Salvador - Bahia Julho de 2007 A Clínica Psicossocial das Psicoses Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. Programa a de Intensificação de Cuidados Pacientes Psicóticos Parceria: •Hospital Especializado em Psiquiatria Mario Leal - SESAB •Curso de Terapia Ocupacional da Fundação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências •Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. “Não existe nada mais profundo e revolucionário nos dias de hoje do que a preocupação com o outro” Noam Choamsky “Se quero o outro comigo, fraco, cansado ou louco, tenho que deixar sempre abertas as portas do meu coração....” Marcus Vinicius de Oliveira “De quem será, cuidado? Fico sempre tão impressionado com o muito muito que se faz do pouco pouco que é dado. Do residir assombrado que germina assim, tão frágil semente, ganhando vulto em solo adubado. De quem será? Do semeador, do semeado? Vivo a pergunta do mérito, da relação entre os dois, cuidado.” Marcus Vinicius de Oliveira Editor: Marcus Vinícius de Oliveira Silva Co-editora: Lygia Freitas Revisão: Lygia Freitas Editoração: Wendel Barreto Projeto Gráfico: Wendel Barreto Apoio: In-tensa. Ex-tensa / Universidade Federal da Bahia. Departamento de Psicologia, PIC ¬Programa de intensificação de cuidados e pacientes psicóticos. Ano I, n. I (2007) - Salvador, BA: UFBA, FFCH, 2007. I.Saúde mental. 2. Psicoses. 3. Pacientes - Psicologia. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia e Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. CDD - 616.89 “Todos os artigos podem ser reproduzindos desde que citada a fonte”. © Marcus Vinicius de Oliveira Silva LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental Departamento de Psicologia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal da Bahia End.: Rua Aristides Novis n 2, Estrada de São Lázaro Cep: 40210 730, Salvador - Bahia email: [email protected] www.lev.ffch.ufba.br Salvador - Bahia Julho de 2007 A Clínica Psicossocial das Psicoses Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. Sumário Entrevista • 15 - Entrevista com Eduarda Motta e Marcus Vinícius de Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Artigos de crença • 40 - A clínica integral: o paradigma “psicossocial” como uma exigência da Clínica das Psicoses • 42 - Loucura, cultura, instituição e sociedade • 52 - Psicose e ressonâncias sociais • 70 - A família na psicose • 78 - Psiquismo e sociedade: a psicose e os grupos • 89 - A psicose e as relações vinculares: um esforço de referenciação teórica Fazendo o PIC acontecer • 97 - A clínica psicossocial da psicose: aprendizagem, cuidado intensificado e reinserção social • 106 - Programa de Intensificação de Cuidados: um caminho para a qualidade de vida • 114 - Programa de Intensificação de Cuidados: uma experiência de intervenção psicossocial Estratégias • 125 - A assistência domiciliar no âmbito do cuidado à saúde mental • 136 - Atenção domiciliar: uma tecnologia de cuidado em saúde mental • 141 - A formação de díades no trato com a loucura: acompanhando o acompanhante • 146 - Supervisão: espaço de continência, aprendizado e reflexões Complexidades • 151 - A abordagem da crise na psicose • 169 - Dança e xadrez: o papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de Felipe • 180 - O solitário na multidão: a solidão da diferença • 192 - Transbordamento psicótico: desafios e possibilidades de intervenção • 202 - A.T. – que relação é essa? • 208 - Derrubando muros, construindo vínculos: intensificação de cuidados no HCT-BA • 216 - Psicose negra: a imagem de si e a recusa do corpo Ressonâncias • 223 - Ela não pode ser mãe – quando maternidade e loucura se cruzam • 228 - Encontros e desencontros com a psicose • 238 - Causos dos casos – o incrível poder do vínculo • 240 - Entre amores, quase-amores e não-amores Dados e Eventos • 251 - O BPC e a banalização da interdição judicial: um exemplo de atuação clínico-política • 254 - O PIC em Letra e Número 9 Editorial As psicoses são tensas. Tensas para fora. Tensas para dentro. Registro de uma experiência subjetiva de precários equilíbrios do sujeito, instabilizadora de sua presença no mundo social. O sujeito psicótico vive o enigma da sua pertença como sócio da sociedade como uma produção subjetiva complexa, tensa e, por vezes, dolorosa. A psicose também se apresenta como fonte de tensão para aqueles que se dispõem a ocupar um lugar de cuidador diante dela. A clínica das psicoses é uma clínica tensa. Tensa para dentro, fazendo importantes exigências subjetivas para que seu agente possa estar bem situado diante de um sujeito que se movimenta em precária estabilidade possibilitada pelo seu arranjo psíquico. Tensa para fora, exigindo que seu agente disponha de habilidades de mediador, intermediário entre as necessidades sinalizadas pelo sujeito e as exigências da cultura. O ensino da clínica das psicoses é também tenso. Tenso para fora. Espaço de uma disputa teóricoconceitual entre concepções que divergem sobre a sua natureza e sobre a priorização dos cuidados que devem ser ensinados aos futuros profissionais. Tenso para dentro: como ensinar? Como aprender? Como transmitir matéria que articula objetividade e subjetividade, num fazer que se situa nos limites entre a técnica e a arte? Os espaços institucionais de cuidado dos sujeitos psicóticos são tensos. Tensos para dentro, no manejo dos settings que pretendem proteger (a quem?), isolar, excluir os sujeitos psicóticos e o agente de cuidados no mundo reduzido das hospitalizações, das emergências e dos consultórios acéticos. Tensos para fora, diante da exigência ética de uma clínica que se construa no território, ocupando a cidade e fazendo circular as representações estagnadas sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos. In-tensa. Ex-tensa. Neste número, o PIC - Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, submete-se à revista. Prestamos contas de um ensino que se faz extra-muros, em que a universidade executa extensão e pesquisa. Revela o vigor próprio da vida que existe fora das salas de aula como um recurso de aprendizagem e para a produção de conhecimento. Ensino que articula a teoria e a prática, prestando serviços à população e participando ativamente da disputa teórica e técnica acerca dos conceitos que devem orientar a Reforma Psiquiátrica brasileira. 11 Intensificação de cuidados versus internação hospitalar: dois projetos distintos em suas éticas, em suas técnicas, suas formas de se transmitir. Intensificação de cuidados, esforço para identificar, decodificar as necessidades dos sujeitos chamados psicóticos, para fazer segundo suas necessidades e não segundo as possibilidades – sempre menores e mesquinhas – que geralmente conformam o conforto das instituições e profissionais. Clínica que se faz onde o sujeito vive e habita, em seu domicílio e com a sua “comunidade”: sua família e seus conhecidos, os sócios com os quais ele compartilha sua vida social. Articulando recursos diversos - Atenção Domiciliar, Acompanhamento Terapêutico, Coletivos de Convivência, Redes Sociais, Suporte e Assessoria, Cuidados à Família, projetos, passeios, festas e uma regra única: intensificar os cuidados humanos, realizando as ofertas compatíveis com as necessidades dos sujeitos, assumindo as responsabilidades através de uma presença intensa e orientada. Clínica Psicossocial. Resgatamos do limbo este conceito que, apesar de nomear o carro chefe da nova institucionalização dos serviços territoriais - os CAPS - não parece estar merecendo maiores atenções. Centro de Atenção Psicossocial, onde o signo em questão parece registrar apenas, sob forma de junção, a urgência de se considerar uma certa dimensão expurgada – o social – das teorias hegemônicas da clínica que fazem, no mesmo viés individualista, o triunfo do biológico e do psíquico. Ilusão, pois fora da sociedade não existe sociedade. Todos os fatos psíquicos são fatos sociais. Não existe sociedade humana que não se inscreva psiquicamente. Contra o que há que se afirmar: por uma Clínica Integral das Psicoses. As demais não serão senão a sua redução. Os artigos que fazem parte dessa coletânea têm o sabor da espontaneidade com que foram produzidos: por absoluta necessidade dos estagiários darem conta das suas experiências e sem qualquer exigência acadêmica que os obrigasse a isso – coisa rara e deliciosa para quem trabalha com a transmissão. Tentativas de articular a marca de uma experiência forte, que tem como pressuposto a idéia de que a psicose, ela própria, nos ensina. Aprendizes de feiticeiros, os estagiários que participaram do nosso programa imprimem nos seus escritos um pouco de sua técnica e sua arte: um desejo, uma coragem de viver assim tão próximos deste encontro com a realidade delicada dos sujeitos atendidos, com uma cidade maltratada, com os domicílios simples e muitas vezes precários, ruas, ruelas, becos, faltas e carências diversas, desorganização social e psíquica, pobreza e desalento. Para desse mundo tão duro e doído, extraírem a riqueza dos sons, cores, palavras, encontros que traduzem as emoções proporcionadas pela oportunidade 12 de estarem vivendo a vida tal como ela é, fora das salas de aula e das proteções que, muitas vezes, os mimam e os sedam. Cada um trouxe o que tinha e o que pôde aportar, o que lhe marcou no seu encontro e enganchamento com a clínica da psicose. Resultado de uma transmissão que se fez. Supervisores, patronos e cúmplices - Eduarda Mota e eu - cumprimos com satisfação a tarefa de coordená-los e organizar essa possibilidade da sua expressão inaugural, contando cada um o que viveu. De minha parte, incluo nessa publicação despretensiosamente alguns dos meus “artigos de crença”: aulas e notas que expressam um esforço pessoal para cultivar a teoria como recurso generoso que, distribuído, nos iguala e nivela na tarefa-obrigação de sustentarmos publicamente a explicitação do que fazemos, o que ensinamos, por que o fazemos e por que o ensinamos. Que a Clínica Psicossocial das Psicoses que juntos temos reinventado nesses quatro anos de existência do nosso PIC possa nos trazer novas emoções e um próximo número. Que cada texto seja capaz de falar em nome do seu autor. Marcus Vinicius de Oliveira Silva Editor 13 Entrevista com Eduarda Mota e Marcus Vinícius Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos 1 Como surgiu a proposta de criação do PIC? Marcus - A grande questão que nos orientou, no começo, foi a questão do enfrentamento da idéia da necessidade da “internação”, a famosa idéia da necessidade desta ação como “retaguarda” para a clínica da psicose. O lugar do recurso à internação talvez seja hoje o ponto central do debate ideológico da Refor1-Esta entrevista foi realizada por Noêmia de Aragão Casais como parte do material de base para monografia do Curso de Especialização em Saúde Mental do Departamento de Neuropsiquiatria da UFBA e editada por Marcus Vinícius de Oliveira Silva. ma Psiquiátrica. Todo mundo é a favor de modernização dos serviços, todo mundo é a favor de serviços que atendam mais integralmente, todo mundo é a favor de criar acessibilidade dos pacientes ao serviço. A grande questão que pega no debate da Reforma Psiquiátrica é quando a gente tem de precisar se a nossa Reforma Psiquiátrica é uma Reforma que substitui a internação, se tem a vocação de ser substitutiva à internação, se tudo isto que estamos fazendo, se todo este aparato institucional irá substituir a internação ou se o hospital psiquiátrico ou a idéia de leito hospitalar vai continuar operando como um conceito fundamental da Reforma. Então, esta tensão é uma tensão que nos interessa radicalizar, porque existem aqueles que defendem a idéia do leito hospitalar como um componente fundamental da Reforma, ou seja, que não pode 15 ter a Reforma sem a presença do leito hospitalar (aí eu estou falando, principalmente, do leito hospitalar em psiquiatria; mas também da idéia do leito do Hospital Geral como uma retaguarda da assistência aos pacientes em crise). Reforma Psiquiátrica sem o fim dos manicômios? montar um monte de CAPS, Hospital Dia, Centros de Convivência, mas manter em nosso sistema um hospital psiquiátrico “do bem”, um pequeno hospital psiquiátrico, aliás, ampliar mais alguns leitos para garantir que o paciente, quando entrar em crise, muito em crise, possa ser internado no hospital psiquiátrico. Mas o CAPS III não teria esta finalidade de Marcus - Sim. Digo que este é o ponto nevrál- lidar com crises? gico de disputa do debate em torno da Reforma. Qual o lugar do leito? O conceito de leito envolve Eduarda - Na Espanha, eles têm Hospital Dia, o paciente deitado, o paciente fragilizado, o paCentro Dia. Mas também ciente que precisa estar circunscrito espacialmentêm hospital psiquiátrico te para receber um determinado cuidado. E então extremamente moderno, e, existe outra posição que diz que o conceito de quando eu estava lá, eles leito hospitalar é absolutamente prescindível, não inauguraram um hospital precisamos do conceito de leito hospitalar para psiquiátrico para adolesfazer a Reforma, para fazer a clínica da Reforma, centes com quarto forte e que contrapõe á idéia de leito hospitalar à idéia todo forrado, com uma de cuidados intensivos. Porque afinal de contas, parte de informática. Então, o que o leito hospitalar deveria oferecer é o cuié uma modernização do dado intensivo. A idéia de leito hospitalar para hospital psiquiátrico. A conqualquer outra clínica da medicina diz respeito à traposição exprime o conceito de albergamento, circunscrição espacial, espacialidade num edifí- acolhimento, o CAPS III deve fazer a hospitalidacio, num prédio, de um conjunto de recursos que de noturna. Mas veja: é a idéia de hospitalidade, podem ser colocado, simultaneamente, à disposi- e não de hospitalização, um outro conceito. Cabe ção do sujeito. A pergunta é: o que, na atenção a todos os CAPS lidar com a crise, não se trata de psiquiátrica, nós podemos defender, que tipo de um lugar, de uma instituição, mas de uma atitude concepção sustenta que a idéia de leito hospitalar clínica compatível com as exigências de quem vai é mais adequada para orientar a organização do substituir o hospital psiquiátrico. serviço? Porque, se for assim, nós temos sujeitos que vão defender que a gente tem de ter a instituição psiquiátrica “do bem”. Que a gente vá 16 Como surgiu essa idéia de intensificação de cui- qualidade de vida, em sua posição no mundo, em sua liberdade. E é por isso que digo que não dados? há um programa realmente, que o programa é, Marcus - A idéia da intensificação de cuidados na verdade, a presença dos estagiários lá com os é a idéia de oferecimento de cuidados intensivos pacientes, é uma presença orientada. a pacientes psiquiátricos que têm história de internação freqüente e laços sociais muito frágeis. En- Então cuidados intensivos são uma tecnologia tão, dizemos assim: vamos montar um modelo de de assistência? atuação clínica, um modo de atuar, ou seja, uma Eduarda - Com relação ao aspecto da tecnoatitude clínica que possa abordar esses pacientes e buscar intervir na dinâmica de suas vidas com logia, a nossa é justamente a presença do outro, essas ofertas. Essa idéia é o nosso grande patri- é a pessoa, é o investimento na relação. Quando mônio, porque existe uma grande precariedade se faz analogia com o hospital, com a UTI tem a de nossa estrutura institucional de suporte do es- questão da presença do outro, mas também tem tágio na instituição, de tal forma que a única coisa toda sofisticação de aparelhagem tecnológica; na que a gente acabou, não intencionalmente, mas saúde mental, a sofisticação é a da presença, das por força das circunstâncias, radicalizando foi o idéias, do pensar clínico. É também um pensaconceito da presença clínica. O que a gente tem mento sofisticado. É uma verticalização, não inpara oferecer é a presença clínica e mais nada. A tencional, porque, de fato, nós temos uma posigente tenta articular, através dessa presença, ou- ção periférica na instituição. tros recursos, mas o programa mesmo só oferece Marcus - Estávamos discutindo essa questão, a presença clínica. Essa atitude que ele tem de cuidado intensivo, entendendo cuidado intensi- porque a gente ainda sente que há essa diferenvo como intensificação de investimento humano, ciação do nosso programa com a totalidade da contrapondo à idéia de tecnologia, aparato tec- instituição que nos abriga. Estávamos localizando nológico, parafernálias institucionais, equipamen- isso. O Mário Leal é uma instituição que ainda tos e tal. A grande tecnologia é o investimento mantém o modelo bastante tradicional de oferta humano. Então, o programa está baseado, fun- de assistência, é um hospital referência na Bahia, damentalmente, na idéia de promover um intenso histórico, inclusive, mas uma instituição tradicioinvestimento humano, cuidado como investimento nal que ainda mantém o modelo antigo de atenhumano, em prol das necessidades do sujeito que ção à saúde mental. E nós, de certa forma, estaestá em crise ou deste sujeito psicótico no mundo, mos fazendo uma provocação, que é o oposto. e ver o que a gente pode fazer, através deste in- Chega a ser quase crua na instituição a presença vestimento, para produzir uma mudança em sua das idéias da Reforma, sendo um contexto pouco 17 sensível à ideologia da Reforma. O Mário Leal possui ambulatório que funciona, às vezes, com aprazamento de quatro a cinco meses de atendimento, de consulta, de re-consulta, internação psiquiátrica. As pessoas ainda acreditam realmente na necessidade de internação. Mas o Mário Leal é um hospital reduzido, com poucos leitos e que aceitou a nossa presença, da universidade e das nossas invenções. Por que o Programa está localizado no Mário Leal? Marcus - Bom, primeiro, porque já tinha a Eduarda aqui, que trabalhava no Mário Leal. (risos). Acho que, dos lugares que nós tínhamos, aqui na Bahia, talvez este fosse o menos hostil. Então, se o Mário Leal era tradicional, ele é um tradicional que, dentro da sua tradicionalidade, não é hostil, não foi ostensivo contra a Reforma. Se alguém quiser fazer acontecer, que faça. Ele não se envolve, mas também não nos limita. Nós temos várias direções, vários lugares, muitas delas em serviços públicos estaduais da SESAB, de defesa corporativa, porque eles são diretores psiquiátricos, defendem corporativamente a manutenção do status quo. Dizem não a este negócio que está se falando pelo Brasil inteiro, que vai acabar com o hospital. “Aqui na Bahia não vai acabar. Nós, psiquiatras baianos, não vamos deixar acabar, versão do Diabo, não temos nada a ver com essa coisa” O Mário Leal tinha esta posição um pouco menos hostil à Reforma. 18 Eduarda - Eu acho interessante, também, não falar de fora, nós estamos dentro de um espaço. Na realidade, a gente vem se confrontar com a prática. Eu trabalhava na internação, na época do início do Programa, e ficava numa posição muito tensa diante dos pacientes dessa clínica. É um hospital pequeno, a gente conhece os pacientes. Freqüentemente recebíamos pacientes que voltavam do Sanatório Bahia, do Santa Mônica, para o Mário Leal. Perguntava o que fazer com aqueles pacientes dentro desta estrutura, já que o ambulatório estava funcionando contra, então o que fazer diferente daquilo? Marcus - Eduarda, que é professora da FBDC, estava aqui, trabalhando na internação, questionando o produto do trabalho dela; e eu estava no campo da Reforma, querendo achar um lugar para poder montar um programa de estágio e fazer a problematização conceitual da idéia de “internação X intensificação de cuidado.” Então, nosso encontro foi fecundo nesse sentido, porque, na verdade eu queria abrir um programa de estágio para os alunos de psicologia da UFBA e ela também. Então, acho que abrimos uma coisa que é uma característica muito positiva do Programa, o trabalho com dois grupos profissionais, e conseguimos fazer da intensificação de cuidados um objetivo clínico que não é especializado nem para Terapia Ocupacional nem para Psicologia. A gente consegue desenvolver as habilidades características, mas a gente não restringe ao modelo estrito de atuação do segmento profissional. Não é dividido em T. O. e Psicologia, mesmo porque a atuação do CAPS não fecha na especificidade. Claro, nós estamos preparando profissionais para o mercado de trabalho atual no meio psiquiátrico. o lugar menos hostil. Eduarda era uma pessoa que dava para conversar dentro das disputas, disputas políticas de Reforma, que eu me envolvo por ser do movimento social, aqui era o lugar menos contaminado. E também porque pensei: Poxa, Mas como combinar o que é especifico de cada aqui é um lugar menor, é um hospício pequeno. grupo de estagiários e o que é comum? A conjuntura do lugar, do tipo que seria possível, como foi. E, apesar de a gente falar que a gente Marcus – Usamos a idéia de núcleo e campo. é um tanto marginal, de a gente estar um pouco Existe o campo que é de todos. Então ao cam- fora, a instituição não nos abraça, mas também po que é de todos, nosso estágio dá preferência. nos tolera bem, cria até um mínimo de tensão. O campo dessa clínica, dessa atuação intensiva, Eu acho que poderia ser menor, mas a gente tem dessa atitude clínica, deve ser de todos: os enfer- conseguido. meiros, psicólogos, assistentes sociais, etc. É uma atitude, uma postura, e óbvio que cada um a parEduarda - Na verdade, há quatro anos tratir de uma ferramenta do seu núcleo específico, balhamos com pacientes indicados pela instituidisciplinar. ção. Então, nós fazemos a reunião, supervisão do Programa aqui. Já pensamos assim, por que não Eduarda - No estágio, isso é um diferencial. fazemos a supervisão fora daqui, na FBDC, no Já temos quatro anos de Programa, e foi um en- espaço da UFBA? A gente mantém esta coisa de contro importante, no sentido institucionalmente fazer aqui dentro, porque a gente quer caracteriprodutivo; já passaram não sei quantas pessoas zar. Às vezes temos problemas de sala, de espaço, por aqui, já abrigou muita gente. Já são oito se- mas queremos caracterizar que é um Programa mestres de atividades. Um aluno, ex-estagiário, no Mário Leal, e com o Mário Leal. Não é um passou em primeiro lugar agora na residência em Programa clandestino. saúde mental da UNEB. Outra passou para a residência de Psicologia do Juliano Moreira. Então Como se dá a apresentação do programa aos nossos estagiários estão se destacando. usuários? Marcus - Acho que é isso aí, estas apostas, estes espaços para formar, ensinar. A gente vem de culturas profissionais diferentes, mas a busca é de se encontrar. É isso aí. Foi um encontro. Aqui, por quê? Por essa coincidência. Para mim também foi A apresentação é feita pelos próprios estagiários do PIC que oferecem a possibilidade do paciente ingressar. A gente assume a identificação institucional como um programa do Mário Leal, pois não estamos fazendo nada clandestino. A 19 gente não é oficial do ponto de vista da ideologia, da atitude. Fazemos questão de defender como se fosse um algo mais, um plus do serviço do hospital para os pacientes. E nós temos a liberdade de triar os pacientes segundo nossos critérios. A instituição não nos impõe isto segundo os critérios dela. Nem número de pacientes, até na estrutura inicial do programa. sível produzir na vida dessas pessoas, manejando um conjunto de atitudes para que elas possam não precisar de internação. Nós estamos fazendo, na prática, um debate entre intensificação de cuidado e necessidade de internação. Então, nós estamos dizendo assim: nenhum paciente precisa ser internado. Alguns precisam de cuidados intensivos, porque seus casos são muito graves e precisam de uma atenção diferenciada se a gente Qual é o critério de seleção dos pacientes? não quiser interná-los. Então a gente está invertendo um pouco, tem um caráter demonstrativo; Eduarda - Inicialmente, o primeiro critério foi a o programa de uma perspectiva teórica e técnica internação e a reinternação. Aqueles que tinham dentro da Reforma Psiquiátrica. O que a gente um ciclo de internação freqüente, pacientes jovens provoca nos alunos hoje é que todos os pacienque, depois da primeira internação, sofrem com tes acompanhados precisam de cuidado intensia internação e aí começa uma carreira. Este foi e vo. Mesmo compensados, é preciso estar sempre é o primeiro critério. Importante relatar um caso: com a antena ligada. Um paciente que tem a primeira internação com quinze anos e, com dezoito, já tem quatro interna- Existe um critério de idade para ser aceito? ções. Este é um paciente típico que nos interessa. E é um paciente considerado difícil, é a “carne Eduarda - No inicio, até se tentou, mas não se de pescoço” para quem trabalha com internação, conseguiu manter este critério. São duas idéias: porque ele volta e com o mesmo quadro, justifi- uma era por pacientes mais jovens e outra que ca a internação para a equipe. Supostamente ele não tivessem muitas perdas cognitivas. Mas acaprecisa estar internado, porque se pensa que uns bou predominando o critério de se internar muito. não têm jeito, você precisa interná-los. Agora se aceita quase tudo, o que se interna muito e está muito abandonado e sozinho. Por exemplo: Marcus – E então são esses que se internam tem um paciente com mais de vinte internações freqüentemente, os que não têm jeito, os que na vida. Paciente que leva a vida inteira sendo “têm de internar” que nós buscamos. Uma aposta internado, passa dois dias em casa e é internado, no contrário. Ao tomar esta clientela, aceitamos a indo assim de um lugar para outro. Hoje temos provocação, bem são estes aí, os “taizinhos” que uma grande dificuldade em mantê-lo fora da innão têm jeito, que têm de viver internados, preci- ternação. Na verdade, a gente passou os últimos sam de internação. Então, vamos ver o que é pos- meses praticamente sem que ele fosse internado. 