinação, se tratasse de fenômenos ligados à percepção
(perspectiva funcionalista, que atribuirá, de modo análogo, o delírio à função do
pensamento). Para a Psicanálise, trata-se de uma revelação da posição estrutural do sujeito
na linguagem.
Ouvir aqui designa a atitude receptiva com a qual o paciente acolhe as palavras e
frases que lhe vêm sem que ele queira ou espere. [...] Ouvir aqui “não implica de
modo algum na percepção de um som, a tal ponto que Cramer pôde falar em
alucinações auditivas de um surdo-mudo: eram alucinações faladas”.
(LAGACHE, apud SOUZA, 1999, p. 21).
Souza (1999) sugere classificar as alucinações como auditivo-verbais, como faz
Henry Ey, pois toda alucinação verbal é auditiva já que o que queremos designar é uma
atitude receptiva por parte do paciente, sem pré-julgamento dos caracteres da
sensorialidade dos caracteres das falas ouvidas.
Uma dimensão essencial do viver do psicótico é sua exterioridade em relação à
linguagem (LACAN, 1985) e a alucinação auditivo-verbal vem evidenciar esse fato. Nessa
posição de exterioridade ele vem saber daquilo que está velado ao neurótico, que é a
estrutura da linguagem, bem como sua ordenação. Nessa perspectiva o psicótico sabe que a
linguagem está fora, que se forma no Outro, que fala sozinha e que impõe suas leis.
Possuído desse saber, o psicótico não tem a ilusão de que somos nós que falamos, mas sabe
que na verdade somos falados. A inversão da mensagem é uma operação que subjetiva o
69
Outro de onde a fala procede, e seria mais correto dizer que, pela ausência da inversão
subjetivante, a fala na psicose não é apropriada por ele. É esse saber que indica uma
defasagem entre enunciado e enunciação, dissonância que o neurótico não ouve, mas que o
psicótico escuta como “ecos do pensamento”, vozes que comentam seus pensamentos e
atos.
Para o neurótico há uma articulação contínua que organiza as suas ações e que é
muda. O neurótico é cingido por várias realidades, por diversos mundos que o contemplam
e operam como um silencioso fundo intocável e imperceptível de que ele não dá conta.
Com o psicótico é diferente. Seu mundo é formado por barulhos, “uma espécie de
zumbido, uma verdadeira zorra.” (LACAN, 1985, p. 331).
Especialmente nas esquizofrenias as queixas de despedaçamento e deterioração dos
órgãos internos são bastante freqüentes. Essas queixas atestam a falência da cadeia
significante em articular os órgãos como organismo e o organismo como um corpo. E com
Lacan vemos que é o corpo simbólico, ou seja, a linguagem, que faz aparecer o corpo
como imaginário, como imagem, esse corpo que cada um leva consigo e convive sem estar
muito à vontade.
O corpo só poderá se constituir como imagem corporal através da linguagem que no
exercício de sua função significante escolha apenas um órgão para fazê-lo órgãosignificante. Trata-se do falo que, assim escolhido, deixa os outros órgãos em seu estatuto
de realidade corporal. Na neurose é isso que se dá. O pênis é tomado, e apenas ele, para ser
elevado à categoria de significante. Na psicose todos os órgãos são objeto de escolha,
nenhum é eleito. Os órgãos ficam privados de sua realidade corporal, atingidos que são por
um processo generalizado de significação. Marcados pelo ferro do significante são
transformados em órgãos significantes e como o falo, passam a habitar não o corpo
próprio, não o interior do corpo, mas o exterior, fazendo parte do corpo simbólico, corpo
do Outro, mais além do sujeito (SOUZA, 1999). Isabel dá testemunho da invasão do Outro
de uma maneira radical:
estou com um problema embaixo. Está me machucando. Tem um homem
entrando em mim, nas minhas pernas. Meu corpo todo dói. Tenho uma câmera
no olho que filma tudo o que eu faço. Não tenho sossego. Quero pegar uma faca
e me matar. Quero pular no rio [...] Tem uma pessoa dentro do meu corpo. Ele tá
deformando. Ele entrou dentro de mim faz dois meses. Ele estava em volta da
minha casa. Ele ficou vendo as coisas através do meu olho. Meu pensamento tá
misturado com o pensamento dele. Não é uma pessoa. Tenho muito medo dele.
Ele é muito feio. De noite é muito pior.
70
Correlativamente ao que ocorre com a experiência que o sujeito tem de seu corpo, e
de seus órgãos pela sua não submissão à ordenação pelo significante fálico, a alucinação
verbal, com aquilo que lhe é mais característico, que são as palavras soltas somadas de
frases cortadas que se estabelecem ao sujeito, torna evidente a decomposição da função da
linguagem, com sua conseqüente quebra da cadeia simbólica e atividade anômala do
significante. O significante não faz cadeia, não remete a um outro significante. Sendo
assim perde seu estatuto de significante e se reduz a mero índice de um real indizível.
Em Schreber (FREUD, 1987d) encontramos vozes que se repetem e frases
incompletas, “conjunções isoladas ou locuções adverbais destinadas a introduzir orações
secundárias” deixando Schreber na incumbência de completá-las. Lacan verifica que “a
frase se interrompe onde termina o grupo de palavras que poderíamos chamar termosíndice, isto é, [...] shifters, ou seja, precisamente os termos que, no código, indicam a
posição do sujeito a partir da própria mensagem” (LACAN, 1998e, p. 546).
Lacan destacou a pertinência lingüística dos fenômenos psicóticos e estudou a
alucinação verbal e o neologismo como fenômenos que dizem respeito ao código e à
mensagem, duas dimensões constitutivas da língua. As alucinações verbais seriam lidas
como fenômenos de mensagem ainda que limitadas a um ponto no código ocupado pelo
sujeito da mensagem. Já os neologismos se organizariam na psicose como um novo código.
Foi isso que aconteceu com Schreber e sua língua fundamental havendo ali um novo
código constituído de mensagens sobre o código, pois as vozes ouvidas por Schreber
pronunciavam as palavras novas e também informavam sobre o emprego dos vocábulos
dessa língua fundamental (SCHREBER, 1995).
2.3 O Imaginário e a Psicose
A ordem do imaginário é constituída pelas imagens e pela libido. A libido é um
elemento sexual, vital, que partindo do corpo como fonte, vai circular entre as imagens, ou
seja, entre o eu e a imagem do eu, dando-lhes sua sustentação necessária.
A instância simbólica é presença fundamental na estruturação do imaginário já que
toda função desempenhada pela imagem precisa ser ressignificada pela ordem simbólica. O
imaginário tem como referência central o corpo, a forma, e a consistência do corpo próprio
com tudo de erótico e libidinal que se organiza ali.
71
2.3.1 Narcisismo
Freud vai articular as questões do imaginário através da teoria do narcisismo. Tratase de uma teoria do eu e das relações do eu com os objetos onde a libido será condição
necessária para a organização psíquica sem a qual nada relativo à ordem do sujeito e do
desejo vem a se constituir. No seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud
(1987g) apresenta o auto-erotismo, um estado onde não se pode falar em qualquer estrutura
semelhante ao eu. O corpo próprio servirá de sede para o surgimento das pulsões que vão
encontrar satisfação no mesmo ponto onde brotam. A satisfação nessa etapa é auto-erótica,
por causa da ausência do eu constituído.
Após falar sobre o auto-erotismo, Freud pergunta qual a relação do narcisismo e o
auto-erotismo que ele descreveu como um estado inicial da libido. Ele responde a pergunta
dizendo que
uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego
tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o
início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova
ação psíquica- a fim de provocar o narcisismo (FREUD, 1987g, p.93).
Posteriormente esse eu irá se direcionar a um objeto investindo aí sua libido. Freud
considera o narcisismo que surge através de catexias objetais como narcisismo secundário,
superposto ao narcisismo primário. É quando a catexia do ego com a libido excede certa
quantidade que surge a necessidade da vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e
ligar a libido a objetos.
Há uma dialética entre o investimento primário nos objetos e o retorno ao próprio
eu que constitui o narcisismo dito secundário. O eu retirará a libido dos objetos e
reinvestirá em si mesmo, ao abandonar investimentos de objeto, por exemplo, o que é o
fundamento do luto e da identificação. Trata-se do narcisismo secundário onde o eu é um
objeto privilegiado de libido, sendo que nenhum investimento no objeto poderá extinguir
isso que é a estrutura mesma do eu.
Sobre o ponto de vista da teoria da libido, Freud vai dizer que ambas as psicoses,
paranóia, que ele preferia denominar de parafrenia, e esquizofrenia, vão apresentar o
desligamento da libido com a sua regressão para o eu. Na esquizofrenia trata-se de um
retorno ao auto-erotismo e na paranóia ao narcisismo. Na primeira
72
a regressão estende-se não simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a
forma de megalomania), mas a um completo abandono do amor objetal e um
retorno ao auto-erotismo infantil. A fixação disposicional deve, portanto, acharse situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do
curso do desenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal (FREUD,
1987d, p. 102).
Freud considerou que o principal acesso para a compreensão do narcisismo é
análise da parafrenia (paranóia) e da demência precoce (esquizofrenia). Ele recorreu ao
campo da patologia para entender os fenômenos ditos normais.
2.3.2 Estádio do Espelho
Freud usou a expressão “nova ação psíquica” para o surgimento do eu. Esse efeito
provocaria a ordenação e a substituição do caos das pulsões parciais do auto-erotismo por
uma imagem unitária e totalizante. Essa “nova ação psíquica” que estrutura o narcisismo
foi trabalhada por Lacan (1983, p. 96) em sua teoria do estágio do espelho que de igual
modo é uma teoria da formação do eu, tal como ele a desenvolve em O Seminário, livro 1:
os escritos técnicos de Freud. Diz ele:
É, pois, a pura e simples realidade que não delimita em nada, que não pode ser
ainda objeto de nenhuma definição, que não é nem boa, nem má, mas ao mesmo
tempo caótica e absoluta, original. É o nível ao qual Freud se refere em Die
Verneinung, quando fala dos julgamentos de existência – ou bem é , ou bem não
é. E é aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite
situar o que é e o que não é do eu.
Quando escreve sobre a tópica do imaginário em O Seminário, Livro 1: Os escritos
técnicos de Freud, Lacan (1983, p. 96) diz que o estádio do espelho “é a aventura original
através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete
e se concebe como outro que não ele mesmo - dimensão essencial do humano, que
estrutura toda a sua vida de fantasia.”
Ao se conceber como outro o eu se identifica e se deixa capturar encantado com sua
imagem especular. Sendo a única maneira de perceber-se a si mesmo, o outro é tomado
pelo eu sobrepondo-se investimento libidinal e de identificação.
Surge aí essa ilusão fundamental de que o homem é escravo, bem mais que todas
as “paixões do corpo” no sentido cartesiano, dessa paixão de ser um homem,
diria eu, que é a paixão da alma por excelência: o narcisismo, que impõe sua
estrutura a todos os seus desejos, mesmo os mais elevados (LACAN, 1998, p.
189).
73
Em O estádio do espelho como formador da função do sujeito, Lacan (1998a)
afirma que o estádio do espelho deve ser compreendido como uma identificação. Trata-se
de uma transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem. Descreve
Lacan a criança que diante do espelho, mesmo sem ter o controle da marcha ou da postura,
tem a assunção jubilatória de sua imagem diante do espelho. Esse contentamento vem da
ilusão de completude que a imagem no espelho proporciona à criança uma imagem
integrada diferente de sua experiência de fragmentação e falta. Ou seja, o espelho antecipa
para a criança o seu amadurecimento corporal que ainda é inacabado.
Lacan assinala que a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa
miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt. A Gestalt é fôrma, ou
seja, a forma é uma fôrma. Produz-se uma rivalidade do eu com a imagem por ser a
imagem “melhor”, mais íntegra, mais articulada do que o eu. Nesse registro estão os
sentimentos de amor, ódio, completude, falta, rivalidade, ciúme, etc. que foram encarnados
na relação do sujeito com este primeiro “outro” que é a imagem do seu corpo próprio.
A primeira e mais verdadeira reação com a imagem é de estranhamento, como nos
relata Freud (1987n) em sua experiência na cabine do trem quando de súbito, após um
solavanco, a porta do toalete anexo se abriu e um senhor de idade, com quem ele diz que se
antipatizou totalmente, entrou em seu compartimento. Ao se levantar com intenção de
informar ao estranho que ele tinha entrado na cabine errada, viu que na verdade o estranho
era sua própria imagem refletida no espelho da porta aberta.
É importante destacar que o estádio do espelho tem o valor estruturante no que diz
respeito às relações do sujeito com seu semelhante. Nas palavras de Lacan (1998a, p. 98)
“a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível”. Ou seja, a visibilidade dos
objetos depende de que o sujeito tenha constituído a imagem especular.
Não há
investimento objetal possível sem o narcisismo. Todo movimento do estágio do espelho
inclui as relações com o outro, inclui a história, o que é vivido, experencial.
“O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da
insuficiência para a antecipação” (LACAN, 1998a, p. 100). A insuficiência é uma condição
do bebê. Da insuficiência ele salta para uma antecipação. Trata-se aqui da constituição do
eu ideal. De uma imagem insuficiente passa-se para uma imagem íntegra, gestaltíca que
não se dá por competência adaptativa, mas por carência de condições naturais internas.
Nenhum sujeito poderá habitar o campo da realidade sem a afluência do imaginário.
Se houvesse apenas o simbólico com sua lei impessoal e o real com sua radical ausência de
74
sentido, o viver humano se tornaria impossível, pois é ele, o imaginário, que dá ao corpo
vestimenta para sua nudez. É por esta razão que Lacan coloca os três registros, real,
simbólico e imaginário, articulados.
2.3.3 Os fenômenos imaginários
Como o imaginário encontra-se destroçado, o sujeito na psicose fica desprotegido,
aberto à invasão do Outro, totalmente aberto à sua mercê. Esse outro é encarnado e
desdobrado numa multidão de pequenos outros. Pelo imaginário encontrar-se desbaratado,
a identificação resolutiva não se consolida. Esta identificação resolutiva do confronto
paranóico entre o eu e o outro é que torna possível apaziguar o dilaceramento imaginário
mantendo e afirmando a um só tempo a intrusão essencial do outro (“eu é um outro”) e sua
necessária exclusão (“ou eu ou ele”) sem que nenhuma das duas assertivas venha a
suprimir seu contrário. Isabel, paciente do CAPS, nos diz:
Não quero vir aqui. Vou pegar a aparência das outras pessoas... A aparência entra
dentro de mim [...] Quando eu fiquei internada no hospital as meninas que
estavam lá comigo estavam fazendo maldade. Assistiam televisão e jogavam
aparência em mim. Eu fiquei com a aparência da Angélica, do Gianecchini...
Ouço vozes que comentam tudo o que faço... Sinto cheiros por todos os lados.
O imaginário despedaçado e hipertrofiado, sem condições de cumprir suas funções,
principalmente de dar ao sujeito uma imagem suficientemente completa e consistente de si,
funciona em regime de autonomia em relação ao simbólico, criando odoiia oiosi,6.3339(o)-6.( )-2
75
estádio do espelho reduzida à confrontação à imagem do duplo, ameaçada de
dilaceramento, aniquilação e morte, porém suficiente para permitir ao sujeito dentro da
crise psicótica continuar vivo em meio aos destroços de seu mundo em agonia (LACAN,
1998e). Outra vez ouçamos Isabel:
Estou com espírito cigano. Tem duas pessoas querendo tirar o espírito de mim...
Olham no meu olho e eu leio a mente. É a mente da cigana [...] Minha mãe não
gosta que eu fique até tarde na rua, mas vou pra rua pra desenvolver o espírito
cigano. O espírito da cigana puxa pensamentos ruins das outras pessoas.
Um outro bom exemplo é Schreber que não teve nenhuma parte do seu corpo
poupada. Em suas memórias relata como sua saúde e sua vida foram ameaçadas e como
resistiu a toda sorte de abusos e crueldades, vivendo como o “único homem verdadeiro que
ainda restava” entre “homens-feitos-às-pressas”(SCHREBER,1995). Nas “Memórias”,
Schreber relata suas experiências fantásticas, frutos de “prodígios” e “milagres”, marcadas
por um caráter erótico-agressivo, que ameaçavam o corpo e a alma do sujeito. As
manifestações relatadas em sua obra dizem respeito à regressão tópica à fase do espelho,
onde a imagem corporal é fragmentada e duplicada multiplicando-se em vários outros eus,
duplos especulares do sujeito. O principal duplo de Schreber que podemos visualizar
através de sua obra é o Dr. Flechsig, seu médico. Schreber o desdobra em múltiplos eus:
Flechsig-alma, Flechsig-Deus, Flechsig-superior, Flechsig-médio, alma conjunta Von-W. Flechsig e “um certo Daniel Furchtegott Flechsig”, que mostra um amálgama dos nomes
de Schreber e seu médico, atestando eloqüentemente a especularização, captura imaginária
onde o eu de Schreber se encontra alienado.
Flechsig torna-se parceiro de um confronto de forças. Schreber, como paciente,
toma o lugar de amante e seu médico o lugar de amado. Flechsig é colocado por Schreber
com objeto fonte de toda sorte de paixões tanto tristes como alegres, instalando-se com
vigor uma transferência onde Flechsig é objeto causa de transferência delirante. A profusão
de imagens na experiência de Schreber é o fracionamento multiplicado de figuras do pai.
Não tendo o recurso do Édipo para se afirmar em um ponto central, como no caso da
neurose, a proliferação de imagens paternas é o que vem no lugar da foraclusão do Nomedo-Pai, se organizando de maneira descentralizada, em várias direções (CALIGARIS,
1989, apud SOUZA, 1999).
Uma das construções delirantes do paciente é a morte por suicídio do seu médico
que vai ser ressonante da morte de Schreber anunciada nos jornais (SCHREBER, 1995).
Nos delírios de Schreber, Flechsig aparece como perseguidor e figura central nos delírios
76
de fim-do-mundo. Ele aparecerá na figura de um mágico anunciando o que está por vir: o
desaparecimento de Schreber e o fim-do-mundo. Assim é com Luiz, paciente do CAPS,
que retrata um mundo, o seu, em destruição e morte.
O Brasil está no fim... A entrada do dólar, o espanhol, o argentino vão acabar
com o Brasil. Tem uma mulher de bota azul que eu não conheço, mas está atrás
de mim... [...] Demorei a chegar no CAPS porque estava tentando fazer uma nota
de um real para não deixar o dólar entrar no Brasil.Vai dar confusão se isso
acontecer... O mundo tá acabando... [...] Queria uma esposa, mas agora não
quero mais. Quando eu era vivo era diferente. Agora não vão achar meu
coração... perdi meu tocircolo...e não tem mais jeito de operar.
Após o desastre imaginário surge através de remanejamentos contínuos do
significante, uma nova ordenação de mundo, uma “construção prodigiosa” relatada por
Schreber em sua Língua Fundamental que é uma significação, uma significação delirante.
Tal significação é heterogênea a todo consenso. Nas palavras de Lacan, “uma significação
enorme que não se parece com nada - e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada,
já que ela jamais entrou no sistema da simbolização - mas que pode, em certas condições,
ameaçar todo o edifício” (LACAN, 1985, p. 102).
Falaremos mais adiante sobre a metáfora delirante que pode trazer uma nova
ordenação de mundo ao psicótico, a sua estabilização.
2.3.4 O desencadeamento do surto psicótico
O Nome-do-Pai, ancoragem simbólica, faltando ao sujeito, faz com que este se
sustente a partir de apoios imaginários. A ausência de articulação simbólica dos três
registros, real, simbólico e imaginário, que os amarre como um nó, retira do sujeito a
experiência da realidade psíquica e no lugar uma outra realidade é estabelecida. Tal
realidade apresenta uma exacerbação do imaginário já que a amarração do simbólico não
se encontra presente.
Por uma série de acontecimentos na vida do sujeito os apoios imaginários que até
então o sustentavam, sucumbem, desfazendo seus referenciais, os auxílios que o ajudavam
a dar significação, fazendo-o desencadear a psicose.
É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá
início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre
crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que o significante e
significado se estabilizam na metáfora delirante (LACAN, 1998e, p. 584).
77
Voltemos ao esquema R de Lacan (ver Figura 5, p. 62). Como já exposto, quando a
metáfora paterna não vigora o Nome-do-Pai ficará anulado, existindo em seu lugar apenas
um buraco, um vazio. Sendo assim, o Outro primordial permanece em sua consistência
absoluta não sendo possível a expressão do significante da falta do Outro S (Ⱥ). Ou seja, a
falta do significante Nome-do-Pai faz oposição a que haja falta no Outro. O Nome-do-Pai
sendo zerado, desconfigura o Esquema R, já que acarreta o desabamento da sustentação
fálica do sujeito, restando apenas o campo da realidade, este que se encontra hachuriado no
referido esquema (Figura 5).
O campo da realidade tem como vértices I-m-i-M, onde m é o eu ideal, instância
imaginária e um dos pólos da relação narcísica m-i, que no esquema L era representada
pela a-a’; i é o outro, como pólo da relação narcísica, a imagem especular do corpo
próprio; I é o Ideal de eu, e M é o significante do objeto primordial. Vemos no lado
superior desse mesmo ternário, no ponto de ligação do sujeito (S) ao significante do objeto
primordial ou Outro primordial (M), localizarem-se as relações objetais do sujeito, que no
esquema L era representado por (a), o outro como semelhante, como objeto e aqui no
esquema R passa a fazer parte do campo da realidade. Como o Ideal do eu (I), o
significante primordial (M) também compõe ambos os ternários imaginário e simbólico.
Observa-se que o (P) é o único componente do esquema R que não faz parte do ternário
imaginário e de igual modo o (S) é o único que não compõe o ternário simbólico, disso
trazendo conseqüências para nosso entendimento da estruturação do sujeito.
No ternário imaginário temos o sujeito (S) ligado ao Ideal do eu (I) onde se situam
as identificações do sujeito desde sua imagem especular até a identificação paterna. O Ideal
do eu (I) situando-se no vértice inferior do ternário imaginário faz interseção com o
ternário simbólico cuja base liga o (I) ao Nome-do-Pai (P) em (A). É graças ao Ideal do eu
(I) estar nivelado com o Pai (P) que o sujeito (S) fica interditado quanto a ser o falo da
mãe. O Ideal do eu (I) é uma coordenada para o sujeito, ele norteia a vida do sujeito.
O sujeito (S) precisa tomar um elemento, o traço unário, da “enxurrada” de ditos do
Outro da linguagem, desse Outro onipotente, e assim operar a redução do Outro.
O dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua
obscura autoridade. Tomem apenas um significante como insígnia dessa
onipotência, ou seja, desse poder todo em potência, desse nascimento da
possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível
que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira
que forma o ideal do eu (LACAN, 1998f, p. 822).
78
O sujeito vai reduzir o Outro a um traço, formando dessa maneira o Ideal do eu.
Quem vai permitir que o Outro se reduza a um traço é o Pai. O Ideal do eu é essa redução
do Outro ao traço unário. O Outro reduzido vira um traço para o sujeito (S) com o qual ele
pode montar seu esquema. Triturando o Outro em significantes, este Outro não permanece
mais tão poderoso, tão onipotente.
Na ausência dessa operação, é somente na condição de falo simbólico que ele
poderá ser cancelado, anulado, pois não se pode cancelar uma imagem. Na psicose, assim
como o Nome-do-Pai é zerado o falo também o será. Trata-se do falo simbólico, já que não
se pode cancelar uma imagem, mas um significante sim. Será como falo simbólico que o
falo será zerado na psicose. Já no neurótico, o falo simbólico ficará oculto, subterrâneo. É
próprio dessa estrutura recalcar o falo, diferentemente da perversão que o exibe.
O campo da realidade, que na neurose estava sustentado pelos pontos P (Nome-doPai) e S (Sujeito), principais suportes do esquema R, na psicose encontra-se esgarçado
numa nova configuração que tem como objetivo sustentar o sujeito em sua precária
estabilização psicótica, em sua reconstrução do mundo objetal.
Figura 6 – Esquema I
Com a desamarração dos pontos P em A e do Φ em S, tornando a valência de
ambos zerados, o campo da realidade I–m- i–M se espalha conforme podemos ver na
figura 6, que representa o esquema I construído por Lacan para representar a psicose
estabilizada. No esquema R os vetores m-i e M-I eram retilíneos e no esquema I vão
apresentar-se assintóticos, ou seja, do ponto m(eu) partirá uma curva que lançará o ponto i
(eu ideal), infinitamente para o lugar onde no esquema R corresponderia ao vértice do
79
sujeito (S). De maneira semelhante, do ponto M (significante do objeto primordial) partirá
outra curva que pelo efeito assintótico arremessa o ponto I (Ideal de eu) infinitamente em
direção ao que no esquema R era próprio do lugar do Outro, o Nome-do-Pai. Pela
desamarração dos pontos P e Φ, o sujeito S na psicose vai se reduzir à imagem narcísica do
corpo próprio e M (significante do objeto primordial) se reduzirá à instância do Ideal do
eu.
Podemos dizer que o surto psicótico é a quebra do imaginário. O imaginário se
quebra porque não foi possível lançar mão do significante do Nome-do-Pai e reconstituir as
imagens em função das vacilações imaginárias. Não dispondo do significante do Nome-doPai que permitiria reorganizar o imaginário, o psicótico começa a reconstruir o mundo com
as referências simbólicas que ele possui. Ele vai explicar as coisas da maneira que pode.
No surto, o psicótico experiencia a invasão do real pelas vozes que escuta, pelas
alucinações e pelas sensações hipocondríacas. O que acontece no real do corpo, o sujeito
vai explicar com o delírio e de uma maneira que o narcisismo sobressaia. O psicótico se
utiliza de um significante da identificação e se agarra a esse significante já que o Nome-doPai está foracluído. É uma tentativa de fazer uma operação simbólica, mas que não
funciona o tempo todo, já que esse significante foi pego de empréstimo e possui uma
referência efêmera. Na fala do paciente Antônio isso pode ser evidenciado. “Eu sou Davi e
estava no cativeiro, sou Jesus Cristo e fui crucificado. Os que têm cabeça querem acabar
comigo. Estou triste, nervoso e quero me suicidar.”
Na paranóia teremos um S1 ideal. Na realidade, o sujeito é esse ideal. Podemos
pensar na impossibilidade da metáfora paterna, mas que haveria um posicionamento do
sujeito em relação ao Nome-do-Pai que não se conclui (ALBERTI, 2009).
Para a psicanálise o desencadeamento da psicose se dá quando o sujeito se depara
com Um-pai. Para que um sujeito apresente um surto psicótico é preciso que ele apele ao
Nome-do-Pai. Mas como afirma Lacan “como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo
sujeito no único lugar de onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve?” (LACAN,
1998e, p. 584). Lacan responde que o psicótico o chama através de um pai real que não
necessariamente será o pai do sujeito, mas por alguém que funcione para ele como Um-pai,
que funcione como Outro, onde o Nome-do-Pai, como lugar da Lei não adveio. É
necessário que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo
anteriormente, situando-se em posição terceira em uma relação imaginária com o eu e o
objeto ou o ideal e a realidade.
80
Dizendo um pouco mais, o surto psicótico só pode advir mediante três condições:
se um sujeito que possui uma estrutura que foi marcada pela foraclusão do Nome-do-Pai e
que quebrou sua identificação imaginária com o desejo da mãe, dá de encontro com Umpai, condição específica para o desencadeamento (GUERRA, 2010).
Dar de encontro com Um-pai é se deparar com uma pessoa ou situação em sua vida
cotidiana que de um lugar terceiro se permeia ao sujeito interrogando-o no âmago de suas
relações com o outro e exigindo-lhe uma resposta a nível do significante, resposta esta que
o sujeito não tem para dar, já que não tem a garantia dada exclusivamente pelo significante
Nome-do-Pai, única possibilidade da metáfora paterna e de toda significação fálica. Como
não possui uma resposta, o mundo do psicótico desmorona, é o fim do mundo. “O fim do
mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim”
(FREUD, 1987d, p. 94).
Diante do acima exposto pouco adiantará se um técnico de CAPS em uma, ou nas
várias entrevistas de acolhimento, ficar interrogando o paciente a respeito de onde ele está,
em que dia da semana ele se encontra, procurando verificar se o paciente apresenta um
distúrbio da senso-percepção ou de orientação espácio-temporal, pois caso esteja diante de
um psicótico, esse percipiens (sujeito que percebe) terá um outro perceptum (objeto que se
percebe,mundo). É o Outro que fala. Ao invés de procurarmos distúrbios da sensopercepção ou fenômenos diversos próprios do campo da psicose, é preciso escutar o que
para aquele psicótico específico funcionou como Um-pai, ou seja, um acontecimento, um
episódio que esteja em oposição simbólica ao sujeito.
Que se procure no início da psicose essa conjuntura dramática. Quer ela se
apresente, para a mulher que acaba de dar á luz, na figura de seu marido, para a
penitente que confessa seu erro, na pessoa do seu confessor, para a mocinha
enamorada, no encontro com o ‘pai do rapaz’, sempre a encontramos, e a
encontraremos com mais facilidade ao nos guiarmos pelas ‘situações’, no sentido
romanesco desse termo (LACAN, 1998e, p. 584).
Como dissemos anteriormente, o caos do psicótico dado por um imaginário
despedaçado torna-o completamente desprotegido contra as invasões do Outro. Selma
aponta para uma realidade que se repete sempre com o mesmo tema: “eu tô impregnada, eu
tô impregnada... olha pra você ver, eu tô impregnada”, repete incessantemente, a toda
pessoa que passa por ela no CAPS, enquanto agita sem parar os braços. Selma nunca teve
impregnação medicamentosa, reação comum em alguns pacientes pelo uso da medicação
antipsicótica. Sua impregnação é do Outro.