20 formou no contrário, nós que passamos a ser um recurso do CAPS. Este serviço, ao invés de aportar novos recursos, aportou apenas, como recurso fundamental para o paciente, a alimentação, porque ele não tinha como comer e, ao freqüentar aquela instituição, começou a ter comida, com muitas tensões, porque o CAPS fica muito irritado, já que o paciente vai lá para comer e não adere aos outros tratamentos. Hoje, por acaso, ele está internado. Está internado, porque nós somos muito insuficientes como programa, somos muito limitados. Ao limitarmonos à mera presença, nós nos damos conta de que ela não é suficiente. Os recursos da clínica do CAPS são insuficientes? Marcus - Nós temos uma crítica, que é a crítica exatamente do que os gestores da política de saúde mental estão fazendo – monta-se um equipamento, mas não se tem a ideologia da intensificação de cuidados. Então o CAPS termina sendo um lugar muito hostil, pouco acolhedor, pouco sedutor, para que o paciente possa se vincular. E nesse caso nos acabamos sendo o recurso do CAPS. Apesar do programa do CAPS vir como algo muito mais instituído, mais chance de geração de recursos, de intervir no caso desse paciente, nós passamos, praticamente, a contar com, o CAPS para a alimentação, para você ver como a questão é social. Nós conseguimos que o CAPS fosse um recurso para produzir alimentação, mas não para intensificar cuidados junto ao paciente. Marcus - É preciso também os recursos estruturais, institucionais. Diria que, se nós tivéssemos hoje o manejo de recursos estruturais/ institucionais, certamente ele não estaria internado. Estou falando de uma atitude mais acolhedora na emergência, uma atitude/postura mais agressiva da instituição no sentido de ser mais bem articulada com a política integral da cidade, com a rede. Se a gente tivesse isto, ele não estaria internado. Ele não foi internado por uma questão psíquica. Foi internado, pois nós não conseguimos superar, com a mera presença, o grave déficit social. E, diga-se de passagem, este caso é bom, porque nós Eduarda - Ele tem uma situação social pecufizemos uma intermediação deste paciente para liar. Ele mora num buraco com dois cômodos sem ser atendido no CAPS, que devia, este espaço, luz, sem água e sem gás, sujo. Mora numa cova, possuir mais recursos do que nós, mas se trans- um verdadeiro antro. Quer dizer, estas situações 21 sociais, que nós estamos pelejando aqui, mas que são limitadas pela mera presença sem institucionalidade. Então, nós não temos problemas, não temos de demonstrar que os pacientes do programa nunca mais foram internados, basta ter um programa como este. Claro que nós estamos dizendo que o manejo clínico produz alteração substantiva na qualidade de vida, na continência social. Altera muito as chances de o sujeito ser internado. Marcus - O paciente citado passou um ano sem se internar, e isso só aconteceu porque nós operamos o tempo todo ao lado deste sujeito. Quer dizer, este sujeito não precisa de internação, precisa de alguma coisa que o programa sabe, mas não tem para dar. Mas sabe que é possível dentro de uma política pública de ser oferecido para um cidadão portador de transtorno mental. O que ele precisa não é nada estratosférico fora do campo do que uma política pública de saúde mental pode oferecer. Nós sabemos do que ele precisa, mas não podemos oferecer, porque somos um programa limitado. Mas a tecnologia de intensificação de cuidados evidenciou ser um caminho certo para operar com este tipo de sujeito. Quando convocado, o CAPS mesmo afirmou que se tratava de caso para internação. O CAPS até agora associou as forças expulsivas. Fizemos todo movimento (durante um ano) para mantê-lo fora do hospital psiquiátrico, e o que o CAPS tem a dizer sobre este caso é que ele é um caso para internação. Caso de internação por quê? Porque ele não consegue dialogar com o caso. Não con22 segue dialogar por quê? Porque falta repertório clínico, e é aí que entramos no seu assunto. Então o que faz a diferença é a ideologia da clínica? Marcus - O grande diferencial do PIC, talvez, o que a gente está querendo instalar, é um novo repertório clínico, uma nova atitude para o exercício da clínica com essa clientela. Esta lógica que estamos querendo problematizar, esta lógica, exatamente, que clínica é essa? O grande problema da Reforma Psiquiátrica, hoje, é a questão da inconsistência da clínica que é feita. Há uma ideologia geral, há um repertório de atitudes prescritas, mas existe um limite para operar na clínica. Então, o PIC está baseado no esforço teórico e prático de uma fundamentação de uma clínica psicossocial com psicóticos, uma clínica que articule, no mesmo movimento, a questão da subjetividade e do pertencimento social. Não a clínica que tome a questão da subjetividade como uma questão de indivíduo que está disfuncional e opere na clínica da falta de funcionamento psíquico do individuo e trate como uma outra coisa a questão do pertencimento social, dos laços sociais e da sociabilidade dos sujeitos. Ela é uma clínica muito empírica. Dentro dos CAPS, hoje, fazem-se muitas coisas, fazem-se muitas ofertas, mas a articulação, a fundamentação, a estruturação de uma reflexão sobre condição psíquica e pertencimento social, pertencimento social e condição psíquica, isto não está sendo feito. Qual é o diferencial da teorização do PIC em relação à clínica psicossocial dos psicóticos? do social como se ela fosse uma questão distinta da questão da estruturação psíquica individual. Normalmente não têm repertório, é como se isso Marcus - É o esforço de produzir um pensa- não lhes pertencesse, e como se diz no prontumento que orienta a ação, uma atitude clínica, ário, a minha parte é até aqui, ali é o social e baseada numa articulação que não os vê como sobre o social eu não tenho o que fazer. Inclusive, dois âmbitos diferentes. Estruturação psíquica e é um jogo de empurra, é como se dividissem os pertencimento social são duas coisas que estão pacientes em vários. Um lado é o social, outro em mão dupla o tempo todo, em tráfego intenso, o psíquico, outro lado é das drogas, outro é a e quem quiser trabalhar nesta clínica, ser efetivo família, como se o paciente fosse um bocado de nessa clínica, trabalhar integralmente, tem de ser coisas separadas. capaz de não separar, de não distinguir isto, mas Marcus - Eu acho que essa clínica, que se chaoperar com uma coisa operando com a outra (estrutura psíquica e pertencimento social, pertenci- ma “clínica ampliada”, ela vem mudar essa visão. mento social e estrutura psíquica). Talvez assim, o O paciente não é só uma soma de um monte de que nós temos recenseado mais, o maior esfor- coisas, que não opera sobre os sintomas, opeço que a gente tem aqui é de fazer essa costura. ra sobre a presença do sujeito no mundo; consiEnsinar a clínica em que não se separa, agora deram-se as dificuldades psicológicas, subjetivas o social, agora o psiquismo. Mas agora a gente para a presença desse sujeito no mundo e se conpensa o psiquismo como sociedade, sociedade sidera que, efetivamente, o mundo é o lugar que como psiquismo, em vínculo, ou laços sociais, em realmente é difícil para o sujeito estar se ele não relações, em sociabilidade, em pertencimento, está operando num certo registro da normalidaem convivência, em expulsão social, em exclusão de. É tentar produzir este diálogo entre o mundo e social, pensa todas essas coisas. Em estruturação o sujeito, o mundo psíquico do sujeito e a cultura, do sujeito, em delírio, enfim, toma essas coisas a cultura e o mundo psíquico. Eu acho que a gentodas como produção que está no campo, que te trabalha muito forte com essa questão de pertencimento na cultura, a idéia da psicose como precisa ser trabalhada, estudada. uma dificuldade de ser sócio da cultura e de que Eduarda - Eu acho, pessoalmente, que o cam- nosso trabalho, nossa clínica é exatamente essa po da teorização da clínica da saúde mental é um de criar possibilidades, de ampliar as chances de campo que valoriza muito a questão do indivíduo esse sujeito pertencer à cultura. Às vezes eu digo, e da abordagem individual. Os profissionais não um pé na cultura: “cultura, tem paciência, afinal têm repertório para lidar com a questão social e, de contas esse sujeito está psicótico”; um pé na quando têm esse repertório, lidam com a questão psicose: “psicose, tem paciência, não fique nessa 23 posição, afinal de contas a cultura não perdoa, a cultura é exigente, não vai deixar você ficar nessa posição”. Então um pouco essa idéia de mediador. A mediação seria uma nova função do profissional de Saúde Mental? Marcus – É assim que vejo. Esse operador da saúde mental como mediador dessa tensão entre a disfunção psíquica e a disfunção social, criando a possibilidade do cabimento da disfunção psíquica no funcionamento social. Eduarda - Ela é uma clínica sofisticada, né, Marcus? Você precisa da alteridade, que é outra coisa que a gente trabalha também, alteridade no lugar da autoridade. Eu acho que inicialmente é uma questão para os estagiários, elas vão visitar os pacientes do programa que se encontram internados em hospitais, e às vezes no CAPS também, as equipes de lá ficam dizendo: “ah, vocês são babás dos psicóticos. Aqui nós damos autonomia”. Então, tem uma leitura equivocada dos termos que são hoje em dia socialmente corretos, politicamente corretos. Autonomia é um termo que é comum hoje na saúde mental, mas autonomia como desresponsabilização. Então, tem esse detalhe ético. É um equívoco o que está acontecendo com o termo “autonomia”: “os pacientes têm autonomia, eles tomam medicação se eles quiserem, eles vão ao caps se eles quiserem, não temos nada com isto”. Vêem autonomia como desresponsabilização do técnico em relação à 24 psicose. Tenório fala que quanto mais pertencente a alguma coisa (várias coisas) maior grau de autonomia esse sujeito adquire. Marcus – No PIC, a gente lidou com vários casos de recusa do paciente que a gente aplicou aquela idéia da reforma psiquiátrica italiana, da lei 180, que afirma: o paciente tem o direito de recusar tratamento, a unidade de atenção à saúde mental tem a obrigação de oferecer o atendimento. Então, colocar essa contradição, esse direito de recusa e a obrigação da oferta como ponto de negociação. Porque se um tem o direito de recusar, o outro tem o dever de ofertar. Você faz o ponto de tensão que só pode ser solucionado através do ponto de negociação. O serviço tem de ser capaz de convencer o sujeito que ele vai receber o serviço. E o sujeito? Respeitando o sujeito, ele tem o direito de recusar, ou seja, se o serviço não for convincente, ele não vai cumprir sua função se ele não tem de convencer o paciente que ele deve aceitar. E ele só deve convencer, não pode impor à força, porque o paciente tem o direito de recusar. Em vários casos aqui a gente usa esse paradigma, sobretudo os casos de pacientes que dizem assim: “eu não quero ver vocês, vão embora”. Aí a gente diz assim: “você tem o direito de não querer ver a gente, mas a gente tem a obrigação de vir cá e dizer que a gente está à sua disposição”. Então, temos aí um problema. O seu direito é o nosso dever, nosso dever ético de te perceber numa condição fragilizada e de perceber suas condições de fazer estas deliberações sobre seu desinteresse por nós. Porque você está supondo que nós estamos no lugar de perseguidores, porque você está supondo que vamos colocar você nesse lugar hostil. Nós não estamos nesse lugar hostil, sabemos eticamente disso, vamos só sustentar nossa presença até a hora em que você tope conversar com a gente. mento. Na verdade, não é a tecnologia que é sofisticada, é o pensamento sobre essa difícil atitude que é oferecer uma clínica para essa clientela. Eduarda – Em vários casos a gente teve de aplicar isso aqui. Tá certo, isto é um problema, senão a gente se demite da responsabilidade do problema: “você não quer, você não quer! É problema seu” – é assim que o CAPS faz: “estou respeitando que você não quer”. E eu pergunto, não é engraçado? Quando ele quer se jogar lá do alto, acho que posso intimidá-lo, não respeito o que ele quer! Quando acho que ele diz que vai matar alguém, eu interno e não respeito o que ele quer! Agora, quando ele diz para mim que não quer a minha presença, eu rapidamente faço concordância com ele e digo: “eu respeito o que você quer”. Então é uma coisa meio de conveniência. Marcus – Na verdade, hoje eu penso que cada vez mais nós tendemos a definir a clínica como baseada no manejo das relações vinculares, desde o conceito de transferência (strictu sensu), conceito já consagrado na clínica da saúde mental. Nós extrapolamos esse conceito de transferência e manejamos múltiplas relações vinculares. Isto, de alguma forma, pode definir essa clínica como clínica do manejo das relações vinculares. Por isso, no lugar do estágio, nós dizemos que trabalhamos com a clínica que preserva a relação transferencial, e, para isso, delimitou-se um setting para preservar a relação terapeuta-paciente, porque aquela relação vincular promove os efeitos terapêuticos (você pode chamar isso de reforço de pureza, pureza do vínculo transferencial isolando através do setting). A questão é que o setting do serviço substitutivo é exatamente o setting da contaminação, não tem esta pureza, as relações vinculares são atravessadas, ligadas por muitos aspectos, muito dinâmicas. Então, temos aí um fato, é uma condição nova. E o saber psicológico, psicanalítico, relação psiquiatria-médico-paciente, ela não se preparou para lidar com essa dimensão das relações vinculares transversais, para lidar com a dimensão das relações vinculares restauradas nos processos de convivências coletivas. Marcus - Esse é um ponto legal, um ponto radical. Tivemos aqui três ou quatro casos em que tivemos de enfrentar isso, ação de nos demitirmos da responsabilidade. Vimos que o problema era um problema da nossa dinâmica clínica, então nós fomos desafiados a mudar nossa dinâmica clínica de abordagem para permitir que o paciente se sentisse confortável para aceitar nossa oferta. Então, na hora em que ele se sentiu confortável, ele aceitou nossa oferta. Então, esse é o ponto em que nós trabalhamos com um sofisticado pensa- E qual a relação do acompanhamento terapêutico com o programa, como é que ele entrou? 25 escuta sicrano, ou seja, maneja-se esse conjunto de relações no ambiente da família. Outra coisa que a gente faz é uma aposta no trabalho com a sociabilidade. Então, o trabalho com a sociabiliEntão o vínculo é um conceito central dade, com os pacientes, o esforço de produção para vocês? da sociabilidade, ela define o espaço do trabalho Marcus - Essa clínica está baseada nesse re- grupal. E a gente mantém um grupo, o grupo do curso, manejar as relações vinculares como orien- encontro, que é uma modalidade que a gente está tação nessa clínica. E aí, a gente vem trabalhando ainda ensaiando. Este espaço de grupo é um escom a idéia de que nós fazemos muitas ofertas paço importante. Dentro deste espaço nós temos (não ofertas tipo pacotes), de que o programa, um tipo de oferta que é um esforço para olharmos na verdade, é baseado em várias possibilidades, as necessidades sociais integrais. em articulações dessas relações vinculares, e uma Marcus – Retomando a sua pergunta. Um dessas possibilidades é essa coisa de atenção domiciliar. Hoje o paradigma da atenção domiciliar desses componentes que usamos nesse manejo começa a ser desenvolvido no PSF, na idéia de múltiplo é o componente do Acompanhamento medicina da família, algumas coisas começam a Terapêutico ou AT. Tanto na dinâmica da relação ser desenvolvidas a partir do saber sobre atenção grupal, nos processos grupais, isto porque o padomiciliar. Atenção domiciliar é tomar o lócus do ciente vem para o grupo acompanhado, vem indomicílio como lócus de ofertas de atenção. O troduzido no grupo com o acompanhante, quansetting completamente tenso, conturbado, confu- to nos passeios coletivos de todos os pacientes, so, às vezes a gente vai lá fazer a oferta dentro quando os estagiários saem com os pacientes desse setting, tomar o domicílio como setting da em grupo, que também divergem da estrutura oferta. Talvez esse seja um ponto forte sobre o típica do acompanhamento terapêutico, em que qual a gente nem saiba tanto, mas a gente apos- um acompanha um. Aqui, muitos acompanham tou nele, e ele foi revelando uma potencialidade. muitos. E também temos a dinâmica do AT stricTalvez os PSFs tenham um saber sobre isso, dife- tu sensu, porque, às vezes, com cada paciente, rente do saber que nós estamos produzindo, que há uma dinâmica relacional, às vezes a dupla sai é o manejo das relações vinculares transversais, com um para isso, para aquilo. Às vezes sai com cruzadas, enfim. dois também, mas o mais comum é sair a dupla com um paciente, fazer coisas da necessidade do Eduarda - Nós trabalhamos com as duplas, paciente na rua, coisas ligadas à cidadania: tirar pessoas que vão para dentro das casas. As ar- identidade, título de eleitor, benefício, ministério ticulações das duplas: uma escuta fulano, outra público, não tem regras. Então, é uma clínica que não sabe sobre isso, ela não tem recurso de pensamento. 