81
Isabel prossegue em seu testemunho desse Outro invasor. “Ponho duas calcinhas e
um absorvente para a “queimação” não entrar em mim. Não quero que ninguém da minha
família entre no meu quarto. Grito quando isso acontece. Se eles entrarem eu vou pegar a
aparência deles”.
O imaginário na psicose não tem condições de proporcionar uma imagem completa
e consistente do corpo, funcionando em regime de autonomia em relação ao simbólico,
criando um lugar aonde vêm se multiplicar fenômenos vários, marcadamente narcísicos,
pertencente ao estádio do espelho, que é a estrutura responsável pela constituição do eu.
Isabel tem muita dificuldade em sair de casa, em vir ao CAPS. Mesmo em sua casa não há
um momento em que possa se livrar desse Outro avassalador.
Não posso sair na rua. Eles pegaram minha aparência. Todo mundo está com
minha aparência, meus irmãos, meus filhos, meu pai. Não posso tomar banho...
Todos estão me vendo... Todos os vizinhos, todos que passam na rua. De vez em
quando tomo banho, mas só de noite, no escuro e rápido pra ninguém me ver [...]
Eles entram pelo meu estômago, pela minha vagina, na minha cabeça. Olhe meu
braço! Está todo deformado. Estou feia [...] Eu limpo tudo, mas eles [os
espíritos] vêm e sujam tudo o que eu faço. Sinto um fedor por onde passo, na
minha casa, aqui no CAPS. Não posso vir aqui.
2.4 O real e a Psicose
2.4.1 Realidade, realidade psíquica e fantasia
O real, conceito criado por Lacan e que em suas palavras se impôs a ele (Lacan,
2007), não se confunde com a realidade material e nem tampouco com a realidade
psíquica.
Para Freud (1987r, p. 233) a realidade psíquica é diferente da realidade material e é
possibilitada
pela existência de um mundo de fantasia de um domínio que ficou separado do
mundo externo real na época da introdução do princípio da realidade. Esse
domínio desde então foi mantido livre das pretensões das exigências da vida,
como uma espécie de ‘reserva’; ele não é inacessível ao ego, mas só
frouxadamente ligado a ele. É deste mundo de fantasia que a neurose haure o
material para as suas novas construções de desejo e geralmente encontra esse
material pelo caminho da regressão a um passado real mais satisfatório.
82
A fantasia produz a realidade psíquica que é um mundo particular de cada sujeito
desde que pague o preço de uma perda, que é a perda do objeto, das Ding, objeto perdido e
reencontrado, porém sem que na verdade se o encontre. É pelo vazio deixado por das Ding
que se organiza o mundo perceptivo do sujeito, sendo a fantasia a vestimenta que cobre o
objeto perdido.
A partir do inconsciente, o sujeito vai poder sair do lugar de “sua inefável e
estúpida existência” para poder formular a questão “Che vuoi” (“que queres”) – pergunta
direta sobre o desejo, portanto, e que retira o sujeito da inefabilidade e da estupidez,
tomando as formas histérica – quem sou no desejo: homem ou mulher? – e obsessiva –
estou vivo ou morto quanto ao desejo, questões portanto paradigmaticamente neuróticas e
que dizem respeito a posições diante da procriação, da castração e da morte. É “a questão
de sua existência que coloca-se para o sujeito”(LACAN, 1998e, p.555).
Retomemos mais uma vez o grafo do desejo abordado por nós nas páginas 59 e 60.
No segundo nível do grafo (Figura 7) elaborado por Lacan (1998f), nível da enunciação, ou
do enigma implicado em todo enunciado, vemos surgir primeiramente o matema da pulsão,
◊ D, onde aparece o sujeito confrontado à demanda do Outro, e o lugar do “Che vuoi?”
dirigido ao Outro. O “Che vuoi?” é resultado daquilo que na realidade não se resolve na
demanda. Sai do que do ser se separa na alienação.
Figura 7 – Grafo do desejo - “Che vuoi?”
83
Submetido às exigências de satisfação da pulsão, o sujeito se defronta no Outro
com a sua falta. A partir daí ele construirá a fantasia com os restos da relação ao Outro. A
fantasia se coloca então como o primeiro nível de velamento da verdade da falta do Outro.
A fantasia é a resposta para a falta de significante no Outro. Ela é o efeito final da
relação constitutiva com o Outro diferentemente da pulsão que é indizível. É esse indizível
que vai constituir o desejo. Este desejo tem referências simbólicas, mas, por sua dimensão
real, é impossível de dizer.
A fantasia é uma resposta, uma invenção de sentido. Diante de um enigma do
desejo do Outro o sujeito sofre a imposição de produzir uma resposta. A fantasia é uma
resposta, é a assinatura mesma onde o sujeito se constitui. Na fantasia trata-se de uma
significação obediente à lei fálica, lei paterna que funda um eixo de referência e uma
filiação. Essa Lei que ao circunscrever um limite além do qual se estende o campo de um
gozo, interdita e inaugura ao mesmo tempo uma região onde se abre o mundo ordenado de
sentido e de possibilidades.
O psicótico compartilha com o neurótico a escolha forçada de uma resposta. Não
menos que este é afetado pelo desejo do Outro imanente ao fato da linguagem:
“se isso fala isso quer” e logo, “alguém quer algo de mim”, “que queres?”
Subjetivação mínima, a questão sobre o desejo do Outro é condição universal e
necessária da existência de todo falante. Mas existe aí uma diferença. Essa
diferença, verdadeiro divisor de águas que separa a neurose de um lado, psicose
de outro, resiste no estatuto da resposta. O psicótico, sua resposta é da ordem não
da particularidade, como é o caso da neurose, mas da ordem da singularidade –
não conforme a norma, mas uma resposta que faz objeção à norma, uma resposta
fora dos eixos, não submetida à lei do pai, à margem do regime de filiação
(SOUZA, 1991, p.67)
Lacan tratou a realidade como um campo, efeito da articulação do simbólico com o
imaginário e da ex-sistência do Real, um aparelho comandado e sustentado pela fantasia
onde em cujo âmago habita o desejo. A realidade é a veste da fantasia.
Ao apresentar uma formulação topológica do campo da realidade e de suas relações
entrelaçadas com a fantasia, Lacan identifica o campo da realidade como linha de corte, e
que numa relação simultânea de conjunção e disjunção separa e une o sujeito e o objeto.
Numa relação conjunção/disjunção, sujeito e objeto, articulados compõem a fantasia.
O matema da fantasia será justamente
◊ a, onde
é o sujeito barrado pelo desejo
e a é o objeto perdido, objeto causa de desejo que fixa a errância do sujeito
proporcionando-lhe consistência de ser e de gozo.
E aqui tocamos com uma letra, o conceito de real, esse registro que concerne ao
gozo. Essa letrinha, a, é um modo de escrever o real que só se aborda com a
84
escrita, só se escreve com letrinhas e que precisa ser isolado, excluído, elidido
para constituir por sua própria ex-sistência – o real e-xiste ao simbólico e ao
imaginário- a realidade, sua consistência e seu marco: ‘... o campo da realidade
não se sustenta senão da extração do objeto a que no entanto lhe dá seu marco’
(SOUZA,1999, p. 47).
A realidade pode ser definida como um conjunto ordenado de sentido, como o
mundo. Já o real é a “ex-sistência do in-mundo, a saber, a ex-sistência disso que não é
mundo- eis aí o real simplesmente” (LACAN, 1974-75). O real é barreira, resistência
intransponível que não se submete à lógica, que não se deixa seduzir pelo imaginário, que é
barreira ao simbólico, que não forma conjunto e nem se submete à unidade ou à totalização
já que “é feito de cortes” (LACAN, 1958-59) e partes sem todo. “O real não é o mundo.
Não há esperança alguma de atingir o real pela representação [...] o real, ao mesmo tempo,
não é universal, o que quer dizer que ele só é todo no sentido estrito de que cada um de
seus elementos seja idêntico a si mesmo, mas não podendo dizer-se todos.” (LACAN,
2001, p. 6).
2.4.2. Gozo e Psicose
A partir da constituição da fantasia forma-se o sintoma. A estrutura do grafo do
desejo revela os efeitos do confronto do sujeito ao desejo do Outro. A demanda do Outro é
tomada pelo sujeito como objeto no fantasma, daí o matema ◊D.
O movimento no nível superior do grafo do desejo (Figura 8) é do gozo à castração,
sendo a castração "o que rege o desejo, no normal e no anormal", conforme diz Lacan "A
castração quer dizer que é preciso que o gozo seja recusado para que ele possa ser atingido
sobre a escala invertida da Lei do desejo” (LACAN, 1998f, p.841).
Figura 8 – Grafo do desejo completo
85
O real concerne ao gozo no que este tem de impossível. Aqui não se trata do gozo
sexual, fálico, mas de um gozo Outro do qual nunca poderemos saber nada, já que ele é
apenas suposto aos que jamais poderão falar dele, como o animal e a planta.
Lacan designou este gozo como gozo do Outro ou gozo do corpo que não coincide
com o gozo dito fálico, inscrito no simbólico, gozo do Um, gozo significante ou gozo forado-corpo. Este corpo não é o corpo biológico, mas sim aquele tomado em sua dimensão de
realidade significante, sendo então sinônimo do Outro, esse lugar da determinação
significante do sujeito como cita Lacan (1998f) em Subversão do sujeito e dialética do
desejo
86
É necessário fazer uma distinção entre a angústia neurótica - propriamente
relacionada com o desejo e seus impasses, a incidência do objeto a no sujeito - e a angústia
na psicose, já que não temos o direito de afirmar que, na psicose, não se trataria de forma
alguma de angústia, mas que, dado que é justamente na relação entre o sujeito e o desejo
que, na neurose, se situa a angústia, precisamos definir melhor o estatuto da angústia
psicótica, tarefa que excede o âmbito deste trabalho, e fica aqui tão-somente apontada
como uma questão a resolver na teoria e na clínica.
2.4.3 Delírio
O delírio tem sua relação com o simbólico, mas pela seqüência de nossa exposição
optamos por abordá-lo somente neste momento sustentando o delírio como uma forma de
tratar o real pelo simbólico na clínica das psicoses.
A psicose reside na não-entronização da fantasia inconsciente a partir da falha da
ação do recalque originário. O psicótico tenta suprir a falta da instauração da fantasia por
meio da produção do delírio. Luiz nos relata sua produção delirante:
O cachorro pequinês da minha mãe me sufocou e implantou uma coisa em mim. O
cachorro é filho do Scooby Doo da televisão... Eu nasci com um bip no ouvido [...]
Meu cú está tampado... A bosta vai sair no bairro Vila Grande... Não devia ter
matado o cachorro, mas tinha que fazer... Ele estava mandando raios laser para
minha mente ficar assim do jeito que está.
Na psicose é exatamente essa capacidade de frear o empuxo-ao-gozo, que a fantasia
presentifica a todo instante para cada um de nós, que não aparece. É por isso que o
psicótico tenta construir alguma coisa para fazer frente ao gozo.
É o discurso analítico aquele que vai produzir S1 e é pela produção de S1 que o
sujeito psicótico pode vir a fazer o laço social. Após uma longa internação Schreber
estabilizou seu quadro psicótico pela via da construção de S1, que foi “ser a mulher de
Deus”. Essa construção delirante foi sustentada pelo empuxo-à-mulher, que proporcionou a
ele um corpo, com seios e nádegas femininas, dando-lhe um destino, uma inscrição
simbólica na cultura que era copular com Deus para gerar uma nova raça de seres
humanos. Também percebemos algo de seu gozo que foi localizado quando ele diz que
gozava com a volúpia de uma mulher. Temos então os três registros: imaginário, simbólico
e real, enodados pelo sintoma “ser mulher” (SARTORI, 2002).
87
Na esquizofrenia, não há uma localização total do gozo no campo do Outro; o gozo
retorna ao sujeito nas alucinações, fenômenos corporais etc. Não há a constituição de um
S1 que se articule a um S2, como no caso da paranóia, em que há tentativa de fazer laço
social, pois nela “o significante representa o sujeito para outro significante”. No caso da
esquizofrenia, a ausência de S1 promove uma dispersão dos significantes, manifesta
também no delírio.
O delírio de grandeza raramente vem sozinho, sendo acompanhado geralmente de
idéias persecutórias. São freqüentes as idéias de “transformação pessoal” onde o paciente
não é aquele por quem se toma. Ele acredita que mudou de sexo, de idade. Não é ele quem
está pensando e agindo etc. Luiz, ao assinar seu nome na lista de controle de atendimento
do CAPS, assina outro nome. Perguntamos por que ele assinou esse seu nome. Ele nos diz:
“Mas eu não sou o Luiz. Sou o João. O Luiz está lá na minha casa com minha mãe.” Em
outra ocasião tira um pedaço de papel de onde copia um nome para assinar na folha: “Esse
é meu nome. Não sou o Luiz. Luiz está preso em São Paulo. Se eu assinar o nome do Luiz
vão vir me prender... Eu tenho ouro guardado em lugar superior. Vou dar ouro pra dona
Maria [sua mãe] que está cuidando de mim.”
Na psicose o delírio possibilita o tratamento do gozo. Dessa maneira, “ao sujeito
naufragado do Édipo resta uma ilha a ser construída pela paranóia” (GARCIA, M. 2002, p.
232). Ao identificar o gozo no lugar do Outro, o paranóico elege “um significante que o
represente para outro significante”, que é uma das definições de sujeito no ensino de
Lacan. Schreber cabe como exemplo quando se torna a “mulher de Deus”.
O psicótico, no trabalho de cura, tenta fazer de um rasgo, uma abertura, uma borda
em seu mundo destroçado, fazer uma nova superfície. Pela construção do delírio tenta fazer
um significante, ensaiando colocá-lo em movimento e ordená-lo num encadeamento de
significações, buscando estabelecer um texto, uma sintaxe.
Trabalho de poeta às avessas, no que é próprio ao poeta se utilizar do significante
para engendrar uma letra, criar “outras palavras” [...] Trabalho que gasta e
desgasta o melhor da potência do sujeito consumido em fazer e refazer a teia de
sentido que sustenta seu mundo. Trabalho sem férias, como a vida, para manter
vivo o sujeito na trama das significações. Trabalho insano, diria o neurótico,
recostado comodamente em sua realidade feita mais de sonho que de despertar,
realidade-fantasia, essa montagem imaginária tecida por ficções e assentada em
“fixões”, pontos fixos, onde habita o real e seu gozo (SOUZA, 1991, p. 67).
A psicose em seu movimento de cura constitui-se numa tentativa de livrar-se do
gozo excedente. São comuns episódios onde os pacientes do CAPS apresentam
automutilações, práticas de auto-flagelamento, tentativas de suicídio e delírio. Para além do
88
impacto que tais acontecimentos podem causar nas famílias e nos técnicos é preciso
entender aí o esforço de defesa, de uma busca de fabricar uma distância, uma separação.
O delírio teria um lugar privilegiado na busca dessa separação sendo uma
construção de superfície, traçado litorâneo. Á moda do traço unário, marca de um traço
apagado que representa o sujeito na neurose, poderia se pensar no delírio como uma letra,
uma outra letra que separa saber e gozo constituindo-se o litoral (LACAN, 2009, p.110)
como dois domínios diferentes. O delírio seria uma solução de saber, letra-literal que vem
substituir letra-real, solução letrada e elegante que de fragmentos desatados, restaura o
mundo do psicótico. O psicótico em seu delírio, nas palavras de Souza (1991, p. 71)
“fabrica um mundo e um estatuto civil - novo geógrafo de uma geografia, seu estilo é o
trabalho decidido de mapear distâncias, cavar sulcos, côncavos, convexos, produzir
recôncavo e litoral.”
2.4.4 O empuxo-à-mulher
Reservamos um tópico a parte para falar sobre o empuxo-à-mulher, já que durante a
convivência entre técnicos e pacientes, é muito comum esse fenômeno psicótico ser
confundido com homossexualidade e inclusive se ouvir dos técnicos que a família do
paciente devia parar de recriminar suas tendências homossexuais e deixá-lo “assumir”a sua
(suposta) opção sexual. Porém, como no caso de Schreber e de muitos outros psicóticos,
não é disso que se trata. Pinçamos aqui uma fala de Antônio:
Vocês aqui no CAPS são tudo bandido e ficam capando as pessoas. As pessoas
aqui ficam me capando e depois a noite ficam fazendo relação sexual e rindo da
minha cara [...] O problema é que tão querendo me capar e me deixar brocha,
fazer eu virar mulherzinha. São os médicos que estão fazendo isso comigo. Não
sou bandido. Não entendo porque tão fazendo isso comigo. Quero a felicidade de
todos vocês [do CAPS]. Quero que vocês transem e fiquem felizes. Não posso
viver assim. Um dia vão me achar nas “quebradas” com os pulsos cortados [...]
Os gays estão me perseguindo e jogando encosto. Não quero virar mulherzinha.
Há na psicose uma posição subjetiva em relação à castração que é de tal ordem que
aquilo que Lacan formulou como a inexistência d’A Mulher torna-se algo insuportável na
experiência do psicótico. Seja qual for a prática sexual concreta de cada sujeito psicótico,
podemos nela identificar a não-incidência da norma fálica, e portanto a não-simbolização
do ato sexual, que, permanecendo não mediatizado pela ordem significante que determina
seus efeitos no imaginário dos sexos, faz com que o sexo seja experimentado como uma
89
invasão no plano corporal, que reduplica uma invasão do Outro, do Outro do sexo, já que o
sexo como Outro, o Outro sexo, não se funda na não-existência d’A mulher. Resta ao
sujeito a homossexualização por uma via significante, o que é muito diferente de uma
homossexualidade objetal que se desenha no imaginário como escolha-de-objeto, como nos
homossexuais efetivos (neuróticos ou perversos – e até mesmo, por que não? – em alguns
psicóticos, pois a detecção do empuxo-à-mulher como fator estrutural determinante dos
fenômenos que se expressam como homossexualidade na psicose não nos autoriza a
recusar a um psicótico uma escolha de objeto qualquer que seja). Trata-se, assim, de uma
posição subjetiva determinada por uma lógica gramatical. É o significante que é
homossexual e não o objeto. Como o psicótico não reconhece a lei da castração, ele fica
transtornado quanto ao sexo, não conseguindo formular para si mesmo que não existe a
categoria Mulher. Antônio continua com sua fala nessa direção:
o Vera Fischer [funcionário do necrotério apelidado com nome da atriz,
homossexual conhecido na cidade por supostamente ter relações sexuais com
cadáveres] abre as pessoas e cospe e caga dentro delas.Ninguém vai escapar da
cidade do Vera Fischer[...]
Estava no banheiro com o Pedro porque ele é um pajé. Ele estava me mostrando
o pênis dele pra curar o meu.
Diferente do perverso que recusa a mulher, o psicótico faz a mulher existir.
Lacan (1998e, p. 572) afirma, quanto à psicose de Schreber, que: “na
impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta
aos homens.” Foi no buraco que se abria onde a significação fálica deveria operar essa
presença/ausência, que a intuição delirante de ser uma mulher, a mulher que falta aos
homens, surgiu precocemente para Schreber. Nesse momento do ensino de Lacan,
portanto, mesmo que por sua inexistência, o falo era o significante sexual por excelência, e
se sua operação resultava em um corpo esvaziado de gozo, a não operação não deixava de
também delimitar um campo. A formalização do objeto a foi o que permitiu substituir essa
prevalência do falo, multiplicando as possibilidades de leitura das respostas singulares do
sujeito.
2.5 A transferência na psicose
Não é desconhecido dos analistas o fato de que a nossa clínica é a clínica do amor.
É o amor a condição fundamental sem a qual a experiência analítica não se dá, bem como
90
nas palavras de Freud, a resistência fundamental que ameaça torná-la impossível (FREUD,
1987h).
Na clínica psicanalítica não cessamos de nos oferecer ao amor (ANDRÉ, 1998). A
psicanálise acolhe o sujeito na questão do amor e o maneja para que a transferência seja a
via de passagem para outro lugar. Na relação entre analista e paciente, a libido refaz seus
caminhos até a possibilidade de uma relação de amor com o analista, que abre esta
possibilidade para a vida do analisando.
O amor apela ao “somos um” e a psicanálise vai se valer desse apelo e manejar a
questão. Quando o neurótico quer que o amor dê sentido, na verdade está querendo
“amarrar” a evanescência do ser, em algo que dê consistência. O amor tenta anular a
hiância entre o um e o ser, mas esta não se anula. O que se está visando por trás da
apreensão do ser é na verdade apreensão do gozo, da plenitude, da não falta, da não
parcialização. O que diz respeito a fazer um no amor tem a ver com a identificação que se
suporta na imagem, que é veste do ser, fantasia. O eu quer se identificar com algo que diga
quem ele é, que o faça parecer com alguma coisa, que faça cessar essa peregrinação
(MAURANO, 1998).
Tomaremos o manejo transferencial como sendo o instrumento capaz de
“destranstornalizar” as situações vivenciadas na clínica, na medida em que, colocando-se
na posição de objeto, o analista desloca o que transborda, entorna, perturba, confunde,
atordoa e desorganiza (AMANCIO, 2010). Em seu texto, Observações sobre o amor
transferencial, Freud (1987h) faz importantes colocações sobre a questão, apontando para
o transtorno que a transferência pode trazer não só para o paciente, mas para aquele que se
coloca na posição de analista. Freud vai dizer que a transferência traz uma completa
mudança de cena, fazendo uma analogia ao surgimento da transferência como quando um
grito de incêndio se ergue durante uma representação teatral e diz que “nenhum médico
que experimente isto pela primeira vez achará fácil manter o controle sobre o tratamento
analítico e livrar-se da ilusão de que o tratamento realmente chegou ao fim” (FREUD,
1987h, p. 211). No início do artigo diz que
todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de início,
pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a interpretar as
associações do paciente e lidar com a reprodução do reprimido. Quando chega a
ocasião, contudo, logo aprende a encarar estas dificuldades como insignificantes,
ao invés, fica convencido de que as únicas dificuldades realmente sérias que tem
de enfrentar residem no manejo da transferência (FREUD, 1987h, p. 208).
91
Lacan (1998d) afirma que na análise o paciente não é o único com dificuldades em
entrar com sua quota, referindo-se que o analista tem que pagar com palavras, com sua
pessoa e com seu ser. Parece-nos que por vezes, diante da psicose, o analista vislumbra
uma quota ainda mais alta, já que terá outro manejo no que diz respeito à interpretação, à
transferência e ao ser do analista.
Diversamente da clínica das neuroses onde o psicanalista ocupa, pela transferência,
o lugar de “sujeito suposto saber”, uma vez que é um saber que o sujeito busca no analista,
na psicose, ao contrário, o sujeito parte de um saber já constituído, a certeza delirante.
Nesse sentido ele não demanda um sujeito suposto saber, mas um testemunho dessa
certeza. Por isso Lacan (1985) indica um lugar preciso para o psicanalista na clínica da
psicose: o de secretário do alienado.
Para Freud, os psicóticos seriam incapazes de estabelecer o amor transferencial,
isso devido ao seu modo singular de estruturação psíquica produzida pelo desinvestimento
libidinal, no caso da esquizofrenia. A paranóia, devido à rica apresentação delirante, tornase muito mais acessível à análise do que a esquizofrenia, cujo delírio é fragmentário. O
paranóico e o esquizofrênico, ambos psicóticos, apresentam uma falha no recalque
originário, sendo que o paranóico em sua estrutura comporta a organização do estágio do
espelho no qual se fixou, e do qual derivam todas as suas produções delirantes altamente
imaginarizadas e, portanto, ligadas à imagem especular e ao duplo, ao outro imaginário:
perseguição, ciúmes, erotomania. Já o esquizofrênico permanece numa posição
infinitamente mais fragmentária do que o paranóico. Os fenômenos, as vivências de
despedaçamento corporal, tão presentes na esquizofrenia, atestam os efeitos da nãoobtenção da unidade imaginária, narcísica, que é conquistada no estádio do espelho.
A partir da imaginarização de um eu unificado no corpo, o paranóico constitui-se
como objeto de investimento que opera de maneira especular com os outros. A
subjetivação do paranóico é de um Outro denso, pleno e tirano, devido à especularidade e
ausência de inscrição da falta operada pelo Nome-do-Pai no campo do simbólico. É
comum encontrarmos em caso como estes a certeza psicótica, que tem a mais íntima
relação com este Outro não marcado pela falta. O paranóico se coloca como objeto de gozo
desse Outro e o que vai acontecer na transferência é que ela será marcadamente
persecutória, ou ainda erotômana.
Já na esquizofrenia a energia libidinal se volta para o corpo (auto-erotismo) e não
procura um outro objeto. Ou seja, não há investimento nos objetos, instalando no dizer de
92
Freud “uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto” (FREUD, 1987i,
p.201). Sendo assim o que o que o esquizofrênico experiencia é um corpo despedaçado.
Na melancolia, a dor de existir, que é uma condição de todo vivente, de todo
falante, toma configurações extremamente particulares. A libido se dispersa no eu
(identificação ao objeto perdido), e isto está associado a uma perda fundamental, à perda
do ideal que encobriria a falta da castração no campo do Outro. Em Freud (1987b), o que
ocorre na melancolia é um “furo no psiquismo” que chega ao auge numa “hemorragia de
libido”. Também para Lacan trata-se de um furo do gozo próprio a estrutura da linguagem.
O investimento objetal e a libido livre se retiram para o eu devido à perda no nível do ideal,
através da identificação com o objeto perdido “a sombra do objeto cai sobre o eu”. Para o
melancólico, o Ideal do eu vai ocupar o lugar da referência simbólica para o sujeito,
suprindo a ausência ou foraclusão do referencial simbólico, o Nome-do-Pai. Quando esse
arranjo se desfaz, o eu pede o revestimento narcísico, dando mostras de seu status de
objeto. Ao se desnudar, a foraclusão deixa evidente o furo no simbólico, transformando
uma perda objetal em uma perda do eu, para qual se dirigem as recriminações que antes
eram referidas ao conflito, advindas da ambivalência na relação com o objeto. Somam-se
as essas recriminações as autodepreciações e autoacusações, decorrentes do sentimento de
culpa. O eu, identificado ao objeto, atrai para si a cólera do supereu.
Em O Seminário, Livro 3: As psicoses, Lacan (1985) situa que a diferença entre um
neurótico e um psicótico coloca-se no fato de que, para este último, o amor é morto. O
amor promove uma abolição do sujeito na psicose. O amor na psicose pode ser
mortificante, exigindo que o sujeito se ofereça como objeto, sacrificando-se em nome do
Outro absoluto (MUÑOZ, 2010). Na falta de uma regulação prévia, a relação com um
parceiro pode estar na base de um desencadeamento ou de uma desestabilização. Na
impossibilidade de encontrar algo que venha fazer função de mediação, pode-se viver o
amor não enquanto agente, mas enquanto vítima dele. O excesso do Outro faz com que o
sujeito não encontre outro lugar que não seja o de se fazer de seu objeto.
Se há dificuldades do psicótico do lado do amor, isso se intensifica muito mais
ainda em relação à sustentação do laço transferencial. Como pode se dar o tratamento do
sujeito psicótico, se a transferência se localiza primordialmente do lado do Outro e não do
lado do sujeito? Esse Outro é uma dimensão do campo do sujeito, mas que na psicose não
é reconhecido como tal, há uma abolição de fronteiras distintivas entre sujeito e Outro
como lugar Outro no próprio sujeito, à maneira do inconsciente. A erotomania, a
transferência erótica e a perseguição são, por isso, riscos concretos no horizonte desse tipo
93
de tratamento. O sujeito não vive a paixão enquanto agente e pode ser, portanto, amado,
traído ou odiado por aquele que aceitar se colocar no lugar do Outro. O analista que se
dispõe a escutar um paciente psicótico deverá estar sempre pronto a acompanhar as
soluções que ele mesmo constrói. A transferência pode ser uma forma de apaziguamento,
valendo-se da erotomania (RIGUINI, 2005).
Como lidar com a intrusão que pode advir da proximidade da convivência cotidiana
em um dispositivo tal como o CAPS? Não é incomum que usuários se afastem do dia-a-dia
do serviço em momentos nos quais a transferência, experimentada por relação a
determinado técnico, se torna muito intensa ou que o técnico se veja transtornado com as
vias em que a transferência se apresenta.
Como exemplo, citamos o caso de Luiz, paciente de grande porte físico, que
freqüenta o CAPS em regime intensivo, ou seja, diariamente, de quem nos tornamos
técnico de referência. Podemos dizer que além de referência, nos tornamos “técnico de
transferência”, pois desde sua chegada, que foi em franca crise psicótica, ficou evidente
por suas palavras e gestos a manifestação da transferência. Por ser o início da nossa
experiência em CAPS, não conseguimos nos colocar na posição de analista. Habituados
com a clínica com neuróticos e já suficientemente prevenidos de que um analista não deve
atender a qualquer demanda, não conseguimos conduzir o caso assim, devido às
dificuldades frente à manifestação de extrema agressividade e uma transferência de fundo
erótico muito intensificado pelo paciente, que dizia a todo o momento, por exemplo, que
queria “acasalar” com a analista. A uma simples pergunta do paciente sobre o nosso estado
civil, que devolveríamos ao neurótico com a clássica resposta “fale-me mais sobre isso”,
respondemos afirmativamente, crendo que dessa maneira barraríamos as investidas do
paciente. Luiz nos responde e ao mesmo tempo nos ensina sobre a psicose: “Não tem
pobrema. Nóis mata ele”. Só a posteriori pudemos constatar que na verdade pelo temor de
sermos agredidos e mortos por Luiz, como inclusive ele havia feito respectivamente com
seu irmão e seu cachorro de estimação, não pudemos suportar suas palavras e investidas.
As dificuldades no saber fazer, no manejar com a transferência podem acarretar
grandes transtornos para a condução do caso. Depois de um certo tempo de atendimento,
Luiz já não fala de sua intenção de se “acasalar” conosco. Passa a nos dizer que a tampinha
do seu “cardan” (palavra que ele inventou para nomear seu órgão sexual) não está
funcionando e por esta razão não tem mais jeito de acasalar, evidenciando assim que
conseguiu fazer barreira ao gozo sexual que transbordava, sem lei, na transferência, e
94
introduzindo, nesta operação de barreira ao gozo, um certo nível de saber sobre o nãofuncionamento da ordem do falo, em sua sexualidade e em sua subjetividade.
O coletivo institucional pode ter um peso excessivo para o sujeito psicótico que, por
vezes, pode não suportar o convívio e a proximidade com aquele que se oferece para ser o
destinatário de suas produções (MUÑOZ, 2010). Antônio, outro paciente do CAPS, passa a
cantar constantemente no período que está no pátio que dá para nossa sala de atendimento.
Canta as músicas de vários cantores, todos da MPB (Música Popular Brasileira). Certa
manhã percebemos que cantava músicas com letras particularmente tristes. Em um
momento quando vem em nossa sala, começa a falar das músicas de que gosta e relata:
acho que magoei você... Cantei uma música pra você na janela... Foi uma música
muito triste que até bandido chora. Fiz isso porque vi você atender outro homem
e fiquei enciumado. Com a música você ficou soluçando... Tenho medo de
perder vocês aqui do CAPS... Vocês me ajudam a organizar as idéias.
Suas palavras revelam o início de uma transferência. Antônio nos diz que tem
muitos amigos no CAPS, mas que somos sua melhor amiga. Passa a trazer sonhos
constantes onde nos encontramos sempre presente.
O problema é que Satanás me fez falar o nome dele num copo com água e aí o
espírito se apossou de mim e comecei a fazer um tanto de coisa errada. Vocês me
desculpem. Fiquei pensando em fazer relação sexual com vocês, mas foi por
causa de Satanás. Agora não estou pensando mais assim. Entreguei meu espírito
pra Cristo... Estava com saudades de você. Penso muito em você. Esses dias
sonhei que nóis tava conversando [...] Sonhei com você. Você tava comigo e
chegava um home e dava tiros em nóis... Acho que é seu marido que pensou que
nóis tinha um caso... Posso ir pra outra cidade e arrumar mulher e esquecer que
estou apaixonado.
Desta vez, menos transtornados pelos efeitos transferenciais da clínica da psicose
respondemos: “conversar comigo pode”. Saindo o analista de seu transtorno, o paciente
pôde também não mais se transtornar com seus pensamentos e sonhos e avançar no
tratamento. “Se o analista não recua diante da psicose”, se ele se dispõe a sair dos seus
transtornos e impasses, “o psicótico avança diante do analista” (ELIA, 1991, p. 43).
Temos percebido como o atendimento individual pode ser dificultado pelas
particularidades transferenciais próprias e é aí que o dispositivo da psicanálise com muitos
pode ser uma estratégia interessante para operar com a transferência na clínica com
psicóticos que permanecem na instituição por um certo tempo em contato constante com a
equipe, posto que tal dispositivo pluraliza o Outro, que com isso perde uma consistência
para o sujeito. Oferece-se assim um certo desdobramento para a transferência, servindo
95
também de suporte para certas intervenções a partir da triangulação em uma cena. Sobre tal
dispositivo, falaremos mais detalhadamente na seção 3.
Para a psicanálise, cada caso deve ser tratado de maneira singular. Mas de maneira
geral, a duração do tratamento na psicose tem a ver com a tentativa de operar uma maneira
de circunscrição do gozo ou apropriação de objetos nos quais o gozo torne-se saturado,
desviando-se do corpo do sujeito. É necessária a intervenção sobre o Outro já que a
interpretação está do lado do sujeito e não do analista.
Todo o problema da transferência na psicose gira em torno da questão de que o
analista nunca poderá ocupar a posição de sujeito suposto saber, já que, à medida que o
amor e o gozo encontram-se aí intrincados, ocupar o lugar de saber na transferência pode
equivaler a firmar-se na posição de Outro gozador. O lugar do analista é vazio de gozo,
precavendo-se de encarnar o Outro e assim poder produzir um corte capaz de convocar o
sujeito na psicose. É preciso barrar o gozo do Outro, para que sujeito possa se instalar
através da criação de intervalos.
A demanda de análise do psicótico provém diretamente da foraclusão do
significante do Nome-do-Pai. O ponto de partida de sua demanda é aquilo que pode ser
denominado como significação em suspenso. O neurótico é um sujeito cuja estrutura lhe dá
condições de chegar à análise com uma questão, enquanto que o psicótico tem que operar
contra o funcionamento da estrutura psicótica para isso. Via de regra, o psicótico traz uma
resposta. Vem para dar uma significação que pode aparecer ora sob forma de intuição, ora
de uma idéia delirante, que é trazida para o analista a fim de torná-lo testemunha desta
significação ou para que avalize. O saber na psicose está e deve permanecer, portanto, do
lado do sujeito. É ele quem sabe sobre as investidas do Outro, que podem se apresentar,
por exemplo, sob a forma de amor, de gozo desmedido ou de alucinação. É preciso
esquivar-se da posição do Outro todo, sem furo, mantendo-se, ao mesmo tempo, à distância
do lugar do igual, dado o risco de um resvalamento inadvertido para o lugar indesejado do
rival (MUÑOZ, 2010). Sendo assim, o analista que conseguir manejar a transferência
poderá se valer do amor, sempre presente na clínica psicanalítica, sem, no entanto, ser
capturado pelos transtornos desse amor.
96
2.6 Estabilização psicótica
Freud apontou o trabalho com o delírio, a elaboração delirante, como forma de
estabilização na psicose – tentativa de cura, nas palavras de Freud – o que Lacan
formalizou como a metáfora delirante e Lacan acrescenta a passagem ao ato e a escrita.
Tais experiências são singulares de sujeitos específicos, mas podem possibilitar tirar
princípios universais tornando possível a condução clínica de casos tão difíceis que
particularmente compõe a demanda dos Centros de Atenção Psicossocial.
2.6.1 Passagem ao ato
Em sua tese de doutorado, Lacan trabalha o caso de Aimée, que é uma paciente que
por motivação delirante desfecha um golpe de faca contra uma famosa atriz parisiense.
Durante os vinte dias que Aimée permanece presa, sua posição quanto a certeza do ato
permanece a mesma até que seu delírio se interrompe. A hipótese de Lacan é que essa
reação acontece somente após Aimée ser abandonada e reprovada pelos seus, e também
depois que identificada com os criminosos com quem compartilhou a prisão. O ato de
Aimée é paradoxal, na medida em que atinge tanto a si mesma, através do alívio afetivo de
seu choro como provoca a queda súbita do delírio. Através do mesmo acontecimento
Aimée torna-se culpada diante da lei e também atinge a si mesma.
Ao longo do seu ensino Lacan estabelece orientações que permitem estabelecer a
diferença entre a passagem ao ato e o acting-out. No texto A direção da cura e os
princípios do seu poder, Lacan (1998d) analisa o acting-out como relativo à intervenção do
analista, a partir de um caso de neurose. É em O seminário, Livro 10, A angústia que Lacan
estabelece uma clínica diferencial entre acting-out e passagem ao ato formulando-os
angústia e objeto, através do caso freudiano de uma jovem homossexual. Finalmente Lacan
estabelece a relação de ato analítico em O Seminário, Livro 15, O ato psicanalítico de
1967-68. Nesse seminário, Lacan concebe independentemente da estrutura clínica, a
dimensão do agir, em duas grandes vias: a via do Outro ou do significante, que concerne ao
acting-out e a via do objeto, referida a passagem ao ato (GUERRA, 2010).
A passagem ao ato, que consiste em separar a vida de sua tradução simbólica, de
sua transposição no Outro, é um momento em que não é possível nenhuma mediação, mas
que mesmo assim traz um caráter resolutivo. Por não se inscrever no campo simbólico, a
97
passagem ao ato não pode ser interpretada, sendo conjugada com o objeto, que é
inassimilável pelo significante e concerne ao gozo. Diz respeito ao que Lacan denominou
de objeto a, ponto que ele situa como sendo a causa e o efeito da cadeia de significantes,
aquilo que significa seu deslize na busca de sentido. E que dela cai pela impossibilidade de
tudo vir a se reduzir ao campo semântico. Se no acting-out o sujeito endereça seu ato
esperando uma resposta do Outro, na passagem ao ato o sujeito sai de cena.
O que acontece na psicose é que a extração do objeto a não se dá. E como
conseqüência não há operação da castração com seus efeitos de organização simbólica.
Outra conseqüência importante é a não constituição da fantasia. Na neurose, esse ponto
será ocupado pela significação do falo, significante da ausência, que testemunha a
inscrição da castração. Na psicose, no lugar da tela ausente protetora da fantasia, o sujeito
encontra-se diante do real da castração. A cena que na neurose é montada na fantasia e que
funciona como proteção ao mal-estar de sentido da existência, não pode ser constituída ao
psicótico, posto que ela diz respeito à resposta ao horror decorrente do objeto que cai como
o impossível de significar no complexo de castração, o objeto a. A fantasia é tela que
enquadra a realidade, estendendo-a na relação simbólica com o significante. Ela é um véu
sobre o qual pinta-se a ausência. Essa cortina assume para Lacan o seu valor e sua
consistência, por ser justamente aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência. É
daí que o falo adquire seu valor simbólico.
A castração implica o recorte de gozo, que localizado, separa o sujeito do campo do
Outro. Como na psicose o objeto a não é extraído, o gozo não articulado e contido pela
linguagem, retorna como real em excesso. Por essa razão, o psicótico permanece
identificado à posição de gozo do Outro, oferecendo-se como objeto no lugar da falta que
não se inscreveu pela castração.
Na passagem ao ato, é desse objeto duplicado na relação imaginária com o outro,
que se encontra ali em excesso, que o sujeito tenta se desvencilhar. No ato, o sujeito realiza
o efeito de separação que o simbólico operaria pela linguagem, efeito de negativização e
individualização do ser, de morte pela palavra. A mutilação real surge em proporção à falta
de eficácia da castração. A passagem ao ato na psicose seria uma tentativa de realizar a
castração simbólica pelo real. É a tentativa psicótica de obter a extração desse objeto,
ponto de gozo que o invade e o submete. Extrair esse objeto representa uma possibilidade
de libertação para o sujeito, já que se trata dele mesmo do campo do Outro. A passagem ao
ato não pode ser encorajada na clínica da psicose, pois não favorece o laço social, muito
pelo contrario, desfaz suas possibilidades, seja auto ou heteromutilador. A passagem ao ato
98
traz agressividade, violência e até crime. Podemos, no entanto, aprender com a passagem
ao ato na psicose, no sentido de nos ajudar a pensar o campo das estabilizações. O excesso
que não caiu sobre a forma de objeto a invade o sujeito e exige a construção de uma
barreira, seja de sua extração real ou simbólica, ou ao menos sua localização.
2.6.2 Metáfora delirante
Vimos anteriormente as conseqüências nefastas que a foraclusão do Nome-do-Pai
determina, impedindo a metáfora paterna. Porém, é nesse mesmo ponto que vem se dar um
trabalho de reconstrução por parte do psicótico, criando um novo mundo de significações.
Será pela metáfora delirante, colocada no lugar do Nome-do-Pai que podemos pensar a
psicose em suas relações com o registro do imaginário. Recordemos o que Freud diz sobre
esse momento:
E o paranóico constrói-o de novo, não mais esplêndido, é verdade, mas pelo
menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho
de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser produto patológico,
é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução. Tal reconstrução após a catástrofe é bem sucedida em maior ou
menor grau, mas nunca inteiramente (FREUD, 1987d, p. 94).
O neurótico, sustentado por uma realidade bem situada, pode se dar ao luxo de
acreditar ou de duvidar sem correr o risco de se desestruturar. O psicótico não dialetiza sua
certeza. No lugar da crença, fenômeno tipicamente neurótico, que testemunha a divisão do
sujeito, fenômeno que separa o sentido que se apreende e o que se desfaz no lugar da
crença, o que se coloca ao psicótico é a certeza. Ele tem uma certeza inabalável,
irredutível, certeza de que tudo o que acontece tem a ver com ele: o carro vermelho que
passa, a chuva que cai às três da tarde, uma criança que derruba um brinquedo. Essa
certeza é o que surge com ponto de ancoragem para o sujeito, é o que lhe advém como seu
mais precioso expediente na tentativa de recuperar o sentido (FREUD, 1987i).
Pela certeza delirante o psicótico tem novamente um lugar no mundo, um lugar de
significações e de fala que foram suspensos no momento em que ocorreu a quebra do
imaginário. Nessa certeza não há dialetização, compreensibilidade, trata-se de uma certeza
irredutível, constituindo-se um dos fenômenos elementares da experiência psicótica, no
sentido que a certeza é a base onde se assentam as produções delirantes e alucinatórias do
paciente e onde se ordenam dúvidas secundárias que estão todas subordinadas a essa
99
certeza delirante que nunca se exclui, pelo contrário, faz determinar todas as outras
questões.
É através dessa certeza que ele pode fazer a tentativa de recuperar o sentido, de sua
ancoragem. Essa certeza é o âmago da significação delirante, que diferentemente da
significação fálica, apresenta-se para o sujeito como certeza total, como verdade toda.
A metáfora é resultado de um trabalho psíquico, subjetivo: por exemplo, se em
Schreber transformar-se em Mulher de Deus é uma metáfora delirante é porque resulta de
um trabalho no qual esta “solução”, à qual enfim ele chega e que retoma, totalmente
reconfigurada, a posição já prenunciada na alucinação hipnagógica do momento prépsicótico: “como seria belo ser uma mulher em vias de se submeter ao coito”, suprime os
efeitos devastadores que as etapas de sua psicose lhe custaram. É uma metáfora delirante,
já que produz um significado novo. Dessa maneira, o psicótico constrói uma significação
viável e funda uma forma original de filiação onde o sujeito se acha implicado num elo
com o Pai, mesmo que a referência a esse pai se determine no registro do real.
A metáfora delirante pode ser vista como operação funcionando como terceiro
termo entre o psicótico e o Outro, tirando o primeiro da posição de objeto de uma demanda
incessante e indeterminada desse Outro. É o delírio que vem proporcionar ao sujeito a
reconstrução da realidade, realidade delirante que ignora fronteiras e desconhece
impossibilidades, como é o caso de Luiz, paciente em permanência intensiva no CAPS,
que me conta que tem caminhado pela estrada que leva de sua cidade até a cidade vizinha,
ao lado dos Power Rangers, personagens que possuem super poderes e que descem de suas
naves para estar com ele. De seu cachorro, animal que na verdade matou em um surto
psicótico, me diz que é primo do Scooby Doo, do conhecido desenho de Hanna Barbera,
construindo uma realidade onde o cachorro além de vivo é também dotado de
características especiais. Ou de Francisco, que após ficar cerca de vinte anos internado em
um manicômio, onde vivia totalmente alienado, como a maioria de pacientes que passaram
por esta experiência, sem vida própria, sem administrar sua aposentadoria e seus bens,
constrói em seu delírio uma outra Campo Largo (nome fictício da cidade onde reside). Na
“Campo Largo” de seu delírio tem uma loja que administra e é bem sucedido. Nessa
“Campo Largo” seu mundo antes despedaçado pode ser reconstruído.
O trabalho de construção da metáfora delirante é quase que coextensivo com toda a
direção da análise dos psicóticos, segundo as orientações que Lacan nos deu no início de
seu ensino. Na verdade, trata-se de fazer com que o sujeito venha a fazer uso dos próprios
elementos de seu delírio para articular alguma relação entre significantes (aqueles que são
100
primordiais em seu delírio) com significações igualmente prevalentes, mas de forma a que
algum elo novo se faça entre significante e significado capaz de estancar o deslizamento de
outro modo indefinido da significação. A metáfora delirante é, assim, o que permite o
ponto de basta – point de capiton – na cadeia, noção cara ao ensino de Lacan em seu
período inicial – e que produz o efeito clínico da estabilização. Só se pode explicitar o
modo como a metáfora delirante se produz em uma análise de psicótico, portanto, através
da singularidade concreta de cada caso. No caso de Schreber, a metáfora delirante consistiu
na posição, assumida pelo sujeito, de tornar-se a mulher de Deus: só assim a posição de
dejeto manipulado pelo bel prazer e gozo do Outro pôde encontrar um paradeiro. Há que se
observar ainda que a metáfora delirante é um recurso restrito à paranóia, e que tem o caso
de Schreber como paradigma. Com a pluralização posterior dos Nomes-do-Pai e a abertura
de possibilidades de nodulação estabilizante para o psicótico a partir da idéia de invenção –
que substitui, com vantagem, o recurso sempre substitutivo e postiço da metáfora delirante
em relação à metáfora paterna, que seria o recurso legítimo, ou seja, que traz a idéia de um
fazer ativo ali onde antes se tratava de um recobrir um déficit do que deveria estar em
operação na estrutura – o recurso à metáfora delirante torna-se bastante periférico como
direção de análise nas psicoses.
2.6.3. Escrita
Podemos ver que o interesse pela escrita está presente desde cedo na obra de
freudiana. Freud (1987c) aponta a descoberta de um dos fatores que participa na
transformação dos pensamentos do sonho em conteúdo onírico que é a consideração à
representabilidade no material psíquico próprio do sonho. O aspecto imagético do material
onírico deve submeter-se a um rigoroso sistema de escrita, o que revela que, longe de
tratar-se, neste material, de elementos do imaginário (apesar de serem imagens que
aparecem nos sonhos), trata-se na verdade de elementos de escrita.
Lacan (1998c) em A instância da letra no inconsciente assinala que no texto
freudiano A interpretação dos sonhos, trata-se em todas as páginas, daquilo que ele chama
de letra do discurso, visto que esse texto abre a via régia para o inconsciente. O sonho é um
rébus que “Freud trata de estipular que é preciso entendê-lo” (LACAN, 1998c, p. 513), e
que Lacan afirma que é entendê-lo ao pé da letra. Assim como a figura não natural do
barco sobre o telhado trazida por Freud, “as imagens do sonho só devem ser retidas por seu
101
valor de significante, isto é, pelo que permitem soletrar do ‘provérbio’ proposto pelo rébus
do sonho” ((LACAN, 1998c, p. 514).
Freud exemplifica que o valor do significante da imagem não tem a ver com sua
significação. Quando escreve a respeito dos sonhos ele compara–os a hieróglifos do Egito
para explicar como os sonhos devem ser decifrados. A associação da elaboração onírica
com hieróglifos se deve à permanência de uma figurabilidade na composição entre letra e
desenho. Ele aproxima o sonho dessa escritura que não apresenta um texto unívoco e que
mantêm os sentidos antitéticos, assim como a condição de figurabilidade entre letra e
desenho. Nessa escrita, Freud vai se orientar por certos empregos do significante que se
apagaram na nossa. Lacan observa que o psicanalista de hoje admite que decodifica, ao
invés de fazer as paradas necessárias para compreender o que se decifra. “Fazer essas
paradas [...] é continuar na Traumdeutung” (LACAN, 1998c, p. 514).
Em Lacan o tema da escrita terá diferentes propostas. Temos outros textos
representativos dessas propostas, como o texto A carta roubada, o seminário O saber do
psicanalista e passagens em O seminário, Livro 9, A Identificação.
Lacan (1998h) em O seminário sobre A carta roubada destaca o valor da escrita,
em particular da letra, ao caracterizar o inconsciente a partir de sua estrutura de linguagem.
A função prevalente nesse primeiro tempo de Lacan é que ele não vai diferenciar letra de
significante e vai definir letra como suporte material do significante, sem, no entanto
diferenciar a primeira do segundo.
Como entender o significante? Diz Lacan que a carta letra1 é enigmática. Não se
sabe o que tem dentro. Ela só se torna significante a partir do ato do sujeito, a partir do
velamento. É o ato que implica o sujeito e que faz com que a letra se torne significante. O
ato do ministro do conto de Poe que velou a carta faz com que ela se torne significante.
Assim, o significante é aquilo que vela, que produz desvio, mas é esse desvio que permite
dizer que algo falta em seu lugar. O determinismo da letra não é a significação, mas sim a
possibilidade de que ela seja desviada e nesse desvio haja produção de falta.
Lacan vai dizer que uma carta sempre chega ao seu destino. Essa afirmação referese a algo que está na pele ou nas bordas corporais, algo de que não dá pra se livrar. Se não
é possível eliminar o que é estruturante, o furo, as bordas, é possível fazer destinatários. Os
parceiros amorosos seriam parceiros destinatários, pois permitem que o sujeito se leia, que
se devolva a perda imaginária, porém não são da mesma ordem que a letra e o destino. São
1
Essa história de carta letra deve-se ao fato de que, em francês, a palavra que designa carta – missiva – é
lettre, a mesma que designa letra.
102
parceiros destinatários para se viver algo na vida. Já quando alguém publica algo que
circula no mundo também está fazendo destinatários e de uma outra ordem (COSTA,
2009).
Em O saber do psicanalista Lacan (1997) vai destacar o enigma da escrita
trabalhando um texto bíblico do profeta Daniel que relata que Belsazar, imperador da
babilônia, durante um banquete viu uns dedos de mão de homem escreverem na parede do
palácio real as seguintes palavras: “Mene, mene, tequel, parsim”. Aterrorizado o rei manda
convocar todos os magos para que dessem a interpretação daquelas palavras, mas nenhum
foi capaz, até que Daniel, profeta e nobre judeu, que se encontrava cativo na babilônia,
apresenta-se para dar a interpretação a partir da revelação concedida pelo Deus de Israel. A
interpretação daquela escrita faz Belsazar encontrar seu destino mortal (BÍBLIA,1999).
Lacan demonstra que o destino conduz a um pensamento de determinismo, mas ao mesmo
tempo pode-se pensar numa direção contrária a isso. A interpretação analítica desarticula o
destino no sentido que reintroduz pelo funcionamento da linguagem a equivocação e a
metáfora. Ali onde pesava o destino com o sentido cristalizado e fixo ela dá a ouvir outro
sentido (GUYOMARD, 1996).
Posteriormente Lacan irá aproximar a letra cada vez mais do registro do real, como
faz no seminário sobre Joyce, ao dizer que a escrita o interessa “porque historicamente foi
por pequenos pedaços de escritas que se penetrou no real, a saber, que se cessou de
imaginar. A escrita de letrinhas, letrinhas matemáticas, é isso que sustenta o real”
(LACAN, 2007, p. 68).
A partir do traço unário, que propõe com base na expressão einziger Zug, formulada
por Freud (1987o) na teoria da identificação, Lacan vai abordar a função da escrita no
inconsciente e na constituição do sujeito. Ele ao retomar essa noção, dá-lhe um caráter
estrutural, como marca primeira que inaugura o sujeito. Lacan vai dizer que o traço unário
é a inscrição da diferença e que é da inscrição desse traço que será possível ao sujeito
neurótico não se confundir com os objetos, diferentemente do que acontece na paranóia
onde há a construção de um objeto total, e na esquizofrenia que há um esfacelamento do
objeto (COSTA, 2009).
O traço unário inscreverá uma diferença a partir da qual o sujeito poderá se inserir
na série simbólica. Como letra, ao mesmo tempo em que representa o sujeito em sua
origem possibilitando uma identificação simbólica, traz a lembrança de um gozo perdido,
que inicia o processo de repetição característico do movimento inconsciente. Há, portanto,
103
como ressalta Rinaldi (2007), algo da ordem de uma escrita primordial que marca o sujeito
na sua singularidade, onde se articulam letra e gozo.
O significante é uma invenção a partir de uma coisa que já está lá para ser lida. Não se
trata, portanto, na experiência analítica apenas da escuta, mas do que se lê no que se
escuta. Trata-se de uma releitura, já que a própria fala do sujeito, seus sonhos, sintomas e
fantasias são da ordem de uma primeira leitura das marcas primordiais que recebeu do
Outro, ao fazê-las suas (RINADI, 2007, p.275).
Lacan vai dizer que a relação sexual não existe a partir do traço unário, pois o gozo
estará perdido e o que foi perdido não é exatamente recuperado pela instância fálica. O
traço unário implica castração, perda de objeto.
É o registro de um diferencial, a
possibilidade de que alguém possa dizer “eu minto” falando a verdade. Para a psicanálise
não importa se o que o sujeito diz é verdade ou mentira, mas de que modo o sujeito se
dirige ao Outro.
Em O seminário, Livro 9: a identificação, Lacan (2003), nos traz a função do traço
unário como escrita primordial que funda o sujeito. Lacan assinala que os primitivos
faziam marcas nos ossos para contar os animais abatidos e que não havia uma equivalência
entre o traço e a coisa. O que chama a atenção de Lacan é que havia uma série de traços
iguais. Esses traços e traçados encontrados em material pré-histórico são marcas
significantes que podem ser chamadas de letras. Os ideogramas apresentam algo muito
próximo de uma imagem, mas que se torna um ideograma na medida em que se apaga cada
vez mais o caráter de imagem. A escrita cuneiforme teve seu nascimento assim. Os traços
saem de algo figurativo, mas trata-se neles de um figurativo apagado, recalcado ou mesmo
rejeitado. O que vai ficar é da ordem do traço unário que funciona como distintivo, como
marca (RINALDI, 2007).
O traço unário como traço distintivo tem uma função de bastão na constituição do
sujeito. Quanto mais estiver apagado tanto mais terá valor distintivo, pois é na medida em
que se reduz ao traço sem qualidades, ou seja, quanto mais ele é semelhante mais ele
funciona como suporte da diferença. Como no real não há nada desta ordem, será isso que
introduzirá no real do ser falante a diferença como tal. “O traço unário é significante,
portanto, não de uma presença, mas de uma ausência apagada que, a cada volta, a cada
repetição, presentifica-se como ausência” (RINALDI, 2007, p. 276).
Em O Seminário, Livro 18: De um discurso que não seria do semblante, na lição
sobre “lituraterra”, Lacan (2009) retoma uma série de diálogos que ele fez antes, no texto
O seminário sobre a carta roubada. Lituraterra antecipa o seminário 23, que é a escrita
104
dos nós, outra proposta de estrutura e escritura clínica, que é o sinthoma. Nesse texto, a
letra vai estar como lixo, como resto e como produção de buraco no saber. Aqui estamos
no que Lacan chamou de litoral. A letra não estará do lado da referência fálica, do
significante, mas vai se situar naquilo que cai, naquilo que resta (COSTA, 2009).
A letra fará litoral entre o saber e o gozo e como ponto de virada sempre buscada no
movimento de repetição que constitui o inconsciente, transformará em literal. O traço
unário, herança do Outro, vai se situar exatamente aí, como um sulco que a linguagem faz
no real do ser falante e será ao mesmo tempo, de seu apagamento e de sua repetição que
nascerá o sujeito como uma invenção a ser sustentada permanentemente. A verdade será
constituída nesse movimento, verdade sempre fictícia, sempre marcada pela parcialidade,
mas que determinará sua diferença. A escrita vai cavar sulcos no real ao apropriar-se dos
efeitos do significante, recortando pedaços de real, através da letra (RINALDI, 2007).
Guerra (2010) defende que a obra pode ser tomada como escrita ou como pintura,
como por exemplo, o estudo sobre Joyce e o caso de Van Gogh respectivamente, que
mostram um trabalho do real sobre o real, através da produção de uma obra inaugural. Os
dois exemplos citados abrem um precedente para se pensar na criação artística como uma
saída na psicose. A autora aponta outras soluções que podem oferecer a estabilização, tais
como as sublimações criadoras, identificação imaginária, e a relação transferencial. A
identificação imaginária comparece mais como fenômeno que pode favorecer uma forma
precária de apaziguamento. Uma solução que se aproxima da metáfora delirante é a
sublimação criadora, que diferentemente da metáfora faz laço social, como no caso da obra
filosófica de Rousseau. Tais tratamentos apontam as saídas inventadas pelo sujeito
psicótico para os embaraços que sua posição na linguagem acarreta, levando-nos com
Lacan a tirar o psicótico da posição deficitária.
2.7 Laço social e psicose
É possível dizer que é em torno dessa repetição que remete ao objeto perdido, como
impossível de ser reencontrado, no caso neurose, ou como objeto não extraído na psicose,
que se pode articular o laço social. Como essa repetição necessariamente engendra alguma
perda, todo discurso rateia, nenhum deles sendo mais conveniente do que o outro. Segundo
a formalização dos discursos proposta por Lacan (1992), é necessário que os quatro
elementos – S1, S2, a e , estejam individualizados para que ocupem lugares na estrutura.
105
Esse requisito impõe um limite teórico à utilização dos discursos estabelecidos para situar
o ser falante cuja estrutura não resultou das operações de alienação e separação, como é o
caso do psicótico.
Como conceber a construção de laço social na psicose, se o Édipo ou o Nome-doPai, como operador simbólico que subjaz a esse laço não é o recurso que funciona na
resposta do sujeito psicótico à realidade?
Ressaltamos que em Lacan é a subtração de gozo que corresponde à noção de laço
social. Enquanto na formulação anterior sobre a metáfora paterna, em O Seminário, Livro
5: As Formações do Inconsciente a subtração de gozo é concebida como efeito da
interdição (1999), nos Escritos, no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano, Lacan (1998f) indica que essa subtração é efeito da castração sobre
todo falante.
Deslocando do complexo de Édipo para a pluralização dos Nomes-do-Pai, Lacan
(2007) distingue o pai como nome e o pai como nomeador, indicando que a nomeação será
um quarto elemento, e que esse não é, necessariamente, simbólico. Neste caso, o acento
está colocado na função de fazer nó, isto é, de manter os registros articulados, o que é
diferente de ser um suporte para o simbólico. Nessa formulação, sobressai uma nova
concepção de laço social, a da pluralização dos Nomes-do-Pai, que remete a modalidades
de suplência à relação sexual que não existe. Na perspectiva da topologia, o sinthoma é o
que vem fazer suplência à falta de relação sexual, fixando o gozo que não está submetido a
um ciframento.