26 A intensificação de cuidados então é mais ampla do que o acompanhamento terapêutico? Eduarda - Temos de enfatizar mais a questão do trabalho com as redes sociais na comunidade a partir do núcleo familiar. Você toma o núcleo familiar, a atenção domiciliar e uma certa expansão disso para outras relações, dos pacientes com, os amigos por exemplo. Aspecto importantíssimo é a articulação com os vizinhos, com a igreja, com a comunidade, com a rua, com a barraca em frente. A gente tem casos de a comunidade fazer movimento contra o paciente, de brigar. Tem uma situação em que o paciente xingou a mãe de alguém, e esse foi lá brigar, bater no paciente, e as estagiárias lá na casa tiveram de contornar, do lado do paciente, intermediar, e depois voltaram para trabalhar com os vizinhos, com o grupo de adolescentes para poder conviver de uma outra maneira. Articularam a rede objetiva e subjetiva mesmo. esse paciente conversasse com ele para que ele conseguisse se alimentar, para produzir uma interferência a partir de uma outra relação que é significativa para ele, para interferir no caso dele. E tem um caso interessante de estagiários que foram fazer uma visita a um paciente que mora aqui perto do Mário Leal e foram assaltados no meio do caminho. Aí roubaram a bolsa e o celular dos estagiários. Eles voltaram para o Mário Leal, a moça chorando, o rapaz não podia chorar, porque “homem não chora”. E todos num clima de Marcus - Fazer advocacia do paciente na co- drama, porque afinal de contas, “veja como é armunidade é emprestar o poder contratual, é aju- riscado esse programa, colocou os estagiários em dar a negociar uma melhor posição diante do risco, eles foram à comunidade que moravam as outro, usando o poder das estagiárias: “olha, pessoas pobres, perigosas, que assaltam as pescomunidade, vocês têm de ter paciência com o soas”, todo um drama. E, enquanto estão todos lá, discutindo esse drama, vem a paciente trazencara, porque ele está muito mal”. do a bolsa da estagiária, dizendo “eu estava na Eduarda - E às vezes o contrário também, porta da minha casa, de repente vi fulano passar às vezes o paciente entra em crise, não quer se com uma bolsa e reconheci, aquela bolsa é a bolalimentar e tem um pastor que é um integrante sa do meu estagiário. Corri lá, falei com não sei importante na vida desse paciente, e bastou que quem, e não sei quem foi lá e trouxe a sua bol27 sa. Tome aqui sua bolsa, na minha comunidade a que interroga hoje os nossos serviços. Os serviços sua bolsa não será roubada”. hoje estão cheios de pessoas que, ao invés de suportar a psicose, agridem a psicose com uma Marcus – É, pelo ponto de vista do laço social, certeza clínica que advém da teoria psicanalítica, produziu proteção para os estagiários, pela ques- da psicopatologia psiquiátrica, enfim, das divertão do vínculo, do manejo. Em todas essas ope- sas formas de localização do sujeito psicótico. rações, há questões que nos fazem aproximar da temática do AT. Entretanto nós produzimos cursos Os serviços não estão preparados para lidar sobre AT, incentivamos, enfim. Nos interessa mui- com os pacientes? to qualificar as principais funções típicas, o modo de operação típica do AT, ainda que isso esteja Marcus - Acho que pouco preparados, teórica calcado na perspectiva didática, de uma díade e tecnicamente, para a clínica com psicóticos. Eu do acompanhante e paciente. Nós achamos que olho aí, esse é pensamento meu, e vejo que há isso pode ser uma base nuclear interessante, para uma asfixia tática que impede qualquer clínica de pensar na questão da continência, do holding, de prosperar com esse sujeito esquisito aí, arranjauma série de funções que o AT pode exercitar. É, a do psiquicamente ao modo da psicose. Com esse dinâmica psíquica do psicótico, ela é muito com- tipo de fechamento, em que a teoria hegemônica plexa, toda informação teórica, clínica que puder produz a certeza sobre o que o sujeito tem, se ajudar para que um sujeito compreenda melhor é incapaz de produzir qualquer efeito dialogante o que significa estar diante de um paciente psi- com a psicose. Então, eu acho que isso aí é perda cótico, acho que essa é a matéria principal que de tempo. A atitude clínica que a gente desenvoltem faltado no mercado, que é um preparo para ve é essa atitude que tenta produzir a condição que os sujeitos possam se localizar diante desse de suportar. enigma, que é a psicose, se é que é possível isto. Que o sujeito possa ter um repertório mais elásti- O acompanhamento terapêutico não seria um co para se movimentar diante do sujeito psicótico. recurso útil aí? A gente acha que este programa é um preparo, um tipo de preparo para o trabalho, e, no caso, Marcus – Há um saber sendo produzido neseste preparo a gente procura trabalhar aqui no sa relação diádica do acompanhante terapêutico estágio. Na verdade, o que a gente está prepa- com o acompanhado que nos interessa, que é rando nesses estagiários é uma atitude para uma uma matéria útil para o nosso trabalho. Agora, a postura. Lição número um para quem quer traba- gente acha que o AT é o recurso, ou é o melhor lhar com pacientes psicóticos: é preciso aprender recurso? Não! Porque o que estamos falando é de a suportar a psicose! Esse é um ponto de partida manejo das relações vinculares. Se a gente tem 28 uma crítica ao abuso do setting tradicional que, para manejar as relações vinculares, isola a relação vincular, que protege o lugar da relação vincular, que, para isso, tem de se fechar numa sala, trancar seu diálogo entre quatro paredes, porque só assim vai produzir esse laço que vai permitir a interferência transferencial. Se a gente identifica tudo isso, é lógico que a gente valoriza o AT, na medida em que o AT rompe com esse setting e coloca o sujeito numa situação de exposição. Ele cria para o AT a necessidade de flexibilidade, de lidar com as situações de transversalidades, com os atravessamentos, com a simultaneidade, com a multiplicidade de situações. Então, o AT é progressivo em relação ao tema de ruptura com o setting clássico da clínica, que tenta reduzir a relação do sujeito pelo recenseamento simbólico que ele apresenta no contato. Ou pela postura ou pela atitude física do paciente tenta-se deduzir coisas sobre ele. O AT entra na vida do paciente, tem mais chances de receber do paciente informações, perceber, fazer leituras interpretativas acerca das dinâmicas subjetivas, psíquicas do paciente psicótico. E quais seriam as limitações do AT em relação à proposta de vocês? um psicólogo ou psicanalista, e aí tem um AT. O AT para possibilitar as dinâmicas da sociabilidade. É como se cada um desses sujeitos tivesse de preservar um campo de especificidade da sua atuação para garantir a efetividade do que ele faz. E aí nós estamos propondo algo diverso com essa idéia de cuidado intensivo, baseado no manejo das relações vinculares, múltiplas, diversas, aquelas que foram fundamentais para o desenvolvimento do CAPS como projeto de instituição de cuidados aos psicóticos. Estamos perguntando, na verdade, que especificidade é essa onde um escuta, o outro medica, e o outro circula pela cidade? Que história é essa? Que lugar é esse? O grande desafio é perguntar: alguém é capaz de trafegar por tantas posições diante do sujeito e sustentar sua posição de alteridade diante dele? A exposição à convivência do profissional com o sujeito atendido em múltiplas situações, múltiplos espaços, múltipla referência, coloca que tipo de risco? Coloca o risco de que a alteridade seja perdida, mas isso é um problema da relação vincular, esse é um problema do material, do preparo do sujeito que está posto nessa relação. Talvez o que nós estejamos dizendo, querendo dizer, é que talvez seja possível para um sujeito experimentar múltiplas posições diante do paciente sem perder Marcus - O AT ainda está mantido no registro a posição da alteridade. de uma sociabilidade privatizada, ou seja, a relação diádica ainda é tida como ponto principal Como se articula essa questão da alteridade da sustentação. Mas acontece uma coisa interes- com a noção de vínculo? sante, lá em São Paulo, onde essa prática é mais Marcus - Esse tema é muito interessante, pordifundida, onde se vêem casos assim: um paciente, para ser cuidado, tem de ter um psiquiatra, que, muitas vezes, existe uma confusão entre a 29 posição que sustenta a alteridade e a perspectiva moral que exige dos psicóticos uma submissão à autoridade. Fica aquele papo da alteridade como autoridade, e, muitas vezes, fica parecendo que a figura da alteridade é exercício de autoridade. Autoridade: eu sou um médico, eu sou um psicanalista, eu sou seu AT. Fica parecendo que o que sustenta a relação vincular é uma certa autoridade do saber sobre a psiquiatria, sobre psicanálise, sobre AT; e não a postura do cuidador que consegue manter-se na condição de um “Outro” válido diante do psicótico. No CAPS, eles dizem não ser possível suportar a convivência, suportar o grupo, porque eles aprenderam teoricamente que têm de lidar no espaço neutro, no espaço que não contamine. Se eles estão no grupo, se estão no espaço da convivência, eles se expõem, entram em choque contra sua própria questão. só vai exigir que esse profissional seja um profissional mais permanentemente atento e mais devidamente centrado na sua função, no seu saber, na sua localização no mundo. Ou seja, vai exigir um profissional mais sofisticado. Agora, nós não podemos querer colocar as pessoas em ambientes, em settings absolutamente diversos, múltiplos, movimentados, coletivos e manter a referência teórica, interpretativa da clínica no registro da relação diádica. Eduarda - Temos podido desenvolver essa problemática, a problemática de como que a gente pode, sem culpas e sem dar satisfações a nenhuma igreja teórica específica, tentar produzir uma clínica baseada na alteridade e no vínculo, sobretudo considerando que, de vez em quando, você pode não conseguir, que de vez em quando você vai falhar, você vai se perder, mas ainda assim, O vínculo seria um tipo de transferência? sem culpa, sem aquela obrigação, sem aquela imposição, sustentar a busca de uma clínica que Marcus - Ou a transferência que é apenas mais se envolva na complexidade das relações sociais um tipo de vínculo? Entendeu? Nós estamos, na concretas que definem as possibilidades e as poverdade, fazendo uma provocação do campo, o sições dos sujeitos no mundo. Resistir à tentação principal campo orientador da fundação teórica de reduzir a complexidade do sujeito para caber do preparo para a clínica mental que é a psica- nas nossas conveniências teóricas. nálise. E ela toma a transferência ao modo de uma relação vincular muito especial, e nós estaMarcus - Mas, sobretudo está a tarefa de promos partindo da transferência para dizer “tudo é duzir um elemento orientador para a prática clívínculo”. A grande questão é saber qual o prepa- nica: olhe, diante do paciente, eu tenho que o ro que alguém tem de ter para se sustentar numa tempo todo estar fazendo alteridade, e a alteridaposição, em múltiplas localizações diante do su- de é estar sempre centrado na minha função, na jeito, sustentando alteridade. Isto tem a ver com o minha escuta, na minha atitude, na minha posipreparo do sujeito, isso não é um ideal absurdo, ção. A gente está tentando que desenvolvam essa 30 habilidade, que é muito mais uma atitude, que tem relação com o preparo, que tem relação com as idéias que estão sendo orientadas. Então, é por isso que aqui hoje eu disse assim: as pessoas têm uma atitude, nós oferecemos uma presença orientada por um certo pensamento que compreende o que é a psicose, o que significa o delírio, o que significa a crise, o que significa um determinado tipo de produção dos pacientes em sua vida, que os outros que estão lá com os pacientes, que também são sujeitos psíquicos, que também estão expressando sua condição de sujeitos barrados, as suas dificuldades, suas limitações, e nós produzimos uma interação entre sujeitos psíquicos precários. Somos todos sujeitos psíquicos precários, inclusive o sujeito que está atendendo o outro sujeito. Devia ser preparado, mas é precário, e, dentro dessa precariedade, ele busca se preparar para superar a precariedade. Nós todos somos sujeitos psíquicos precários, e os psicóticos sujeitos psíquicos com um tipo de precariedade, os seus familiares com as precariedades e nós com nossas precariedades: “um encontro de precários”. os pacientes da dupla que está saindo. Então, a passagem é uma fase do estágio, é o primeiro contato do paciente com seu futuro acompanhante. Durante a passagem, ele é progressivamente apresentado ao paciente, informado que substituirá e ele, durante um mês, vai sendo repassado, então ele vai da posição de alguém que está chegando até a posição de alguém que está saindo. Em momento nenhum o atendimento é interrompido. Nas duas primeiras semanas, você (a dupla que está chegando), e nas duas outras, você (a dupla que está saindo) atuam juntos. Então faz aí o que a gente chama de “passagem”, aí depois, após um mês, o paciente está por conta dos novos. Ele conhece o paciente nas 4, 5 semanas, mas sabe muito pouco sobre qualquer coisa, seja sobre clínica, seja sobre psicose. Marcus – O aluno vem com uma experiência mínima e, às vezes, nenhuma sobre a psicose. Ele nunca viu alguém psicótico, ele nunca se relacionou com alguém psicótico, não viveu experiência anterior, é virgem na relação com a psicose. No máximo, viu pacientes internados na disciplina de psicopatologia. E aí a gente deixa um período iniComo se dá a formação para atuar cial de quase um mês e meio pelo menos (só aí no programa? já vão quase dois meses e meio de convivência). Dizemos assim, só seja delicado e gentil, simpáEduarda - Se tem uma metodologia que é as- tico e presta atenção, esteja presente, mas não sim: exposição durante dois meses, mera exposi- complique, não perturbe a vida do paciente, porção aos pacientes. O segundo momento é reser- que o contato com o sujeito psicótico é uma das vado para a teorização; em seguida vem a ação. principais fontes de aprendizagem sobre a psicoEste programa é assim, quem quiser participar do se. Nada das idéias que são trazidas aqui podem estágio tem de ficar durante as férias para receber substituir o contato com a experiência do sujeito 31 psicótico. Passagem e depois exposição à psicose. Aqui se tem uma concepção teórica: “a psicose ensina”. A psicose é uma obra da produção psíquica que tem uma direção de trabalho, de superação. Então, são crenças teóricas de trabalho que orientam essa atitude, de que a psicose ensina, de que quem quiser aprender aprende com a psicose. É só prestar atenção, tem de ter uma postura de abertura. Aí tem a questão: abertura, suporte, acolhimento. Na primeira fase, a gente está preocupado com as idéias mais gerais sobre: vínculo, internação, fases da reforma, a base do programa, o que é que a gente faz, e as pessoas estão lá em contato. Então, está em descompasso clínico, as pessoas estão angustiadas porque não sabem o que fazer, são incompetentes, e a gente não está oferecendo recursos de interpretação nesse momento. E a formação teórica? Marcus - Depois dessa fase, a gente começa, paulatinamente, a oferecer mais recursos teóricos das mais diversas fontes: pode ser teoria sistêmica, psicanálise lacaniana, psicanálise freudiana, Pichon Riviére, dos grupos, das teorias da reforma psiquiátrica, da clínica antimanicomial, podem ser coisas úteis e interessantes para pensar em instruir esse contato com os sujeitos (estagiários), com os pacientes (também sujeitos). Então, essa interpretação é mais ou menos assim. Nós começamos a perceber que começa a se instaurar um pensamento e atitude clínica. Ex: uma estagiária relata que percebeu que precisa lidar de forma diferente 32 com as mães de diferentes pacientes, ou seja, não há uma condição indicada a seguir, cada caso é único. O que os estagiários apreendem são deles, isso é aprendizagem clínica. É lógico que ninguém vai sair daqui perito em intervenções precisas de clínica da psicose. Ninguém pode ensinar, e não há esta perícia, é muito mais a postura, a atitude, a interpretação e a abertura e capacidade de suportar. Seis meses dá para atingir o objetivo? Eduarda - Claro que não, quem fica mais tempo desenvolve mais, mas percebemos que tem uma mudança de postura, isso sim. Mudança de postura, compreensão, atitude. Em seis meses, as pessoas adquirem leitura acerca do psiquismo, um olhar sobre o psiquismo psicótico e uma postura clínica. São seis meses intensivos também para os estagiários. Eles atendem final de semana, à noite, pela manhã. Alguns pacientes eles estão visitando três vezes por semana. Às vezes, os estagiários saem da casa do paciente mais de 9h da noite, tentando negociar: “só saímos daqui após você tomar o remédio”. É intensificação também de contato, de conhecimento, de convivência clínica, de impacto. Marcus - Mas é também uma intervenção pedagógica. Ao falar da forma que lida, orienta os estagiários, cada supervisor com seu estilo próprio “pai e mãe”, rígido, brando. Tem pessoas aqui que precisam deslocar de posição, elas tentam nos enrolar, se você não der uma dura, uma desorganizada... E é melhor que ela se desorganize aqui, na supervisão... Às vezes alguém chora, pois somos todos sujeitos psíquicos precários. A provocação é um pouco calculada, cada um recebe do jeito que pode agüentar. Não nos interessa desestabilizar a posição defensiva, estas coisas têm um certo cálculo, um manejo da aprendizagem, das transferências, do rigor, do esforço da ética. ções para não fazer, mas o que é que tem de ser feito, o que deve ser feito? O que a psicose precisa que seja feito? Nossa proposta é assim: “faça segundo a necessidade da psicose”, não precisa a gente mandar, faça segundo a necessidade da psicose, a psicose vai lhe interpelar, e, se ela lhe interpelar e você estiver sustentando ativamente, você não vai ter para onde correr. Você vai ter Eduarda - Eles, os estagiários, trazem um inte- de entrar e vai ter de responder, ou vai se demitir, resse muito grande, que vai além da nossa exigên- cair fora, você não vai ficar no meio termo. E norcia, nós conseguimos gerar, a partir do clima de malmente, de modo geral, a atitude das pessoas equipe, um ambiente de altíssimo envolvimento. é muito bacana, só não elogio demais, porque senão estraga. Fico muito orgulhoso, a gente Marcus - Trabalhamos e operamos com o con- nota, que pessoas bacanas, que aprendizagem, ceito de autonomia radical. Talvez assim as pes- voluntária, gastando dinheiro do próprio bolso, soas acreditem na minha autoridade, pela minha é pura transferência com o trabalho. O fato de forma forte e dura, às vezes, de tratar os temas, estarem ali por escolha facilita, porque permite mas o grau de autonomia com que as pessoas que você tenha uma equipe ali que está a fim. A operam é enorme, talvez seja essa a tensão, pois forma como a gente conseguiu criar o ambiente, as pessoas operam com muita autonomia. A or- sem institucionalizações, mas muito nessa idéia: ganização da dinâmica do atendimento é muito “tem de fazer aquilo que a psicose exige”. O que por conta dos estagiários. Nós supervisionamos, naturalmente. A avaliação é feita a partir da mudança de atitude, a fala, como falam com o paciente, o desenvolvimento psíquico do paciente, a mudança no pensamento clínico, tudo. Um alto grau de envolvimento, comprometimento. A aprendizagem principal, que tudo move, é da perspectiva ética. Uma perspectiva ética de abertura, de generosidade, de compreensão que esse é o serviço, que eu posso até não querer fazer o serviço, mas entender que esse é o serviço, isso é que tem de ser feito. Tá certo que essa é a clínica, eu posso achar pretextos, justificativas, explica33 mais fáceis de a gente dizer, né? A gente achou um jeito, criou umas regras assim, tem uma idéia. Mas essa coisa de dupla, por exemplo, é uma coisa fundamental. Hoje, não faria de outro jeito. Tá certo, não sei se funcionaria de outro jeito. Trabalhamos em dupla, sempre que possível, duplas de T.O. e Psicologia. Depois criamos uma coisa assim: dois pacientes com uma mesma dupla, e um terceiro com uma dupla diferente, para criar alteEduarda -Tem alunas para as quais o estágio ridade. Porque três pacientes com a mesma dupla significa, pela primeira vez, ter contato com as cria um vício na dupla. Para comparar: quando realidades sociais muito duras, tem um aspecto eu trabalho com fulano, é assim; quando eu tramuito duro. Moças muitas vezes preservadas, que balho com cicrano, é de uma forma diferente. A são de famílias de classe média, fazem cursos química das duplas é diferente na abordagem, na pró-ativos, e as pessoas herdam essa generosi- atitude, na aprendizagem. A história das duplas, dade. Pois esta coisa de terapia ocupacional e acho que traz assim, suporte recíproco para elas, psicologia não vai dar dinheiro, mas você já tem o fato de estarem acompanhadas, a questão do uma certa direção generosa, são pessoas protegi- testemunho, feedback, pensar junto, testemunhar das socialmente. Para algumas delas, é a primeira o desenvolvimento e a dificuldade do outro. Envez que vão se expor à vida da pobreza, da de- tão, eu acho que o fato de fazer em duplas criou sigualdade social, da miséria. Então, no final, há uma química interessante do programa. Não faria um discurso como - “foi uma lição de vida” muito diferente, até porque o manejo, uma vai cuidar da importante. Há casos das estagiárias que expres- mãe, elas vão se dividir, pois estão lidando com sam não estar suportando a situação de vida/ transferências múltiplas, transversais, as pessoas miséria de certo paciente, então a gente altera, podem se aproximar, fazer um revezamento. inclui mais um na dupla/trio, e recua aquele que Mas a troca destas duplas a cada semestre não não está suportando. cria dificuldades? E a história de se trabalhar em dupla? Marcus - Uma das nossas descobertas mais inMarcus - Na verdade, é outra sacação, tudo teressantes colocou em xeque uma das questões assim, muito empírico. Na verdade, no primeiro centrais do programa que era a questão da psicosemestre foi muito difícil, porque a gente tinha de se, a questão vincular. Então, nosso eixo, nosso diinventar o programa. Algumas idéias agora ficam álogo, nosso enfrentamento de pensar a psicose, é a clínica? Fazer o que a psicose exige. Na supervisão, orientamos assim: você está atendendo o que a psicose está exigindo, o que é que o caso está pedindo? O caso pede, você faz; ou você se demite ou você atende. Eles são os responsáveis pelo caso, são eles que devem prestar conta, são eles que estão em contato com o paciente, às vezes, três vezes por semana. 