Figura 9 – Nó borromeano e nó borromeano com 04 anéis – sinthoma
106
O Nome-do-Pai, significante central no ensino de Lacan vai se pluralizar então sob
a forma de versões do pai. Será a partir da teoria dos discursos e da topologia borromeana
que Lacan dará uma nova formulação da clínica psicanalítica que pluralizará os nomes do
pai, transformando o sinthoma em uma forma particular de permitir surgir a singularidade
do sujeito.
O sinthoma vai nodular as dimensões dos três registros, real, simbólico e
imaginário, sendo a possibilidade de uma amarração que se expresse pela via de um falso
nó que poderá, inclusive, atestar uma amarração não borromeana. Portanto, enquanto
Lacan singulariza os sintomas no sinthoma, pluralizará o Nome-do-Pai em Nomes-do-Pai.
É o que ele diz no seminário sobre Joyce:
o pai, como nome e como aquele que nomeia, não é o mesmo. O pai é esse
quarto elemento [...] sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do
imaginário e do real. Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso que o que diz
respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto
hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma. Na medida em que o
inconsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada
indivíduo, podemos dizer que Joyce [...] identifica-se com o individual. [...] Ao
fazer assim, introduzo alguma coisa de novo, que dá conta não somente da
limitação do sintoma, mas do que faz com que, por se enodar ao corpo, isto é, ao
imaginário, por se enodar também ao real e, como terceiro, ao inconsciente, o
sintoma tenha seus limites. Porque ele acha seus limites, é que se pode falar de
nó (LACAN, 2007, p. 163-164).
Desta maneira, o sinthoma é o elemento decisivo do nó borromeano permitindo que
o arranjo do nó a quatro seja o que articula os três registros e os gozos admitindo que cada
um se particularize pelo modo de nodulação que daí se produz. O sinthoma será o modo
pelo qual o sujeito vai assumir a versão do pai que se constituiu em sua articulação
borromeana, sendo, deste modo, Nome-do-Pai na medida em que este é definido como ato
de nomeação. O sinthoma vai passar a ser um elemento comum tanto da neurose como da
psicose. O sinthoma vai nodular de forma sistemática os três registros, real, o simbólico e o
imaginário e fazer versão do pai. O Nome-do-Pai será um sintoma na medida em que,
como sinthoma, ele articula uma operação significante com uma localização do gozo.
O Nome-do-Pai que preside o arranjo neurótico é um caso particular de sinthoma.
O Complexo de Édipo, a partir daí, será um sinthoma, que “enquanto nome do pai é
também pai do nome que tudo sustenta”. É a partir dessas elaborações que Lacan retirará a
psicose do lugar de déficit, reorientando a clínica da psicose, já que será necessário abordar
o sujeito a partir de seu enodamento borromeano e não de um déficit de significante
(AMARAL, 2009).
108
3 HÁ UMA CLÍNICA NOS CAPS?
3.1 A Reforma Psiquiátrica e a herança do modelo manicomial
Podemos afirmar que uma instituição é fechada não apenas no sentido de não ser
aberta ao livre movimento do ir e vir de seus usuários, como ocorria, por exemplo, no
modelo manicomial, mas quando é fechada a todo e qualquer saber e a todo e qualquer
fazer que possa interrogá-la em seus princípios, isto quando são encontráveis tais
princípios, já que o fechamento pode chegar a tal ponto que nem mesmo princípios sejam
localizáveis. Assim, uma instituição pode ser considerada fechada em “seus modos de
funcionar, em sua existência institucional, reduzida à inércia e à repetição morta e
mortificante do mesmo” (ELIA; GALVÃO, 2000, p. 71).
Diante da Reforma Psiquiátrica Brasileira, incansavelmente exaltada por nós na
seção 1 desta dissertação, movimento que denunciou a falência do modelo manicomialista,
substituindo a assistência no campo da Saúde Mental por serviços abertos, tais como os
Centros de Atenção Psicossocial, onde se promove a inclusão social e o resgate da
cidadania, ousamos levantar duas questões. Primeiramente perguntamos até que ponto os
objetivos do movimento de luta antimanicomial têm sido plenamente atingidos, já que a
hegemonia do discurso médico, a medicalização excessiva, a concepção organicista e
comportamental, somadas a uma concepção equivocada da psicanálise por alguns e a
promoção de autonomia e suficiência dos usuários a partir do ideal dos técnicos e não dos
pacientes, tem novamente colaborado para silenciar o sujeito, arriscando o CAPS a ocupar
o lugar de substituto do modelo manicomial, numa precária analogia que fazemos com o
sujeito que ao dizer que não repetirá os passos do pai, preso pelas amarras da neurose não
encontra outro caminho a seguir que não a repetição.
A segunda pergunta diz respeito à clínica. Começamos por analisar os fatores que
levaram os primeiros momentos do processo histórico da Reforma Psiquiátrica Brasileira a
um afastamento da dimensão clínica. Encontramos o receio da reintrodução da
medicalização e da manicomialização como contribuição para que a categoria da clínica e
tudo que com ela se associava fossem rejeitadas.
109
A clínica significava a entrada, pela porta dos fundos, daquilo mesmo que se tinha tido
muito trabalho para expulsar pela da frente. Tratava-se de produzir um discurso em que não
apenas o engendramento da loucura fosse situado nos fatores exclusivamente sociais e
históricos, como também o modo de tratá-la, de operar com ela, deveria ser igualmente
“social”: cidadania, interação social, convivência, reabilitação, competências, geração de
renda, ativação dos vínculos produtivos no território, tudo menos clínica (ELIA, 2005 a).
Após o momento inicial, momento em que a Reforma teve seus motivos para
priorizar uma reabilitação desclinicizada, efetivados os objetivos da Reforma Psiquiátrica,
com toda sorte de conseqüências positivas que analisamos na seção 1, poderíamos afirmar
que a posição frente à clínica foi alterada? Diante de tão evidente vocação para a reinserção
social, teve também a Reforma o desejo de tratamento da loucura? Foi desejo da Reforma
ter um dia uma clínica, desejo adiado, como muitos neuróticos apresentam, desejo
colocado apenas no horizonte para atender a necessidade tomada como prioritária de
resgate da cidadania ou na verdade a Reforma nunca teve essa intenção?
Podemos dizer que os CAPS, em sua maioria, são cidadãos, inclusivos,
reabilitadores sociais e que exibem efeitos aos quais não podemos recusar a dimensão de
terapêuticos. Nos CAPS, os pacientes ficam melhores, deliram e alucinam menos e
estabelecem laços com atividades e pessoas. Revertendo-se o quadro de exclusão, são
atingidos efeitos terapêuticos extraordinários, efeitos concretos e surpreendentes, porque
resultam de uma mudança radical nas condições de vida dos sujeitos. Mas qual o efeito
clínico dessas ações? Podemos dizer que há mudança subjetiva, ou seja, mudança na
posição do sujeito? O gozo desses sujeitos é tratado? É claro que algo se opera nos CAPS,
pois os psicóticos possuem inúmeros recursos para fazerem seu percurso mesmo sem
existência de clínica. Schreber sem analista conseguiu estabelecer uma metáfora delirante e
se estabilizar. Nas palavras de Lacan (2003c, p.512), “uma prática não precisa ser
esclarecida para operar.”
Apesar dos efeitos terapêuticos comprovadamente observados isso não basta para
dizermos que existe uma clínica nos CAPS. A ênfase dos Centros de Atenção Psicossocial
continua sendo a reinserção social e não o exercício da clínica. Se a doença mental existe
como posição discursiva e estrutural e não é mero resultado de processos político-sociais
de exclusão, tratar, portanto, não será simplesmente incluir e resgatar a cidadania perdida
dos usuários. Na perspectiva da estrutura, a loucura não se reduz a mero efeito da exclusão
social, ela se sustenta como um funcionamento próprio, irredutível a outros.
Hoje ouvimos falar constantemente em clínica ampliada, escuta do sujeito, entre
outros dizeres de cunho fundamentalmente clínico, porém isso não garante que haja uma
dimensão clínica nos espaços do CAPS. Figueiredo (2001) demonstra como motes
110
consagrados da psicanálise são tornados triviais. São exemplos disso: acolher o desejo do
paciente, valorizar o dito, supor a existência do inconsciente, trabalhar a transferência, etc.
Porém, as equipes continuam praticando um cuidado desclinicizado, baseado
exclusivamente na lógica da inclusão, acolhendo sem tratar. É notório como muitas vezes
as equipes não entendem por que as situações de crise e violência sem manejo eficaz
assolam os CAPS e ficam admiradas com a evasão dos pacientes que não aderem ao
projeto terapêutico proposto pelos técnicos de referência. “Por que ele falta tanto? Pelo
menos aqui ele tem comida, fica limpinho, não apanha na rua [...]”
O que entendemos por clínica? Podemos afirmar que só haverá clínica se houver
implicação do sujeito no ato. Se há implicação do paciente e do técnico no ato que os une
podemos dizer que há clínica. Se não há implicação nem responsabilidade, então não há
clínica. O que acontece nos CAPS é clínica? Ou na verdade o CAPS é promotor de trato e
não de tratamento?
Colocamos ainda uma última questão em nossa introdução. Sabemos da
importância da Reforma Sanitária em nosso país que resultou no estabelecimento do
Sistema Único de Saúde (SUS), fator decisivo para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. A
Saúde Mental no atendimento aos seus usuários segue os mesmos princípios preconizados
pelo SUS, a saber, acesso universal, integralidade das ações, equidade, descentralização e
controle social, todavia a clínica de Saúde Mental não deve reduzir-se a balizas
estritamente sanitárias, no mesmo sentido em que a própria psiquiatria, como ramo da
medicina, destacou-se dela exatamente por não caber inteiramente dentro dela, dentro de
parâmetros estritamente de saúde, sendo sempre cindida entre o orgânico e o mental, este
não cabendo na acepção neural de mente, mas implicando a dimensão psíquica, cultural,
social, enfim, propriamente humana. Esta divisão do campo psiquiátrico encontra sua mais
fecunda expressão na divisão que Karl Jaspers foi levado a fazer ao abordar
fenomenológicamente o campo da clínica psiquiátrica. Como se sabe, este filósofo e
psicopatólogo estabeleceu a divisão epistemológica entre as ciências da natureza e as
ciências da cultura.
Voltaremos e esses pontos no decorrer de nossa exposição. Passaremos a analisar
brevemente algumas práticas clínico-institucionais que se utilizam da psicanálise e que
trazem grande contribuição para o campo da clínica da psicose em instituição e, portanto
para o avanço de nossa pesquisa sobre a clínica nos CAPS.
111
3.2 Psicanálise e Instituição
3.2.1 A psicoterapia institucional de Jean Oury
Jean Oury é o criador da Psicoterapia Institucional e trouxe importantes
contribuições para se pensar o atendimento de pacientes dentro de uma instituição. Um de
seus livros, “O coletivo” publicado em 1986 e traduzido para o português em 2007 é a
transcrição de seus seminários sobre o tema, após quarenta anos de experiência com
pacientes psiquiátricos, conforme relata Almeida e Souza no prefácio do livro para a língua
portuguesa.
A importância em destacarmos o pensamento de Oury em nossa dissertação deve-se
ao fato de que o autor vai trabalhar a possibilidade de reconhecimento da singularidade do
sujeito em tratamento nas instituições psiquiátricas, o que pode contribuir para nossas
discussões nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Sobre esse ponto Oury (2009) vai
dizer em seu livro que se o esquizofrênico é um sujeito que “descarrilhou” do simbólico
não podemos tentar recolocá-lo no trilho para que ele possa circular de novo, mas produzir
alguma coisa que permita que haja novamente sujeito.
O referencial teórico de Oury é a psicanálise, que vai lhe oferecer as principais
ferramentas para pensar em um tratamento para os psicóticos, especialmente os
esquizofrênicos. Vai propor oferecer espaços coletivos, pois estratégias terapêuticas que
não levem em consideração algum tipo de dimensão coletiva tendem a fracassar com o
psicótico (VERZTMAN; GUTMAN, 2001). Oury coloca como paradoxo a questão de por
em prática sistemas coletivos que preservem a dimensão da singularidade de cada um e é
nessa bifurcação que ele vai definir o que ele chama de Coletivo. O Coletivo de Oury não
se confunde com uma lógica de simples discursividade, de serialidade ou de simples
Gestalt, porém uma lógica que respeita uma quase infinidade de fatores de cada um. Diz o
autor que se trata “das possibilidades de criar sistemas coletivos, nos quais se possa viver
de um jeito bastante personalizado” (OURY, 2009, p. 22).
Oury vai dizer que o coletivo
pode apresentar-se como uma tablatura, uma combinatória do que constitui o Simbólico,
um certo “lugar” no qual há um encadeamento complexo de significantes. Parece-me que se
poderia formular o que está em questão como alguma coisa que se aproxima do que Lacan
chama de o grande Outro barrado (Ⱥ) (OURY, 2009, p. 213).
112
Constatamos em nossa experiência que o atendimento individual de psicóticos onde
fica condensado a figura única do analista ou terapeuta torna-se insuportável para o
paciente. Ao comentar sobre esse aspecto Oury (2009, p. 225) diz que
as coisas se passam melhor quando se investe , mesmo parcialmente , em diferentes
lugares. Isto coloca em questão um certo número de significantes. Na multiplicidade
disjunta dos seus investimentos transferenciais, o recurso provocado de uma maneira muito
artificial arrisca acentuar a dissociação por um modo de erotização maciça e dispersa
(transferência erótica psicótica). É então necessário encontrar para ele outros modelos de
acolhimento baseados na multiplicidade de pessoas que devem cuidá-lo, assim como
encontros materiais que, de certa forma complementares, devem ser separados e mais leves.
Uma das características para a construção de um sistema coletivo apontadas por
Oury (2009), é que os enfermeiros, e podemos aqui incluir qualquer outro membro de uma
equipe multidisciplinar de CAPS, tem seu lugar no tratamento que não é um lugar de
“psicanalista”, mas ainda assim é um lugar, de analista, desde que isto seja articulado em
conjunto. O autor trabalha nesse ponto a desarquierização da equipe valorizando a
iniciativa em situações do dia- a dia da instituição.
No trabalho com o psicótico pela via do coletivo, Oury valoriza o que ele chama de
heterogeneidade. Se houver identificação imaginária, histérica, onde tudo é uniformizado,
o paciente não tem a possibilidade de escolher e tudo fica imposto. É importante promover
a heterogeneidade nos espaços de oficinas, nas relações, nas funções, etc., colocar em
prática a distinguibilidade que favorece a passagem de um sistema para o outro, de um
lugar a outro lugar, de um técnico a outro técnico.
Outro aspecto que queremos apontar de nossa leitura de Oury é o que ele chama de
efeito do Coletivo que é o encontro. Cita Lacan (1990), em O Seminário, Livro 11: Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise quando este fala da túche (a fortuna, o
encontro, a boa e a má fortuna) que põe em questão algo da ordem do Real. Esse encontro
se é verdadeiro, provocará mudança estrutural. O autor cita que podemos desenvolver as
correlações entre o conceito de encontro e as diferentes formas de transferência.
Na mesma direção, Oury cita um artigo seu de 1968, sobre Psicoterapia
Institucional onde ele insiste que a transferência não pode ser uma inter-relação egóica, e
sim, o que permite a manifestação do sujeito através da emergência do dizer. Oury
denuncia que “a maior parte das organizações passa ao lança–chamas toda possibilidade de
emergência do dizer” (OURY, 2009, p.31).
Outra atribuição do Coletivo segundo Oury é o que ele chama de diacrítico que é o
que se “diz dos sinais gráficos destinados a distinguir a modulação das vogais ou a
113
pronúncia de certas palavras” (FERREIRA, 1993), como o acento agudo, a acento
circunflexo, etc.
Oury vai articular esse conceito dizendo da necessidade do coletivo operar a
distinção num meio amorfo, serial, ou “prático-inerte” para que haja uma “totalidade
destotalizada”. Assim poderá haver algo que se move e que não fique na estase, no
entorpecimento.
Por último citamos o termo entorno empregado por Oury ao invés do meio. O
entorno ao variar pode modificar alguma coisa do sujeito. Aqui estendemos o entorno de
Oury para a noção de território do CAPS. Muitas vezes esse território precisa sofrer
variação, modificar em benefício do próprio paciente. Ele não pode ser tomado como
meramente geográfico, mas indo além do espaço físico tendo em conta os espaços
intersubjetivos.
A nosso ver, a dimensão do coletivo de Oury com os conceitos de
heterogeineidade, desarquierização da equipe, encontro, diacrítico e entorno por nós aqui
mencionados, muito pode contribuir na construção de uma clínica para o CAPS.
3.2.2 A prática entre vários
Jacques-Alain Miller deu o nome de prática entre vários a uma modalidade de
trabalho que se iniciou em 1974, com crianças e adolescentes autistas e psicóticos na
instituição Antenne 110, situada nas proximidades de Bruxelas (DI CIACCIA, 2005). Há
também duas outras instituições – Le Courtil e Nonette, na Bélgica e na França
respectivamente – todas surgidas na mesma época da Antenne 110 e a Mish’olim criada
posteriormente em Tel-Aviv que trabalham com a prática entre vários. Essas instituições
fazem parte de uma Rede Internacional de Instituições infantis, a R13 (PINTO, 2007).
A prática entre vários é uma estratégia para operar com a transferência na clínica
com psicóticos que permanecem na instituição por um certo tempo em contato constante
com a equipe. A clínica psicanalítica que se pratica nessas instituições não se exerce
através do atendimento individual, mas dispondo as crianças e adolescentes entre muitos
pacientes e muitos técnicos. A proposta, no entanto como veremos a seguir, não coincide
com a de uma clínica em grupo ou de uma oficina, modalidades muito comuns nas
alternativas à psicanálise em clínica institucional, inclusive no âmbito da Reforma
114
Psiquiátrica Brasileira. O que distingue a prática entre vários de outras modalidades de
trabalho em equipe é a articulação entre significante e gozo na linguagem e não a idéia de
trabalho em equipe como acontece em um grupo (FIGUEIREDO; GUERRA; RANGEL,
2006).
Segundo Di Ciaccia, essa modalidade de trabalho faz referência à psicanálise de
Freud e ao ensinamento de Lacan, porém não prevê a utilização do dispositivo analítico
propriamente dito. O que fazem não é uma “psicanálise entre muitos”, e sim uma “prática
entre vários” não considerando que o que fazem é a psicanálise stricto sensu. Di Ciaccia
(2003) propõe três eixos para a instituição na prática entre vários.
O primeiro eixo repousa sobre o modo como a prática entre vários vai operar nas
reuniões clínicas. Pelo discurso analítico, o saber prévio da equipe sobre determinado caso
será deslocado, sendo substituído por uma interrogação. Será o sujeito que responderá a
essa interrogação, mostrando a equipe sobre o seu modo singular de lidar com o gozo
excessivo a partir da falta de regulação do Outro. Pela relação transferencial de
determinado sujeito com os membros da instituição e seu relato na reunião de equipe será
possível mapear significantes ou atos que se repetem, possibilitando que haja a construção
do caso clínico.
A partir da formulação final de Lacan, trabalhada por nós no capítulo 2, no que diz
respeito aos registros do real, simbólico e imaginário, onde outras formas de enodamento
dos três registros são possíveis além da referência fálica em torno do Nome-do-Pai, será
possível uma equivalência entre sinthoma e laço social. A prática entre vários vai sustentar
a construção de um sinthoma com a finalidade de localizar, nomear e circunscrever o gozo,
por meio de significantes (ZENONI, 2004).
Como segundo eixo apontado por Di Ciaccia, teremos a função do responsável
terapêutico. Tal função será “encarnada por qualquer um, mas não um qualquer da equipe.”
Aquele que a encarna deve permitir a cada um da equipe atuar na primeira pessoa, bem
como confirmar, ou não, o axioma de Lacan sobre a inscrição da criança autista na
linguagem e dos psicóticos de um modo geral. Nesse ponto, a prática entre vários vai
possibilitar a pluralização do Outro, a partir do atendimento entre muitos técnicos e muitos
pacientes, deixando esse Outro de ser consistente para o sujeito. A transferência poderá ser
desdobrada e servirá de suporte para as intervenções a partir da triangulação em uma cena.
Sendo assim, como defende Stevens (2003) a prática entre vários não se confundirá com
uma prática em equipe interdisciplinar, já que o analista não será o especialista que trata
115
das questões do sujeito ou do gozo. Cada membro da equipe poderá vir a se autorizar e a
intervir em nome próprio e de maneira contingente, pela palavra ou através de um ato que
só poderá ser apreendido em seus efeitos no a posteriori e que poderá via a surpreender
tanto o técnico como o paciente.
A referência teórica e clínica de orientação lacaniana é o último eixo proposto por
Di Ciaccia. Não se trata de toda a equipe ser de psicanalistas, mas de ter a teoria e a clínica
como referência.
Vale ressaltar que o dispositivo de tratamento em grupo traz a idéia do todo
diferente do coletivo que não se sustenta no todo. Se a corrente gestaltista afirma que o
todo é mais do que a soma das partes, pela psicanálise se afirmará que não há todo na soma
das partes. Admitindo-se a inexistência do todo pode-se admitir a fenda que permitirá que
no interior da equipe o próprio paciente venha a fazer furo no suposto todo da equipe
possibilitando uma construção de saber que esteja do lado dele e não do técnico.
Como trabalhamos anteriormente no tópico sobre a transferência, o analista ou
técnico não ocupará o lugar de sujeito suposto saber, lugar prevalente na clínica da
neurose, mas de sujeito suposto não-saber. Desta forma haverá indicação para o sujeito de
que o Outro não é consistente, esvaziando assim a atribuição de saber e poder que muitas
vezes é endereçada pelos pacientes aos técnicos da equipe.
O coletivo da prática entre vários difere do coletivismo igualitário, garantia de uma
equipe numa proposta dita democrática. O coletivo nessa vertente é uma proposta que não
se sustenta na garantia, mas numa direção de trabalho que porta um risco calculável. Esse
cálculo só pode ser realizado a partir do primeiro ato de intervenção. Trata-se de um ato
solitário, porém transmissível (FIGUEIREDO; GUERRA; RANGEL, 2006).
A experiência de coletivo da prática entre vários com certeza tem importantes
contribuições para se pensar a clínica no CAPS, tais como a distinção entre atendimento
coletivo e grupal, as reuniões clínicas, a construção de um sinthoma com a finalidade de
localizar, nomear e circunscrever o gozo, a questão da pluralização do Outro pelo
atendimento entre muitos técnicos e pacientes que difere de equipe interdisciplinar com
seus especialistas e etc.
A interrogação que lançamos à prática entre vários (la pratique à plusieurs,
expressão que ficou consagrada e que colocamos no original francês para que os que nos
lêem possam ter acesso às ressonâncias semânticas da expressão à plusieurs aqui aplicada
116
a uma pratique) é a seguinte: por que psicanalistas que, em outro espaço de sua prática
clínica, não hesitariam em dizer que praticam a psicanálise stricto sensu, quando se trata de
operar a clínica em uma instituição de um modo integralmente orientado pela psicanálise
titubeiam em dizer que sua prática é a própria psicanálise, ou antes, não titubeiam, mas
decidem nomeá-la de prática e não de psicanálise entre vários? Acaso supõem que o que
fazem não é psicanálise? Essa restrição, longe de salvaguardar o rigor do que seria uma
psicanálise propriamente dita – precaução que parece mover esta escolha – reafirma que
psicanálise propriamente dita é só aquela que se pratica em consultório, com neuróticos (ou
mesmo com psicóticos), mas a dois, no modelo de dispositivo freudiano construído para os
neuróticos. Não consideram que o muitos (modo como, seguindo uma indicação de Elia
(2009), preferimos traduzir o plusieurs, em vez de vários – já que este termo implica
variedade ali onde se trata de quantidade de uns, mais multiplicidade que variedade)
respeita a estrutura mesma do funcionamento psíquico dos sujeitos de que se trata nesta
clínica. Para nós, seria antes por razões clínicas do que sócio-institucionais que optamos
por um dispositivo coletivo, entre muitos, e por isso preferimos nomeá-lo de psicanálise
com muitos, que abordaremos em seus fundamentos na sub-seção que se segue.
3.2.3 A psicanálise com muitos
Os Centros de Atenção Psicossocial quando atendem a demanda da infância e da
adolescência recebem um “i” no final de sua sigla CAPS, tornando-se a sua nomenclatura
CAPSi. Assim como o CAPS para adultos, o CAPSi é um serviço de atenção diária
destinado a atender pacientes com comprometimento psíquico grave. Nessa categoria
estão incluídos os autistas, psicóticos, neuróticos graves e todas aquelas crianças e
adolescentes impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais (BRASIL, 2004).
O manual do CAPS afirma que a experiência permite indicar algumas situações que
favorecem as possibilidades de melhora de crianças e adolescentes, principalmente quando
o atendimento tem início o mais cedo possível, observando-se determinadas condições tais
como a permanência do paciente em seu meio familiar, a participação das famílias no
tratamento ao invés de tratar a criança ou adolescente isoladamente, o tratamento com
117
estratégias e objetivos múltiplos envolvendo ações não apenas da clínica, mas também
intersetoriais etc.
Na Reforma Psiquiátrica Brasileira a psicanálise teve uma presença muito mais
forte nos CAPSis pois foi por esta porta que ela entrou mais fortemente. Nesse tópico
reuniremos o pensamento de vários autores, psicanalistas e pesquisadores brasileiros que
atuam em instituição pública de Saúde Mental e que já demonstraram a viabilidade de uma
clínica institucional psicanalítica da psicose através do dispositivo estabelecido por Elia
(2009) e denominado psicanálise com muitos. A fundamentação teórico-clínica da
psicanálise com muitos foi de fundamental importância para nossa pesquisa.
O CAPSi Pequeno Hans, CAPSi que foi o primeiro do Brasil, e portanto também o
primeiro da rede municipal do Rio de Janeiro, é uma unidade de CAPSi concebida há 13
anos – abriu suas portas em setembro de 1998 – para ser um serviço cuja clínica fosse
inteira e estritamente dirigida pela Psicanálise. Este CAPSi foi o campo privilegiado onde
se pesquisou e se comprovou a validade do dispositivo da psicanálise com muitos na
clínica com crianças autistas e psicóticas, assim como posteriormente o CAPSi Eliza Santa
– Roza criado em 2001 também na cidade do Rio de Janeiro.
Outros serviços do campo da Saúde Mental da infância e adolescência existiram
antes do Pequeno Hans, mas não se constituíram como CAPSi, por não seguirem a
concepção territorial da Reforma e não se integrarem às diretrizes das políticas públicas
para a infância e adolescência, até mesmo porque existiam antes de que tais políticas
tivessem sido implantadas pelo Ministério da Saúde (SANTOS; ELIA, 2005).
A equipe do Pequeno Hans tomou por base dois princípios para dar direção ao seu
posicionamento que se resumem
em realizar o mais rigorosamente possível as diretrizes estabelecidas pelas políticas
públicas de Saúde Mental no que diz respeito a um centro de atenção psicossocial infantojuvenil, bem como realizar o mais rigorosamente possível as diretrizes teórico-clínicas e
ético-metodológicas da Psicanálise quanto ao que seja o exercício de sua práxis, tomando
como campo deste exercício uma unidade de saúde mental infanto-juvenil sob a forma
institucional de um CAPSI (SANTOS; ELIA, 2005, p. 111).
Afirmamos com Santos (2001) a originalidade do CAPSi Pequeno Hans na
sustentação do dispositivo analítico, enquanto experiência clínica estruturada pelo saber
psicanalítico tanto no âmbito da assistência pública quanto no campo da psicanálise, sendo
uma proposta única de sustentação do dispositivo analítico, enquanto um dispositivo capaz
de propiciar a emergência do sujeito. A proposta é única no sentido de propor uma só
118
clínica, a clínica psicanalítica, como sendo aquela que necessita do ato do analista para se
agenciar, e, no sentido de não haver, no momento de seu surgimento, nenhuma similar no
que se refere ao estabelecimento de um funcionamento que fosse integralmente
determinado pelo dispositivo analítico, sem ressalvas ou relativizações, e sem estabelecer
uma divisão entre o momento de atendimento realizado por um técnico em um consultório
instalado no interior do serviço e o das atividades e /ou oficinas terapêuticas que
constituíam as atividades da vida diária, tal como acontece em muitos CAPS do Brasil.
Pelo contrário, no Pequeno Hans o dispositivo analítico se encontra disposto em toda a
extensão da unidade clínica, é o dispositivo analítico ampliado (SANTOS, 2001; ELIA,
2006; PINTO, 2007).
Dizemos que o dispositivo analítico se estende a toda a unidade, pois ele não é o
consultório particular, não é coextensivo a um consultório particular. Freud recebeu seus
pacientes assim e a partir dessa forma pôde constituir uma estrutura da prática que nomeou
psicanálise, mas o dispositivo analítico é esta estrutura inventada por Freud e não se reduz
a nem se confunde com nenhuma configuração espacial. Sendo assim, esta estrutura pode
operar também em outros espaços que não o consultório e nos espaços públicos das
instituições.
O que os psicanalistas e pesquisadores que atuam com a psicanálise com muitos
verificam é que na clínica com muitos sujeitos, em um mesmo espaço, favorece-se a
emergência do sujeito. Em um dispositivo com muitos, desde que o psicanalista se
mantenha em seu lugar, o sujeito tem a chance de comparecer no laço com este analista na
posição de analisante. Embora permaneçam entre muitos pacientes e entre muitos técnicos
do CAPSi, ocorre com freqüência que dois se destaquem em posições respectivas de
analista e analisante, sem necessariamente estar em um consultório,em uma sala fechada
com quatro paredes, com apenas o analista em uma poltrona. Por vezes os técnicos poderão
optar pela configuração espacial definida por uma sala de consultório, porém ela não será
adotada por se achar que é a configuração espacial que determinará o que é setting
analítico ou que determinará se uma prática é psicanálise. É modificado o dispositivo
apenas em sua configuração espaço temporal, mas não em sua estrutura (ELIA, 2002).
Como assinalamos, uma das diferenças entre a prática entre vários e a psicanálise
entre muitos é que a primeira não considera que sua prática seja a psicanálise stricto sensu
afirmando apenas que aquilo que fazem é atravessado pela psicanálise. Já a psicanálise
entre muitos vai afirmar e fundamentar que o que fazem está dentro de todo rigor da
doutrina psicanalítica. Mas há outros fundamentos para esta distinção. Em termos teórico-
119
discursivos lacanianos, a prática entre vários é uma modalidade da psicanálise aplicada
(no caso, aplicada à clínica institucional), tal como Lacan a concebeu em seu Ato de
fundação da Escola Freudiana de Paris (LACAN, 2003a). Já para a psicanálise com
muitos, se ela é, tal como a prática entre vários, igualmente situada no campo da
psicanálise aplicada, na medida em que não se situa do lado da psicanálise pura (concebida
por Lacan em dualidade com a psicanálise aplicada no mesmo escrito citado), por outro
lado ela é concebida como uma prática clínica que se insere no campo da psicanálise em
intensão (e não em extensão), uma forma de tratamento psicanalítico em sentido estrito
mas que se exerce em dispositivo diverso do dispositivo freudiano clássico, estruturado em
afinidade com o modo de funcionamento da neurose.
A prática entre vários admite que em uma instituição pública uma prática
psicanalítica possa ser exercida, mas a psicanálise propriamente dita, ou seja, a experiência
que Lacan denominou de psicanálise em intensão só pode ocorrer entre psicanalista e
psicanalisante. Os teóricos da prática entre vários acreditam que a condição “psicanalista e
psicanalisante” não possa se estabelecer no ambiente institucional. No entanto, Elia (2009)
verificou que a relação analista-analisante se estabelece efetivamente em uma clínica
institucional cujo funcionamento é o dispositivo psicanalítico entre muitos. Constatou-sese que havia: A) demanda de uma intervenção estritamente analítica. Através dos casos
clínicos foi verificado dados tais como endereçamento transferencial, condições de vínculo
com o serviço, etc. B) Condições e disponibilidade do técnico em questão para dar uma
resposta adequada a esta demanda. C) Relação identificável como analista-analisante
destacada do fundo coletivo do entre muitos. Além disso, foi corroborado que o dispositivo
psicanalítico ampliado entre muitos pode ser considerado stricto sensu psicanalítico.
Os autores e pesquisadores brasileiros da psicanálise com muitos defendem que a
efetivação da possibilidade de polarização entre analista e analisante terá como base o fato
de que o “entre muitos” não é sinônimo de grupo que faz coesão ou unidade. O espaço
coletivo manterá a fragmentação necessária possibilitando que, um por um, cada técnico e
cada paciente possa ocupar posições subjetivas de maneira singular. Para que isso seja
possível, é condição fundamental e determinante que haja quem possa ocupar a posição de
psicanalista em tal dispositivo através de seu desejo (AMARAL; ELIA, 2008).
Na clínica com crianças psicóticas e mais particularmente com autistas, o espaço
intervalar que se traça entre um e outro técnico faz muitas vezes efeito de abertura do
sujeito autista ao estabelecimento de um laço transferencial do que simplesmente a
existência dos muitos técnicos em um mesmo espaço. É pela inclusão intervalar entre dois
120
ou mais técnicos nos movimentos, atos, relatos (quando há), na trama do sujeito, é no vão,
na hiância, que o sujeito encontra a possibilidade de se localizar e de se incluir no trabalho
para posteriormente incluir algum técnico. Este achado clínico tem sua fundamentação
teórica relacionada com o estatuto do Outro para o autista, que é constituído pela criança
autista como invasivo e avassalador. Assim sendo, o atendimento feito no caso de uma
criança autista pode ser muito opressivo e menos adequado em uma situação dual do que o
atendimento coletivo. O fato de no coletivo haver muitos técnicos, ao invés de
potencializar o Outro que estaria multiplicado por muitos, na verdade o divide. Para o
autista os técnicos representam divisão, fragmentação, parcialização do Outro, desde que
esses técnicos não façam time, grupo ou legião de técnicos (ELIA, 2009).
A psicanálise aplicada e em intensão que é realizada no CAPSi Pequeno Hans
orienta a direção clínica não sendo apenas uma prática que tem orientação psicanalítica,
mas como já dissemos, é a psicanálise stricto sensu. Isso quer dizer que o discurso da
psicanálise é a proa do trabalho (PEREIRA, 2009). Durante todo o ano de 2009 nosso
campo de pesquisa foi privilegiadamente o Pequeno Hans onde pudemos fazer a
verificação dos efeitos da psicanálise com muitos e a partir dessa experiência prosseguimos
a pesquisa em 2010 exclusivamente em CAPS com adultos visando a construção de uma
clínica nesse dispositivo.
3.3. A construção de uma clínica para o CAPS com adultos
Os analistas, comprometidos que são com sua práxis, estão constantemente
levantando questões sobre como a psicanálise entra em um dispositivo institucional. Em
que lugar ela se insere e qual a relação que, a partir daí, assume com as outras disciplinas
com que de alguma forma terá que realizar seu trabalho? Qual trabalho é possível neste
sentido para uma proposta que tome a psicanálise como direção? Como isso se realiza?
Quais as dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas que avançam na direção do que Lacan
designou como “psicanálise em extensão”, ao exercerem sua prática nas instituições,
sustentando o desejo do analista? Como se dão os encontros e desencontros entre o
discurso psicanalítico, o discurso médico e o discurso da Reforma psiquiátrica? Como
podemos pensar a direção do tratamento psicanalítico neste espaço coletivo? (ELIA 2006
b; RINALDI, 2003).
121
Apesar das ricas experiências apresentadas no tópico anterior sobre a psicanálise
nas instituições, são vários os equívocos e as objeções levantadas por alguns,
desconhecedores que são da psicanálise, no que diz respeito à prática da psicanálise nas
instituições. Primeiramente destacamos o discurso corrente de que é preciso acrescentar
“ingredientes” de outras linhas teóricas a prática dita analítica, sem os quais não será
possível algum resultado satisfatório no tratamento. Assim, alguns profissionais nomeiam
sua prática de “terapia de base analítica” e justificavam uma prática “híbrida”, acreditando
alcançar bons resultados com uma pitada de comportamentalismo, outra de humanismo,
acreditando ser possível atuar ao mesmo tempo com linhas teóricas tão diferentes como
psicanálise e humanismo, psicanálise e psicologia do comportamento, sujeito do
inconsciente e indivíduo etc. Não estamos falando aqui dos vários saberes que encontramos
no campo da Reforma Psiquiátrica, mas do profissional que em sua prática, tal como a
figura mitológica do minotauro, metade homem e metade touro, permanece preso em um
labirinto sem saída, em uma prática que nada tem a ver com a psicanálise. Sejamos
rigorosos como foi o criador da psicanálise e como aquele que fez o retorno a Freud. Lacan
em seu texto Variantes do tratamento padrão alerta
que variantes não quer dizer adaptação do tratamento nem variedade dos casos e
sim uma preocupação inquieta com a pureza nos meios e fins. Trata-se de um
rigor de alguma forma ético, fora do qual qualquer tratamento, mesmo recheado
de conhecimentos psicanalíticos, não pode ser senão psicoterapia (LACAN,
1998b, p. 326).
O tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial deve ter como direção tomar a
escuta do sujeito. Isso marca a diferença fundamental entre psicanálise e outras práticas,
norteadas por outros saberes, uma vez que nem mesmo a dimensão burocrática pode
colocar de lado a dimensão da clínica.
As contribuições que a psicanálise pode dar aos desafios enfrentados pela Reforma
Psiquiátrica passam, assim, pela ética da posição subjetiva e requer que façamos uma
clínica da singularidade, barrando qualquer resposta que pretenda tratar os casos como
gerais.
Outro equívoco em relação à clínica psicanalítica é o citado por Barreto (2004) em
que freqüentemente a psicanálise é vista como tendo uma função apenas nos extratos sócio
econômicos mais abastados. Para os acostumados com a visão dos consultórios
psicanalíticos de luxo com sessões caras é importante desmistificarem tal ponto de vista,
122
pois o próprio Freud recebeu pacientes que não tinham como pagar-lhe em dinheiro,
auxiliando inclusive alguns para que pudessem permanecer em Viena para o tratamento,
como por exemplo aconteceu com um de seus casos famosos, o paciente que ficou
conhecido como Homem dos lobos (ALBERTI, 2010).
Vemos que Freud (1987m, p. 210) também previu a inserção da psicanálise no
setor público, como vem acontecendo há algum tempo nos Centros de Atenção
Psicossocial e outros dispositivos da Reforma anteriores a esse dispositivo. Já no século
retrasado ele diz que
é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade
despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma
assistência à sua mente quanto o tem agora à ajuda oferecida pela cirurgia, e de
que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de
que, como esta, também não podem ser deixados aos cuidados impotentes de
membros individuais da comunidade. Quando isto ocorrer, haverá instituições ou
clínicas de pacientes externos, para os quais serão designados médicos
analiticamente preparados. (...) tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que
passe esses deveres. (...) Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos a isso.
Um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes.
O não elitismo da psicanálise também é defendido por Quinet (2007) afirmando não
haver nenhuma contra indicação dessa clínica no campo público. Porém, não se trata de
propor duas psicanálises como divulgaram na mídia alguns analistas tempos atrás, uma
gratuita para pobres por quatro meses que podem se prolongar por mais quatro e outra para
os ricos que continuaria a levar sua duração pelo tempo da subjetividade. Uma proposta
como esta não se fundamenta nos princípios éticos, teóricos e clínicos da psicanálise.
O sujeito do inconsciente, tomado pela psicanálise, é um sujeito sem qualidades ou
valorações essenciais e não admite atribuições sociais tais como negro/branco, pobre/rico,
culto/inculto, entre outras.
Por último citamos a idéia equivocada de que, quando aplicamos a psicanálise à
clínica institucional, não o fazemos em situações de crise (Barreto, 2004), mas apenas
como recurso sistemático e habitual de uma clínica fora-da-crise, de longo prazo, e depois
de estabelecidas condições mínimas para a escuta e a intervenção do psicanalista, ou seja, a
relativa “calmaria crônica” (ELIA, 2005 a, p.3) que sucede uma crise aguda, efeito,
geralmente, da medicação tranqüilizante ou dopante.
Aquilo com o que os técnicos dos CAPS se deparam no cotidiano do CAPS é com
“a miséria do mundo” (LACAN, 2003c, p. 516) em termos das condições sociais, situações
econômicas e afetivas daqueles que procuram os serviços públicos, bem como com
123
situações clínicas extremamente severas, seja de psicose ou de neurose grave, ou mesmo
outros estados que implicam em risco eminente de passagens ao ato (RINALDI, 2003).
Diante de tais situações, e mesmo na ausência do psiquiatra que atendendo as
expectativas, prescreveria uma medicação ou outro método de contensão, o psicanalista,
mesmo não possuindo um saber prévio sobre o paciente em crise, é chamado a dar uma
resposta que esteja sustentada por um eixo ético, teórico e clínico.
No que diz respeito ao tratamento à crise, é bem comum que excetuando-se os
médicos e os técnicos de enfermagem, o restante da equipe do CAPS se exima de ter
qualquer ação, acreditando que diante do paciente agitado, verborréico, com alucinações
visuais e auditivas e muitas vezes em péssimas condições de higiene não há nada que se
possa fazer.
Não poucas vezes presenciamos o atendimento de pacientes em crise que foram
encaminhados diretamente para o psiquiatra, como se o responsável pelo acolhimento não
tivesse nada a fazer nesses casos. O psiquiatra por sua vez não escutava o paciente, a não
ser para constatar que ele delirava, alucinava ou apresentava outro sintoma
fenomenológico qualquer. Na seqüência prescrevia uma medicação para a crise e que por
dezenas de vezes foi realizada através da coação pela presença de um ou mais elementos da
guarda municipal que foi acionada com essa intenção.
Como ilustração, citamos o caso de Sônia, psicótica, usuária antiga do CAPS,
considerada de difícil manejo por toda equipe que foi trazida em crise pela guarda
municipal para ser atendida pelo CAPS. Como não havia médico presente, a equipe, a
começar da recepção e do técnico responsável pelo o acolhimento naquele dia, não se
dispôs a recebê-la, como se não houvesse nenhuma abordagem a ser discutida e/ou
colocada em ação na ausência do médico, contrariando um princípio básico do CAPS que é
o acolhimento universal. A paciente foi encaminhada à Unidade de Pronto Atendimento e
só voltou ao CAPS no dia seguinte, quando o médico estava presente.
Em contrapartida contrariando a hegemonia médica, houve outra ocasião em que
Julia chegou em surto maníaco, apresentando grande agitação, recusa ao tratamento,
apresentando risco de morte, tanto dela como de terceiros, já que se atirava na frente dos
carros com um bebê que havia pego do colo de uma transeunte, em um dia que também
não havia psiquiatra no CAPS. O técnico responsável pelo acolhimento éramos nós e
sustentados pela clínica da psicanálise e com o apoio da equipe, conseguimos manejar o
caso a ponto da paciente conseguir ser medicada, não à força, mas com sua concordância.
Já nesse primeiro atendimento conseguimos estabelecer uma relação transferencial que se
124
prolongou durante todos os anos que a paciente permaneceu no CAPS. O atendimento
durou horas e era conduzido ora na recepção, ora na rua, ora na sala, de acordo com o
movimento da paciente que ao final, numa referência à sua psiquiatra de cabelo loiro,
disse: “a Dra. Carmem é meu anjo loiro. Você é meu anjo moreno”. A partir dessa frase a
paciente que antes não queria ficar no CAPS pôde aceitar vir na permanência diária. Com
isso evitou-se encaminhá-la para internação psiquiátrica, pedido veemente da família, claro
que não sem um longo trabalho de escuta de seus membros.
Lacan (1998d) nos Escritos, no texto A direção do tratamento e os princípios do
seu poder, através de uma metáfora vai apontar três níveis da prática psicanalítica que são
a tática, a estratégia e a política. Ele vai dizer que o analisante não é o único a contribuir
com sua quota. Na empreitada analítica o analista também terá que pagar, e Lacan vai
estruturar em três níveis esse pagamento, referindo cada um a um dos três níveis da
operação militar, estabelecendo através desses três níveis a liberdade de ação do
psicanalista. Parece-nos que por vezes, diante da psicose, o analista vislumbra uma quota
ainda mais alta, já que terá outro manejo no que diz respeito à interpretação, transferência e
ao ser do analista.
Lacan conclama que diante da psicose o analista não recue, porém, é claro que
podemos estar diante desta clínica e, dependendo do manejo ou da falta dele, recuar, pois
não recuar, não será simplesmente estar diante do paciente, recebê-lo em uma sala ou em
uma oficina, mas poder manejar a clínica da psicose com todos os percalços que ela
apresenta.
Dentro do que temos pensado sobre uma clínica antimanicomial apontamos com
Lobosque (1997) os princípios da singularidade, limite e articulação. O princípio da
singularidade não deve ser confundido com o privado ou com o individual. Trata-se de
uma singularidade que não se deixa amarrar por perspectivas de unidade ou totalização,
mas da produção de um coletivo constituído pela articulação de diversas singularidades
entre si. Trata-se de interpelar tal singularidade convidando o sujeito a sustentá-la com o
estilo que é seu.
José vasculhava os lixos da cidade e sempre chegava ao CAPS mal cheiroso, sujo.
Além disso, irritava as auxiliares porque sempre guardava os objetos que pegava no lixo
dentro de seu armário do CAPS. Por mais que fosse instruído o comportamento de José
não apresentava mudanças, pois o valor socialmente aceito de andar limpo, não mexer nos
lixos por fazer mal a saúde e etc. não era uma realidade compartilhada por José. Certa
ocasião um membro da equipe pergunta a José o que ele tanto procurava no lixo. José
125
responde que estava atrás de uma aliança e conta a história de uma antiga noiva que ele
teve. A partir desse relato feito por José pode-se ser trabalhado algo da singularidade desse
sujeito. Com o tempo José começa a fazer várias alianças de papel, com canudos plásticos
e até de material de latinhas de refrigerante nas oficinas que participava no CAPS. Parou
de vasculhar o lixo atrás da aliança e pôde construir outras alianças não só nas oficinas,
mas no tratamento no CAPS e nas relações com as pessoas do seu convívio. Não foi
através do ensino de boas maneiras, mas através de uma escuta que isto se tornou possível.
Afirmar que “cada caso é um caso” é ficar no óbvio. A clínica antimanicomial deve
ser uma clínica que convide o sujeito a sustentar sua diferença, sem excluir-se do social
contrariamente às clínicas que visam adaptar o sujeito ao meio social, diluindo o particular
no geral. O tratamento tem como direção levar o sujeito a seguir o caminho que lhe é
próprio, ao mesmo tempo em que o comporta nos limites da cultura.
Seguindo a recomendação de Freud em seu texto (1987e) Recomendações aos
médicos que exercem a psicanálise, o trabalhador de Saúde Mental deve saber que
tratamento e investigação devem ser coincidentes. Dessa maneira a clínica será tomada
como o lugar de produção do saber e não de sua aplicação.
Há outra recomendação freudiana que relembramos aqui que será “tomar cada caso
como se fosse o primeiro”, já que o saber do inconsciente não será apreensível por uma
mera aplicação do saber acumulado pelo profissional. O saber do inconsciente se
recolocará a cada vez de maneira inédita devendo ser lido segundo uma estrutura que, por
sua vez, não coincidirá com o saber universal e genérico da ciência clássica. Esse saber
incluirá necessariamente o real inapreensível pelo universal.
O movimento antimanicomial e sua clínica devem levar em conta o problema do
limite. A cultura tradicionalmente impõe limites ao que a loucura traz de excessivo ou
desordenado. Não é desse limite que estamos falando. Falamos do limite como construção
por parte do clínico a partir de um problema lógico e não de um imperativo moral. Assim
podemos dizer que uma intervenção será antimanicomial
quando o recurso às diversas formas e aos graus de contenção – a medicação, a internação
eventual, a freqüentação de um serviço de saúde mental- não se fizer pelo viés da
autoridade, mas como exercício de “fazer caber”; quando buscar-se o traçado de um
contorno, e não o processamento de uma exclusão (LOBOSQUE, 1997, p. 23).
Tomamos como exemplo o caso da paciente Lia que nos chegou em um dos dias
que estávamos responsáveis pelo acolhimento de pacientes. Uma das vizinhas da paciente
procurou o CAPS bastante preocupada com o que vinha acontecendo há alguns dias. Disse-
126
nos que ela e outros vizinhos não sabiam mais o que fazer. A paciente estava falando alto
durante todo tempo, incluindo em várias horas da noite. Chegou a agredir algumas pessoas,
um homem em um supermercado e uma criança de 08 anos, ambos através de empurrões.
A paciente estava sem tratamento fazia algum tempo. Fomos informados por alguns
membros da equipe do CAPS que a paciente era resistente a tomar medicação. Morava
com o filho que também tinha problemas mentais. É de outra nacionalidade. Veio para o
Brasil com o ex-marido de quem se separou faz alguns anos. Não possuia nenhum outro
parente ou amigo na cidade. As outras vezes que tinha vindo ao CAPS foi trazida pela
Polícia Militar ou Guarda Municipal e acabou sendo “forçada” a tomar a medicação devido
a presença de membros dessas instituições. Tais episódios provocaram mais resistência a
que ela viesse aderir a um tratamento no CAPS. Enquanto alguns membros da equipe se
encaminham para a residência da paciente na intenção de trazê-la ao CAPS sem a ajuda da
Guarda Municipal discutimos com o psiquiatra da equipe como poderíamos intervir. Ele
nos confirma que já atendeu a paciente por várias vezes, sempre trazida pela Polícia e que
ela muito provavelmente resistiria a se consultar com ele. Conta-nos que em certa ocasião a
paciente esteve em vias de agredir um membro de sua família que estava com ele em uma
das ruas da cidade. Decidimos que diante do relatado o psiquiatra não atenderia a paciente,
mas apenas nós e a partir do nosso atendimento o restante da equipe daria o suporte
indireto.
Não tínhamos uma resposta pronta sobre o que fazer com aquele caso que
mobilizava toda uma vizinhança, que apresentava riscos para as pessoas e para a paciente
mas dispomos a ouví-la no momento em que ela chegou ao CAPS e aceitou a nos
acompanhar até o nosso consultório. Contou-nos que era de fora e que não entendia muito
bem as regras do Brasil. Quer saber se pode reclamar das coisas que estão acontecendo
com ela. Disse-nos que queria fazer denúncias e que nós levássemos para a televisão.
Depois de algum tempo percebemos que ela nos identifica como Fátima Bernardes, a
âncora do Jornal Nacional da Rede Globo e por esta razão quer nos contar as coisas
estranhas que lhe acontecem. Não sabe se é a água, se é o ar, mas nesse país é tudo muito
estranho. Lia depois de certo tempo se sente ameaçada e intrigada. Quer saber o que
queremos com ela. Pergunta se temos marido, se gostamos de mulher, se queremos alguma
coisa com ela. Ela nos diz: “Cubra esses peitos. Você tem peito e eu não. Não quero ver
esses peitos. O que você quer comigo?”. Aos poucos se tranqüiliza. Ainda não entende o
nosso desejo de analista, mas aceita continuar conversando conosco e falar daquilo que lhe
perturba. Admite que anda “nervosa”. Fala que está com fome. Aceita tomar café e pão
127
conosco. Depois de quase uma hora de escuta pela primeira vez aceita espontaneamente
tomar alguma medicação desde que seja pela nossa mão. Nosso colega psiquiatra prescreve
a medicação, nós entregamos a Lia que toma e em seguida concorda em voltar para
conversar conosco no outro dia. No caso relatado, se fosse seguido o que chamaríamos de
habitual, ou seja, o paciente chegar em crise, ser atendido pelo plantonista que avalia a
necessidade também de avaliação psiquiátrica, ser avaliado psiquiatra que prescreve a
medicação, ser encaminhado para a farmácia e etc. não teríamos tido uma conduta
antimanicomial, não teríamos promovido uma inclusão, mas de alguma forma repetido o
modelo manicomial. Por se tratar de um caso recente, não sabemos quando Lia aceitará a
consulta com o psiquiatra e as demais intervenções do restante da equipe, mas sabemos que
nesse primeiro momento a resposta que construímos para esse caso específico, através da
direção dada pela paciente, foi o que possibilitou algum trabalho possível.
Ao questionar a exclusão, a clínica antimanicomial faz mais do que simplesmente
incluir o louco. Tal condução leva a cultura a conviver com uma certa falta de cabimento
levando ela também a refazer seus limites. Não é possível a desconstrução dos manicômios
sem que a sociedade se reestruture, sem que os CAPS diante de cada caso, a cada vez
posso dar uma resposta singular.
Apontamos como terceiro princípio, a articulação. Podemos dizer que cabe a clínica
antimanicomial o estabelecimento de parcerias com outros setores, articulando-se com
setores que tomem posição política em prol da cidadania, como preconizou a IV
Conferência Municipal de Saúde, oficialmente intersetorial. Além disso, a clínica precisa
levar em consideração as configurações da ordem pública em que se inscreve,
modificando-as quando necessário, já que ocupar-se das questões públicas pode garantir a
possibilidade do trabalho com o paciente.
Exemplificamos com uma situação vivida pelo CAPS recentemente. A empresa de
ônibus que fazia o transporte dentro do município implantou a sistema de cartão eletrônico
para todos os passageiros. Com isto, os pacientes que tinham isenção de pagamento de
passagem tiveram que passar por uma perícia médica contratada pela empresa para
avaliação se continuariam a ser beneficiados com a isenção ou não. Muitos deles, apesar do
laudo psiquiátrico, por encontrarem-se estabilizados não conseguiram o benefício por não
poder ser encontrado nenhum problema visível como acontecia com os portadores de
problemas físicos. Isso foi de grande transtorno para os pacientes, pois no período de
transição a freqüência dos pacientes no CAPS ficou ameaçada. Foi necessário a
intervenção da equipe junto a Secretaria de Assistência Social para poder garantir que o
128
tratamento não fosse interrompido e envio de proposta à prefeitura para que a decisão da
isenção de pagamento do transporte público ficasse na mão da prefeitura municipal, através
de criação de lei municipal, e não da empresa de transporte urbano licitadora.
Passaremos a analisar outros aspectos importantes do cotidiano dos Centros de
Atenção Psicossocial e proporemos quatro pilares para a construção de uma clínica efetiva
para este dispositivo: o diagnóstico estrutural, uma ética para o sujeito, a psicanálise
coletiva e a dimensão clínica de rede.
3.3.1 O diagnóstico estrutural
Por ocasião da tragédia acontecida no bairro de Realengo, Rio de Janeiro, em abril
de 2011, exaustivamente noticiado pela mídia, onde um jovem de nome Wellington, entrou
em uma escola e disparou tiros em crianças, matando várias delas e ferindo inúmeras e se
matando em seguida, vimos vários “especialistas” emitirem opiniões através da imprensa
sobre o diagnóstico do protagonista, alguns deles afirmando que ele apresentava
"transtorno de personalidade" e outros, “psicose”.
Em princípio, ambas as posições apresentadas tinham em comum o que podemos
classificar por um "furor diagnosticandi”, ou seja, a exigência de dizer o que o Wellington
era ou o que ele tinha, como se isso produzisse algum saber de real valor na compreensão
dos fatos; e um saber a priori, isto é, que se constitui antes e fora do que o sujeito em
questão possa dizer ou do que se possa recolher dele com mais atenção, sem precipitação
em conhecer, coisa que só poderia ter sido feita se o autor dos crimes estivesse vivo (ELIA,
2011a). Já em outros pontos, os dois diagnósticos, “transtorno de personalidade” e
“psicose” são muito diversos. Trata-se não apenas de pontos de vista diferentes, mas cada
um deles está
contextualizado por um caldo ideológico, histórico, político-social e ético que precisa ser
considerado para que não caiamos em uma ilusão de purismo ideativo, meramente
conceitual (até porque um desses pontos de vista, o do DSM-IV, é deliberadamente anticonceitual), de neutralidade científica.” (ELIA, 2011a).
O que nos horroriza e angustia, como o episódio de Realengo e várias situações que
nos chegam nos atendimentos de urgências do CAPS, como passagens ao ato,
automutilações, tentativas de suicídio, homicídios e etc., na maioria das vezes não tem
nem saber nem palavras, pelo menos não imediatamente, e ao invés de obturarmos com um
129
falso saber precisamos aprender a suportar um pouco mais o horror e a necessidade de
respostas prontas. Só assim existirá a possibilidade de poder entender o que puder ser
entendido, o que nunca abrangerá compreender tudo. Lacan assinala:
comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da idéia do mal-entendido
fundamental. [...] É sempre no momento em que eles compreenderam, em que se
precipitaram para satisfazer o caso com uma compreensão, que eles falharam na
interpretação que convinha ou não fazer (LACAN, 1985, p. 30-31).
Muitas vezes nós que trabalhamos em um CAPS não sabemos o que fazer diante de
um acontecimento, de um surto psicótico, de uma passagem ao ato. Às vezes a única coisa
que nos resta é escutar e suportar o horror até que o paciente, e não nós, possa construir um
saber. As situações vividas em um CAPS devem fazer com que os profissionais se
aproximem de um caso com outros instrumentos que não os habituais marcados pelo
relógio, pela agenda de marcação de consultas ou pelo calendário. O tempo de nossa
prática bate em função do acontecimento. Não bate com o tempo do relógio de ponto, nem
com a grade dos itens da burocracia, nem com o que está pré-estabelecido em um Plano
Terapêutico do paciente ou se amolda às tentativas de construção de protocolos que se
ajustem a todos os casos.
Quando propomos o fim dos manicômios não se trata apenas do fim dos prédios e
dos muros, mas do fim de um olhar que não suporta a diferença. O modelo manicomial não
se resume apenas ao hospital psiquiátrico, mas inclui também um certo modo de olhar, um
certo modo de saber sobre o louco com o qual precisamos romper de forma radical.
Não podemos compactuar com o pensamento de que um episódio tão monstruoso
como este de Realengo, se enquadre em uma categoria clínica que se possa identificar
assim tão rápido, sem elementos clínicos, como fizeram a mídia e os vários “especialistas”
que se posicionaram com um certo modo de olhar e com um certo modo de saber sobre
Wellington e ainda,com um certo modo de olhar e saber sobre os efeitos e conseqüências
que teriam as vítimas da tragédia, um saber que não teve tempo para ser construído, posto
não ter havido tempo para compreender e muito menos concluir. Tal posicionamento é
uma posição que classificamos como manicomial.
Quando os especialistas afirmaram que o Wellington tinha transtorno de
personalidade implicou algumas conseqüências. Na opinião de Elia (2011) primeiramente
afastou a possibilidade de ser aplicada a um ato irracional como aquele qualquer lógica
racional e o inseriu em uma classificação deliberadamente a-teórica, não etiológica, que é a
do DSM-IV que é assumidamente descritivo, impedindo sua inteligibilidade possível. De
130
igual maneira admitiu uma seriação, ou seja, outros transtornados poderiam via a cometer
os mesmos atos, o que não é impossível de acontecer, mas nem por isso é provável. O que
essa afirmação acarretou foi a retirada da singularidade, da especificidade do ato de
Wellington, que, uma vez devidamente lida, constituiria o único recurso confiável, do
ponto de vista de uma cientificidade real pouco praticada nos dias de hoje, de intervir em
casos que venham a apresentar aspectos homólogos aos que exibia Wellington.