34 que expressa uma dificuldade de pertencimento social, de laço social, da condição de ser sócio da sociedade. Então, a questão vincular passa a ser para nós como uma questão de manejo delicado na psicose, vínculo e manejo em todo lugar (filho, pai, mãe, professor, aluno, etc). A psicose exige uma delicadeza no manejo clínico. E o fato de o paciente psicótico ser um sujeito, às vezes, refratário ou narcísico, no investimento vincular, torna a questão de, de seis em seis meses, trocar as pessoas um problema. Então, a cada seis meses, nós vivemos um processo de reconstrução da relação vincular com as novas duplas. Então, esse é um exercício que não era intencional, mas propõe marcar uma transferência não com o sujeito, mas com o lugar do outro, com o lugar de cuidador. Então, eu acho que isso é uma coisa bacana, que a gente precisa desenvolver teoricamente, porque boa parte dos pacientes tem ficado pacíficos, não são todos, têm alguns que problematizam o enigma vincular, para eles é muito radical. Vários pacientes estão entrando numa um pouco assim: “não quero nem saber, eu sei que tem alguém aqui comigo. Se vai embora, fico com saudade, mas vem outra pessoa e do que eu sei é que estou me dando bem, que tem alguém cuidando de mim, preocupado comigo, com uma atitude boa comigo, que me faz bem”. Entendeu? Como se fosse uma espécie de treino psicótico com a questão dessa alteridade do vínculo, que seria uma questão emblematicamente séria dos núcleos centrais da psicose. Até o fato de ter, de seis em seis meses, de mudar de dupla, que pode ser, para alguns, um obstáculo, impossível. Como o paciente não vai poder se vincular?! Ele vai construir uma história, ele vai ter uma oportunidade de construir uma não, 5, 6, 12, várias histórias vinculares, em um curto espaço de tempo, com pessoas que têm um zelo, um cuidado vincular, pessoas que estão postas numa relação vincular, no lugar de alteridade, delicadeza com eles. Então, é como se fosse (estou pensando nisso agora) uma espécie de treino para o manejo desse enigma. Às vezes dizem que o psicótico aprende de ouvido, que ele não tem o outro dentro. Ele pode treinar que o outro existe, que o outro tem certo modo de operação e que ele pode se adequar a isso, e a vida pode ser menos tensa. Como vocês vêem a possibilidade do programa, ao invés de ser um estágio, ser um trabalho permanente, de ele se tornar um recurso desenvolvido dentro do CAPS? Marcus - Na verdade, eu acho, a gente acha que isso deveria ser não um programa, mas que isso deveria ser uma orientação teórica, metodológica, técnica e ética para o trabalho com a clínica psicossocial no interior dos CAPS. Na realidade, a gente acha, porque a gente não está no CAPS, porque esse seria o trabalho do CAPS. A gente está no Mário Leal, com essa condição de ser uma unidade de internação, e por quê? Porque nós queremos desenvolver uma metodologia com determinados arcabouços de interpretação teórica, a gente quer desenvolver uma certa metodologia que possa ser orientadora da ação clínica. Nós temos certeza de que estamos 35 preparando pessoas para trabalharem no CAPS. Aqui, a turma daqui vai chegar ao CAPS e vai dar show, show de atitude, de postura, de manejo, de depoimento do que está fazendo na vida, show de clínica. Pode não estar tão afiado do ponto de vista da perícia técnica, da clínica, porque isso exige muito treino, muita bagagem. Eles são éticos, fundamentalmente pela postura, pela atitude, na presença, na interpretação do fenômeno, do jogo de cintura, da capacidade de movimentar-se no setting. Aos profissionais que atuam no CAPS falta, muitas vezes, esse preparo prévio, o saber se movimentar, saber sair para a rua, para a cidade, saber juntar muita gente: eles têm medo de misturar, tá certo? A turma aqui não tem medo de misturar. Em uma situação de crise, as meninas são muito bem resolvidas, escutam: tá delirando? Estão lá dentro da casa com a família, calma aí, sem alarmar, sem tragédia, com uma desenvoltura. Eduarda – E, às vezes, a experiência do CAPS é a de ficar esperando do paciente demanda espontânea. O paciente em crise, o CAPS fala “não, não vai lá, que ele está em crise”. As meninas dizem “não, porque, se ele está em crise, é que a gente precisa estar lá”; porque este treino de seis meses dá essa perspectiva. Eu tenho certeza de que nós estamos preparando recursos humanos para trabalharem na Reforma Psiquiátrica, para trabalharem no CAPS. O recurso básico, o recurso é isso, nem tinha essa pretensão toda. Aqui as pessoas estão passando por uma formação que tem pontos mais fortes, pontos altos, tem defici36 ências, certamente, coisas que Marcus e eu dominamos pouco. Marcus - É muita coisa, o campo é múltiplo demais, e, dentro do que a gente conseguiu sistematizar, a gente tem um roteiro de direção que tem um clima de muita dedicação e interesse. As pessoas estão atentas, estão interessadas, há uma sintonia “quem o pode mais, pode o menos”. Se esta atitude clínica desenvolvida aqui e voltada para a psicose é o que mais desafia a clínica da reforma psiquiátrica, eu acredito que, no futuro, com treino especifico, nós poderemos ter bons terapeutas para as outras clínicas, para CAPSI, CAPS AD. A atitude principal que as pessoas adquirem, depois do treinamento específico que nós damos, centrado na questão da psicose, lhes permitirá uma atitude clínica bastante diferenciada. Artigos de crença Alguns artigos de crença... A relação entre teoria e prática é, certamente, uma questão central quando se trata do preparo para o trabalho com a coisa mental. Este preparo envolve um tipo de treinamento no qual o exercício do encontro empírico com o fenômeno mental deve se articular com a administração da teoria. Não pode haver dúvidas em relação ao lugar ocupado pela teoria nesse processo. Um repertório teórico amplo e diverso deve estar à disposição como pensamento disponível para iluminar este encontro. Somente assim a teoria pode encarnar-se, ganhar as dimensões singulares de uma aprendizagem subjetiva que define o estilo de cada um que deseja ocupar este lugar de um agente profissional de cuidados às pessoas que demandam tal atenção. O encontro clínico que ensina é aquele em que a mediação da teoria ajuda a romper com a especularidade que marca a relação entre dois sujeitos, introduzindo aí um terceiro através da dimensão simbólica representada pela teoria. Mas é preciso cuidar para que a teoria não assuma o governo desse encontro, aviltando as dimensões complexas da realidade empírica, pretendendo reduzir às categorias do pensamento, os aquecidos fenômenos subjetivos com os quais lida. Entendemos que todos os sujeitos que trabalham com a clínica têm a obrigação de responder à interpelação acerca dos seus motivos de agir: como entendem o fenômeno que trata e como o tratam. Todo sujeito tem a obrigação de explicitar as razões do seu fazer clínico, ainda que ao modo de uma reconstrução que se faz à posteriori da intervenção. Todavia, sem o encontro empírico, é impossível apreender a clínica. Não há leitura teórica que possa prescindir da experiência quando se trata de construir um saber clínico de tipo intelectual, mas, sobretudo, subjetivo. Tampouco podemos prescindir nessa tarefa da companhia do Outro. Do outro mais experiente, e sempre haverá alguém mais experiente ou com uma outra experiência, que nos cuidará subjetivo, que nos escutará numa supervisão, que nos transmitirá conhecimento num seminário ou curso. De muitos outros colhi, ao longo do caminho, no esforço de produzir a minha sistematização, formas de entender, formas de explicar, em nome das quais, hoje coordeno este projeto de preparo para futuros trabalhadores de saúde mental. Nestes “artigos de crença”, explicito as minhas fragmentárias construções, a partir da quais tenho buscado criar pontos de partida para as interrogações daqueles pelos quais academicamente sou responsável por orientar e que esperam de mim que eu seja uma boa companhia no seu processo de iniciação. Através destes, textos, aulas transcritas e notas de trabalho vão registrando um pensamento que se sabe, sempre, apenas uma expressão nas fronteiras da ignorância. Mas, por hora, é isso o que eu tenho oferecido. Marcus Vinícius de Oliveira Silva 39 A CLÍNICA INTEGRAL: O PARADIGMA “PSICOSSOCIAL” COMO UMA EXIGÊNCIA DA CLÍNICA DAS PSICOSES *Marcus Vinícius de Oliveira Silva O programa de atenção psicossocial a pacientes psicóticos com histórico de internações psiquiátricas, marcados pela condição de início da carreira manicomial (com vistas a sua interceptação) ou pela grande freqüência de internações motivadas por situações de fragilidade social está baseado no conceito de “intensificação de cuidados”, que decorre de uma compreensão das necessidades clínicas de natureza “psicossocial” presentes nessas situações e que, de um modo geral, são negligenciadas pelos modos tradicionais de organização da oferta de assistência aos mesmos¹. Por “intensificação de cuidados”, compreende-se um conjunto de procedimentos terapêuticos e sociais direcionados ao indivíduo e/ou ao seu grupo social mais próximo, visando o fortalecimento dos vínculos e a potencialização * Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de Psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. 40 das redes sociais de sua relação, bem como o estabelecimento destas nos casos de desfiliação ou forte precarização dos vínculos que lhes dão sustentação na sociedade. De caráter ativo, a “intensificação de cuidados” trabalha na lógica do “um por um” e pretende colher o indivíduo no contexto de sua vida familiar e social, estabelecendo um diagnóstico que respeite a complexidade de cada caso em suas peculiaridades psíquicas e sociais. Baseada em visitas domiciliares regulares, de prospecção e intervenção, a “intensificação de cuidados” oferece desde os recursos terapêuticos tradicionais até o assessoramento existencial do qual os sujeitos psicóticos carecem, com vistas a contribuir para o processo de re-organização de suas vidas, para o enfrentamento das tendências socialmente expulsivas motivadoras das re-internações freqüentes. Como elemento de suporte e de organização do programa, a “intensificação de cuidados” investe na produção de novos espaços de sociabilidade, sustentados no interior da instituição, criando dispositivos coletivos de aco40 lhimento e convivência através da “grupalização” dos sujeitos, bem como para os seus familiares, apostando no poder do vínculo social como um elemento fundamental da “continência psíquica”. Como pressuposto e justificativa fundamental de tal perspectiva, temos a compreensão de que, antes de se constituir como “doença mental” e ser inscrita como um fato médico, a psicose, interpretada como loucura, caracteriza-se por ser um fato social. Torná-la médica não retirou dela sua condição de ser um fato social, mas a reinscreveu numa certa perspectiva reducionista cujos únicos beneficiários são certas instâncias de poder social das quais os sujeitos loucos não participam ou usufruem. O ponto de corte para a construção do comportamento bizarro ou desviante como alvo das intervenções psiquiátricas, sobretudo na geração das demandas de internações, situa-se antes em marcadores sociais do que em marcadores clínicos ou da sintomatologia estritamente psíquica. Todo fato psíquico é um fato social. Não existe fato psíquico que não se inscreva como fato social. Não existe fato social que não se inscreva como psiquismo. A “loucura” ou a “psicose” como fato psíquico encontra-se marcada pela condição de ser um fato social estridente e significativo. Somente quando os sintomas interferem na ordem social de forma relevante, o sujeito será inscrito no quadro do desvio psiquiátrico, sobretudo quando afetadas as suas qualidades de autoregulação, autonomia pessoal e/ou econômica ou de perturbação da ordem. Não que os elementos de alteração do funcionamento psíquico deixem de ser relevantes na definição da gravidade dos casos psiquiátricos, mas apenas quando essas alterações ultrapassam um certo patamar da crítica social, os encaminhamentos dos casos os direcionam na busca de ajuda e, mais especificamente, na demanda de internações. Portanto pode-se considerar que, nos casos denominados como “urgências psiquiátricas” e que demandam internações, ao lado dos seus componentes psíquicos, encontram-se envolvidos vultosos elementos de administração de situações sociais complexas que não são compatíveis com as simplificações analíticas e institucionais mormente encontradas na estruturação dos dispositivos clínicos tradicionalmente disponíveis. Portanto o paradigma da clínica psicossocial das psicoses pretende devolver à clinica a condição de operar com a complexidade do seu objeto, manejando um conjunto heterodoxo de recursos e possibilidades que extrapolam os limites disciplinares, acadêmicos e/ou corporativos que, tradicionalmente, moldaram de forma reducionista os fenômenos sobre os quais pretende intervir, de modo a submetê-los às conveniências protocolares das instituições. 1- Os ambulatórios que não “ambulam” e oferecem consultas episódicas e intermitentes, com dispensa insensível de psicofármacos, desresponsabilizando-se pelo conjunto complexo da vida dos sujeitos, que seguem completamente à margem da abordagem médico-psicológica; as internações psiquiátricas que somente intervêm se “responsabilizando” pelos sujeitos pela via da tutela, e, para tal, os seqüestram da vida social por períodos longos, para, em seguida, devolvê-los a sua própria sorte, sem nenhum tipo de acompanhamento; as emergências psiquiátricas que respondem quase que exclusivamente pelo pico das situações de crise, sem nenhum compromisso com os casos que transcenda o mero encaminhamento para os primeiros ou para os segundos. 41 Loucura, Cultura, Instituição e Sociedade1 Marcus Vinicius de Oliveira Silva* H oje, graças aos estudos de alguns autores da história social da loucura, do manicômio e da psiquiatria, tais como Foucault, Rosen e Castel, pelo menos no plano teórico, está solidamente estabelecida a compreensão de que os transtornos mentais e emocionais sempre estiveram associados à noção de doença mental de forma tão exclusiva como ocorre contemporaneamente. A antiguidade judaica e greco-romana, por exemplo, parece ter construído uma interpretação complexa desses fenômenos, relacionados às condutas impulsivas, desordenadas, incomuns, irracionais, que, reunidas sob o signo da loucura, comportavam variadas explicações acerca de suas origens e de suas significações. Tais sistemas de signos e de significados eram, por sua vez, ma*Texto extraído da Dissertação de Mestrado do autor. “A emergência da cultura Psicologica na Bahia; ISC/UFBA, 1995, Salvador, Bahia. 2 - Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva ISC/UFBA, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. 42 nejados socialmente através de práticas institucionalizadas vinculadas a diferentes aspectos da vida social: jurídicos, artísticos, religiosos, etc. (Rosen, 1968; Pelbart, 1989). Aparentemente trans-histórica, trans-cultural, a percepção da loucura, do transtorno como alteridade que chama atenção do grupo social no qual se insere parece ser uma constante. Como afirma Rosen: “cada sociedad identifica ciertas formas de conducta aberrante o extrema, como el transtorno mental o locura. Em otras palabras, em la línea de la conducta humana, desde aquello que uma sociedad considera normal hasta lo que juzga anormal, hay algun tramo em que surge uma critica social y el individuo comienza a ser considerado loco... la valorizacion de tales indivíduos y de su conducta por parte de los miembros de la comunidad y su aceptacion como simplesmente excêntricos dentro de los limites socialmente toler ables, dependerá de vários factores. Uno grupo de ellos incluye el estilo y la coherencia de tal comporta- miento, su orientacion respecto de la realidad, y tambien la existência de instituiciones sociales que hacen possible que esos indivíduos cumplan alguna funcion acetable”. (Rosen, 1968, pg 162). Diferenciação! ... Alteridade frente a uma norma social, em relação a qual ela é sempre transbordante em algum aspecto: tal parece ser a marca registrada da loucura! E é exatamente essa condição de alteridade frente à sociedade instituída que “obriga” a mesma sociedade a reconhecer o distúrbio mental enquanto tal, instituindo os signos e as práticas que deverão mediar o seu relacionamento para com ele. Foucault comenta: “Pareceria, sem dúvida, inicialmente que não existe cultura que não seja sensível, na conduta e na linguagem dos homens, a certos fenômenos com relação aos quais a sociedade toma uma atitude particular: estes homens, nem completamente como doentes, nem completamente como criminosos, nem feiticeiros, nem inteiramente também pessoas comuns. Há algo neles que fala da diferença e chama a diferenciação...” (Foucault, 1975, pg 87). Assim, a loucura e os loucos parecem colocar, de forma prática, uma série de questões a serem “elaboradas” e “respondidas”, “na conduta e na linguagem”, pelas comunidades nas quais eles têm sua existência, derivando daí a possibilidade de distinguirmos dois níveis solidários entre si e de perspectiva relativizadora no processo de institucionalização das relações entre sociedade e loucura. Num deles, poderíamos agrupar aquele conjunto de questões que se inscrevem no campo das Representações Sociais e que, de características simbólico-cognitivo-perceptuais, referem-se à institucionalização de um conjunto de idéias, signos e valores associados à loucura. Essa seria aquela dimensão do processo de institucionalização da sociedade ao qual Castoriadis denomina em seu ensaio “A instituição Imaginária da Sociedade” como a dimensão de “LEGEIN”: um momento fundamental do processo de instituição da sociedade, âmbito das operações por meio das quais o mundo social ordena-se através da lógica Conjuntista Identitária, protótipo das operações lógicas mais comuns na estruturação do nosso pensamento ocidental, constituindo-se este leigein, segundo ele, em “uma dimensão essencial e ineliminável, não apenas da linguagem, mas de toda a vida e de toda atividade social” (Castoriadis, 1986, pg 260). Tentemos, pois, esclarecer um pouco mais essa dimensão. Segundo Castoriadis, é impossível pensarmos a nossa sociedade fora do referencial conjuntista que estrutura logicamente a nossa percepção dos variados entes existentes no mundo. E para podermos falar de um conjunto ou para pensarmos um conjunto, é preciso recorrer às operações que, se hoje são distintas para nós, no grego antigo se incluíam na compreensão de um único termo, no caso “leigein”, evidenciando um tipo de unidade perceptiva da realidade que enfatiza sua dimensão descritiva: Distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contardizer. Objetos, coisas, pessoas, tais são as operações fundamentais e essenciais do “leigein”: “condição e ao mesmo tempo criação da socie43 dade, condição criada por aquilo mesmo que ela condiciona. Para que a sociedade possa existir, para que uma linguagem possa ser instaurada e funcionar, para que uma prática refletida possa desenvolver-se, para que os homens possam relacionar-se uns com os outros de maneira que não no fantasma, é preciso que de uma forma ou de outra, em determinado nível, em determinada camada ou extrato do fazer e do representar social tudo possa tornar-se congruente com o que a definição (de conjunto) de Cantor implica...” (Castoriadis, opus cit). Ou seja, a possibilidade da instituição da sociedade humana tem como pressuposto um modelo lógico em que tudo seja consoante com a célebre definição de conjuntos proposta pelo eminente filósofo-matemático: “um conjunto é uma coleção em um todo de objetos definidos e distintos de nossa opinião ou de nosso pensamento. Esses elementos são denominados os elementos do conjunto” (Castor, apud Castoriadis Opus. cit). O que o autor pretende ressaltar daí é a importância da idéia de que a instituição da sociedade, o ordenamento da sociedade como uma (singular), e não como outra qualquer, pressupõe as operações conjuntizadoras-distinguidoras-hierarquizadoras, pois o fazer/representar social, base e suposto do processo de instituição da sociedade, pressupõe e se refere à existência de objetos percebidos como distintos e definidos, que podem ser reunidos e formar todos, componíveis e decomponíveis, definíveis por suas propriedades determinadas e servindo de suporte à definição dessas mesmas propriedades. 44 Limitados pelas necessidades próprias deste texto a um aprofundamento na densa reflexão que esse autor propõe no seu projeto de compreensão acerca do modo pelo qual se institui a sociedade humana, pensamos que evocá-la aqui ganha sentido, quando referido ao nosso interesse de pensarmos a institucionalização das relações entre sociedade e loucura, destacando a questão das Representações Sociais que se constroem sobre a mesma, enquanto um momento fundamental de “ancoragem” dos elementos instituídos que a referenciam. Nesse sentido, ganha relevância a identificação dos signos utilizados para a definição do que seja a loucura, as interpretações acerca das suas origens enquanto fenômeno que se destaca da normalidade social, a construção dos critérios de identificação dos “atingidos”, as definições das características e possibilidades que lhe são associadas, dos vários códigos e regras relacionais com os loucos, a interação desses códigos e regras com os diversos planos da vida social (moral, jurídico, religioso, profissionais, etc.) definindo pelo menos parcialmente, (nas palavras), um lugar para a loucura e os loucos no interior da sociedade... Se partirmos das teorizações do sociólogo-psicanalista E. Jaques acerca do papel das instituições enquanto “sistemas defensivos” contra as angústias persecutórias e as ansiedades depressivas provocadas pelas incertezas referentes ao futuro, podemos pensar que a loucura, na sua essência, enquanto aquilo que transborda, enquanto registro de imprevisibilidade que foge a todas as nor- mas sociais, coloca uma “exigência” de signos e práticas capazes de neutralizá-la enquanto ameaça, estranhamento, diferenciação: nomeá-la e inscrevê-la em algum conjunto de fenômenos, abrindo as portas para as definições operativas que se consubstanciam nas práticas instituídas para o seu manejo social enquanto uma exigência para a sua suportação e manejo social da sua presença. (Elliot, Jaques, s/d). Tal seria, portanto, a outra dimensão em que poderíamos distinguir, na teorização de Castoriadis, o segundo nível desse processo de institucionalização das relações sociedade/loucura, que alude àquele grupo de questões que se inscrevem exatamente no campo das “atitudes”, do “fazer social” e referem-se à institucionalização das práticas através das quais a sociedade deverá se relacionar com a loucura segundo as definições que ela tenha estabelecido para a mesma. Mantendo-nos, por coerência, no mesmo registro da teorização proposta pelo já citado filósofo grego para a interpretação do processo de instituição da sociedade, encontraríamos para essa dimensão a denominação grega antiga de “teukhein”: juntar-ajustar-fabricar-construir. (Castoriadis, opus cit.). “Fazer ser como... a partir de... de maneira apropriada a... com vistas a...” se o “leigein” é a dimensão conjuntista-conjuntizante do representar/dizer social, o theukein corresponde à dimensão conjuntista conjuntizante do fazer social. Divisão a partir da qual se instaura, mediante uma instituição da realidade, uma nova divisão, além das do ser/não ser, valer/não valer própria do “leigein”: as do que seria possível/impossível, factível/não factível no âmbito dessa mesma sociedade. Dessa forma, no plano do fazer social, a realidade é instituída não apenas pelas suas possibilidades “técnicas” de realização, mas também pela própria inscrição do fazer social no âmbito do que é “admissível como possível” pela sociedade. “Assim, sociedade e indivíduos vivem e funcionam toda vez na representação obrigatória de ‘possíveis’ e de ‘impossíveis’ pré-constituídos, isto é, no estabelecimento imaginário de uma realidade cujo seio a fronteira entre o ‘possível’ e ‘impossível’ seria (mesmo que objetivamente assim não o seja) rigorosamente delineada em definitivo; e desde sempre. O próprio possível é assim estabelecido como o determinado (o que é, de cada vez, possível e o que não o é, é definido e distinto); assim como são estabelecidos como determinados os meios, instrumentos, procedimentos, formas de fazer que o transformam em atual efetivo...” (Castoriadis, opus cit. pg304s). Dimensões inalienáveis uma da outra, o teukein implica intrinsecamente o leigein, remetendo-se uma ao outro, reciprocamente, num movimento de circularidade, não cabendo uma discussão sobre a primazia de uma das dimensões sobre a outra. (Se a palavra, a designação precede o instrumento, a técnica ou o inverso). Para dar um exemplo, na nossa cultura baiana, diante de uma manifestação paroxística em um sujeito, marcada por espasmos, tremores, descontrole motor, inconsciência, dentre outros, dois 45 signos, dentre outros, poderiam igualmente emergir interpretando-a e/ou nomeando-a com igual propriedade: se o sujeito observador for vinculado ao universo da cultura médica, interpretará o fato como “epilepsia”, mas caso já seja adepto do candomblé, possivelmente diagnosticará como um efeito de “santo”, identificando uma situação de possessão. E, em cada uma dessas situações, já estará incluída no ato da nomeação que faz o observador a indicação de um tipo de ação a ser desenvolvida, bem como os agentes, meios e estabelecimentos capazes de oferecer-lhe resposta. Se a epilepsia, uma ação de caráter médico, com uso de fármacos, em um estabelecimento de saúde. Se santo, uma ação religiosa, via um sacerdote afro, em uma casa de candomblé. Nesse sentido, poderíamos dizer, retomando a questão relativa à institucionalização das relações sociedade/loucura, que, ao mesmo tempo em que a Sociedade conjuntiza-identifica a loucura e os loucos, distinguindo-os/escolhendo-os/estabelecendo-os/juntando-os/contando-os/dizendoos; ela estabelece o conjunto das possibilidades para que eles “sejam” no