Pensar em psicose, em contrapartida na opinião do autor anteriormente citado, com
o cuidado de não afirmá-la nem diagnosticar o assassino como fizeram os ditos
especialistas, não só respeita alguns elementos delirantes, que ele reiteradamente faz em
escritos e depoimentos auto-gravados, como abre um campo no qual a inteligibilidade
teórico-clínica da boa e velha psiquiatria que era voltada para o saber extraído da clínica e
da psicanálise aplicada ao campo das psicoses seria preservada e, o que é mais importante,
garantiria que o caso pudesse ser, no tempo devido, situado em sua singularidade não
serial, estancando a paranóia social que foi produzida com todo apoio da mídia.
Recorremos ao episódio de Realengo para estabelecer um paralelo ao que muitas
vezes tem acontecido com os pacientes da Reforma. É necessário discutir as concepções de
doença mental que atravessam o campo da assistência em Saúde Mental, pois as estratégias
de tratamento e cuidado clínico, institucional e social dependem estritamente das
concepções que as sustentam. Nas equipes de Saúde Mental existe uma lógica marcada
pelo reducionismo biologizante da abordagem dos transtornos mentais associada à
prescrição indiscriminada de psicofármacos constituindo uma estratégia terapêutica única e
universal (LOBOSQUE, 1999). A tendência é reduzir o tratamento à remissão desses
sintomas e excluir a loucura como um arranjo que diz respeito à existência de um sujeito e
às questões que estão postas para todo sujeito humano (TENÓRIO, 2008).
Se os neurolépticos são indispensáveis para o tratamento dos sintomas
psicóticos, eles são impotentes para obter qualquer modificação estrutural; se,
como todas as drogas, atuam no organismo, funcionam tanto melhor quando sua
prescrição leva em conta a questão do sujeito (LOBOSQUE, 1999).
É pertinente citar o que nos disse Luiz em determinada ocasião, levando-se em
conta toda exposição anterior sobre o delírio já realizado no capítulo anterior. Ele nos diz:
“Eu tinha muita historia pra lhe contar, mas a injeção que me deram fez tudo acabar.”
Rinaldi (2003) avança a discussão dizendo que não podemos deixar de levar em
conta a importância que o discurso médico ainda ocupa na configuração dos Centros de
Atenção Psicossocial e no imaginário de todos os envolvidos nas atividades do CAPS.
131
Aponta para a forma como pacientes, familiares e membros da equipe se relacionam com
esse discurso no cotidiano do CAPS, seja através da forte demanda de tratamento
medicamentoso por parte dos usuários e seus familiares, seja através das intervenções
terapêuticas de controle de psicotrópicos levadas a efeito por parte da equipe, ou ainda das
dificuldades encontradas no trabalho clínico quando da eventual ausência de psiquiatras
nos serviços.
Um bom exemplo disso é o pedido que nos chegou certa vez para acolher uma
paciente que havia acabado de chegar ao CAPS. “Quero que você atenda a Cristina que
está chegando aqui pela primeira vez em crise e eu estou preocupada porque ela é sobrinha
do José, que é psicótico.” A suposição de quem estava nos encaminhando o caso era de que
a paciente provavelmente fosse uma psicótica, já que tinha em sua família uma pessoa com
esse diagnóstico, ou seja, uma suposição genética na etiologia da psicose, que exclui as
condições de determinação estrutural da subjetividade. Não rechaçamos a demanda, mas
acolhemos sem ficar na posição de confronto de saberes e suposições apenas perguntando
ao técnico o porquê dessa hipótese. O técnico sorriu e nos respondeu: “É mesmo, não tem
nada a ver uma coisa com a outra.”
Tal pensamento é extremamente presente na rede intersetorial como ficou evidente
em determinada ocasião em que equipes de PSFs se recusaram a comparecer à reunião de
apoio matricial do CAPS onde realizamos nossa pesquisa, pelo motivo do psiquiatra se
encontrar de férias. Ou seja, se não há possibilidade de discutir a conduta medicamentosa,
não havia o que se discutir.
A psicose não é um caos ou uma desordem, mas o que Lacan chama “de uma ordem
do sujeito”. Esta ordem certamente é subvertida em relação à ordem do neurótico, porém
assim mesmo uma ordem. Na direção desta tese lacaniana, é importante não ficar na
postura de bom samaritano em relação ao psicótico, sendo condescendente ou adepto da
posição de “segregação política da anomalia” (SOLER, 2007), além de impedir que
consideremos a psicose como um fenômeno orgânico.
Sabemos que nos manuais de diagnóstico, como o Manual de Diagnóstico e
Estatística da Associação Norte–Americana de Psiquiatria (DSM), em sua versão IV e a
Classificação Internacional das Doenças (CID) em sua versão X, não se encontram mais os
tipos clínicos clássicos da neurose, como histeria, neurose obsessiva e fobia e dos tipos
clínicos da psicose encontramos apenas a esquizofrenia, e não mais a paranóia e a
melancolia. As doenças da psiquiatria clássica foram substituídas por transtornos,
subtraindo-se assim a possibilidade de uma clínica onde cada caso seja efetivamente um
132
caso e onde os fenômenos sejam considerados sintomas, ou seja, formações de
compromisso entre diversas instâncias do aparelho psíquico (QUINET, 2008).
Olivier-Martin (1989 apud, Quinet, 2008), defende que é discutível a decisão de
ateorismo dos autores do DSM assim como uma classificação fundada na prática
terapêutica. Faz-se necessário avaliar, diagnosticar, pensar no tratamento baseando-se nos
sintomas do paciente e suas relações com as estruturas clínicas. O que observamos hoje é
uma clara inversão do processo, onde os medicamentos determinam os diagnósticos.
A nova psiquiatria parece não estar voltada para o saber que se extrai da clínica,
como sustenta Nancy Andreasen, uma das grandes defensoras e apologistas do DSM-IV
anteriormente e hoje uma de suas maiores críticas, afirmando que este Manual destruiu a
fenomenologia na América (ANDREASEN, 2006, apud Elia, 2011).
Nos CAPS há dificuldade por parte das equipes em diferenciar a neurose da
psicose, no sentido de não valorizar a construção de um diagnóstico para com base nele,
definir a conduta do caso. Os membros da equipe sabem descrever os fenômenos
apresentados pelo paciente, mas se surpreendem se questionados qual o diagnóstico do
caso.
Muitos técnicos dos CAPS acabam por tratar os pacientes neuróticos e psicóticos da
mesma maneira, não levando em conta a diferença entre as duas clínicas, exceto na
identificação dos fenômenos da psicose que supõem não existir na neurose. Ora os técnicos
tentam “corrigir” o juízo de realidade do psicótico, ora embarcam num “delírio coletivo”
com intervenções que não visam nenhum objetivo clínico.
A categoria “bordeline” ou expressões semelhantes são usadas com freqüência para
definir os pacientes que supostamente não se encaixam no campo da neurose ou no campo
da psicose. Para muitos psiquiatras e psicólogos, estes pacientes encontram-se num estado
limite entre uma e outra categoria, como que podendo tomar uma ou outra direção a
qualquer momento ou ficar no meio do caminho para sempre. Também é comum que um
mesmo paciente receba o diagnóstico de esquizofrenia somado a outros do campo da
neurose, ou seja, um mesmo paciente portando diagnóstico de duas estruturas psíquicas
completamente diferentes. Como exemplo disso mencionamos a situação em que se
encontrava na anotação feita por um dos técnicos do CAPS em vários prontuários:
Hipótese diagnóstica: F20 (esquizofrenia) + F48(outros transtornos neuróticos) ou F20.0
(esquizofrenia paranóide) + F48.8 (Outros transtornos neuróticos não especificados).
133
Para que o diagnóstico não seja uma etiqueta ou um simples procedimento
classificatório digno de um ‘jardim das espécies’ apropriado para a botânica ou
para o zoológico é necessário que ele cumpra a função de remeter a estrutura que
o condiciona. Como não temos na psiquiatria a autópsia que venha confirmar a
doença da qual o sintoma seria o sinal, é na construção do caso clínico -a partir
de um saber sobre a subjetividade particular de cada paciente que a psicanálise
permite elaborar- que um diagnóstico aparecerá como conclusão do processo de
investigação (QUINET, 2008).
Ao construir as entidades clínicas da psicanálise, Freud tomou como base a
nosografia da psiquiatria clássica. Soler (1996, apud Quinet, 2008), assevera que as
categorias usadas pelos psicanalistas provêm da psiquiatria clássica e que a cada categoria
pode-se fazer uma correspondência com um nome da história pré-psicanalítica. Cita
Kraepelin para a paranóia, Bleuler para a esquizofrenia, Krafft-Ebing para a perversão e
Charcot para a neurose. Quinet defende a inclusão do sintoma no diagnóstico, sintoma que
remete à estrutura e ao sujeito, pois o que vemos atualmente é uma clínica dos transtornos,
sendo que o tratamento corresponderia à supressão desse transtorno, um retorno à norma
da função do órgão. Essa lógica vai ao encontro do pensamento que parece dominante na
Reforma Psiquiátrica Brasileira, onde a direção muitas vezes é o rápido atendimento e
eliminação do transtorno, com sua eficaz dissolução e uniformização no meio social. Com
isso tem-se a impressão de que o que se pretende é fazer do louco um igual, denegando a
diferença, quando o que se trata é da inclusão da diferença, pois por mais que se tente
domá-la a loucura não se submete a esses artifícios.
O paciente da Reforma é um “politranstornado” (QUINET, 2006) e nessa direção
de pensamento recebe uma fieira de “CIDs” acompanhados de uma quantidade de
medicação que com certeza vai ao encontro do interesse das indústrias farmacêuticas, que
não se entristecem com a saída dos pacientes dos manicômios, sendo inclusive
patrocinadoras de eventos, como o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, já que
continuam com um grande filão vindo das medicações receitadas para os pacientes
atendidos nos CAPS. São inegáveis os avanços das neurociências em oferecer
medicamentos mais modernos e com menos efeitos colaterais, porém o tratamento
medicamentoso não pode substituir as tentativas de cura que são inerentes ao sujeito. Uma
das questões levantadas por Quinet (2006) é até que ponto o desenvolvimento das
neurociências e da psicofarmacologia não tem se prestado ao discurso do capitalista? A
evolução da ciência na psiquiatria estaria produzindo os “males”, pseudos novos males,
para que sejam tratados pelos medicamentos que ela fabrica.
134
Restituir a função diagnóstica nos CAPS seja ele realizado pelo psiquiatra,
psicólogo, musicoterapeuta, psicanalista, por qualquer outro técnico, ou mais corretamente
falando a partir do que já foi exposto, construindo um diagnóstico a partir da relação
transferencial do sujeito com toda a equipe, é ir contra a dissolução da clínica, que tem sido
substituída pelo binômio “norma x transtorno”. Na direção contrária, deve-se privilegiar o
sintoma como uma manifestação do sujeito. O caráter da medicação será paliativo e nãoresolutivo do sofrimento mental. Não é possível existir clínica sem levar em conta a
subjetividade. “Eis aí a ética da diferença, que a psicanálise contrapõe à prática normativa
da psiquiatria enquanto serva do capital” (QUINET, 2006).
O mundo contemporâneo carece de discussão epistemológica, carece de politização
das idéias e práticas. Na democracia mais real e verdadeira, não se trata apenas de fingir de
acolhemos "diferenças" e "convivemos pacificamente com elas", só para eliminá-las por
trás da cena, nos bastidores do poder. Travar um debate democrático é passar da
ingenuidade servil ao poder, a uma posição crítica e combativa, que defende pontos de
vista e combate outros, apontando-lhes as intenções de um saber "científico" que jamais é
neutro, sem querer, no entanto eliminá-los pela força bruta ou pela do dinheiro dos
laboratórios farmacêuticos que compram cientistas, revistas ditas científicas e jornais e
revistas (ELIA, 2011a).
Retomemos a questão do desencadeamento da crise psicótica trabalhada na seção 2
através de um fragmento clínico.
Anita, 18 anos, psicótica, chega ao CAPS acompanhada do pai. A entrevista no
acolhimento transcorreu sem ficarmos investigando os antecedentes hereditários ou os
distúrbios da senso- percepção. A paciente relata ouvir vozes falando na sua cabeça e ver
coisas que lhe assustam. Menciona que não é deste mundo. Apresenta idéias de autoextermínio e também desejo de matar seu filho nascido há poucos meses. É mãe solteira.
Mora com o pai e os irmãos em uma casa extremamente desorganizada e suja. A mãe
faleceu quando ela tinha sete anos. Até um mês antes de procurar o CAPS não apresentava
nenhuma manifestação da psicose.
Sou um monstro e meu filho também. Nós dois não pertencemos a esse mundo.
Quero me jogar nas águas junto com ele pra voltar ao meu lugar. Esse homem aí,
esse tal de seu Vítor diz que é meu pai, mas não é. Ele é pai dos meus irmãos...
Não, eles também não são meus irmãos. Não quero dar de comer pra meu filho.
Tem uma coisa por dentro que me comanda [...] Na televisão começou a aparecer
umas coisas estranhas que só eu vejo. Fiquei com medo e mandei desligar... Tem
uma voz falando na minha cabeça.
135
Podemos supor que Anita não fez a operação da metáfora paterna, ficando o Nomedo-Pai foracluido, mas que mesmo assim a paciente estava sustentada em “bengalas”
imaginárias. Durante o tratamento com a paciente percebemos que essas “bengalas” tinham
a ver com seu pai, que após a morte da mãe de Anita tem com ela uma relação atípica,
havendo inclusive suspeitas de que mantivessem relações sexuais.
Nem todos os tamboretes tem quatro pés. Há os que ficam em pé com três.
Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um senão a coisa vai mal [...]
É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique
firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito, numa certa encruzilhada
de sua história biográfica, é confrontado com esse defeito que existe desde sempre
(LACAN, 1985, p. 231).
Esse Nome-do-Pai “jamais advindo no lugar do Outro” (LACAN, 1998e, p. 584)
foi invocado através da irrupção de um certo acontecimento na vida de Anita, um dado
advindo do real que desencadeou a psicose. Anita engravidou de um homem com quem
ela estava saindo e algum tempo após o parto veio a apresentar alucinações visuais e
auditivas. Podemos supor que após o nascimento do filho Anita se encontra com Um-pai
“no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes” (LACAN, 1998e, p. 584).
É
interessante observar que Lacan denomina de Um-pai aquilo com que o sujeito se encontra
no desencadeamento da psicose. Um-pai é o que pode evocar o Nome-do-Pai, é algo da
ordem do pai, mas é Um-[P], justamente um artigo-definido, por não poder ser o Nome-do[Pai], um Pai com artigo e sem nome. Esse Um-pai, no caso de Anita, foi o pai de seu filho
que se a se situou na posição terceira na relação de Anita com seu bebê, que tinha por base
o par a – a’. Podemos supor que um “ímpar” foi introduzido em um par, fazendo surgir
uma pergunta sem resposta, já que os arranjos anteriores de Anita, seu “banquinho de três
pernas” foram insuficientes nesse momento. Seu mundo se abala completamente. Daí uma
de suas frases durante a primeira entrevista: “nós dois (ela e o filho) não pertencemos a
esse mundo. Quero me jogar nas águas junto com ele pra voltar ao meu lugar”.
O diagnóstico estrutural deve ser buscado no registro do simbólico, pois é nesse
registro que são articuladas a questão fundamental do sujeito quando da travessia do
complexo de Édipo. Pelo simbólico podemos constatar três modos de negação do Édipo
correspondente às três estruturas clínicas. O modo do neurótico através do recalque
(Verdrangung), o do perverso pelo desmentido (Verleugnung) e a foraclusão (Verwerfung)
que é o modo do psicótico (QUINET, 1997) como o de Anita acima exposto.
136
3.3.2 Uma ética para o sujeito
A estrutura de linguagem do inconsciente é o que faz Lacan definir sua ética do
bem dizer. Essa é a ética que tem relação com o sujeito do inconsciente. Sendo assim, não
vamos ditar regras, normas, ensinar um modo de agir segundo um universal válido para
todos. A ética da psicanálise é uma ética que leva o sujeito a se implicar, comprometer-se
com seu sintoma. Assim prevenido o técnico do CAPS pode evitar o furor sanandi de
exigir a qualquer custo a suspensão do sintoma. O sintoma não deve ser combatido, pois é
lá que está o sujeito. Ao invés de atacá-lo ele deve ser abordado como uma manifestação
subjetiva para assim fazer emergir o sujeito.
No texto Projeto para uma psicologia científica, Freud (1987a) vai fazer uma
articulação com a moral. Vai dizer que os problemas morais estão ligados ao abandono e
que as questões do bem e do mal são muito menos de fundamento do que de interesses,
desejos, etc. A questão da moral já está posta desde o princípio tentando cobrir a falta e dar
conta do desejo.
Já Lacan (1991) afirma desde o início de O Seminário, Livro 7: A ética da
psicanálise que pretende falar de ética e não da moral. Para ele, a ética está para além do
sentimento de obrigação, do mandamento, da lei da sociedade. Lacan indica a diferença da
ética psicanalítica em relação à moral. A psicanálise em sua ética parte da universalidade
do desejo para enfatizar a sua particularidade. O que é universal é a diferença. O desejo
não se submete a normatização e não tem caráter de uma lei universal.
A reflexão que faz ao longo dos seus seminários sobre a função do desejo aponta
para a diversidade das tendências humanas quanto à sexualidade e o seu caráter
profundamente desarmônico e particular. A questão da verdade vai estar no centro da
discussão ética e a psicanálise entenderá essa verdade, como a verdade do desejo. A
verdade será parcial, não toda, e se apresentará para cada sujeito em sua especificidade
íntima.
Para Lacan o desejo está vinculado à lei, que institui o simbólico. Lacan parte do
texto freudiano Projeto para uma psicologia científica para indicar a originalidade da
concepção freudiana. É no Projeto que vai buscar a noção de das Ding. Em torno dessa
noção, Lacan articula a proposta de uma ética da psicanálise, em que a ação humana esteja
orientada por uma referência ao real. Lacan propõe uma topologia para dar conta dessa
particularidade da Coisa freudiana que é a extimidade - uma exterioridade íntima.
137
(MAURANO, 1995) É alguma coisa no si mesmo que é desconhecida. É algo que não se
pode aproximar demais por possuir algo de mortal.
[das Ding] indica esse vazio central em torno do qual se tece a rede significante,
objeto perdido, nunca tido, impossível de alcançar, que comanda o desejo do
sujeito. É o índice, ao mesmo tempo, do anseio de plenitude e da sua
impossibilidade (RINALDI, 1996, p. 69).
O princípio do prazer é a referência mais imediata a esse reencontro, mas que não
se constitui a não ser como mediação para ele. Como exemplo, temos a alucinação do bebê
quando o seio não se encontra presente. O princípio do prazer revela, aqui, as suas
insuficiências como parâmetro para a experiência de constituição do sujeito no campo do
desejo – que exigirá que Freud vá além do princípio do prazer – e portanto também suas
insuficiências teóricas, já que em Psicanálise a teoria acompanha de perto a experiência. A
idéia de homeostase, de redução de tensão, de investimento alucinatório do traço do objeto
como operador de descarga esbarra com o real que exige do sujeito a consideração da
realidade como falta, e use o significante para nortear sua ação na realidade que assim é
admitida como faltosa. É nesse sentido que Lacan propõe que se conceitue o princípio de
realidade, sempre em referência dialética ao princípio de prazer, e não como mero
substituto adaptacionista dele. É o princípio da realidade que vai empurrar o sujeito –
primeiro para o reconhecimento do objeto enquanto perdido – e, por conseguinte, para a
substituição do objeto perdido. O objeto não se encontra lá e só vai ser reencontrado em
partes. A realidade é uma maneira de segurar algo do real que é intangível, impossível, não
representável (MAURANO, 1995).
Através da discussão dos bens, Lacan vai formular a distinção entre ética e política,
tomando a tragédia como parâmetro para uma revisão ética, uma vez que ela pode ser
pensada como modo de questionamento da ação humana.
Em uma sociedade de consumo o sujeito ilude-se quanto à questão do desejo. E por
isso a experiência psicanalítica deve repudiar qualquer ideal de bem. Lacan questiona a
ambição de curar chamando de “falcatrua benéfica” o querer o bem do sujeito. Se a
psicanálise coloca para si o horizonte da cura, esta deve ser em relação ao sujeito a de
“curá-lo das ilusões que o retém na via de seu desejo” (LACAN, 1991, p. 267), dentre as
quais se coloca a promessa de acesso aos bens.
A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a
arrumação, do que se chama serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando
138
à dimensão que se expressa e o que se chama de experiência trágica da vida
(LACAN, 1991, p. 375).
Lacan retoma os textos de Sófocles para situar a ética da psicanálise na dimensão
da experiência trágica, onde surge a relação fundamental entre o desejo e a morte. Tanto
em Édipo em Colono como em Antígona, Lacan aponta o confronto trágico do herói com
os valores da Cidade. Lacan vê na peça de Sófocles o drama da incomensurabilidade entre
a paixão de Antígona e a lei da Cidade, sustentada por Creonte com seu suposto bem ou
justiça.
Segundo Rajchman (1993), na visão lacaniana da peça, Creonte torna-se a imagem
da burrice, que reside em depositar a fé num Bem que os homens possam conhecer. “O
erro de Creonte consistiu num Bem que estava ou poderia estar integralmente incorporado
na justiça da Cidade e nas suas leis escritas” (RAJCHMAN, 1993, p. 94). A advertência
lacaniana é que “o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso”
(LACAN, 1991, p. 314) e são dessas conseqüências fatais que nos adverte a tragédia.
Antígona faz-nos ver o ponto de vista que define o desejo. Ela dá a si mesma a lei de sua
fidelidade à família e aceita sofrer os efeitos. A lei a que Antígona se refere não é a da
Cidade, mas a lei do desejo, o desejo que vem no lugar do imperativo categórico. Em
Antígona se observa uma fidelidade ao desejo, que é levada aos seus limites, no confronto
com uma lei que se apresenta como justa para a comunidade.
Antígona é vista como um ser “desumano, sem medo nem piedade”, diferente de
Creonte “demasiadamente humano”. Creonte representa as leis da Cidade, conduzindo a
comunidade para o bem de todos. Ele situa-se no âmbito dos serviços dos bens, definindo o
que é justo, o que pode se constituir como um bem, fundamentando-se na ordem do poder
demasiadamente humano (RAJCHMAN, 1993).
Antígona, representando a ética do desejo, em oposição à moral do poder de
Creonte, situa-se no lugar da “segunda morte”, morte simbólica em que o sujeito reconhece
a castração que o constitui. O lugar onde se situa Antígona é o de das Ding, lugar vazio,
núcleo traumático em torno do qual o simbólico se organiza.
Para Lacan, a ética estaria mais bem fundada no direito do desejo do que no
imperativo do supereu. Trata-se aqui da dimensão inconsciente do desejo e não de uma
crença na onipotência do desejo. Ou seja, insistência, repetição, indestrutibilidade do
desejo não é a mesma coisa da onipotência imaginária. O desejo de que fala Freud no final
da Interpretação dos Sonhos, entidade do desejo indestrutível, é diferente dos desejos.
Lacan separa o desejo dos desejos específicos, e o identifica como “corte significante”, que
139
é para ele o nome do indestrutível desejo de Antígona. Lacan determina o desejo puro
como o desejo de castração (GUYOMARD, 1996).
Ao tomar a tragédia grega como referência para falar da ética da psicanálise, Lacan
enfatiza a descontinuidade entre uma ética do desejo, enquanto ética da subjetividade, e a
política, como expressão da moral do poder que opera sobre o ordenamento do serviço dos
bens. O poder não está interessado no desejo, porém Lacan defende uma forte ligação entre
desejo e Lei. Essa lei, no entanto não se confunde com as leis que operam no âmbito do
“serviço dos bens”.
Nas instituições a psicanálise encontra um espaço paradoxal. De um lado temos a
exigência do mestre de que as coisas funcionem bem e que o sintoma não atrapalhe. Tal
exigência é fortalecida pela eficácia da ciência. De outro lado encontramos a religião e as
psicoterapias com a exigência de sentido. Ou seja, de um lado está a ciência que contribui
para desenvolver o gozo dos sujeitos, mas não para tratá-lo. Do outro lado estão os
discursos que são modos de uso do gozo.
A psicanálise contrariamente aos tratamentos “psis” é um tratamento do sentido
pelo não sentido através da extração dos significantes mestres e não um modo de gozar do
sentido conferido por um significante mestre. Ela vai tratar não pela linguagem e pela
escuta, mas pelo “traumatismo da linguagem pela escrita formal do sintoma. Ela não
identifica, ela descompleta” (BROUSSE, 2007, p. 23).
No tratamento analítico haverá um redimensionamento do desejo possibilitando
uma alteração na ordem do serviço de bens, já que os falsos bens aprisionam o sujeito. O
desejo seria um lugar a se chegar como homens comuns e não como heróis. Ao revisar a
ética, Lacan formula o seguinte postulado: “agiste conforme o desejo que te habita?”
(LACAN, 1991, p. 376), partindo do desejo como motivação legítima da ação e implicando
na responsabilização de todo sujeito. Lacan (1998g, p. 873) afirma que “por nossa posição
de sujeito, sempre somos responsáveis”. Sendo assim, na perspectiva analítica, “a única
coisa da qual se possa ser culpado é de ter cedido de seu desejo” (LACAN, 1991, p.382).
Brousse (2007) evocando os três S do matema utilizado por Lacan ao formalizar a
transferência (Sujeito-Suposto-Saber) propõe os elementos operatórios no tratamento
analítico para que o discurso analítico não se dissolva.
O primeiro elemento operatório seria o sujeito. A psicanálise que se faz em
instituição, que para nós é a psicanálise aplicada e também como dissemos anteriormente a
psicanálise em intensão, permanece sendo questão de sujeito e não de indivíduo, de agente
identificatório ou de pessoa. Se o sujeito é resultado do exercício da linguagem ele é
140
representado por significantes. Sendo assim, o sujeito não pode ser abordado por categorias
ontológicas que remetem aos significantes e que fazem patrulha ao gozo: toxicômano,
criança, louco e etc. Na instituição “temos que nos haver com sujeitos divididos e entre
efeito de significantes e objeto de gozo desse Outro do significante” (BROUSSE, 2007, p.
25). O sintoma é do sujeito e não do social.
Quanto à suposição, segundo elemento, a autora introduz o estatuto do Outro em
psicanálise. O Outro seria enquanto matéria significante, um real traumático, porém ele não
é um parceiro que o sujeito devota-se a se propiciar através de seu fantasma. O Outro não é
uma lei, uma garantia ou uma referência ou um ideal para o eu. Na verdade o Outro não é.
Ele não existe, a não ser como ficção, ou seja, como semblante afetado de crença para o
neurótico ou de certeza pelo psicótico. O Outro é relativo à estrutura definida pelo
funcionamento da linguagem em um discurso. O psicanalista se orienta por esse ponto e é
do matema A barrado que provém a ética do discurso analítico. Como conseqüência disso
temos a recusa do serviço de bens, mesmo que seja sob a forma de um bem soberano, que
faz pesar o fardo dos soberanos sobre o ombros do sujeito.
Como último elemento teremos o saber, que não é referencial, mas textual. Lacan
(2003b, p. 254) na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola
retoma a recomendação de Freud de abordarmos cada novo caso como se fosse o primeiro,
porém escreve que
isso não autoriza o psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com saber que
nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de saber. O que ele tem de saber pode
ser traçado pela mesma relação “em reserva” pela qual opera toda lógica digna desse
nome. Isso não significa nada em “particular”, mas se articula numa cadeia de letras
tão rigorosas que, sob a condição de não se errar nenhuma, o não sabido ordena-se
como o quadro do saber.
Desenvolvemos o pensamento lacaniano sobre a questão da ética para fundamentar
uma outra dimensão que deve pautar a clínica no CAPS, que não deve ser aquela de buscar
o bem do sujeito. Se isso é desastroso na clínica com neuróticos, muito mais na psicose que
tem uma lógica própria que não entra totalmente nas nossas tentativas de normatização.
Essa lógica tem que ser considerada nas tentativas de ações terapêuticas. Nesse ponto de
vista, segundo Guerra e Generoso (2010), o fora-da-norma não deve se apresentar aos
técnicos como “desadaptação” ou “exclusão”, e sim ser acolhido, ganhando seu valor
central na forma de resistência, de invenção subjetiva. Laurent (apud Guerra e Generoso,
2010), afirma que se não há satisfação plena para nenhum sujeito e se não há norma, o que
subsiste a cada um é inventar uma solução particular que se apóia sobre o seu sintoma.
141
Cada um terá uma solução mais ou menos típica, mais ou menos apoiada pela tradição e
pelas regras comuns, podendo contrariamente desejar realçar a ruptura ou certa
clandestinidade. O diferencial que a inserção da psicanálise traz ao movimento da Reforma
é a luta por um espaço onde se possa dar vez e voz a uma clínica do sujeito, este concebido
como um ser da fala, da subjetivação. A direção da psicanálise não pode ser a da adaptação
da singularidade às normas. Pelo contrário, ela trata a impotência do sujeito em alcançar a
satisfação plena, buscando conseguir que cada um encontre certo acordo de convivência
consigo mesmo e com a civilização. Assim, é possível abrir novas vias que permitam ao
sujeito extrair o necessário saber-fazer com seu sintoma, para que possam ultrapassar os
obstáculos e as conseqüências subjetivas da desinserção (GUERRA; GENEROSO, 2010).
Contudo, ao priorizar o sujeito, não se pode considerar que a psicanálise é uma luta
anticoletiva, uma vez que, um trabalho sendo realizado com a singularidade não exclui a
possibilidade do resgate das suas atividades do ponto de vista coletivo.
Tenório (2001) irá dizer que propor um tratamento possível da psicose dentro do
referencial psicanalítico é levar em conta o inconsciente e suas formações, fazendo com
que o sujeito enderece o seu sofrimento como uma questão e não como uma demanda de
reabilitação para o convívio social. Essas considerações podem ser de grande valia para as
instituições de Saúde Mental que lidam primordialmente com sujeitos psicóticos,
constituindo, uma contribuição da psicanálise à Reforma psiquiátrica, na medida em que
poderiam operar como uma advertência em atribuirmos aos psicóticos ideais que são
nossos e não deles, como a autonomia e a suficiência na inserção social. Freud foi
veemente quanto a isso:
recusamo-nos da maneira mais enfática a transformar um paciente que se coloca
em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir
por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos ideais e com o orgulho de um
criador, a formá-lo a nossa própria imagem e verificar que isso é bom (FREUD,
1987m, p. 207).
Sendo assim, guiados pela inclusão da foraclusão do Nome-do-Pai na Reforma, o
técnico de CAPS estará atento não somente com seu furor sanandi, mas também ao seu
furor includenti , ou seja, estará precavido contra seu desejo de inclusão do louco. A
direção da clínica não pode ser exigir do psicótico aquilo que é de valor fálico para o
neurótico, mas deixá-lo fazer sintoma sem Nome-do-Pai (QUINET, 2006).
Assim, é possível entender que se os ideais da Reforma não forem trabalhados com
o sujeito em seu processo singular de construção de um laço social possível, eles podem vir
142
a transformar-se em impedimento para a construção de uma relação com o Outro mais
moderada e, desta forma, provocar o surto e não a estabilização.
Um exemplo que pode nos ajudar em nossa reflexão é o de um técnico de CAPS ao
ser comunicado por uma auxiliar de enfermagem que Luís, um usuário do CAPS, psicótico
grave, que inclusive estava se recuperando de um surto recente, havia sido encontrado
portando drogas. No afã de normatizar, sem mesmo discutir o ocorrido com outro membro
da equipe, o técnico resolve chamar a polícia para tomar providências. Note-se que mesmo
os policiais que vieram atender a ocorrência se admiraram de que o técnico do CAPS
quisesse que o paciente fosse conduzido à delegacia.
Posteriormente, na reunião de
equipe, o mesmo técnico com muita veemência defendia a criação de um protocolo que
determinasse que toda vez que um usuário do CAPS fosse encontrado portando drogas, a
polícia devesse ser acionada. Outros técnicos defendiam que isso não deveria ser feito
porque o paciente, sendo psicótico, não deveria ser responsabilizado. Ambas as posições
não estavam embasadas em fundamento teórico-clínico válido, mas em valores e atitudes
de uma prática moral normatizadora que em nada é diferente da época anterior à Reforma:
a culpabilização moralista que substitui a intervenção clínica, de um lado, e a
irresponsabilização paternalista, não menos moralista, ainda que permissiva, e que em nada
concerne ao sujeito como tal, de outro.
3.3.3 A psicanálise coletiva
Segundo o manual do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004) sobre os Centros de
Atenção Psicossocial as oficinas terapêuticas são uma das principais formas de tratamento
oferecido nos CAPS. Na própria descrição da atividade percebe-se que não há nenhuma
referência ao caráter clínico dessa atividade.
As oficinas terapêuticas são definidas como “tendo em vista a maior integração
social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de
habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, o exercício da cidadania”
(BRASIL, p. 20) Continuando em sua descrição, o manual cita os tipos de oficina tais
como as oficinas expressivas, as oficinas geradoras de renda e as de alfabetização.
144
As oficinas terapêuticas, muitas vezes são direcionadas no sentido pedagogizante
ou de entretenimento e não sustentados pela clínica. Greco (2008) dirá que nas oficinas, de
certo modo, agrupam-se semelhantes, pois são todos psicóticos, mas no mais se trata de
fazer conviver diferenças, singularidades absolutas, inibições absurdas e certezas plenas. O
fato de se trabalhar em grupo não permite uma generalização de movimentos e das
posições subjetivas nas atividades. Sendo um grupamento de singularidades tão explícitas,
só nos resta escutá-las uma a uma. O autor denuncia a perigosa posição de Um-pai na
condução das oficinas.
Sabemos que nada é menos seguro que a posição de Um – pai na psicose. Assim,
o professor, pai de estilos, que cobra definições estilísticas dos seus alunos, o
escritor, pai de letras que recompensa com seu aval e o doutor, pai da garantia
que delimita os significados, estão definitivamente excluídos do convite a esse
banquete (GRECO, 2008, p.88).
Outra questão é que muitos profissionais de Saúde Mental optam pelo atendimento
em oficina e ainda em grupo, não por questões teórico-clínicas, mas pressionados pela
demanda e muitas vezes por avaliarem que determinados pacientes possuem “baixa
abstração” ou “dificuldades em trabalhar conteúdos internos, subjetivos” e que por isso não
responderiam ao tratamento analítico clássico ou psicoterápico. A esse respeito é bom
lembrar que os CAPS recebem predominantemente pacientes de baixo poder aquisitivo e
nível de instrução, porém estes fatores não podem ser considerados como impeditivos para
fazer o inconsciente operar, já que este, não é pobre ou rico, burro ou inteligente.
A dimensão clínica precisa atravessar os espaços de convivência do CAPS para que
não sejam orientados sobre o eixo da interação sócio-afetiva. As oficinas terapêuticas não
podem visar apenas a expressão, a ocupação terapêutica, o entretenimento e o lazer, mas
cada atividade dessas deve implicar uma dimensão clínica.
A atividade nos CAPS, como defende Lobosque (2009) não devem se basear numa
prática de saber que tem o consultório como centro e onde grupos, oficinas, visitas
domiciliares são atividades menores, secundárias, derivadas. O que acontece nessas
práticas deve ser tão clínico como o que acontece numa consulta psiquiátrica, numa sessão
com psicólogo ou psicanalista ou em outro atendimento.
É pelo viés da clínica que questões sobre o uso de grupos e oficinas devem ser
colocadas. Podemos nos perguntar se a melhor alternativa ao atendimento individual é o
grupal ou o modelo de oficinas tão amplamente defendido nos CAPS. A julgar pelo que
encontramos em nossa pesquisa teórico-clínica, através das dificuldades suscitadas pela
145
própria clínica que nos fez recorrer à teoria para em seguida retornar à clínica, verificamos
que o dispositivo psicanalítico coletivo (já abordado anteriormente através das experiências
da psicoterapia institucional de Oury, a prática entre vários e a psicanálise com muitos)
que se distingue claramente do grupo e de oficinas terapêuticas, apresenta resultados
clínicos incomparavelmente superiores à mera ocupação dos pacientes em oficinas de
entretenimento terapêutico.
Há um conceito de “coletividade” que não coincide com o de grupo, e que
responde muito melhor à dimensão clínica do estar entre muitos, entre muitos
pacientes e entre muitos técnicos, entre muitos espaços e atividades. O grupo
reúne indivíduos, cada um mantendo sua individualidade quando no grupo, ou,
quando a dissolve, é em nome de uma identificação com um traço comum, do
líder ou com um lema. O coletivo atravessa sujeitos, porquanto é em nome de um
traço de cada um, sem significação a priori ou imediata, que o laço se faz (ELIA,
2004, p. 03).
Já no ano de 2000, quando o ambulatório de Saúde Mental foi transformado em
ambulatório com oficinas, tínhamos dificuldades com esse o dispositivo, no sentido de
percebê-lo como mero artifício para ocupar pacientes, atender a demanda das listas de
espera de pacientes que não “aderiam” ao tratamento individual. Em contrapartida
tínhamos questões de como tratar clinicamente os psicóticos que não respondiam ao
tratamento no espaço físico do consultório da unidade.
Em 2001 tivemos a oportunidade de realizar uma visita técnica ao CAPSi Pequeno
Hans, na época com poucos anos de existência. Ficamos surpresos com os efeitos da
clínica feita por muitos técnicos e com muitos pacientes, a maioria extremamente graves e
que melhoravam significativamente. Porém, como atendíamos predominantemente
neuróticos graves esta questão não se impôs de maneira radical em nossa clínica.
No ano de 2005 quando a equipe do ambulatório foi dissolvida pela gestão e ao
mesmo tempo passou a funcionar em nossa unidade um serviço dentro da modalidade dos
Centros de Atenção Psicossocial, a clínica da psicose se impôs não mais de maneira
contingente, levando-nos a sucessivos questionamentos de como conduzir o nosso trabalho
e foi essa uma das razões que nos levou a estudar e a voltar no que vivenciamos no
Pequeno Hans.
Um dos episódios marcantes foi receber Mateus em um dia que estávamos no
acolhimento no CAPS. Sua avó nos conta que Mateus, agora com 18 anos, não sai de casa
desde os 13 desde que presenciou o suicídio de seu pai que morreu se esfaqueando. Mateus
desde esse episódio só fica dentro do seu quarto, não toma banho e não se comunica com
as outras pessoas. Já colocou fogo em suas cobertas. A avó enfatiza que ele tem medo das
146
pessoas, que não pode ficar no meio delas porque ficará nervoso. Mateus, apesar de
bastante arredio, aceita vir ao CAPS novamente para falar conosco.
Inicialmente atendemos Mateus em um dos consultórios do CAPS, já que ele não
suportava o contato com outras pessoas. Como ele se negava a usar o recurso da fala
tentamos estabelecer algum outro recurso que pudesse funcionar como linguagem.
Dispomos jogos pela sala sem sugerir nada. Aos poucos Mateus escolhe entre o dominó, o
jogo de damas ou o quebra-cabeça para poder nos dizer algo. Em determinado dia
apanhamos pães e café que eram servidos para os pacientes do CAPS e levamos para ele
no consultório. Mateus começou a proferir alguns monossílabos quando nós
perguntávamos algo. Às vezes não respondia nada. Mesmo assim prosseguimos falando
com ele e tentando colocar alguns significantes de acordo com sua história. De vez em
quando ria sem motivo. Aos poucos conseguimos servir-lhe o café não mais na sala de
atendimento, mas na sala de estar do CAPS, momento onde ele começa a ter contato não
apenas conosco, mas com outros pacientes e técnicos que circulavam por lá. Em
determinado dia sem saber no que aquilo iria dar, convidamos Mateus para a área onde
ficavam os pacientes da permanência-dia e jogamos com ele na presença desses pacientes.
Surpreendentemente Mateus não ficou assustado com as pessoas como sua avó dizia e à
medida que o tratamento foi avançando passa a jogar não apenas conosco, mas também
com outros pacientes. Passamos a atender coletivamente não apenas ao Mateus, mas a
todos os pacientes que estavam presentes no CAPS naquele horário. Assim, surgiu a
primeira oficina coordenada por nós, que foi denominada inicialmente “oficina de jogos”
porque o que acontecia eram basicamente jogos de várias modalidades.
Apesar de a atividade ter sido denominada por nós de oficina, até porque naquele
momento não sabíamos nomeá-la de outro modo, desde o início ela se diferenciou do que o
Manual define como oficina. Isso foi detectado inclusive por um dos auxiliares de
enfermagem que nos acompanhou neste início e que participava também de outras oficinas.
Um dia nos fez uma observação: “essa oficina é diferente das outras. Aqui acontecem umas
coisas que eu nunca vejo nas outras.” Algo começou a operar apesar de nosso
conhecimento ainda incipiente sobre a psicanálise coletiva. Verificamos que precisávamos
ir além do que tínhamos alcançado, pois além das nossas dificuldades teórico-clínicas
somavam-se a falta de supervisão institucional e a heterogeneidade de práticas e de direção
da equipe. Foi então que em 2008 encaminhamos nosso projeto preliminar de pesquisa
para o Programa de Pós Graduação em Psicanálise da UERJ com a intenção de avançar
nessa direção.
147
No ano de 2009 iniciamos e priorizamos nossa pesquisa no CAPSi Pequeno Hans
que deu subsídios para depois continuarmos nossa pesquisa exclusivamente na clínica com
adultos a partir de 2010. Propomos para a equipe do CAPS uma reestruturação do
atendimento clínico e começamos a nos reunir para discutir e estudar alguns princípios do
que seria essa clínica. Apresentamos a sugestão de abandonar o modelo de oficinas
terapêuticas propostas pelos técnicos e a começar a construção de um atendimento dentro
da dimensão coletiva.
Em um mesmo espaço foram organizados vários materiais como jogos, revistas,
livros, material de tapeçaria, colagem, pintura, artesanato e etc. Os pacientes que vinham
para a permanência-dia passaram a chegar e se dirigir para alguma atividade segundo a
escolha deles ou mesmo a não se dirigir a nenhuma não sendo priorizado a ocupação ou o
entretenimento, mas a dimensão clínica. Os princípios de uma clínica coletiva começaram
a ser esboçados.
No espaço de atendimento coletivo do CAPS muitos episódios acontecem ao
mesmo tempo e o tempo todo. João e Pedro fazem seus tapetes enquanto conversam
animadamente. Rose às vezes cisma de aprender entrelaçar os fios, mas gosta mais dos
jogos. Assis toca várias “modas” de viola e às vezes alguns o acompanham. Selma chega
movimentando os braços com sua tradicional frase “eu tô impregnada” sem que isso seja
verdade. Os técnicos acolhem, fazem alguma intervenção e de repente ela esquece a tal
“impregnação” e participa por alguns momentos com todo mundo. Anita chega pela
primeira vez, mas não quer ficar. Chora, grita e se agita. Sandra que já esteve assim um dia
conversa e lhe diz algumas palavras: “ficar aqui me ajuda a organizar as idéias. Vai lhe
ajudar também.” E logo Anita se acalma. Julia chega em seguida agitada. Convida os
pacientes para rezar puxando uma “Ave Maria” Fala para todos nós: “Me disseram que sou
bipolar, mas eu só gosto de aventuras, de desafio, de sentir calor, frio, alegria, raiva. Raiva
não.” Em seguida chora, diz que os bichos estão subindo pelas suas pernas.
No que diz respeito ao projeto terapêutico, é clara a diferença entre uma posição de
tratamento que toma o paciente como objeto de cuidados e uma outra, que propõe um
tratamento que esteja adequado ao caso e que toma o paciente como sujeito oferecendo a
possibilidade de manter abertas as questões que surgem para inicialmente fazer ouvir em
qual projeto o sujeito está metido. Portanto, conceber uma estrutura capaz de estar dirigida
ao sujeito é antes de tudo sustentar a possibilidade de acolher aquilo que vier a surgir. Não
será equivalente a proporcionar uma assistência mais humana, mais completa, através do
argumento de que não se deve focalizar exclusivamente a doença, mas o ser humano de
148
forma integral. Tampouco é equivalente a propiciar a execução de uma clínica bem feita,
aquela que desapareceu da assistência pela exigência de produtividade imposta pela
mentalidade capitalista (SANTOS, 2001).
Em vários episódios pudemos verificar os efeitos do atendimento coletivo nos
pacientes atendidos nesse dispositivo. Através de alguns fragmentos clínicos podemos
demonstrar tais efeitos.
Mateus, um dos pacientes que nos levou a pesquisar a psicanálise coletiva passou a
ser atendido exclusivamente nesse dispositivo e não mais individualmente. O efeito foi
surpreendente. De um jovem arredio, que não saía de casa e que quase não se comunicava
pela fala quando iniciou o seu tratamento conosco no dispositivo de consultório, passou
cada vez mais a estabelecer contato com outros técnicos e outros pacientes. Passou a
conversar, a se despedir das pessoas quando ia embora e aprendeu e se tornou um bom
jogador de xadrez. Intensificou seus treinamentos nas aulas de judô na academia da irmã,
culminando suas mudanças com sua volta para a escola. Podemos corroborar que o
atendimento coletivo proporcionou um Outro menos intrusivo, menos ameaçador para
Mateus possibilitando que ele pudesse estar de outro modo no laço social.
Carina que chegou em surto na recepção do CAPS grita com os olhos arregalados
para nós:” Prostituta! prostituta! Porque você se pinta assim?” Podemos supor aqui uma
localização do gozo fora do corpo e que Carina fixa um ponto de retorno do real quando
nos dirige essas frases. Posteriormente a paciente olha para nós e diz que acha que eu
também sou de alguma igreja evangélica. Sendo assim, pode conversar comigo. Iniciamos
o atendimento individual com a paciente que de prostituta nos coloca como irmã na fé.
Reclama com muito sofrimento das vozes que a perturbam. Diz que a voz é de sua sogra
que não lhe dá sossego. A voz fica dizendo que o marido está com outra. Vê sua sogra por
todo lugar que vai. A medicação não diminui seu sofrimento e nem tampouco os
atendimentos conosco.
Carina passa a participar também do atendimento coletivo e a trabalhar com os
tapetes. Um dia após algum tempo de tratamento nos diz que as vozes lhe deram um pouco
de sossego. Diz que colocou um paninho (um pedaço de retalho usado na confecção de um
dos tipos de tapete feitos no CAPS) no ouvido. Detectamos aí que a transferência inicial
dirigida a nós foi deslocada: “com o ‘paninho’ agora só entram as vozes boas”. Pelo
atendimento coletivo Carina pôde amenizar sua relação com o Outro que se dividiu entre
os muitos técnicos.
149
Alguns meses depois, saímos de férias em um final de ano e demoramos mais do
que o habitual para retornar ao CAPS. Ao retornarmos Carina diz que as vozes voltaram a
perturbá-la. Perguntamos do “paninho” e ela responde “Ele caiu. Preciso colocar ele de
novo.” Percebemos que apesar da transferência dissolvida com muitos técnicos, Carina nos
colocava em um lugar prevalente em seu tratamento. Dissemos na ocasião: “Estou aqui. Eu
e o restante da equipe”. Pouco tempo depois as vozes novamente não a perturbaram mais.
Numa outra ocasião em que nos afastamos Carina se manteve estável. O “paninho” dessa
vez não caiu.
Em uma referência ao esquema L, concebido por Lacan e trabalhado por nós na
seção 2 (ver pág. 58), diremos que na medida em que os técnicos de CAPS se recusam a
responder do lugar de semelhante do eixo a- a’, eixo imaginário, sobre o qual se sustenta o
registro da demanda, e que, nas relações que se estabelecem entre os seres falantes,
incluindo os pacientes, compreende o amor, a amizade, a confidência, etc. este se torna
reduzido de modo a diminuir os efeitos que mascaram a estrutura do discurso e com isso
abre-se o campo possível para a transmissão operada pelo outro eixo A
(SANTOS,
2001).
Podemos evidenciar esta questão com outro fragmento do atendimento coletivo.
Rose tem relatos constantes de sentir um forte impulso de bater a cabeça contra a parede.
Quando não está bem é esse o recurso que utiliza para lidar com as vozes que persistem em
perturbá-la. É assim que ela lida com o Outro. A equipe sempre tinha respostas de consolo,
de amizade, mas não analíticas. “Não faça isso, você vai se machucar”, “Nossa! Porque
você faz isso? Não pode!”, “Coitada dela! Está mal hoje.”
Em determinada manhã ela chega e fora do seu habitual, passa por nós e pelos
outros pacientes sem cumprimentar. Dizemos bom dia, mas ela responde: “Hoje estou com
vontade de bater a cabeça na parede” se dirigindo para fora do espaço. Ao invés de uma
resposta a nível do imaginário tentamos ali no espaço coletivo marcar outra coisa, já que o
sujeito com que trabalhamos em psicanálise não é o sujeito absoluto e nem tão pouco o da
subjetividade. Não se trata do sujeito de funções, de qualidades. O analista vai lidar com
questões subjetivas tornando-as objetiváveis.
Entre a “cabeça” e “batida na cabeça” tentamos produzir um intervalo, uma
escansão que retirasse o sujeito do real da cabeça. Dissemos: “Existem outras coisas para
fazer com a cabeça”. Rose então volta para o espaço coletivo, pega as peças de dominó e
passa a jogar com os outros pacientes. Diferente das outras vezes em que fala que vai jogar
a cabeça na parede e parte para a execução ou fica amuada em um canto, pôde inventar
150
outra coisa para sua cabeça. Nunca mais o recurso da cabeça contra a parede foi relatado
pela paciente.
Antônio gosta de nadar na piscina do CAPS. Na ocasião era inverno e a água não é
aquecida permanecendo gelada. Antônio com as mãos para o alto e em tom profético grita:
“Moisés! Moisés! Esquenta essa água!”. Em seguida pula dentro da piscina que continua
com a água gelada e diz: “Moisés, seu filho da puta! A água está fria!”. Pensamos depois
do ocorrido na ausência da metáfora paterna na estrutura psicótica e que para Antônio se
encarnou em “Moisés” que não lhe veio em socorro deixando Antônio a mercê do Outro.
Claro que não se tratava de convencer Antônio da impossibilidade da água se tornar
quente, mas possibilitar que Antônio, mesmo sem “Moisés”, pudesse se colocar frente ao
Outro de maneira diferente.
Nessa proposta trata-se de deixar falar o sujeito em vez de falar dele ou sobre ele,
falar para ele o que ele deve fazer é uma das conseqüências a que uma concepção como
esta conduz, pois é a partir da fala que a divisão do sujeito se apresenta. Sendo assim, ao
invés dos técnicos oferecerem sugestões, informações, esclarecimentos ou mesmo um
projeto terapêutico a partir de uma discussão com ele, trata-se de oferecer a possibilidade
de que eles venham a formular uma interrogação. “O que você vai fazer sem Moisés,
Antônio?” Quando o técnico de CAPS renuncia à busca rápida de um atendimento para as
questões e as demandas que se apresentam não significa não ter o que oferecer, mas
oferecer a única resposta capaz de propiciar que os pacientes possam encontrar um
caminho que tenha como destino a possibilidade de desatar-se da dimensão de sugestão
que se apresenta na alienação, presente nas relações com o outro.
Antônio passa a pegar o violão de Assis e cantar músicas sem parar. É a via
principal que encontrou para lidar com o Outro que fala com ele e lhe persegue. As paredes
do espaço coletivo ficam completamente cheias de palavras que ele escreveu nos últimos
meses evidenciando seu percurso. “A nossa vida é órbita, óbiti, morti, remédio”,
“Masculino, vacilão, caguete”, “Nóis quer saber do motivo”, “Marginal, Tonhão.
Ladrão, Tonho. Trombadinha, Toninho. Delegado, Antônio.” Percebemos que ele vai se
deslocando de ser o “Tonhão marginal” que se defende do Outro intrusivo, perseguidor,
que pode matá-lo quando ele estiver usando drogas ou tomando a “pinga” em alguma
“quebrada”, para virar o “Delegado Antônio”. Tanto é que nessa mesma direção ele nos
diz: “Você não deve confiar em ninguém da cidade. São todos uns caguetes. Não quero
que nenhum mal aconteça com vocês. Eu era bandido agora não sou mais e vou defender
151
vocês”. Também no caso de Antônio o tratamento do gozo do Outro através do coletivo
propiciou a mudança frente ao Outro.
Luiz sempre chega falando sua língua singular: “tem um cotoco na mulher... Por
isso precisa ser uma virgiana senão não tem jeito... [...] A Angelina [paciente do CAPS]
mandou aplicar uma injeção de tangara em mim... Mas eu sou homem não uso tanga...
Estou com problema na tampinha de pó da minha cabeça... Meu cardan (palavra com que
ele designa seu órgão sexual) não funciona mais”. Luiz atesta da impossibilidade da
questão sexual. Quando iniciamos seu atendimento em consultório ainda não se dava conta
dessa questão. Ele insistia em querer “acasalar” conosco. Pelo coletivo algo fez barreira.
A clínica do coletivo no CAPS com adultos foi por nós aqui apenas esboçada.
Muitas dificuldades são encontradas no CAPS onde realizamos a segunda parte de nossa
pesquisa devido a não existência de supervisão clínica.
A clínica psicanalítica com adultos no dispositivo clínico ampliado através do
coletivo continuará a ser alvo de nossa próxima pesquisa visando colaborar para que a
Reforma confira um lugar ao saber, ou seja, à elaboração teórico-clínica em torno do
sujeito inserido no tratamento nos CAPS, tal como abordamos no capítulo 1 dessa
dissertação.
3.3.4 A dimensão clínica de rede
A Quarta Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial realizada em 2010
reiterou cada vez mais a importância da intersetoriedade das ações de Saúde Mental.
Como já dissemos anteriormente é missão do CAPS regular a porta de entrada da
rede de assistência em Saúde Mental de sua área e, além disso, promover a inserção dos
usuários através de ações intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e
lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamento dos problemas. Um CAPS não
pode sozinho dar conta das complexas questões que estão envolvidas no campo de Saúde
Mental.
O CAPS ao conceber o território precisa visualizá-lo para além de um recorte
geográfico levando-se em conta os laços singulares que cada sujeito vai tecendo nesse
espaço, espaço este que está para além das instituições, já que é também intersubjetivo. Se
a clínica estiver ausente, se a clínica for surda à palavra do sujeito, o território será
construído a partir dos interesses dos técnicos ou motivado pelo desejo de atender ao que
152
se supõe ser o bem para aquele sujeito. Um território “clinicizado” será um território que
vem a existir a partir da palavra do sujeito.
Há uma questão atual e polêmica que é a retirada do CAPS do lugar de ordenador
de rede passando essa atribuição para o PSF. Depois de nossa exposição parece-nos
desnecessário afirmar que é de suma importância que o CAPS continue em sua posição
central na rede, como articulador das ações de Saúde Mental e não como um mero
integrante da atenção básica. Não se trata de definir o CAPS como um serviço
especializado, e esta é justamente a defesa da prevalência da atenção primária. Ele só é
especializado à luz da atenção primária. O CAPS tem uma especificidade, mas todo
especialismo ou especialidade ou especialização são avessos à lógica da atenção
psicossocial.
No entanto tais ações articuladas pelo CAPS não devem ser realizadas divorciadas
da clínica. Abordamos este aspecto, pois muitas vezes percebemos que as reuniões do
CAPS com os diversos dispositivos da rede muitas vezes são tomadas como enfadonhas
e/ou burocráticas e desclinicizadas. Faz-se necessário que em rede, o CAPS continue com a
direção de clínica ampliada e no direcionamento da construção de caso. Se é importante
que o paciente esteja inserido nos vários dispositivos e que todos os profissionais da rede
estejam juntos na construção dos laços de pertencimento do paciente, pouco efeito surtirá
na vida do paciente se o CAPS não tomar todas estas questões como pertencentes a clínica.
O CAPS tem como poder, ao ocupar o lugar de ordenador da rede, “o da
permanente (e sempre parcial) pactuação coletiva, intersetorial, que, quando bem praticada,
é eminentemente clínica, ou, mais ainda é a própria clínica exercida sob a forma lógica da
intervenção ampliada que funda o ato do CAPS” (ELIA, 2005c). Em nossa avaliação o
CAPS não tem conseguido exercer esse poder na rede. Sabemos da importância da
inclusão das ações de Saúde Mental na Atenção Básica e PSFs e da importância do apoio
matricial do CAPS, mas podemos dizer que essa assistência tem funcionado no Brasil de
maneira geral? A direção de que a Atenção Básica deveria incluir a Saúde Mental como
incluía a hipertensão, a diabetes e outros quadros, nos pareceram pertinentes no início, mas
com o passar do tempo temos feito questionamentos quanto a isso. É possível mesmo que
isso se dê? O caminho é dissolver a diferença? A direção de tratamento nesses moldes não
privilegia uma clínica sanitária e não provoca mais desassistência do que o contrário?
Trazemos outra questão polêmica que é a questão do ambulatório na rede. Um dos
informativos do Ministério da Saúde (Brasil, 2010) define ambulatório como serviço
constituído por ao menos quatro profissionais de Saúde Mental, não sendo considerado
153
“ambulatório de Saúde Mental” os centros de saúde ou serviço em hospital geral. O mesmo
documento diz que a relação dos ambulatórios públicos de Saúde Mental ainda muito é
precária, apresentando em geral baixa resolutividade e um funcionamento pouco articulado
à rede de atenção à Saúde Mental. O informativo diz da necessidade de se discutir com
mais profundidade o papel destes dispositivos no campo da Reforma Psiquiátrica e por esta
razão abordamos nesse tópico a questão.
Com a criação do CAPS, a dissolução de vários ambulatórios e o atendimento de
casos menos graves prioritariamente na Atenção Básica e PSF, vemos um aumento do
consumo de benzodiazepínicos por parte dos pacientes, além de muitos serem medicados
de maneira incorreta pelos clínicos ou ficarem desassistidos por não haver psicólogos para
todas as unidades ou vagas suficientes com os médicos. Se não há vagas com os médicos,
muitos psicóticos estabilizados acabam ficando sem assistência e como nessa condição,
não costumam solicitar ajuda como os neuróticos, terminam por entrar em crise
novamente.
Também em vários CAPS o que tem acontecido é que no atendimento da
psiquiatria continua havendo um “ambulatório” dentro do CAPS. Os pacientes não
freqüentam o CAPS na permanência-dia, mas comparecem para consultas porque não
existe outro profissional na rede para atendê-los. Estes casos ficam na maior parte vistos
apenas pelo psiquiatra, sem discussão com uma equipe, o que é um retrocesso em relação
ao que acontecia no ambulatório. Além disso, os pacientes passam pela velha história de
receber uma receita e voltar daqui a dois, três meses sem serem avaliados adequadamente,
pelo motivo de que existem muitos pacientes para serem atendidos. Ou seja, continua
existindo um “ambulatório extra-oficial” dentro de muitos CAPS e uma desassistência na
Atenção Básica. Se a placa do lado de fora é de um CAPS, a lógica vigente em uma parte
do atendimento do CAPS é ambulatorial, e ambulatorial no pior sentido do termo.