âmbito desta mesma sociedade, definindo as factibilidades da sua existência, em coerência com as definições já pré-definidas em algum momento inaugural, marcado pela criação social (Castoriadis, 1986r pg 225). Patrocinar a Loucura no âmbito de uma valorização ritual, buscar a reversão das suas manifestações através de encantamentos ou lobotomias, regular a sua presença ou controlá-la através de tal ou qual instrumento, técnica ou instituição, corresponderia, nessa perspectiva, mais do que 46 a uma escolha definida pelo grau de evolução da técnica ou do conhecimento (ainda que objetivamente também o possa ser) a uma definição do admitido como o possível para a loucura no âmbito de uma dada sociedade. Posta tal reflexão, entendemos estar indicando um caminho para analisarmos numa ótica relativizadora os processos sócio-históricos que, a partir do século XVIII, alteraram os modos instituídos de relacionamento sociedade/loucura, criando as condições para a emergência de um novo “paradigma” estruturador dessa relação, que permanece até hoje como “matriz”, ditando as definições sobre seu modo de ser. A INVENÇÃO DO NOVO DISPOSITIVO Vários esforços, alguns magníficos, têm estabelecido com riqueza de detalhes, a natureza desse processo, as suas cronologias, seus momentos fundamentais. (Foucault, 1978; Castel, 1978; Rosen, 1974; Birman, 1978). Não se trata, portanto, de correr o risco de refazê-lo aqui apressadamente, empobrecendo a descrição já traçada. Os vários pesquisadores que se debruçaram sobre a tarefa de elucidação de uma história social da loucura, mesmo diferenciando-se em relação às bases teórico-metodológicas que fundamentam as suas pesquisas, são unânimes ao assinalarem as profundas transformações operadas nestas relações nos fins do Séc. XVIII, que culminaram com o advento de uma Medicina Mental cujo florescimento teve como palco a sociedade francesa pós-revolucionária e que lança os fundamentos estruturais daquilo que viria a se constituir como a Psiquiatria Moderna (Foucault, 1978; Castel, 1978). Significativamente, a partir do Séc. XVIII, em virtude de certas condições historicamente estabelecidas, relativas ao processo de transformações sociais, econômicas e políticas que caracterizaram o advento da sociedade industrial, refletindo-se num processo de “mercantilização da existência”, na questão constituída pela presença dos loucos na vida sócio-comunitária, ocorreria um deslocamento que, empobrecendo a diversidade das representações sociais acerca da loucura vigentes na época, iria beneficiar uma outra questão, que, pragmaticamente, se colocou de forma proeminente: o que fazer com os loucos? Vários são os indícios de que tal questão tenha estado implícita e explicitamente colocada. A loucura que estivera silenciada desde os fins do Séc XVI, submersa no oceano de miserabilidade que marcou o processo de constituição das grandes metrópoles européias, retorna nesse séc. XVIII alguma coisa do tom trágico e ameaçador que caracterizava a percepção da mesma ao final da Idade Média, início do Renascimento. Algo como o prenúncio de que aquele movimento que Foucault descreve como “a grande internação” – dramática resposta social frente ao desagregamento da ordem feudal e que se constitui, segundo esse autor, na multiplicação dos espaços de acolhimento/internação da pobreza, da doença, do desvio e do crime – já não era capaz de resolver, na indiferenciação, a problemática relativa à presença social da loucura que aí estivera até então, anonimamente inclusa e desapercebida. Sintomaticamente, como registra ainda Foucault, faz parte do discurso desse século um repetido alarme de que a loucura estivesse aumentando, mesmo que nenhuma evidência houvesse acerca de qualquer efetivo aumento dos loucos que fosse maior do que o aumento da população em geral (Foucault, 1978, pg. 385). Aparentemente, muito antes que na pré-aurora do século XIX (1792), o gesto mítico de Pinel viesse reivindicar uma separação dos loucos daquela corja sórdida que infestava os espaços da internação, o desenvolvimento lento de uma nova sensibilidade frente à presença social da loucura já lhe vinha diferenciando durante todo o transcorrer daquele século. As razões do desenvolvimento da nova sensibilidade e das respectivas mudanças na atitude social em relação à loucura, que tiveram lugar na Europa da época, podem ser analisadas e compreendidas como resultantes de uma conjunção de fatores sócio-econômicos, filosóficos e morais, que apenas rapidamente vamos situar. Sinteticamente, poderíamos dizer que esse século gesta e prepara, ao lado da revolução nas técnicas produtivas, uma nova definição social da realidade e do ser, que emergiriam como instintuintes das significações fundamentais que ainda hoje orientam as nossas concepções acerca da sociedade. A idéia do trabalho como fonte de riqueza, da razão como guia do conhecimento e do comportamento, do caráter laico do poder político são, sem dúvida, algumas das mais sig47 nificativas. A nova sociedade que se projetava e buscava instituir-se requeria uma nova representação dos seus membros. Assim, ela os “idealizava” com um novo dimensionamento da alteridade, ditada pelo desenvolvimento da noção da individualidade. Como afirma Barbu: “el individualismo económico y político, el individualismo religioso a partir de la Reforma, así como el individualismo en el arte, que comenzó con el Renacimiento y culminó con el Romantismo, constituyen rasgos básicos en las pautas culturales de las sociedades de Occidente (Barbu, 1962, pg.10). Projetando os seus membros como indivíduos, sujeitos da razão, previsíveis, regulares, agenciáveis e confiáveis enquanto agentes econômicos, a nova sociedade que se inaugurava, fatalmente teve que se colocar a questão do “que fazer?” com aqueles seus membros que não poderiam ser “conjuntizáveis” a partir dessas características. O que fazer com aqueles seus membros que, marcados por uma condição de imprevisibilidade, de incerteza não correspondiam às exigências formuladas para a pertinência ao conjunto de sujeitos aos quais, nessa sociedade, poderia se dar uma “existência” plena? Seria, portanto, em função de uma certa autorepresentação que a sociedade projetava para si mesma, auto-representação, por sua vez, derivada daquelas significações imaginárias sociais a partir das quais esta sociedade estava a instituir-se a si mesma como sendo “esta” e não outra qualquer, que iria, portanto, se produzir, se delinear 48 um sub-conjunto de sujeitos sociais exclusos, que colocariam um conjunto de exigências próprias, diferenciadas, relativas à institucionalização de um novo fazer social que pudesse dar conta da sua condição. Não um fazer social qualquer, mas um fazer social que oferecesse os meios e que tomasse especificamente a loucura como seu objeto privilegiado de intervenção, garantindo um lugar aceitável e admissível para ela, ao mesmo tempo em que a neutralizasse em seus efeitos de alteridade radical, incômoda à nova ordem vigente. Tal necessidade, entretanto, apesar de já vir sendo murmurada ao longo do séc. XVIII, sob a forma de uma crítica que já distinguia e questionava a presença da loucura no universo promíscuo dos espaços de internação, nos quais ela se encontrava incluída, só ganharia contornos de uma exigência clara e explícita na conjuntura sóciopolítica característica do advento da Revolução Francesa, ambiente no qual tal situação receberia o seu equacionamento paradigmático. Efetivamente, seria diante do valor da cidadania, emergente no quadro revolucionário francês como a afirmação de uma nova possibilidade de representação dos sujeitos frente ao Estado, definidora de um novo conjunto de direitos e deveres do cidadão, decorrentes do novo pacto político que se instituía em torno do ideal da contratualidade, que a loucura teria definida para si uma condição de exceção frente aos direitos e deveres aí definidos, fazendo presente a exigência de um novo fazer social capaz de equacionar a sua presença enquanto uma situação política excepcional (Castel, 1978). E seria como resposta a tal busca que, percorrendo complexos caminhos nos quais se combinaram os termos da episteme racional-iluminista, certas exigências políticas estatais de gestão social e a disponibilidade de certos agentes sociais para assumirem negociadamente a condição de operadores práticos de uma nova solução para a questão da presença social da loucura, que a solução médico-asilar se projetaria como a possibilidade de tal equacionamento. Racionalizadora, num momento em que a episteme Iluminista transpirava o ideal da razão enquanto projeto de ordenação da vida social, a solução manicomial proposta e executada pelos alienistas compatibilizava um conjunto de interesses diversificados, ao mesmo tempo em que oferecia mais segurança e garantias que as alternativas pré-existentes na solução dos problemas representados pela presença dos loucos na vida sócio-comunitária. Encaixando-se perfeitamente nas exigências do emergente paradigma do direito contratual (substituto do direito real), tal solução respondia também adequadamente às novas exigências econômicas, jurídicas, disciplinares, correlatas a este paradigma, a saber: a definição da capacidade da auto-responsabilização individual frente ao trabalho; a subsistência é a lei, como condição do gozo dos novos direitos conquistados. Como analisa Castel, a loucura e os loucos dificilmente podiam ser reduzidos a tal projeto de poder contratual e, ao ficarem fora dele, criavam questionamentos embaraçosos, relativos à universalização da igualdade enquanto direito político, fragilizando a posição instituinte do projeto de poder dos revolucionários. Projeto de poder que se encontrava naquele momento onerado pela sua obrigação de demonstrar superioridade frente ao poder aristocrático ao qual se colocavam como alternativa. Por outro lado, para resolver tal problema, não se poderiam contrariar os demais pressupostos ideológicos e jurídicos sobre os quais se baseava esta nova sociedade política. Entre os quais, aqueles que garantiam, por exemplo, que ninguém seria preso, senão por desobediência à lei, como figurava nos textos legais, representativos desses mesmos pressupostos (Castel, 1978). Como justificar, portanto, a manutenção da prática de internamento, odiada como representação do poder absolutista contra o qual se insurgia a revolução, agora abolido para todos, mas excepcionalmente mantida como uma exclusividade para os loucos? Pela análise de Castel, em resposta a esta questão, um grupo de higienistas e filantropos, dentre os quais a história reservou lugar especial para Pinel, se ofereceram ao Estado, estabelecendo as bases de um novo tipo de poder sobre a loucura, caracterizado pelas suas características periciais, fundado numa justificativa técnica e apoiado no poder da instituição médica. Converter os antigos espaços na internação, local de amontoamento, durante o século XVII, de toda ordem de desviantes sociais (miseráveis, criminosos, vagabundos, dissidentes políticos, loucos, etc.) em instituições de caráter médico, onde só os loucos restassem a título de uma exigência terapêutica - tal foi a tarefa à qual se propuseram. 49 Reuni-los em um mesmo lugar, neutralizados sob uma mesma ordem (agora terapêutica e não mais policial), abaixo um mesmo poder (agora técnico e não mais político), constituindo-se no projeto de alienismo, desencadeado pelo mítico gesto de Phillipe Pinel, considerado o patrono criador da psiquiatria. Segurança para a ordem pública, garantia de sossego para os familiares, racionalização de procedimentos para o administrador, desresponsabilização para o legislador, desembaraço para a autoridade jurídica policial, tais são alguns elementos responsáveis pela ligeira aceitação e institucionalização do modelo fundado na exclusão manicomial da loucura. E foi com base nessa oportuna conjugação de interesses que a emergência da psiquiatria pôde criar não só o campo institucional (o campo das instituições psiquiátricas), mas também um novo campo teórico técnico e sobretudo um novo falo sócio-cultural. A definição de exclusão manicomial inerente a este paradigma psiquiátrico, posto como modalidade fundamental de relacionamento social com a loucura, ao conceder-lhe um alto grau de eficiência prática como resposta à questão “do que fazer com os loucos?”, iria produzir a sua legitimação social, colocando-lhe como centro da convergência de um amplo e diversificado leque de interesses sociais relativos à loucura, agora convertida em doença mental. Pelo mesmo processo, colocaria também os seus agentes e instituições numa posição privilegiada, enquanto “emissores” de uma recodificação e ressignificação das percepções sociais que envolvem a ques50 tão, condicionando através das suas enunciações os conceitos de Saúde/Doença Mental. Legitimado socialmente pela sua filiação ao prestigiado campo técnico científico e, de forma prática, pelo rigor da exclusão da loucura por ele propiciada, legalizado precocemente pela astúcia política dos seus pioneiros, que garantiriam, já em 1838, no texto da lei, as prerrogativas da sua exclusividade, esse modelo médico-psiquiátrico impôs a sua hegemonia, estabelecendo como subalternas todas as outras práticas, saberes, ideologias pré-existentes, logrando identificar-se como a única forma reconhecidamente idônea de abordagem dos transtornos mentais. Chancelado pelos critérios da racionalidade técnico-científica, este dispositivo médico-psiquiátrico, desde então, não mais parou de se expandir e de se inscrever nas mais diversas esferas da vida social, desde o seu surgimento, no início do século XIX, até os dias atuais, ampliando e diversificando os seus espaços e objetivos de atuação: “primeiro a loucura, depois a doença mental, os conflitos emocionais, a vida psíquica, a saúde mental, o comportamento humano, as inadaptações e insatisfações, etc, etc.” (Pinheiro, 1981). Referências 1. Birman, Joel (1978) A psiquiatria como discurso da moralidade. Edições Graal: Rio de Janeiro. 2. Castel, Robert (1978) O Psicanalismo. Edições Graal: Rio de Janeiro. 3. Castel, Robert (1978) A Ordem Psiquiátrica: A Idade de Ouro do Alienismo. Edições Graal: Rio de Janeiro. 4. Castoriadis, Cornelius (1982) A Instituição Imaginária da Sociedade. Ed Paz e Terra: Rio de Janeiro. 5. Foucaul, Michel (1975) Doença Mental e Psicologia. Ed. Tempo Brasileiro Ltda: Rio de Janeiro 6. Foucaul, Michel (1978) História da Loucura. Ed. Perspectiva: São Paulo 7. Jaques, Elliot (s/d) Os Sistemas sociais como defesa contra a ansiedade persecutória e depressiva: uma contribuição para o estudo psicanalítico dos processos sociais IN Temas de Psicanálise Aplicada. (xerox, s/d ed.) 8. Pelbart, Peter P. (1989) Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão. Ed. Brasiliense: São Paulo. 9. Rosen, George (1974) Loucura y Sociedad: Sociología Histórica enfermedad Mental. Aliaza Editorial S/A, Madrid. 10. Pinheiro, Luiz H. Psiquiatra, Prof. Do departamento de Neuropsiquiatria da FAMED/UFBA. Depoimento concedido em 27/01/80, transcrição. 51 Psicose e ressonâncias sociais Marcus Vinicius de Oliveira Silva*1 V ocês se lembram que, lá no começo, nós fizemos uma grande discussão que estabelecia que o que, efetivamente, vai parar na porta da emergência psiquiátrica decorre mais da crítica social sobre aqueles comportamentos que parecem fora das regras pactuadas socialmente do que do sofrimento do sujeito ou da sua situação psíquica? Lembram-se disso? O que é que vai parar na porta da emergência psiquiátrica? O que vem para nós como crise? O que aparece para nós como crise são aqueles aspectos que causam alguma ordem de estranheza e uma perturbação social importante. do chegar... Isso nós já falamos lá no começo, eu só estou retomando, porque essa é a primeira dedução da psicose como questão social. Estou querendo dizer, inclusive, que, se a psicose não se apresentar sob esse formato disfuncional, ela não é problema para ninguém, a não ser talvez para o sujeito que vive essa estranha experiência. Então, a primeira dedução é essa, de que a psicose é uma questão fundamentalmente social e o que vai parar na porta da emergência psiquiátrica é, fundamentalmente, aquilo que corresponde a uma perturbação psíquica que gera algum tipo de ressonância social importante. É muito óbvio, não é? Sem ressonância social, o fato psíquico deixa Lembram-se que vimos que é quando o sujeito de ser relevante. perde a sua autonomia, principalmente a autonoMas, às vezes, é difícil lidar, assumir isso assim. mia financeira, que ele vai criar uma perturbação Mas se pararmos para examinar qual é o objeà ordem? Vejam só onde é que eu estou queren- to que chega à porta da emergência do hospital psiquiátrico, qual é o sujeito que trazem para a * Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade gente, isso fica cristalino. Trazem o sujeito para a de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos gente, porque ele está disfuncional psiquicamente Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Superou porque a sua disfunção psíquica gera algum visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. 1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das tipo de disfunção social? Então, o sujeito que chepsicoses” set. 2005 Salvador - Ba 52 ga até nós é o sujeito que perdeu a funcionalidade social. Estou querendo dizer que não é o crivo estritamente psíquico, do modo de funcionamento psíquico, que gera a demanda psiquiátrica. O que faz gerar a demanda psiquiátrica é basicamente uma relação dessa falta de funcionamento psíquico com uma reação social; é a perda da funcionalidade que converte esse sujeito num sujeito-cliente para os serviços psiquiátricos. Essa primeira dedução é fácil de fazer; a nossa prática cotidiana nos mostra isso o tempo todo: quando alguém chega a levar um outro alguém para a emergência psiquiátrica é porque esse outro alguém entrou na esfera de atrito com a ordem social, com a perda da autonomia, com a capacidade do autogoverno, com a capacidade da auto-responsabilização pelos seus atos. Isso é a questão central da constituição da demanda psiquiátrica, isso não é um detalhe a mais! Eu não estou querendo desconsiderar que existem sofrimentos menores, que existe um conjunto amplo de situações sociais que vão ser psiquiatrizadas, mas eu diria que o dispositivo psiquiátrico não se instituiu originalmente por causa desses males menores. O dispositivo psiquiátrico se instituiu para enfrentar o grande mal que tem a ver com a questão da governabilidade do sujeito. Isso também já discutimos bastante, já apresentei para vocês essa tese de que a grande questão da constituição desse espaço do campo de saberes e práticas em saúde mental está relacionada à questão da governabilidade social. Existem grupos de sujeitos que não são governáveis por si mesmos, e o principal deles, não di- ria o principal, mas o destacado deles é aquele constituído pelos sujeitos que ouvem vozes, que saem da ordem social, rompendo com o ordenamento simbólico da cultura. Isso sim é imperdoável do ponto de vista da cultura... Agora, é verdade que existe uma série de outras perdas da autonomia, outras formas de apresentação de falta de funcionamento social... Você trazia aquele dia a questão dos orgânicos; isso é importante... Eu fui a Camaragibe, em Pernambuco, fazer uma inspeção num hospital psiquiátrico que tinha 850 leitos e 100 pacientes neurológicos graves numa ala. Aquilo é um impacto quando a gente entra na ala. É um impacto, sobretudo porque se trata de um mega hospital, um hospital muito grande, e essa ala é uma jaulinha dentro daquela jaula grande. Qual é a questão desses sujeitos? Eles têm uma limitação para cuidar de si e da vida, para responderem por si mesmos diante de suas famílias e seu grupo social. Então é verdade que esses sujeitos, na medida em que existe o hospital psiquiátrico - vários deles têm problema na esfera da autonomia - vão parar no hospital psiquiátrico. Bem, o que é que eu estou querendo com isso? Eu estou querendo com isso saber se é possível, com tranqüilidade, a gente afirmar que efetivamente a chamada “questão social” é uma questão extremamente relevante para a compreensão do fato cultural e comportamental da loucura. A crítica social, a percepção social, o incômodo social é um elemento fundamental para configurar as apresentações dos sujeitos que nós recebemos como casos psiquiátricos. Será que isso é passível de crença para nós? Será que 53 podemos aceitar isso com tranqüilidade? Efetivamente, muitas vezes temos uma situação em que um trabalhador experimenta grande sofrimento que o consome internamente, numa situação de construção delirante que fica oculta, mas que lhe garante estabilidade para que ele esteja hígido para o trabalho, que ele esteja funcional para o trabalho; e, sendo então essa uma produção sintomatológica perturbadora, essa questão não será percebida socialmente e não será objeto de uma intervenção, de uma movimentação, de um encaminhamento, de uma busca de ajuda ou contenção do sofrimento... Então, eu preciso saber de vocês se isso é tranqüilo para vocês, se vocês têm dúvidas, comentários, para que possamos prosseguir. Essa é a nossa primeira dedução da psicose como um fato social relevante. Por que estou chamando isso de “a primeira dedução”? Porque estamos propondo um saber clínico que leve em consideração as coisas que a gente encontra na vida, um saber clínico que se relacione com as produções sociais tais quais elas chegam a nós. A crítica que nós fizemos há dois, três encontros atrás, dizia: olha, o sujeito efetivamente se apresenta de forma perturbadora da ordem, é a crítica social em relação a essa perda de autonomia do sujeito; a crítica está localizada aí, é isso que faz efetivamente com que o sujeito seja objeto de uma preocupação social endereçada à emergência psiquiátrica. Isso não quer dizer que todos os sujeitos que têm problemas ou dificuldades vão ter essa apresentação, mas era importante afirmar essa hipótese. Tranqüilo para vocês? Então, nós podemos chamar isso de “a 54 primeira dedução”, de que, efetivamente, é a crítica social, a perda de autonomia, a perturbação da ordem os fatores que constituem a demanda ou uma parte significativa da demanda e dos problemas que nós recebemos na emergência do hospital psiquiátrico. Se essa foi a primeira dedução, a segunda será aquela que eu trouxe para vocês no outro encontro: a idéia da questão da psicose como profundamente associada à problemática da constituição do “eu” e do “outro” como base da organização psíquica e de todo o processo de significação. A psicose estaria relacionada, então, a um evento que tem uma dinâmica psíquica importante, independente de que nós possamos descobrir no futuro que ela tem uma química ou tem uma falta química, que tem um componente genético; enfim, independente disso, há um conjunto de teorizações que apostam que a psicose tem uma coisa que envolve essa dinâmica, que é a