Não seria mais adequado criar políticas com um dispositivo que possa realizar as
ações de Saúde Mental para que os casos que não são demanda de CAPS sejam atendidos
de maneira satisfatória? Não é mais adequado que exista uma equipe que trabalhe esses
casos em um lugar onde existam profissionais “psis” que de verdade possam trabalhar a
demanda existente, que poderia ser um ambulatório, desde que regido pela lógica do
CAPS? Entendemos perfeitamente que a Reforma privilegiou o atendimento aos pacientes
psicóticos e neuróticos graves através dos CAPS e era o que tinha que ser feito, mas porque
há tanto rechaço ao ambulatório? O que tem de ser rechaçado não é o modelo de
ambulatório desarticulado da rede?
154
Como ficam os pacientes que necessitam de atendimento e não se encaixam na
população de CAPS? Se a Reforma teve que privilegiar o tratamento da psicose, no entanto
ela não pode ser “psicóticocêntrica” e ignorar o sofrimento produzido pela neurose.
A criação e sustentação do CAPS não necessariamente têm que ser excludente com
a continuação do ambulatório. O que precisa ser desconstruído é o funcionamento segundo
uma lógica anterior a do CAPS. É preciso que os ambulatórios existam e sejam regidos
pela lógica do cuidado que o CAPS encarna e representa. Assim como o CAPS deve
ordenar os vários dispositivos da rede, pode e deve fazer com os ambulatórios existentes.
Podemos concordar que os PSFs ou as Unidades Básicas tratem, façam clínica, mas
nos parece uma clínica que vai mais ao encontro de “sanitarizar” do que tratar. Com
certeza podemos dizer que há um trato, mas não um tratamento.
Ouvimos certa vez de uma coordenadora regional de Saúde Mental a declaração
que na Atenção Básica as senhoras de meia idade, poliqueixosas, que não respondiam aos
tratamentos psis poderiam muito bem passar a serem atendidas pelos médicos e
participarem de oficinas para ocuparem seu tempo. Sabemos que benzodiazepínicos e
oficinas terapêuticas nunca poderão mudar a posição subjetiva de um sujeito e o que está
acontecendo atualmente é uma desassistência para aqueles que não são pacientes de CAPS.
Podemos ingenuamente celebrar que um paciente que é acometido por um surto
seja rapidamente atendido numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ou mesmo em
uma Unidade Básica de Saúde (UBS), de uma maneira mais “despsiquiatricizada” possível
e, depois de medicado ser encaminhado a um CAPS ou para outras instâncias do território,
de maneira que sua crise dure o mais breve possível, através de intervenções médicas
“eficazes”, porém, o que está acontecendo é que a loucura está sendo tratada apenas como
um mal orgânico qualquer. Há dessa maneira, um tratamento médico, sanitário, mas não
psíquico e muito menos uma clínica do sujeito. Não se trata de uma psicoterapia, uma
psicanálise e nem uma psiquiatria. A loucura está sendo incluída como uma apendicite,
uma hérnia ou um mioma, a tal ponto que o ápice da inclusão seria sua total dissolução,
como um câncer, um furúnculo ou uma infecção, caso isso fosse possível.
Podemos nos perguntar que inserção é essa que elimina toda a diferença, que trata
a loucura como um mal a ser eliminado, ao invés de poder ser admitida como uma
experiência singular e radical do humano. O desejo da civilização, desejo do mestre, desejo
de que tudo funcione sem falhas, de maneira homogênea é o que conduz a isso. A
psicanálise sabe que a falha é irredutível, que o gozo não se erradica e que o que é singular
não faz norma. Uma das contribuições da psicanálise à coisa pública é a de mostrar que o
155
gozo não se estanca, porém pode se tornar possível e domesticado pela via do sintoma.
Uma das maneiras de contribuir com o pacto civilizatório seria suportar o que faz exceção.
A “exclusão” assim, em psicanálise, é lógica e necessária para que, do vazio que
dela se instala, o sintoma possa advir como amarração possível do sujeito ao
campo do Outro. O sintoma, nesta perspectiva, é menos proliferação do mal-estar
que seu tratamento possível no laço civilizatório. Ele é a conseqüência lógica e
estrutural da constituição do sujeito, e não o mal a ser extirpado (GUERRA;
GENEROSO, 2010).
156
CONCLUSÃO
Nossa dissertação trouxe em certo sentido um paradoxo, já que ao mesmo tempo
em que exalta a Reforma Psiquiátrica no Brasil como movimento reconhecidamente
revolucionário e eficaz faz severas críticas aos aspectos que ainda não foram contemplados
pela Reforma e que dizem respeito particularmente a clínica nos centros de atenção
psicossocial.
Se como citamos anteriormente, o Brasil é reconhecidamente o país que mais
operou mudanças estabelecendo políticas decisivas para a humanização e qualificação dos
cuidados aos doentes mentais, mudando radicalmente a realidade dos pacientes e de suas
famílias, alcançando de maneira abrangente toda a sociedade, vimos que a ênfase na
inclusão, na reabilitação e na normatização não pode sustentar uma clínica no cotidiano do
CAPS e nem tão pouco as políticas públicas de Saúde Mental.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira passa por um momento preocupante. Fatos
recentes nos dão notícias de que os pilares básicos da Reforma estão sendo solapados
avultadamente. A determinação da internação compulsória de jovens usuários de crack em
situação de rua pelo Secretário de Assistência Social do Rio de Janeiro, a suspensão das
reuniões dos colegiados em Minas Gerais, o credenciamento de Comunidades Terapêuticas
para o tratamento de álcool e drogas, a nomeação de coordenadores estaduais de Saúde
Mental nos estados de São Paulo e Minas Gerais ligados a Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), instituição que sempre se posicionou contrária a Reforma Psiquiátrica, e
a publicação no site oficial da ABP em junho de 2011 informando que o Ministério da
Saúde teria concordado em audiência com os representantes da instituição em rever a atual
Política de Saúde Mental do Governo Federal e em analisar a eficiência dos 1.560 CAPS e
os serviços que eles prestam em todo o Brasil denotam a gravidade da situação.
Com certeza avaliar os serviços dos CAPS, melhorar sua qualidade e rever as suas
formas de funcionamento faz parte da observância dos deveres do poder público
garantindo à população o direito a um atendimento adequado em Saúde Mental. A questão
é por onde andará o campo de Saúde Mental se for de mãos dadas com as propostas da
ABP, que vão de encontro à Política Nacional de Saúde Mental, propostas tais como a
criação de ambulatórios de psiquiatria, contratação de psiquiatras para as emergências ou
criação de ambulatórios especializados tais como ambulatórios de Esquizofrenia, de
157
Transtorno de Humor Bipolar (THP) e de Neurolépticos de Ação Prolongada(NAP) e outra
ações que demonstram uma posição política totalmente contrária a todas as diretrizes e
concepções da Reforma que foram definidas para o seu campo através de um longo
processo histórico-político.
O que esperamos que aconteça ao nos manter completamente esfacelados e sem
maior clareza do que queremos para o campo de Saúde Mental? Perguntamos com Elia
(2011b, p. 4) se nós que estão inseridos nesse campo “queremos algo que seja comum a
um número significativo de nós, que possa ter, hoje, o lugar de causa para algum
movimento”. Até quando nos manteremos em uma posição avessa à discussão teórica e
epistemológica permitindo que saberes com seus referenciais pouco explicitados e velados
encontre o campo da Saúde Mental com suas teorias que só aparentemente lhe são tão
estranhas e não completamente forasteiras ao seu campo, tais como já deu mostra a
medicina do comportamento, com seu organicismo violento associado a um
comportamentalismo cognitivo e adestrador? Com essa posição permitimos que o saber
implicado continue velado, fazendo-se passar por ausência de teoria ou de saber, para com
isso fazer pactuações com não importa que saberes, conforme os diferentes interesses. Há
um saber que se faz velar, camuflar assim como uma ambigüidade dos saberes utilizados
pela Reforma para evitar um compromisso teórico mais conseqüente e responsável.
Apresentamos a teoria e clínica psicanalítica da psicose através das balizas
estabelecidas pelo inventor da psicanálise, Sigmund Freud e da estruturação sustentada por
Jacques Lacan, teoria muitas vezes tomada como de difícil compreensão, porém
decididamente a que pode dar sustentação de maneira satisfatória frente à impactante
clínica que é a da psicose, especialmente no dispositivo dos CAPS.
Por outro lado trouxemos uma questão polêmica, esta especificamente para os
psicanalistas, que diz respeito ao que se faz dentro do campo de Saúde Mental. Se ainda
hoje os que não são psicanalistas questionam a presença da psicanálise nas instituições e se
por outro lado, algumas Escolas de Psicanálise declaram não ser psicanálise o que se faz no
campo público, outros, porém defendem que o que se faz pode ser atravessado pela
psicanálise e produzir uma mudança na clínica institucional sem, no entanto reconhecer em
sua prática a psicanálise stricto sensu, como é o caso da prática entre vários. Em outra
direção temos os pesquisadores e autores da psicanálise com muitos que afirmam praticar a
psicanálise com todo o seu rigor ao mesmo tempo em que cumprem os princípios da
Reforma Psiquiátrica através de uma psicanálise coletiva. Esta última posição é a que
158
apontamos como uma direção para a construção da clínica, ausente nos CAPS que atendem
a população de adultos.
Só uma clínica, e uma clínica que tenha sustentação teórico-clínica consistente
como é a da psicanálise, que leve em conta o diagnóstico estrutural, sustentada pela escuta
do sujeito, levando em conta a dimensão transferencial, pode ser recurso para a
permanência dos pacientes no dispositivo de uma maneira a propiciar que o paciente
construa e fortaleça seus laços de pertencimento de uma maneira eficiente bem como
influenciar a política do campo de Saúde Mental a permanecer dentro de seus pilares.
Podemos dizer que assim como proposto no início de nossa pesquisa pudemos
experienciar além dos princípios da inclusão do sujeito pela via do inconsciente, de fazer
da clínica o lugar de produção do saber fazendo coincidir tratamento e investigação,
tomando cada caso como se fosse o primeiro em nosso campo de pesquisa que foi a clínica,
pudemos provar os efeitos de nos colocar numa posição de trabalho, posição de analisante
frente a pesquisa, de nos colocar como um sujeito dividido a partir do saber constitutivo do
campo do inconsciente.
Dois intervalos marcam os efeitos descritos acima. Durante o ano de 2009 nos
afastamos do CAPS com adultos em Minas Gerais para desenvolvermos a primeira parte
de nossa pesquisa no CAPSi Pequeno Hans no Rio de Janeiro. Esse intervalo atesta uma
mudança subjetiva frente à clínica. Ao retornar em 2010 para prosseguir nossa pesquisa no
CAPS, éramos como um estrangeiro. O CAPS era o mesmo, com muitos dos pacientes de
antes, mas a pesquisadora não. Foi surpreendente ler algumas de nossas anotações antigas
em alguns prontuários como, por exemplo, “o paciente apresenta-se inadequado,
incoerente”. Ao ler as anotações pudemos verificar que a inadequação o tempo todo era
nossa. Aquele paciente de quem nós revíamos as anotações no prontuário, bem como todos
os outros, sempre estiveram totalmente coerentes em sua norma não fálica e nos falaram
coisas que nunca pudemos ouvir. Os pacientes estiveram presentes como sujeitos
esperando um analista que desejasse e pudesse estar na clínica em uma posição freudiana
de investigação e tratamento.
O segundo intervalo entre 2010 até o final da presente pesquisa testemunha outra
mudança subjetiva, dessa vez frente ao texto freudiano e lacaniano podendo haver uma
possibilidade de mais diálogo frente aos textos e certa autoria.
A pesquisadora que iniciou essa pesquisa nunca mais foi vista. Uma outra pôde
continuar se colocando em trabalho e prosseguir a pesquisa. Essa dissertação é o resultado
desse percur
159
REFERÊNCIAS
ALBERTI, S. Anotações do seminário teórico clínico de psicanálise do mestrado em
pesquisa e clínica em psicanálise. Rio de Janeiro: UERJ, 2009a.
______. Esse sujeito adolescente. 3. ed. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; Contra Capa,
2009b.
______. Psicanálise e discurso: a clínica no campo social. In: GUERRA, A. M.;
MOREIRA, J. O. (Org.). A psicanálise nas Instituições Públicas. Curitiba. Editora CRV,
2010.
AMANCIO, V. R. O amor e seus transtornos na neurose e na psicose. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL,9., 2010, Curitiba e
CONGRESSO NACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 10., 2010,
Curitiba. O amor e seus transtornos. Curitiba : Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental, 2010. Cópia Impressa.
AMARAL, N. A foraclusão dos Nomes do Pai. In: JORNADA BRASILEIRA DE
CONVERGÊNCIA, 8., 2009, Niterói, RJ. Os nomes do Pai. (Cópia mimeografada).
AMARAL, N.; ELIA, L. O que autoriza a denominar de psicanálise o que fazemos na
instituição pública de saúde mental? In: JORNADA BRASILEIRO DE
CONVERGÊNCIA, 7., 2008, Varginha, MG. Psicanálise e instituição. (Cópia
mimeografada).
AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de
Janeiro: SDE/ENSP, 1995.
ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
ANDREASEN, Nancy. DSM and the death of Phenomenology in America: An exemple
of unintended consequences. In: ELIA, L Schizophrenia bulletin advance Access. Oxford:
University Press, 2006. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Disponível em:
<[email protected]>. Acesso em: 17 abr. 2011a.
ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.
BARLETA, C. B. A supervisão clínico-institucional. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL,9., 2010, Curitiba e
CONGRESSO NACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 10., 2010,
Curitiba. O amor e seus transtornos. Curitiba : Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental, 2010. Cópia Impressa.
BARRETO, F. P. A clínica do sujeito no serviço público. Revista Minas sem Manicômios:
a loucura e as cidades: mapas de Minas, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2004.
160
BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de Genebra. São Paulo; Barueri : Cultura Cristã e
Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 1728 p. Daniel. 5:1-31.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial.
Brasília: Ministério da Saúde, 2004a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde.
Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. ed. amp. Brasília: Ministério da Saúde: 2004b.
BRASIL. Sistema Único de Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Organizadora
da III CNSM. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília:
Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, 2001 a. Disponível em: <http://portal.
saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_da_3_ conferencia_de_saude_mental.pdf>.
Acesso em: 21 set. 2010.
COSTA, A. Anotações do seminário teórico clínico de psicanálise do mestrado em
pesquisa e clínica em psicanálise. Rio de Janeiro: UERJ, 2009.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 1., 1987, Brasília. I Conferência
Nacional de Saúde Mental: relatório final. Brasília: Centro de Documentação do
Ministério da Saúde, 1988. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/
relatorio_da_1_ conferencia_de_saude_mental.pdf>. Acesso em: 29 maio 2010.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 2., Brasília, 1992. II Conferência
Nacional de Saúde Mental: relatório final. Brasília: Centro de Documentação do
Ministério da Saúde, 1992. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/
pdf/relatorio_da_2_conferencia_de_saude_mental.pdf >. Acesso em: 5 jun. 2010.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 3., 2001, Brasília). III Conferencia
Nacional de Saúde Mental: caderno de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cadernos_de_textos_
conferencia_saude_mental.pdf Informativo eletrônico (acesso em 05/06/2010).
DELGADO, P. G. Cidadania e saúde mental. Cadernos CEPIA, Rio de Janeiro, n. 4, 1998.
______No litoral do vasto mundo: Lei 10.216 e a amplitude da Reforma Psiquiátrica. In:
VENÂNCIO, A.T. A; CAVALCANTI, M.T. Saúde Mental: campo, saberes e discursos.
Rio de Janeiro: Edições IPUB/ CUCA. 2001.
Di CIACCIA, A. Inventar a psicanálise na instituição. In: PRIMEIRO ENCONTRO
AMERICANO DO CAMPO FREUDIANO. Os usos da psicanálise. Rio de Janeiro:
Contra capa, 2003.
______. A prática entre vários. In: MELLO, M.L; ALTOÉ, S. (Orgs.). Psicanálise, clínica
e instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.
ELIA, L. F. Se o analista não recua diante da psicose, o psicótico avança diante do analista.
Um quarto nó: revista do NAT, v. 1, 1991.
161
ELIA, L. F. Para além da sexualidade: a psicose na psicanálise [tese]. Rio de Janeiro,:
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação e
Pesquisa em Psicologia Clínica, 1992. 429 f.
______. Documento para a reunião sobre diretrizes para uma política pública se saúde
mental para crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro. [Rio de Janeiro]: [s.n.],
1999. Cópia mimeografada.
______. Psicanálise: clínica & pesquisa. In: ALBERTI, S.; ELIA, L. (Orgs.). Clínica e
Pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.
______. Medicalização, Produção Social e Grupos: quais os fundamentos conceituais
destas clínicas? In: SEMINÁRIO INTERSETORIAL DA AP3.3, 1., 2004. Rio de Janeiro:
[s.n.], 2004.
______. Curso de formação em atenção psicossocial para crianças e adolescentes.
Módulo sobre Acolhimento Universal. [S.l.]: [s.n.], 2005a. Cópia mimeografada.
______. A importância da supervisão e do supervisor em uma equipe de saúde mental.
[S.l.]: [s.n.], 2005b. Cópia mimeografada.
______. A rede da atenção na saúde mental: articulações entre CAPS e ambulatórios. In:
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil.
2. ed. rev. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005c.
______. Desenvolvimento, estrutura e gozo. [S.l.]: [s.n.], 2006. Cópia mimeografada.
______. A psicanálise com muitos na clínica institucional pública de saúde mental infantojuvenil: relatório prociência triênio 2005-2008 - FAPERJ. Rio de Janeiro, 2009.
______. In: CAPSi na reforma. Lista de discussão. Disponível em:
<[email protected]>. Acesso em: 7 abr. 2011a.
_______. Resposta política ao atual quadro de saúde mental. In: CAPSi na reforma. Lista
de discussão. Disponível em <[email protected]>. Acesso em 05 jun.
2011b.
ELIA, L; GALVÃO, M. S. Estratégias de desconstrução da instituição fechada e produção
de subjetividade. In: CASTRO, Neli; DELGADO, P.G. (Orgs). De volta á cidadania:
políticas públicas para crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia
/FUNLAR, 2000.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993.
FIGUEIREDO, A. C. O que faz um psicanalista na saúde mental. In: VENANCIO, A.T;
CAVALCANTI (Orgs.). M.T. Saúde Mental: campo, saberes e discursos. Rio de Janeiro:
Edições IPUB-CUCA, 2001.
162
FIGUEIREDO, A. C. ______. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica
psicanalítica no ambulatório público. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.
______ Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial.
MENTAL : revista de saúde mental e subjetividade da UNIPAC, Barbacena, v.3, n. 5, p.
43-55, nov. 2005.
______. A função da psicanálise (e do psicanalista) na clínica da atenção psicossocial. In:
NASCIMENTO, E. ; GONZÁLES, R.C. (Orgs.). Psicanálise e os desafios da clínica na
contemporaneidade. Salvador: EDUFBA, 2007. (Série Teoria da Clínica Psicanalítica, n.
2).
______. A saúde mental e seus transtornos: três décadas no processo brasileiro. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 4., 2010,
Curitiba e CONGRESSO NACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 10.,
2010, Curitiba.O amor e seus transtornos. Curitiba: Associação Universitária de Pesquisa
em Psicopatologia Fundamental, 2010. Comunicado em conferência através de
PowerPoint.
FIGUEIREDO, A. C; GUERRA, A.M; DIOGO, D. R. O trabalho em equipe na atenção
psicossocial: a ‘prática entre vários’. [S.l.: s. n., 2006]. Disponível em:
<http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.40.3.htm>. Acesso em:
21 out. 2009.
FRANÇA NETO, O. Uma ética para os novos desdobramentos da reforma psiquiátrica.
Ágora, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p. 119-129, 2009. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982009000100008> Acesso em: 30 jan 2010.
FREUD, S. Psiconeuroses de defesa (1894). In: ______.Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. 3.
______. Projeto para uma psicologia científica [1895 (1950)a]. In:______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de
Janeiro: Imago, 1987a.
______. Rascunho G: melancolia [1895 (1950)b]. In: ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987b.
______. A interpretação dos sonhos [1900]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987c.
______. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia
(Dementia paranoides) [1911]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987d.
______. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. [1912]. 2. ed. In: ______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1987e.
163
FREUD, S. Sobre o início do tratamento [1913]. 2. ed. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1987f.
______. Sobre o narcisismo: uma introdução [1914]. 2. ed. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1987g.
______. Observações sobre o amor de transferência [1914a]. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1987h.
______. O inconsciente [1915]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987i.
______. Luto e melancolia [1915-1917]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987j.
______ Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. [1915-1917b]. 2. ed. In:______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1987l.
______. Linhas de progresso da teoria psicanalítica [1918 (1919)]. 2. ed. In:______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1987m.
______.O estranho [1919]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987n.
______. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. 2. ed. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1987o.
______. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade [1923].
2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987p.
______. Neurose e psicose [1924]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987q.
______. A perda da realidade na neurose e na psicose [1924a]. 2. ed. In: ______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1987r.
______. Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1925].
2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987s.
______. A negativa [1925a]. 2. ed. In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987t.
164
______. Sexualidade feminina [1931]. 2. Ed. In: ______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987u.
GARCIA, C. Prefácio. In: LOBOSQUE, A. M. Princípios para uma clínica
antimanicomial e outros escritos. São Paulo: Hucitec, 1997.
GARCIA, M. M. Desejo e psicose: uma breve introdução. In: RINALDI, D; JORGE, M.
A. C. Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002.
GRECO, M. G. Oficina uma questão de lugar. In: COSTA C. L.; FIGUEIREDO, A.C.
(Orgs). Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2008.
GUERRA, A. A psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
GUERRA, A; GENEROSO, C. Desinserção social e habitação: uma contribuição da
psicanálise ao campo da saúde mental. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE
PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 4., 2010, Curitiba; CONGRESSO NACIONAL
DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL, 10., 2010, Curitiba. Curitiba: Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, 2010. Cópia Impressa.
GUYOMARD, Patrick. O gozo do trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1996.
LACAN, J. O Seminário, Livro 6 : o desejo e sua interpretação [1958-1959]. Seminário
Inédito. Cópia mimeografada.
LACAN, J. O Seminário, Livro 22: R. S. I. [1974-1975]. Seminário Inédito. Cópia
mimeografada.
______. Ouverture de La Section Clinique. In: ______.Ornicar?, n. 9. Paris: Seuil, 1977.
______. O Seminário, Livro 1 : os escritos técnicos de Freud [1953-1954]. Rio de Janeiro:
J. Zahar, 1983.
______. Comptes rendus d’enseignements [1967-1968]. In: ______.L’Acte
psychanalytique Ornicar?, n. 29. Paris: Navarin, 1984.
______. O Seminário, Livro 3 : as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
______. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964].
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.
______. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1991.
______. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1992.
165
LACAN, J. O saber do psicanalista [1971-1972]. Recife: Centro de Estudos Freudianos do
Recife, 1997.
______. Formulações sobre causalidade psíquica [1946]. In: ______.Escritos. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1998.
______. O estádio do espelho como formador da função do sujeito [1949]. In:______.
Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998a.
______. Variantes do tratamento-padrão [1953]. In: ______.Escritos. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1998b.
______. A instância da letra no inconsciente [1957]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro:
J. Zahar, 1998c.
______. A direção do tratamento e os princípios do seu poder [1958a]. In:______.
Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998d.
_____. De uma questão preliminar para todo tratamento possível da psicose [1958b].
In:______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998e.
______. Subversão do sujeito e dialética do desejo [1960]. In: ______.Escritos. Rio de
Janeiro, J. Zahar, 1998f.
______. Ciência e verdade [1966]. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998g.
______. O seminário sobre a carta roubada [1966a]. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1998h.
______. O aturdito [1973]. In: ______.Escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar, 1998i.
______. O Seminário, Livro 5 : as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro:
J. Zahar, 1999.
______. A terceira [1974a]. CADERNOS LACAN, Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, v. 2, 2001.
______. O Seminário, Livro 9: a identificação [1961-1962]. Recife: Centro de Estudos
Freudianos do Recife, 2003.
______. Ato de fundação [1964a]. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro. J. Zahar,
2003a.
______. Proposição de 9 Outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola [1968].
____________. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro. J. Zahar, 2003b.
______. Televisão [1974b]. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar, 2003c.
______. O Seminário, Livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.
166
LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: J. Zahar,
2007.
______. O Seminário, Livro 14: a lógica do fantasma [1966-1967]. Recife: Centro de
Estudos Freudianos do Recife, 2008.
______. Lição sobre Lituraterra [1971]. In: ______. O Seminário, Livro 18: de um discurso
que não fosse do semblante. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.
LAURENT, E. Psicanálise e saúde mental. Belo Horizonte : EBP-MG, 2000.
LOBOSQUE, A. M. Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos. São
Paulo: Hucitec, 1997.
______. Universidade e reforma psiquiátrica: um encontro a construir. In: ______.
Universidade e reforma psiquiátrica: interrogando a distância. Belo Horizonte: ESP-MG,
2009. (Cadernos de saúde mental, v.2).
MAURANO, D. Nau do desejo: o percurso da ética de Freud a Lacan. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1995.
______. Anotações do seminário sobre O Seminário, Livro 20: mais, ainda de Jacques
Lacan. Varginha: [s.n.], 1998.
MILNER, J. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro. J. Zahar, 1996.
SOUZA, Marta Elisabeth de Souza. Atenção em saúde mental. 2. ed. Belo Horizonte:
Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde, 2007.
MUÑOZ, N. M. Do amor à amizade na psicose: contribuições da psicanálise ao campo da
saúde mental. Rev. Latinoam. Psicopatol. Fundam, [s.l.], v.13, n.1, p. 87-101, 2010.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142010000100006>. Acesso em: 24
out 2010.
OLIVEIRA, E. Ouvindo vozes. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2009.
OURY, J. O coletivo. São Paulo: Hucitec, 2009.
PEREIRA, M. D. Onde está o sujeito? A transferência na psicanálise com muitos. 117 f.
Dissertação (Mestrado em Psicanálise) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.
PINTO, R F. CAPSI para crianças e adolescentes autistas e psicóticos: a contribuição da
psicanálise na construção de um dispositivo analítico. Rio de Janeiro: Museu da República,
2007.
QUINET, A. As 4+ 1 condições da análise. 6. ed. Rio de Janeiro. J. Zahar, 1997.
______. Psicose e laço social. Rio de Janeiro. J. Zahar, 2006.
167
QUINET, A. A terapia breve de Miller. JORNAL O GLOBO, Rio de Janeiro, 12 ago.
2007. Revista de domingo, p. 2.
______. Teoria e clínica da psicose. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
RAJCHMAN, John. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro:
J. Zahar, 1993.
RIGUINI, R. Da passagem ao ato à transferência: duas soluções em um caso de psicose.
Revista Psiquê, [s.l.], v. 9, n. 16, p. 153-164, 2005.
RESENDE, H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, S.A;
COSTA, N. R. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1987.
RINALDI, D. A ética da diferença: um debate entre psicanálise e antropologia. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1996.
______. O acolhimento, a escuta, e o cuidado: algumas notas sobre o tratamento da
loucura. Em Pauta: revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, n. 16,
jan./jul. 2000.
______. Clínica e política: a direção do tratamento psicanalítico no campo da saúde
mental. In: LIMA, M.; ALTOÉ, S. (Org.). Psicanálise, clínica e instituição. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.
______. Escrita e invenção. In: COSTA, A; RINALDI, D. (Org.). Escrita e psicanálise.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2007.
RINALDI, D; BURSZTYN, D. C. A reinvenção da clínica. [S.l.: s.n.], 2006 Disponível
em: <http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.40.3.1.htm> Acesso em:
22 abr. 2009.
SANTOS, K. O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da psicose
infantil. 2001. 123 f. Dissertação (Mestrado em Psicanálise) - Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
______. Ato e discurso no dispositivo analítico com o autismo e a psicose infantil. In:
RINALDI, D.; JORGE, M.A.C. (Orgs.). Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2002.
SANTOS, K; ELIA, L. Bem-dizer uma experiência. In: LIMA, M.; ALTOÉ, S. (Orgs.).
Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.
SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma prática á espera de teoria. In: PITTA, A.
(Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
______. Libertando identidades. Da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de
Janeiro: Editora Te Cora, 1999.
168
SARTORI A.P. Algumas considerações sobre S1 e o laço social na psicose. In: RINALDI,
D. JORGE, M. A. C. Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002.
SAÚDE MENTAL EM DADOS, Brasília, v. 5, n. 7, jun. 2010. Edição especial.
Disponível em: <www.saude.gov.br/bvs/saudemental>. Acesso em: 16 out. 2010.
(Informativo eletrônico de dados sobre a Política Nacional de Saúde Mental.)
SCHEREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos (1903). 3. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1995.
SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro. J. Zahar, 2007.
SOUZA, N. S. De letra morta a litoral: o delírio. UM QUARTO NÓ? : revista do NAT, Rio
de Janeiro : Núcleo de Atendimento e Transmissão da Psicanálise Aplicada ao Campo das
Psicosesn., n.1, 1991.
______. A psicose – um estudo lacaniano. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Revinter,
1999.
STEVENS, A. A instituição: prática do ato. Carta de São Paulo. BOLETIM DA ESCOLA
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE, v. 10, n. 4, ago./set. 2003.
TENÓRIO, F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.
______. A psicopatologia como elemento da atenção psicossocial. In: ALBERTI, S.;
FIGUEIREDO, A. C. (Orgs.). Psicanálise e saúde mental: uma aposta. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2006.
VERZZTMAN; GUTMAN. A clínica dos espaços coletivos e as psicoses. In:
VENÂNCIO, A.T. A; CAVALCANTI, M.T. Saúde mental: campo, saberes e discursos.
Rio de Janeiro: Edições IPUB/ CUCA, 2001.
ZENONI, A. Psicanálise e instituição. Belo Horizonte: Abrecampos, 2000.
Download

Dissert ValdeneAmancio