dinâmica relacional que, ao sujeito psicótico, corresponderia uma dimensão onde essa questão do “eu” e do “outro” ficou estabelecida de uma forma precária. Nós estamos englobando aí várias teorizações, nós estamos pegando Winnicott, Melanie Klein, Bleger, Lacan... São várias teorizações no campo psicanalítico, mas há teorizações também no campo da teoria sistêmica, que vão estabelecer que a questão da psicose encontra-se localizada numa esfera relacional, derivada da questão de como esse sujeito estruturou o eu como uma função do outro. O “eu’ é uma significação mater, primeira, matriz de toda a possibilidade da sig- nificação. Significar é sempre significar para um determinado sujeito. Se não existe este lócus do sujeito instalado, então não haverá significação. O que as teorias psicanalíticas nos trazem de muito interessante é nos remeter a um raciocínio sobre como em cada sujeito este processo de tornar-se um sujeito é singular e se produz como um arranjo psíquico derivado da questão da significação. Esse é o interesse de chamar essa teorização psicanalítica para compreender a psicose como um arranjo psíquico que se dá no processo mesmo da instauração do sujeito psíquico. Portanto a psicose seria uma forma de expressão do sujeito, seria uma direção de organização do sujeito. Alguns sujeitos se organizam nessa direção, é um modo de se arranjar, fruto, fundamentalmente, da questão da cesura, da questão da separação. Mesmo lá na teoria sistêmica, a questão da psicose aparece com a questão da separação. A teorização de Gregory Bateson, que é o pai da teoria sistêmica, que, aliás, nasceu das pesquisas com pacientes esquizofrênicos, investigando os padrões de comunicação familiar entre mães e filhos, toma esse tema da separação como relevante. É interessante porque, vejam só, não precisa se fazer recurso só à psicanálise; tem aí uma outra teorização que não tem nada a ver com a psicanálise, mas que também se desenvolveu nessa direção. Eu já contei aqui para vocês sobre o Gregory Bateson, que foi um antropólogo e pai da teoria sistêmica. Ele estava trabalhando com os Iatmul, uma tribo da Nova Guiné, nos anos 30, e lá descobriu um mecanismo através do qual os sujeitos se diferenciavam uns dos outros dentro da tribo como pertencentes a certos grupos, através do ritual do navem, e ele chamou isso de sismogênese. Posteriormente, ele foi para Palo Alto, onde estudou, fundamentalmente, a questão dos esquizofrênicos e a relação da produção da esquizofrenia como função das relações de significação estabelecidas nas relações do grupo familiar. O que a sismogênese tem a ver com isso? Nós não podemos chamar tudo de sismogênese, mas essa idéia de separações, a castração inerente ao aprofundamento da individuação, é uma boa idéia. Na história dessa idéia, nós a encontramos também em Winnicott quando ele descreve as relações do bebê com a mãe e a importância dessa experiência como estruturante para a organização do processo de significado com base na definição do espaço psíquico, onde se organiza o sujeito e o espaço psíquico que, em contrapartida, estrutura o outro; nós poderíamos estar falando da mesma coisa, de separação, de afetação recíproca entre eu e o outro que nos produz psiquicamente e socialmente. É obvio, já falei com vocês disso, que não vale a pena ficar fixo numa teorização sobre esse processo, já que o tratamos como uma mera hipótese que tem várias construções. Vários autores, teóricos trabalham essa hipótese, é uma hipótese muito boa, muito interessante para a gente pensar a questão da psicose, para a gente pensar num grupo de sujeitos que “vacila” ou que desliza na questão da significação, que produz uma ordem de expressão de significados que são abso55 lutamente próprios e diferenciados. Então, se eu chamar isso aqui de segunda dedução da psicose como questão social, fica claro para vocês? Por que nós vamos entender isso aqui como uma questão social? Porque a produção da vida psíquica, a organização da vida psíquica se dá numa relação que parece absolutamente íntima, próxima, dual, mas é uma relação que, de certa forma, reproduz o padrão da cultura, que é o padrão da existência dos sujeitos para os quais os outros sujeitos representam alguma coisa, alguma alteridade, representam algo que não são eles próprios, que são diferentes deles. Essa é a condição da possibilidade de ser na cultura. Então, essas duas deduções estão claras? Desculpem por eu estar insistindo um pouco, mas é que, se isso não ficar claro, vai atrapalhar um pouco lá na frente, porque a idéia é de que toda clínica deve dizer quais são as hipóteses que ela tem acerca do fenômeno com o qual trabalha. Eu estou dizendo para vocês que essa clínica que nós estamos discutindo aqui deve levar em consideração essas duas deduções que localizam a psicose num eixo eminentemente social. Ela deve levar em consideração essa primeira dedução de que quando alguma coisa aparece para mim, aparece como situação social, por mais que seja particular. Por mais que seja individual, é um efeito social, é uma ressonância social da perturbação que chega. E, por outro lado, também do ponto de vista da dinâmica que produz o sujeito como uma subjetividade complexa, o arranjo psíquico complexo da psicose está marcado por uma profunda questão social, que 56 é aquela questão que eu disse para vocês, a da significação atribuível à condição de ser sócio da sociedade. Nós podemos pensar que a questão da psicose é uma problemática referente ao pertencimento do sujeito psicótico na sociedade – e não apenas quando ele se encontra em crise – ao invés disso ser tratado como uma obviedade – que é como alguns de nós, normo-neuróticos vivemos a nossa presença no mundo, pois geralmente não botamos em questão o nosso pertencimento à comunidade humana, o compartilhamento das experiências, sentimentos, compreensões com os demais humanos. Para o sujeito que traz a marca da psicose, isso se coloca de uma forma muito enigmática. Para o grupo de sujeitos psicóticos, isso não se coloca dessa maneira. Isso produz um rebatimento na percepção, na sensação de estar no mundo, na sensação de estar no mundo habitado pelos homens, na sensação de que há algo que não flui, não oferece a sensação de compartilhamento. Lembra de quando eu falei para vocês da ilusão do compartilhamento intersubjetivo como traço fundamental para a gente pensar a questão da psicose e da neurose? De que nós, neuróticos, temos a sensação de que compreendemos perfeitamente o que as palavras que vêm do outro querem dizer, e que o outro, por sua vez, acha que nós compreendemos como ele compreende aquilo que acabou de dizer? É a ilusão da comunicação, da intersubjetividade. Na neurose, a ilusão do compartilhamento simbólico é algo tranqüilo. Nós até produzimos desentendimentos – briga de casal, desavenças – nós até podemos dizer radicalmente que a comunicação é uma coisa impossível dentro dessa perspectiva que eu estou trazendo, mas a ilusão do compartilhamento está sempre aí para fazer de conta que a comunicação é possível. No sujeito psicótico, a experiência prática, clínica, evidencia a estranheza total, tanto em relação ao que falamos para ele, quanto aos efeitos que o discurso dele faz em nós, aquele mal-estar que é estar diante de um discurso delirante. E por quê? Porque não sentimos nele o rebatimento da nossa própria subjetividade, que eu estou chamando de pertencimento, da condição de ser sócio da sociedade. Isso é bom para a gente pensar numa série de outras coisas. Eu me lembro que causou muita estranheza quando duas mulheres surdas, que viviam juntas, quiseram ter um bebê de proveta. Prepararam geneticamente e fizeram uma seleção genética para a surdez, escolheram genes que oferecessem mais probabilidade de que a criança nascesse surda. Isso causou uma polêmica geral, e as duas explicaram que a comunicação surda é de outra ordem cultural, elas consideram que não fazem parte da mesma cultura, elas acham que existe um mundo próprio da experiência da surdez, com sua comunicação, suas expressões, e, recentemente, eu estava fazendo um trabalho em que manejei esse recurso, e o sujeito surdo que nós pegamos para conversar falava assim: você acha que linguagem de sinais é universal? Que nada! Os surdos do Rio de Janeiro conversam de um jeito; os de São Paulo, de outro. Há alguma coisa em comum, mas são dialetos diferentes. Dialetos na linguagem de sinais, isso não é muito interessante? Estou, com isso, querendo chamar vocês a imaginarem outros mundos, para a possibilidade de organização de outros mundos ou de outros registros da experiência de estar no mundo. A questão na psicose, pelo menos no surto, é que o mundo é outro. O que as mães surdas selecionaram foi a condição de que o filho fosse sócio da surdez, sócio desse mundo surdo, com compartilhamento nesse mundo, inscrito nesse mundo. Para elas, o que importa é que a sua filha se comunique com elas, que ela esteja integrada com a comunidade surda. O mundo – diriam essas pessoas – nós não participamos do mundo, nós participamos do mundo dos surdos e queremos que nosso filho nasça surdo para viver no nosso mundo. Quem disse que viver no mundo dos ouvintes é a melhor coisa? O mundo do surdo não é defeituoso, não é errado, é um outro mundo, uma outra forma de construir a sociedade, com importantes especificidades simbólicas. Eu trouxe isso para comentar a questão da diferença, para pensar a psicose como registro de diferença. É claro que a psicose guarda aí uma radicalidade, porque não tem a comunidade dos psicóticos, não é? Não é assim: a sociedade dos psicóticos contra a sociedade dos outros, os neuróticos. É que cada psicótico organiza certos registros de significação ou pode organizar, porque a maior parte do tempo, inclusive, eles vivem grudadinhos no registro da significação com uma sensação de diferença, mas também não são des57 ligados desse registro não. Temos de fazer esse reparo, senão a gente começa a pensar que a psicose é permanentemente o delírio, e a psicose não é permanentemente o delírio. O delírio é justamente a expressão do registro da diferença do arranjo psíquico no que tange à questão da representação. Então, a isso aqui eu estou chamando de “dedução”, dedução da questão social. A psicose, portanto, não só ela apresenta-se para o outro social como um distúrbio e perturbação, como ela se apresenta para o próprio sujeito como distanciamento, como diferença, como alteridade; como divergência social. Essas são as duas deduções que nos permitem introduzir o tema de hoje, que é uma questão radical na psicose, que deveria ser uma primeira questão que nós deveríamos levar em consideração numa clínica psicossocial das psicoses. Estou me referindo à questão da solidão psicótica. Toda vez que tomamos um caso, quando recebemos um sujeito, quando vamos abordar, quando vamos receber uma certa demanda social que envolve o sujeito psicótico, eu acho que a gente tem de pensar na hora, eu acho que a gente tem de começar a pensar a psicose a partir da questão da solidão. Não sei o quanto vocês são sozinhos, o quanto refletem sobre a sua solidão, o quanto já pararam para pensar quão importante é a questão da solidão para a saúde mental. O psicótico não fala da solidão. Quer dizer, às vezes fala, mas o psicótico é principalmente a solidão. O que impacta muitas vezes para nós é o quanto esse sujeito é a solidão, no sentido que nós vamos começar a refletir agora. 58 Quem nos faz pensar a solidão geralmente é o deprimido. A depressão nos impõe muito essa questão. Vocês entendem porque o deprimido nos impõe a questão da solidão? Porque o deprimido, de certa forma, reconverte libidinalmente para dentro, o deprimido corta o sentimento para fora, por isso é muito difícil lidar com o deprimido, não é? Porque, de alguma forma, ainda que o deprimido não tenha nenhuma questão de compartilhamento de significação, ele é tomado por uma certa ordem em que a significação também cai, não é? O sentido também cai; aí ele não consegue fazer um investimento, ele faz uma reconversão libidinal, por isso ele nos remete à questão da solidão. Talvez a expressão seja que o deprimido problematiza a solidão. Agora, o psicótico nem sempre problematiza a questão da solidão; o psicótico, efetivamente, expressa a solidão, ele é a solidão. Insisto com vocês nas dezenas de falas desse tipo que colho no contato com os sujeitos psicóticos: “meu problema é que eu sou muito sozinho”, “meu problema é que não tenho ninguém”, “meu problema é que eu não tenho amigo, apoio”. Essa percepção do psicótico impacta muito, e achamos que ela é uma boa porta para a gente discutir o que é que isso tem a ver com nossa clínica. É muito curioso, porque nós nos produzimos numa sociedade contemporânea, pós-moderna, que tem como regime principal de direção da organização da vida social o individualismo narcísico. Nós vivemos numa sociedade – e nada disso é totalidade, pois é óbvio que estou falando das pontas urbanas, regiões e geografias avançadas na sociedade, porque a gente não pode esquecer que há lugares em que as coisas se passam ainda do modo antigo, então há uma convivência entre os modos antigos e os pós-modernos de expressão - mas, nos modos pós-modernos, nós podemos dizer que a expressão mais forte é a de um individualismo narcísico, e que essa é a direção civilizatória que a vanguarda da sociedade nos tem apontado. Então, a nossa questão é entender como é que a solidão se coloca para o sujeito psicótico, porque, no caso do deprimido, o sujeito toma um antidepressivo e deixa de ser deprimido, retoma seus vínculos sociais, retoma sua vida e volta a viver no compartilhamento simbólico; e, no psicótico, se ele toma um anti-psicotizante ou, eventualmente, um antidepressivo associado, ele não volta a compartilhar, ele continua remetido a uma certa condição de impossibilidade. Talvez o que nos interesse dizer nesse momento é que o que a psicose coloca para o sujeito é um registro radical da solidão. Como é que isso chega para nós? Como é que nós nos relacionamos com isso? O que é que isso implica para a nossa clínica? Porque, na sociedade do individualismo narcísico, é muito difícil, aliás, a questão do narcisismo atravessa tanto a questão da depressão como a da psicose do ponto de vista da hipótese teórica que sustenta a construção desses estados; são estados que, fundamentalmente, têm alguma ordem de perturbação na relação vincular com o outro, um desinvestimento de um sentido e de uma produção de significado na vida do sujeito. Uma clínica psicossocial das psicoses precisa começar por considerar que esse sujeito se sente muito desconfortável no mundo e que sua solidão deriva do seu profundo desconforto psíquico; desconforto psíquico gerado, por um lado, pelos efeitos sintomáticos da sua condição, pela sua bizarrice eventual, pelo seu retraimento, pelo caráter complexo do estabelecimento de relações, o caráter estudado, medido, avaliado do comportamento para entrar em relação, o caráter travado para entrar em relação, e isso por si só gera uma crítica social, porque, de repente, a gente olha e fala: “que pessoa esquisita, que pessoa estranha que está convivendo entre nós”. Eles não chegam a produzir esse problema da autonomia, às vezes eles conseguem se manter estabilizados, mas num registro de poucos amigos, de vínculos muito restritos, talvez seja essa a melhor expressão: mais do que falar da solidão, falar em vínculos, já que a questão da solidão é problemática. Os vínculos são restritos. E, por outro lado, a própria percepção do sujeito sobre si mesmo, o rebatimento: “o outro me percebe e me confirma num lugar de estranheza, de dificuldade, e eu mesmo me percebo nesse lugar de dificuldade, de impossibilidade”. Muitas vezes se diz: “o outro na psicose é um enigma” porque, na medida em que essa relação não se estabeleceu bem, em seu momento constitutivo das primeiras experiências quando do ingresso na sociedade humana, se diz que o outro impera na psicose, ele não consegue nunca se livrar dessa marca, dessa presença, dessa indistinção, razão pela qual ele é avesso às relações, já tem “outros” demais na vida dele, alteridade demais na vida 59 dele, e isso os perturba. Na sociedade individualista narcísica, é responsabilidade de cada individuo cultivar a sua lista do Orkut, produzir a sua lista pessoal do Orkut, cada um tem de dar conta de angariar seus afetos, os seus amores; cada um tem de construir a sua região vincular para se sentir confortável. Eu perguntei isso para vocês outro dia e repito porque acho interessante: quem são os sujeitos que compõem o meu sociograma? – que é um recurso técnico proposto por Moreno. Quais são os sujeitos que estão na esfera das minhas relações, dos mais próximos aos mais distantes, mas cujas existências estabelecem para mim sentido e significado para a minha própria existência? Quem são então estes meus “outros” tão importantes que me dão sustentação no mundo, sendo eu o sujeito que eu sou? É interessante pensar isso, porque essa teia de relação é fundamental para nos produzir como sujeitos que nós somos. Existe, nesse momento histórico, uma tendência declinante da família mononuclear burguesa, em favor dos modos individualistas, como outrora declinou a família extensiva em prol da família privada e mononuclear... Vejam como era a produção do sujeito no passado: a família extensiva era uma benção para essa matéria vincular, concordam? Entre as classes populares, inclusive - e nós encontramos muitos casos desses tipos no nosso programa de estágio - existem muitas situações desse tipo, de dizer “fulano foi criado por sicrano”, que não eram seus pais e nem tinham laços de sangue, mas acolhiam uma criança abandonada ou que os pais morreram, vizinhos com 60 grande generosidade social, entre aspas, porque todo sujeito criado pelos outros tem uma querela em relação a isso, de terem sido mais ou menos amados, mas existiam enjeitados sociais que eram albergados na família. E o que chama atenção é que são pessoas pobres, não têm isso de adoção, de ir ao juiz, de pedir guarda. É simplesmente ver um ser vivente que está abandonado, que ninguém quer, e colocar dentro de casa, começar a tratar... Um tipo genuíno de solidariedade. Obviamente que aí entram as queixas. Qual o grau de incorporação que esse sujeito recebe pelo grupo que o acolhe? Mas a idéia é afirmar que a questão vincular para as classes populares está colocada de uma forma muito diferente que nas camadas médias urbanas. Nós, das camadas médias urbanas da Bahia, estamos aprendendo a cultivar a impessoalidade - e eu digo sempre “aprendendo”, porque acredito na hipótese da modernização tardia, percebo a tendência à impessoalidade, a morar nos condomínios e não falar com as pessoas, o que era impossível e inadmissível há 30 anos porque havia um registro da sociabilidade comunitária muito imperativo. Estou trazendo isso para falar de um traço importante da sociedade ocidental moderna que é essa tendência à privatização dos afetos, das relações, à produção do individualismo narcísico, questão que se coloca, portanto, para a psicose, como um problema a mais. Nessa direção nós estamos tornando o mundo cada vez mais difícil para os psicóticos. Curiosamente, talvez nós estejamos nos apro- ximando cada vez mais dos modos de vida isolados, em que a gente é sócio, mas a gente continua sendo sócio no simbólico, a gente está deixando de ser sócio da sociabilidade, estamos abrindo mão da sociabilidade, estamos dizendo “eu não quero que meu vizinho me cumprimente, eu quero subir no meu elevador sem que ele me encha o saco, não quero que ele divida demais comigo, que ele se relacione demais comigo, não quero intimidade demais”. É interessante para nós, soteropolitanos, vermos essa tendência cada vez mais aflorando. Nós vemos assim: “moderno não é esse negócio que interage demais, conversa com todo mundo”. Gente, isso são fragmentos... Eu estou fazendo assim para a gente pensar sobre como é que nós temos compreendido a questão da solidão, como é que a questão da solidão para nós vai deixando de ser uma experiência de imposição social e vai sendo uma experiência de eleição social. Nós estamos elegendo formas mais solitárias de viver. Olha, gente, para isso tem uma estatística do IBGE que mostra o número de residências monodomiciliadas. No Brasil, já chega a 14% o numero de domicílios que são habitados por uma única pessoa. Na França, dá 30%, e, nos Estados Unidos, 40%. É uma direção societária, é um rumo que estamos escolhendo na vida: é cada um por si e Deus por todos, é o rumo da privatização dos afetos e dos espaços. É interessante isso como direção civilizatória do ocidente, porque afronta fundamentalmente a questão do vínculo. Jurandir Freire em uma fala dizia que devemos ser cuidadosos e não olharmos para essa discussão do individualismo narcísico numa perspectiva de tipo patologizante. Devemos fugir dessa forma de conversar sobre esse assunto, dizendo que o individualismo narcísico é uma doença. E por quê? Porque todo mundo que fala sobre doença, fala sobre remédio. Então, tem uma pergunta que é: “qual o remédio para isso e quem vai dar o remédio?” Uma eleição social de valores morais que são sempre parciais e que, no limite, remetem à possibilidade da instauração de um fascismo. Então, como é que nós devemos encarar isso? O Jurandir comenta que o individualismo narcísico é uma produção civilizatória que está na contramão do vínculo social, da relação com essa matéria da filia, que é a matéria humana que produz coesão social. Psicanaliticamente, seria uma comunhão libidinal, não é? Que é o compartilhamento dessas projeções que constroem a sociedade como um ente resultante dos vínculos entre os sujeitos. Nós podemos dizer que o individualismo narcísico agride, de certa forma, o conceito de sociedade? É uma idéia interessante. O individualismo narcísico vai contra o próprio conceito da sociedade. O Jurandir, então, fala que tomar isso como doença é uma perspectiva profundamente ameaçadora para a própria idéia de sociedade, que coloca em questão o próprio conceito de sociedade, em que a sociedade é cada vez mais um mero habitat, um receptáculo para as individualidades narcísicas. O Louis Dumont fala de uma situação em que os tijolos são mais importantes do que as paredes do edifício social; o valor do 61 tijolo é mais importante que o valor do edifício que o conjunto de tijolos produz, que seria a sociedade, em que o valor principal não é ela, mas cada tijolo. É como se fosse a rebelião dos tijolos. Cada tijolo está mais preocupado consigo mesmo, e o fato de que eles estejam ali superpostos é uma mera formalidade que produz a sociedade. Então, ele chama atenção para o fato de que a autodestruição pode ser uma perspectiva civilizatória. Ora, quantas civilizações acabaram assim? Se auto-destruíram, e a gente hoje não tem senão notícias delas. Eu estava conversando com uma colega de vocês, no intervalo, sobre as crianças neurológicas, sobre as crianças e adolescentes com quadro neurológico importante que vivem lá no Hospital das Obras da Irmã Dulce. Eu estava conversando exatamente que, de algum modo, todos eles são sujeitos que têm problema de autonomia e de como se poderia organizar o cuidado com eles, no sentido da solidariedade humana, de garantir as necessidades básicas da vida para esses sujeitos e, ao mesmo tempo, o quanto isso parece insuficiente como perspectiva. Sem dúvida nenhuma, esses sujeitos precisarão de cuidado para o resto da vida. O interessante é que, ao estarem sob os cuidados institucionais, isso coloca uma questão muito interessantes, que é a questão dos vínculos, e eu acho que é esse o tema que nós devemos discutir, o tema da desfiliação, que é onde nós vamos nos interessar na experiência psicótica. Já que nós podemos pensar que filia é amizade, é vínculo, é o que atrai; quan62 do a gente fala da desfiliação, nós falamos da curiosa e rara produção, poderia dizer até inusitada produção, do sujeito sem vínculo. Então, essa é uma produção rara na história da humanidade. Só essa sociedade a qual eu estava me referindo anteriormente, que é essa sociedade moderna, formata o sujeito social sob a égide da individualidade e permite essa experiência de uma radical desfiliação dos que são menos funcionais nessa habilidade de organizar uma rede de relações. Eu diria que está ligado ao modelo da formatação do sujeito moderno, que é absolutamente orgânico com o modo de produção capitalista, que, na sua dinâmica, por exemplo, olha com interesse o ideal das moradas unidomiciliares para todos. Assim, cada sujeito, como consumidor terá que adquirir um fogão e uma geladeira, por exemplo. Tem uma indústria que vai adorar isso, porque multiplica os consumidores. E hoje, utensílios que eram da casa de todos, como as televisões, são de uso pessoal, tem quatro televisões numa casa com quatro pessoas. Mas é muito mais interessante morar sozinho; cada um, sozinho, precisa de todo um aparato. Agora, temos de ter cuidado para não parecer uma relação de causa e efeito. Efetivamente, é uma sociedade individualista, narcísica e, obviamente, competitiva, que faz cada lar, cada família cada vez menor... Os casais nos países europeus não conseguem se reproduzir numa mera taxa de reposição, estão virando países de velhos, porque não conseguem dois filhos por casal para a reposição social. Todos esses fenômenos estão vinculados. O que nós temos de pensar é como, nessa sociedade, aqueles indivíduos que são mais frágeis na dinâmica da autonomia vão ser, de certa forma, excluídos socialmente. E aí nós podemos pensar desde a exclusão do mundo do trabalho. Robert Castel traz isso com muita ênfase, e ele fala sobre a produção de um homem, que não só não tem mais trabalho, mas não tem um outro conjunto de vínculo social que o sustente socialmente. Então, nós vamos começar a produzir o homeless em grandes quantidades, nós vamos começar a produzir essas populações que estão extremamente fragilizadas, vulneráveis do ponto de vista da sua questão vincular. O Castel tem o mérito de chamar a atenção assim: não se trata só de pobreza, se trata de desvinculação sócio-afetiva. Claro, essa coisa toda de individualidade é uma tendência, é uma direção. O que chama a atenção é que, nessa tendência, tem um conjunto de sujeitos que estão menos aparelhados para lidar com os desafios de situar relacionalmente, certo? Que são vulneráveis para participarem da sociabilidade dessa sociedade. Aquela sociedade que inventou o manicômio, porque era uma sociedade na direção da industrialização e que via que o louco perturbava a sociedade, perturbava as dinâmicas do capital. Essa sociedade, ela, digamos assim, aperfeiçoou em muito as exigências para dizer quem é que cabe e quem é que não cabe, gerando um grupo de sujeitos que fica muito frágil, é um grupo que fica muito fragilizado. Eu queria considerar que, óbvio, não são apenas os psicóticos, mas nosso caso, que mais de perto nos interessa, é o grupo dos psicóticos. Esse grupo recebe um impacto desses processos e dessas dinâmicas sociais. Se é que podemos afirmar, está ficando cada vez mais difícil viver como um psicótico socialmente. As dinâmicas sociais vão ficando cada vez mais restritivas, a disponibilidade social para produção vincular está cada vez mais restrita. Então, temos de ter em foco, no caso das psicoses, a questão vincular, que é onde sua destreza, sua habilidade social, suas capacidades, suas chances, suas oportunidades vinculares já vêm com um certo arranjo limitador. E nós produzimos uma dimensão de sociabilidade, uma dinâmica que tende a aprofundar todos esses elementos do ponto de vista da fragilização e limitação. Por quê? Porque está cada vez mais difícil viver nessa sociedade individualista. Para todos. Estou dizendo assim, não é o único efeito, hein? Não é o único efeito que se produz assim, não é? Por exemplo, o Rio de Janeiro tem uma população de idosos de classe média muito grande que foi beneficiada pela ampliação da expectativa de vida com qualidade de vida. Impressiona-me o número de estabelecimentos que existem no Rio de Janeiro para abrigos de terceira idade, o comércio que existe no Rio de Janeiro para a terceira idade. Não é que os filhos do Rio de Janeiro são mais cruéis, menos amorosos que os filhos de baianos, mas que, no Rio de Janeiro, é mais comum na cultura que, chegando num determinado momento, que cada um foi cuidar da sua vida, dos seus interesses, sobre ao idoso o lugar de elemento de perturbação da vida, porque eles exigem cui63 dados, e existe então a terceirização desses cuidados em outros espaços que comercializam os serviços de asilo. Essa não é uma tendência forte aqui em Salvador. Há centenas de espaços desse tipo no Rio de Janeiro. Não estou falando de um ou dois; são dezenas e centenas de lugares para agrupamento de pessoas que perderam a funcionalidade social. Estou falando desse caso para dar idéia de que podemos pensar esse fenômeno nas várias dimensões: das crianças de Irmã Dulce aos idosos do Rio de Janeiro, aos pacientes psicóticos, porque, de alguma forma, estou querendo configurar para vocês uma percepção de que a grande questão do manejo dessas situações não é exatamente o distúrbio psíquico psicótico, mas é o difícil manejo da desfiliação psicótica numa sociedade muito individualista. É o difícil manejo de quem vai tomar conta, de quem vai se responsabilizar, quem vai assumir o encargo? Então, isso entra na clínica batendo muito forte. Ora, vocês devem saber disso pelas experiências cotidianas. Nós não estamos trabalhando no plano do significado, da sintomatologia psicológica; nós estamos, muitas vezes, administrando a limitação de um sujeito que perdeu a autonomia e que precisa de alguém para se responsabilizar por ele, porque ele está numa condição de dependência. É interessante ver como é essa relação de dependência. É muito interessante quando se vê nas emergências... Ainda encontramos muita filia... Podemos até achar um familiar contrariado, que já está aborrecido com aquela situação, sobretu64 do quando é o mesmo familiar que toma conta do sujeito há muitos anos. Então, essa produção impacta demais a clínica, se a gente for pensar no paradigma do manicômio que é “eu delego cuidado institucional”, e, basicamente, quando você vai ver, os crônicos são os que foram sistematicamente sendo limitados nessa relação de filia, ao ponto que precisou que alguém se responsabilizasse, e ouviu um “tchau, não tenho nada com isso mais, deixei para trás”, que é a questão do abandono. Essa é uma palavra dura dentro da instituição psiquiátrica. Literalmente, ninguém mais os quer. Então, não sei se vocês estão percebendo, mas as chances do paciente psicótico fazer uma trajetória, um caminho nessa direção é muito grande, e se os outros sujeitos que não têm essa limitação, essa restrição vincular com problemáticas psíquicas comuns, têm se colocado na vida dessa maneira, imagine o sujeito psicótico. Ele é um sujeito vulnerável ao processo da desfiliação. Por isso eu estou trazendo para vocês o tema da solidão, como tema fundamental, porque a desfiliação diz respeito ao estatuto social, e a solidão diz respeito ao sentimento e à percepção do sujeito em sua posição. Essas coisas podem ou não estar juntas. O sujeito pode manter algum registro de filiação, de vínculo, e ainda assim se sentir profundamente só. E a sua condição de se sentir profundamente só é motor da produção da sua solidão e da sua desfiliação. Há algo na psicose que leva, que dirige a produção da desfiliação. Só assim nós podemos explicar os pacientes crônicos, que nascem de uma hora para outra, como cogumelos depois da chuva na manhã de sol. Cada um daqueles sujeitos crônicos que têm vinte anos de internação resulta de histórico de desfiliação e abandono. Eu estive em Feira de Santana semana passada e estava vendo os moradores que estão indo agora para as residências terapêuticas que estão sendo montadas na cidade. Entrei em contato com gente de 40 anos de internação. É uma vida inteira de internação. Quem são esses sujeitos fundamentalmente? Esses sujeitos não aparecem com 40 anos de uma hora para outra. Quero dizer, assim, esses 40 anos de internação foram construídos dia a dia, num processo anterior que é o de produção da desfiliação, da desresponsabilização social até o seu processo de institucionalização, em que eles passam a ser considerados sujeitos que, para subsistirem socialmente, precisam da condição básica de serem institucionalizados. Quero dizer, assim, quem é o “outro” desse paciente institucionalizado? Qual é a sociedade para esses pacientes institucionalizados? O outro para o paciente institucionalizado é a instituição. O outro social para ele é a instituição; o outro não é o outro da sociedade, o outro é o outro da instituição. Para esses sujeitos não há quem os ame suficientemente. Pode parecer piegas, mas veja, é fazer uma aposta de que nós podemos substituir a filia pela técnica. Quando você traz essa perspectiva de racionalização do trabalho institucional, nós estamos pensando que podemos substituir a filia pela técnica. A questão dessas pessoas não é se elas produzem ou não produzem, a questão dessas pessoas é se elas são ou não são para alguém, se elas representam ou não representam algo para alguém, se elas fazem sentido ou não fazem sentido, se elas contam ou não contam para algum outro. O problema dessas pessoas é que elas não contam, que elas não importam para ninguém. Ninguém se importa com elas. É difícil pensar que o problema de algumas pessoas é derivado do fato de que não existe quem com elas se importe suficientemente. Isso é um problema radical que nós vamos encontrar em diversos grupos bastante frágeis. Eu trago isso, gente, porque, na nossa clínica, nós temos de levar isso em consideração. Nós temos de organizar um discurso desse tipo clínico que leve em consideração que, além de um desarranjo psíquico, esses sujeitos são marcados por uma profunda desfiliação. No caso da psicose, como eu disse, é uma desfiliação que tem vários rebatimentos, e para tratar disso não tem fórmula, são inúmeras as possibilidades. Na verdade, não existe solução por atacado, entendeu? A única forma de trabalhar - eu sei que vocês ficam ansiosos em saber como fazer – quando a gente reconhece que a questão do vínculo é uma questão fundamental, a gente tem de trabalhar no lugar de tecelões artesanais do vínculo, então não tem modinha de C&A, só a prêt-à-porter. Um por um, cada caso é um caso. E a gente vai dar conta do caso quando a gente conseguir refazer esse delicado caminho de reconstrução dos vínculos sociais, e aí pode ser cooperativa ou não-cooperativa. Não é essa a questão, a questão é que cada sujeito possa 65 produzir-se, de forma que ele signifique alguma coisa para alguém. Nada substitui essa possibilidade de que o sujeito signifique alguma coisa para alguém. É preciso ter um outro social que referencie, que crie, que multiplique, que sustente, que alavanque ou, para dizer na expressão lacaniana, que secretarie esse sujeito, que dê suporte, apoio, que esteja lado a lado para reconstruir os seus vínculos com a sociedade. Se for oficina, é oficina para reconstruir vínculo; se for passeio, é passeio para reconstruir vínculo; se for teatro, enfim... Enfim, não é essa a questão que nos impacta mais, essa de saber qual a fórmula. Qualquer forma que nós adotarmos, qualquer coisa que nós fizermos nessa clínica, nós temos de fazer nos dando conta de que combater a questão da desfiliação social é fundamental nessa clínica. Não adianta tangenciar o fenômeno, a gente tem de olhar o fenômeno de frente, e olhando daí, nós veremos a dificuldade da vinculação social, e nada substitui essa tarefa. Quando a gente não cuida disso, fica uma clínica manca, que recusa a evidência de que existe uma dinâmica social radical na questão da psicose. E aí eu cuido de tudo, mas não desenvolvo a tecnologia para a abordagem da questão social, não me preparo; no máximo, delego para as assistentes sociais. A questão que trago para vocês, então, é essa: não dá para avançar nessa clínica se não considerarmos a dinâmica do vínculo. Por isso que aí vem a questão dos labirintos das cidades: nós estamos muito pouco preparados para intervir na sociedade, na comunidade, e, nas nossas leituras, 66 profissionais do serviço psiquiátrico – sobretudo os que são assistentes sociais, o máximo de social que abordamos como técnicos é escutar na nossa sala um familiar, um amigo que veio interceder pelo paciente. Mas, mesmo no caso do serviço social, a concepção de sociedade perde de vista a questão vincular como sendo eixo, como sendo estruturante, como central. É obvio que a gente acaba trabalhando a questão vincular sem perceber a potência psíquica que ela tem. O fato é que a nossa concepção de sociedade exclui a dimensão vincular; a gente toma a sociedade como um conjunto de instituições. E o vínculo é psiquismo social, não é outra coisa. O vinculo é dinâmica psíquica, porque senão a gente acaba isolando e pensando que tudo é natureza intrapsíquica – estou, mais uma vez, discutindo a questão das teorias psicológicas e das outras teorias que não são estritamente psicológicas, que pensam a questão do vínculo como dinâmica psíquica. E aí vem a questão das intervenções na cidade. Eu dei aula esses dias em Blumenau para uma turma de trabalhadores de saúde mental, e falamos que lá é um município rico, dinheiro não é um problema lá, a pobreza lá não é miserável como a nossa, é remediada. Então eu perguntei a eles se já pensaram em experimentar colocar os pacientes ou uma parte deles dentro do ônibus da instituição e fazer uma grande excursão, passando pelas casas de todos eles, fazê-los chegar, todos eles, às suas casas. Estou dizendo assim, “agora vamos conhecer a família de fulano de tal, essa é a mãe, esse é o irmão”. “Quem são esses? Esses são os colegas do tratamento”. Tomam um café, depois voltam pro ônibus e vão até à casa de outro paciente. Não nos passa pela cabeça que isso possa ser muito impactante, transformador nas relações, nas percepções, na construção da significação, nas relações que ele estabelece com a comunidade e que a comunidade e a família estabelecem com ele. Numa outra vez, eu discutia sobre a itinerância: tem um paciente perdido. Aí, ao invés de o técnico ir procurar fazer uma visita domiciliar, por que não saírem todos os pacientes procurando a família de fulano? Todo mundo ali junto procurando o fulano de tal. Quando o colega de vocês de lá de Irmã Dulce me perguntava, eu dizia que, por mais técnico que a instituição tenha, há a necessidade de um projeto. Qual era o projeto? Vá às escolas da psicologia, serviço social, e avise que está procurando estagiários para trabalhar com reconstrução vincular. Cada estagiário cuidando de um paciente. Arranja gente que queira levar um paciente desses para passar o fim de semana em casa, arranje sociedade para esse sujeito caber de alguma forma. O programa de Liberdade Assistida de Belo Horizonte colocou um anúncio no jornal: crianças em conflito com a lei – uma turma até três oitão, 14, 15 anos, mas já com história de infração à lei. Procuramos cidadão que queira se co-responsabilizar pelo cumprimento da medida de liberdade assistida de adolescentes infratores. Qual é o espírito do programa? É introduzir a sociedade que não tem obrigação, porque o juiz, os técnicos da prefeitura são o Estado. Não ter obrigação de fazer é fundamental. Então, esse sujeito da sociedade representa para esse adolescente que existe alguém na sociedade que está disposto a dar um prego por ele. Isso tem uma potência, uma capacidade transformadora muito maior que a de dez psicólogos e assistentes sociais juntos falando na cabeça dele, doutrinando para que ele volte para o caminho do bem. Isso porque é alguém que não tem nada a ver com ele, alguém classe média que se dispõe, no final de semana, a ir buscá-lo longe, colocá-lo no seu carro e ir passar o domingo com a família, lanchando junto, indo ao clube, deixando claro que isso tudo é mera solidariedade, sem querer nada em troca. Esse é o espírito que impacta esse menino. Eu estou trazendo esse exemplo para dar uma visualização de que a clínica é essa que estamos falando, da introdução da questão vincular como dispositivo regular, permanente e orientador de todo trabalho, para que esse sujeito possa produzir, reconstruir sociabilidade. Eu não estou dizendo a ninguém que abandone a psicoterapia, a psicofarmacologia. Quero dizer que, ao lado desse arsenal que a gente adota, nós temos de ter o entendimento de que a filia que se produz na cidade, de que as soluções para qualquer coisa na cidade estão dentro da cidade. Eu, às vezes, comento no nosso programa de estágio sobre o entendimento, o domínio da cidade. O que é que nós sabemos da cidade? Quais os recursos que existem na cidade? Eu comento sempre aquele caso da Engomadeira. O serviço social do Hospital Juliano Moreira, certa feita, fa67 zia uma reunião em torno da questão da família, em que se trabalha muito a questão informativa. Muitas vezes, eu dizia que não se produz vínculos com a informação, não adianta dizer para o sujeito se vincular, para produzir. Isso é outra tecnologia, construção do vínculo é outro modo de relação, de operação. Mas então tinha a reunião, e falavam com a família da necessidade de respeitar o paciente, de administrar as relações com o paciente, que é uma informação insuficiente, e, num dado momento, uma mãe levanta a mão e diz: “olha, eu não tenho problema nenhum com ele, meu problema é que, na rua que eu moro, tem uma turma lá que pega meu filho como saco de pancada, a gente sai na rua e todos começam a debochar dele, e aí ele pira, porque não tem condição, e eu tenho que trazer ele aqui pro Juliano, porque ele fica muito mal”. O que é que ela está dizendo? Ela está dizendo que vive em uma comunidade que construiu uma relação de hostilidade com seu filho e que o impede de produzir uma outra ordem de significação, senão aquela que está inscrita no discurso social, que é extremamente agressiva e negativa em relação a seu próprio sujeito. Mas ela, como mãe, diz que, por ela, não internaria nunca, que interna porque ele faz crise nessa circunstância. E aí duas estagiárias de serviço social foram fazer um trabalho em torno do caso. Começaram a visitar a comunidade, identificando as situações existentes lá, vendo outros pacientes que moravam lá, atraindo as outras pessoas da comunidade, as pessoas válidas, com algum tipo de presença, a se implicarem com o caso dos 68 portadores de transtorno mental do nosso bairro. E aí o trabalho foi tendo um rendimento, produziram uma organização, fizeram passeios, reuniões com a comunidade, e foram produzindo suporte social. E o mais interessante é que um dos lugares onde a turma mais chateava aquele paciente era uma loja de material de construção onde ele ficava para carregar os materiais. E foi feito um trabalho com o proprietário da loja de material de construção, que criou uma proibição aos seus funcionários de molestarem os pacientes da área. Criou-se uma conscientização, produziuse um efeito psicossocial. Um dos trabalhadores mais folgados insistiu na chateação, o dono da loja mandou ele embora e contratou o doidinho para ir trabalhar na loja de material de construção. Veja só que coisa interessante do ponto de vista de produção de resposta para uma certa dinâmica. Quando foram atrás de um, encontraram vários. Ao encontrarem vários, produziu-se uma articulação social na comunidade, produziu-se suporte social, sustentação na comunidade, e essa produção na comunidade gerou uma outra possibilidade para aqueles sujeitos de estarem presentes na comunidade. Então, nós cuidamos da psicose desse jeito? De algum modo, cuidamos, porque, se o fator principal da internação era a intransigência, a intolerância social e o estigma, fomos ao local trabalhar isso. O nosso serviço tem muita dificuldade de circular pela cidade. É isso que nós estamos chamando de circular pela cidade, desvendar os labirin- tos da cidade, construir ou reconstruir essa teia de relação social. Eu costumo dizer que, para cada paciente que a gente atende, a gente precisa ter a lista dos sujeitos que se interessam pela vida dele, o sociograma dele. Esse é o recurso que todo CAPS deveria ter, todo técnico de referência tem a obrigação de construir essa lista. Esses são os sujeitos que a gente tem de acionar, esses são os recursos que a gente tem... Para tratar das pessoas, é preciso conhecer as pessoas, conhecer seus vínculos, como é que elas se colocam no mundo. E eu não estou falando para deixar de fazer nada, estou falando de incorporar uma outra prática no serviço de saúde mental que não se restrinja a trabalhar a questão vincular estritamente pelo registro simbólico. 69 A Família na Psicose Marcus Vinicius de Oliveira Silva*¹ H oje nós vamos trabalhar um pouco o tema desse grupo social tão relevante para os sujeitos portadores de transtorno mental, que é o grupo familiar. Nesse sentido, possivelmente, nós teremos poucas novidades em relação ao que vai ser trazido, já que é algo óbvio que a questão da família é muito importante para o portador de transtorno mental. Antes de entrarmos especificamente neste tema, vou retomar a seqüência que tem orientado esta idéia de uma clínica psicossocial. Quando se fala que a loucura representa um elemento de alteridade social, é exatamente no grupo familiar que isto vai realçar e aparecer. É o primeiro grupo que entra em contato com a estranheza, com a bizarrice e que promove a sua resposta através das internações psiquiátricas, depois que os suO que eu quero introduzir é uma problema- jeitos apresentam estados psíquicos alterados e tização acerca das questões relacionadas à fa- complexos. mília em nossa sociedade e sua relação com a Vamos pensar então que as nossas configuraresponsabilidade pelos cuidados com os loucos. ções vinculares estão na base das produções do A ausência dessa abordagem tem sido limitadora que nós somos hoje como sujeitos, nos nossos asdo entendimento e da proposta de inscrição que pectos saudáveis e nos nossos aspectos bizarros, esse grupo tem recebido em nossos serviços de problemáticos, estranhos, singulares e que estas saúde mental. se relacionam com certas experiências adquiridas por nós, nos grupos originários, a partir dos quais nós nos constituímos como sujeitos sociais. * Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Eu participei de um trabalho proposto pelo Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Superprofessor Luiz Fernando Duarte durante o meu visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. 1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das doutorado, e foi muito interessante, em que ele psicoses” set. 2005 Salvador - Ba 70 solicitava aos alunos que fizessem uma rememoração, reconstituíssem um mapa dos sujeitos significativos do ponto de vista de cada aluno, das pessoas significativas para as nossas vidas, dessas pessoas que ficam perdidas na memória; destacando quem foram as pessoas fortes, que foram balizadores para o avanço das nossas existências como sujeitos sociais. Foi muito interessante perceber a ampliação significativa das pessoas que merecem esta qualificação em contraste com a ilusão autobiográfica centrada na família imediata, que é como a psicanálise, por exemplo, a sobre valoriza. Isso questiona que o nosso quadro identificatório estaria dado estritamente pelo núcleo familiar em si. São dezenas os sujeitos significativos que interferiram nas nossas vidas de uma forma forte para sermos quem somos. E mesmo que estejam acobertados pelo esquecimento, foram eles, e de certo modo são ainda, que hoje, identificatoriamente, nos dão sustentação para nos situarmos no mundo como o sujeito que nós somos. E se trago isso, é porque acho interessante pensar, no caso da psicose, sobre quais são as configurações relacionais que nós efetivamente podemos conceber como significativas para a organização destes sujeitos no mundo. Psíquica e socialmente falando. Será que imaginamos que isso está restrito ao papai e à mamãe, irmãos...? Ainda que as relações parentais possam ser extremamente significativas, elas não resumem os sujeitos. As afetações dos sujeitos que ofereceram os elementos que nos constituem são múltiplas. Vamos passar, então, para a outra parte, que diz respeito ao texto que vocês têm como referência para o nosso trabalho de hoje, que é o texto do Jonas Melman, “Família e Doença Mental”. Talvez a questão desse texto seja a de pensar essa família – não que ele faça essa crítica que acabei de fazer aqui – como uma aliada fundamental na abordagem psicossocial das psicoses. Geralmente, nos serviços de Saúde mental, tradicionalmente, existem dois lugares possíveis para a família: culpada e responsável ou culpada e irresponsável. Só existem esses dois lugares para a família se localizar nessa abordagem tradicional da saúde mental. O primeiro é o de culpado: “se ele – o paciente – é assim, deve ser porque alguma coisa errada se passou nesse arranjo que produziu o sujeito dessa maneira; logo essa família já está, a priori, sob suspeita”. Como culpada, ela pode ser responsável e colaboradora ou culpada e irresponsável. Entendem o absurdo disso? É como se fosse possível aos sujeitos elegerem as tramas que levam à produção dos males psíquicos dos membros da família. Essa questão nos remete a um juízo moral sobre a família, que é algo extremamente problemático, é uma interpretação da família a partir de uma perspectiva do julgamento moral. E digo a vocês: de modo geral, os profissionais de saúde mental são muito moralizantes em relação à família. Mesmo em contextos um pouco mais avançados da teorização, o modo de olhar da família é um modo moralizante, o paradigma é um paradigma moral. Tem um livro da Maud Mannonni, creio que é “A criança retardada e sua 71 mãe”, em que ela nos chama atenção sobre isso. Ela diz que é frustrante, narcisicamente, para a mãe perceber que algo que é seu, que foi produzido por ela – no caso aqui, algo que a família produziu – foi produzido com defeitos ou erradamente. Essa percepção é uma derivação da relação privatizante que hoje assume o modo de compreensão da família como um grupo privado no interior da sociedade e que tem de se responsabilizar pelos sujeitos “errados” que, nas suas tramas psíquicas, ela produziu. A questão da privatização das relações sociais afeta a questão da atribuição de responsabilidade acerca dos sujeitos que apresentam limitações na sua autonomia. É um entendimento de que há uma obrigação estritamente familiar. As alternativas, neste caso, se radicalizam: ou é a institucionalização total ou a sobrecarga do cuidado privado para a família. No caso da psicose, se interna na crise e depois se devolve para a família, sob a forma de responsabilidade total, dizendo: isso é problema privado seu. Quem pariu Mateus que o embale! Vocês têm de fazer a guarda, fazer a proteção social, fazer o gerenciamento desse sujeito que perdeu a funcionalidade e depende do seu grupo. Por isso digo, em tom de reprovação, que nós, da saúde mental, quando queremos saber quem é a família geralmente é para mandar a conta, para depositar a responsabilidade. Penso que essa é a perspectiva dominante do nosso olhar na saúde mental, e acho que o Jonas, de certa forma, alerta sobre este ponto e aponta porque é que nós temos de mudar esse olhar que temos hoje sobre esses atores. Primeiro, nós 72 temos de interpretá-los como atores que são também dotados de psiquismo e que é a dinâmica da interação psíquica desse sujeito com o paciente que produz a maior parte dos fatores que nós temos de cuidar. As situações que nós temos de cuidar não surgem aleatoriamente, são derivadas de certos modos de relação, e é interessante que nós não queiramos abordar esses modos de relação, é interessante que não nos interesse aprofundar. A nossa modalidade hegemônica de abordagem privilegia a esfera do intra-psíquico. Nós achamos que é mobilizando primeiro as dinâmicas intra-psíquicas que nós vamos produzir efeitos, que nós vamos alterar as produções dos sujeitos. É porque nós valorizamos isso, que toda a nossa arquitetura institucional de cuidados está voltada para a abordagem do sujeito como uma subjetividade em si mesma, para sua individualidade. Não estou dizendo que não se deva fazer isso. Mas o que não se pode é destinar toda a nossa energia para isso. Estou dizendo que a nossa arquitetura institucional de cuidados não prevê a possibilidade de tomar uma outra dinâmica que trabalhe na perspectiva vincular, que trabalhe a questão da configuração desse fenômeno como associado às dinâmicas amplas das relações concretas que sustentam a presença desses sujeitos no mundo. Às vezes, parece que não nos lembramos, não nos importamos e nem queremos saber o que é que está acontecendo na vida concreta dessas pessoas. As tomamos exclusivamente a partir do discurso, das representações simbólicas que nos chegam através da comunicação verbal que elas nos trazem em suas consultas. No programa de estágio que ora realizamos no Hospital Mário Leal, temos nos especializado em ir às casas das pessoas, ou seja, tem sido possível desenvolver essa perspectiva, testar essa hipótese. Nós estamos no começo, mas isso já nos indica que é possível fazer uma arquitetura de cuidados que prevê outra abordagem. Está aí o Programa de Saúde da Família indo às casas dos cidadãos para levar cuidados na atenção básica à saúde. O que a gente precisa é de um PSF Mental. Quero dizer que os nossos CAPS precisam ter um PSFM, nossos CAPS deveriam ter uma abordagem regular, um Programa de Saúde da Família Mental, com ênfase na atenção domiciliar. Não nas visitas domiciliares esparsas, mas na atenção domiciliar. Então, nós deveríamos ter uma perspectiva que oferecesse uma abordagem dessa dinâmica como uma atividade, uma responsabilidade regular dos nossos serviços de saúde mental. De certa forma, é essa a nossa tese atual no trabalho de intensificação de cuidados: é preciso produzir uma tecnologia que seja capaz de lidar com essa dinâmica como uma atividade regular do serviço, atendendo aos pacientes mais graves de uma forma personalizada que inclui tomar o domicílio como setting. Hoje mesmo, na supervisão do estágio, nós estávamos falando do caso de alguém que mora numa caverna, num buraco, e, em cima, mora um irmão normal, que parece ser normal e que diz que não tem nada a ver com isso aí. A pessoa que mora com o sujeito também é sua irmã, uma pessoa também gravemente enferma, é uma pessoa que tem problemas mentais graves, então ficam esses dois sujeitos coabitando um espaço insalubre, com uma relação extremamente conflituosa. E, no estágio, percebíamos como essa irmã, aos poucos, foi também se tornando paciente do programa. E como também os dois, efetivamente, passam a estabelecer uma nova relação, como a gente tem trabalhado uma relação vincular entre os dois e destes com seus vizinhos; assim, artesanato puro, indo lá toda semana, ouvindo, apoiando, acompanhando. Esse caso ilustra bem como a nossa tecnologia de cuidados pode fazer isso. A família dele, nesse momento, passa a ser a irmã, quem sabe o irmão também não entra para a família, entenderam? Aí tem um pai lá em Alagoinhas, e a dúvida dos estagiários era se deveriam ou não ir até lá, se entravam em contato com o pai para sensibilizá-lo e ver se ele também entra para a família. Quer dizer, a família vai estar dada pela relação vincular que o sujeito construir. A responsabilidade da família vai ser dada na medida em que se reconstruam as relações vinculares. Se não se reconstroem as relações vinculares, não adianta falar que o outro é responsável, “eu não sou responsável por quem eu não me sinto vinculado”. Então, é necessário operar sobre as relações vinculares para instalar responsabilidades. Estão entendendo o que eu estou falando? Os serviços, geralmente, estão operando num conceito normativo da responsabilidade, temos operado numa perspectiva meramente institucional e burocrática de atribuição de responsabilidade a alguns sujeitos familiares, a partir dos elementos formais das 73 relações sociais supostas como tal. É preciso parar de buscar um canal de conexão institucional para que nós possamos depositar parte da responsabilidade que é da nossa instituição de cuidados, que é nossa, profissionalmente, nos mesmos atores de sempre. Não adianta ficar depositando sobre estes sujeitos do ponto de vista moral, “toma lá que o filho é seu”, do ponto de vista normativo. E ainda tem mais: não é só esse lugar de familiar que temos como possibilidade para reconstruir os vínculos e a vida das pessoas. O que o Jonas Melman nos chama a atenção nesse texto, na página 99, é que ou você produz uma dinâmica nessa situação que seja subjetivante, que produza um sentido e significação para os sujeitos envolvidos ou não vai funcionar. Não que aceitaremos que qualquer um possa simplesmente se desresponsabilizar, sem maiores problemas. Mas a responsabilização não é um dado derivado de relações formais, meramente jurídicas, ela é um processo afetivo, emocional, vincular. Então, é muito trabalho. E é trabalho forte, consistente, para colher frutos bastante salutares, para interferir no processo. Vínculo não se produz instantaneamente, nós alcovitamos relações vinculares, nós acionamos possibilidades de contato, nós operamos sobre os enriquecimentos das significações, trabalhamos dissolvendo a cristalização das identidades, dos lugares que as préfixam, uns na relação com os outros. Só o ato de alguém ir até ali, estar com os familiares no seu ambiente de vida, produzirá transformação, modificação. Como agentes terapêuticos, carregamos como recursos a nossa presença – diferenciada 74 em relação aos “outros outros” que se colocam no mundo, algumas idéias sobre essa dinâmica vincular e a possibilidade de abertura de novas significações seja através da palavra ou do nosso olhar ou ação. Se formos analisar o que oferecemos, é relativamente muito pouco, mas efetivamente opera. Quando você coloca em situação na atenção domiciliar, esse recurso opera. Por último, eu queria comentar sobre a questão da crise, que tem muito a ver com a questão da sua recepção. A recepção da crise é um momento extremamente privilegiado para que estabeleçamos a confiabilidade dos agentes que vão intervir, e esse é um dos nossos problemas. Quando se faz a recepção da crise, os agentes se apresentam absolutamente não confiáveis, o sujeito que aparece como representante da instituição se coloca numa perspectiva, nesse sentido, moralizante, “eu não sou responsável por esse sujeito estar assim e sim vocês” e “tomem conta”, “o que eu posso fazer por vocês é efetivamente oferecer uma medicação, ficar aqui por alguns dias internado, mas, quando ele ficar minimamente funcional, ele retorna pra vocês”. Então, isso é extremamente impossibilitante do ponto de vista de qualquer seguimento futuro, porque essa hora é a hora da maximização de todas as ansiedades dentro desse grupo familiar, é quando toda aquela produção que vem se gestando se atualiza como angústia pura, como ansiedade em níveis excessivos, quando os sujeitos estão à flor da pele, emerge essa confusa configuração. Tem um autor que fala como se fosse uma dramatização esse momento da crise. É mais ou menos como se ele dissesse que tudo que esteve na origem dessa produção se atualiza com a crise. Por um momento, o arranjo foi insuficiente, e aí toda a desorganização vem à tona. Eu acho que temos de construir – é o que eu espero que vocês façam no NAC- Núcleo de Atenção à Crise - uma tecnologia de abordagem familiar na recepção de pacientes em surto. Nós precisamos de um dispositivo que seja ágil, que tenha uma capacidade de intervenção técnica, na expressão, na organização, no envolvimento, na convocação, no chamamento do agrupamento familiar para a questão da crise. Eu quero falar que nossos serviços têm de atender a crise com muita confiabilidade, de forma a dar autoridade ao chamamento de que importa colaborar para a compreensão disso. Estou dizendo assim: recebeu o paciente pela manhã? Na outra manhã tem de estar agendado, responsabilizado, depois de uma entrevista familiar, quem é, qual é a pessoa da família, ou vizinho ou amigo que tem de vir ao nosso serviço de emergência para conversar conosco sobre o futuro do caso e suas necessidades. Isso faz com que fique uma promessa de que o caso não será abandonado! Por isso é que eu estou dizendo que tem de se investir na vinculação, na sociabilidade; no despertar da generosidade dessas pessoas já tão cansadas, que anos após anos lidam com a condição trágica de ter um familiar portador de transtorno mental. E temos de ser agentes que ponham fim a essa condição trágica e ofereçam uma nova perspectiva para as suas vidas e o seu futuro. A moeda da confiança na instituição, que se mostra capaz de reconhecer o sujeito e que busca fazer – não é garantia não – mas que busca fazer o melhor, que é visível para todos que ela está fazendo o possível para agilizar, para atender bem, para considerar, para respeitar, para abordar. Estou dizendo que a perspectiva é uma perspectiva justa, e é essa a perspectiva que a gente tem de apresentar, é uma perspectiva que diga que a instituição faz a sua parte, que nós somos confiáveis e nós temos conseguido ser confiáveis. E sem construir essa confiança, dificilmente nós vamos poder ter autoridade para interferir nessa relação de convocação. Mas penso que temos de insistir, que temos de enfrentar, porque é uma evidência dessa clínica fazer a convocação. Então, por favor, ‘quantos irmãos são’, ‘o que fazem’, ‘em que trabalham’, ‘quem é o pai’, ‘quem á mãe’, ‘quem é o tio’, ‘quem é a família’, ‘quem é o vizinho’. Pronto, visto isso, ora, ‘para cuidarmos bem dele, nós precisamos que vocês estejam aqui amanhã às oito horas da manhã; façam um esforço, porque é muito importante! Vocês querem que a gente trate ou não o sujeito? Se querem que tratemos, é preciso que as pessoas venham’. E, na seqüência, é preciso que nós possamos ir, ir até onde eles estão, nós temos de instaurar confiabilidade. Então, o que é que eu estou falando? Estou falando que é preciso fazer uma clínica que leve em consideração, e, dentre todas as abordagens, a abordagem desse núcleo é uma abordagem fundamental para que se transforme o modo de relação. Vocês podem pensar que isso é muito difícil, 75 mas eu vou dizer para vocês que não é. Sabem por quê? Considerando o número de psicóticos, se a gente tomasse conta deles direito e parasse de tratá-los dessa forma tão fragmentada, tão mequetrefe, talvez a gente não tivesse esse problema. Se a gente construísse uma tradição de dar seguimento aos casos de psicose e não esporadicamente, teríamos um número absolutamente administrável, se a gente tratasse adequadamente. Eu estou dizendo que todos os serviços de saúde mental têm de ter uma divisão de atenção familiar, nós temos de criar essa divisão com um protocolo que defina a sua presença na emergência, que defina a sua presença no acompanhamento domiciliar e que, se nós tivermos isso aí, nós vamos economizar dinheiro, nós vamos economizar uma porção de coisas. Fazer as coisas de um jeito bem feito é muito mais barato do que fazer as coisas de um jeito mal feito. Por quê? Porque do jeito mal feito a gente tem de refazer a vida toda. Estou falando disso e me lembrando dos CAPS, porque os CAPS estão no território e têm a tarefa de conhecer todos os pacientes que são atendidos pela instituição. E esse trabalho é um trabalho que pode, efetivamente, oferecer um descortinamento. E isso não é o trabalho com família; o trabalho com família é o apelido disso. Na verdade, nós estamos trabalhando as relações vinculares com os sujeitos significativos que estejam na esfera da relação desse sujeito, que sejam determinantes para a produção do seu sintoma psíquico e que sejam sujeitos-recursos para fazer a reversão, porque, quando o sujeito sai da emergência, 76 o que nós temos de fazer é pegar na mão deles e levá-lo de volta para casa. Então, o serviço tem, ao receber o sujeito louco, em surto, a obrigação de voltar com ele para casa. Então nós temos de ser um serviço que, efetivamente, seja uma referência para o sujeito. Se não for assim, é porque a gente quer fazer de outro jeito, uma outra clínica, paliativa, sintomática. O Jonas Melman nos fala dos familiares que parece que não querem nada com a gente, mas quando eles são acolhidos, ouvidos, apoiados, quando eles são convidados por um serviço que já é de sua confiança, eles se desenvolvem como grupo, como conjunto, eles multiplicam as suas possibilidades, fazem intervenções culturais, se tornam protagonistas das suas próprias vidas. O trabalho com o grupo primeiro originário do sujeito não é um detalhe, uma opção; não é alternativo. Ele deve ser eixo no trabalho psicossocial. Da outra vez, nós trabalhamos aqui que, se juntarmos psicóticos num grupo, estaremos criando a possibilidade da movimentação de certas coisas, conteúdos, experiências, emoções, significações cristalizadas e de estabilização de outras situações instáveis. Hoje, estou dizendo que, além desse espaço próprio onde eles possam estar e exercer essa sociabilidade, é preciso abordar o núcleo da vida deles em torno desses personagens. Aliás, me referia antes ao fato de que as famílias são essas configurações confusas, lugar de possibilidade de identificações confusas, e lembrando de um caso de um adolescente muito jovem que teve um filho com uma moça também jovem e depois foi embora e nunca mais apareceu. Essa criança foi criada como irmã do pai, já que a diferença de idade não era tão grande assim, e foi criada por uns pais que não eram seus pais, mas o padrasto do pai, mas que para ela, efetivamente, era o sujeito que era o pai. Então, veja, é difícil, não é? Aí ele tinha, na realidade, uma relação transferencial muito forte não com o irmão que era o pai, mas com um outro irmão que, na verdade, não era irmão, era tio e acabou se registrando uma situação trágica – esse tio-irmão-pai foi assassinado, e ele psicotizou. Então, na hora que fazemos o raciocínio freudiano clássico sobre o Édipo, a gente pira, não é? Porque, na verdade, existe uma questão identificatória super complexa, e essas configurações podem gerar isso e outras coisas mais. É família? É, mas não exatamente nas posições, e, se essas configurações afetam os sujeitos do ponto de vista de produzir o efeito nefasto e de impossibilidade do sujeito se expressar ou se organizar psiquicamente, é esse grupo a potência com a qual nós temos de trabalhar, porque é esse o grupo mais sensível. Pode ser que a gente desista desse grupo depois de anos trabalhando, chegando à conclusão de que não vai sair nenhum coelho desse mato, mas, antes de desistir, nós precisamos investir, e, se não tiver jeito, a gente passa para outras configurações, porque sabemos que, na nossa sociedade, ninguém vive sozinho, e nós dependemos fundamentalmente dessas relações vinculares para nos sustentarmos no mundo. 77 Psiquismo e Sociedade: a psicose e os grupos Marcus Vinicius de Oliveira Silva* O psiquismo tem uma dimensão que se expressa no grupo, nas instituições e na multidão. Essas são as mediações principais: o grupo, as instituições e a multidão. Essas são as três unidades principais de organização da sociabilidade que nós temos. É o grupo que pode ser a família; o grupo que é uma pequena reunião de pessoas que interagem entre si, em que a instituição já é uma mediadora – percebam como a instituição opera mediando, porque vocês vieram aqui, não porque já se conhecem, mas porque vocês se conhecem da instituição que é a Universidade, então, de alguma forma, aqui está um grupo do Juliano Moreira, ali está um grupo dos estagiários, algumas pessoas talvez não se sintam pertencendo a nenhum dos grupos. Permanentemente, esse tipo de processo está acontecendo. Não existe a possibilidade de nós estarmos no mundo fora desses registros. Nós estamos imaginariamente, * Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. 1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das psicoses” set. 2005 Salvador - Ba 78 mesmo quando sozinhos, carregando nossas diferenças e nossos pertencimentos que dão base para a nossa existência. Bleger nos ensina que, quando a gente entra em contato com alguém, com o desconhecido, quando a gente entra num coletivo desconhecido, nosso movimento psíquico é o de produzir um certo fechamento, nós produzimos uma certa adequação paranóide. Na medida em que nós vamos interagindo com os outros, que vamos adquirindo confiança, nós vamos afrouxando e nós vamos admitindo o outro. O que é o afrouxar? É incorporar o outro na dinâmica do meu psiquismo, é, de certa forma, neutralizá-lo como agente potencial de uma agressão, de uma ofensa. E quando a gente se acostuma com uma pessoa, a inscreve com uma identidade e valor em nossa coleção psíquica, a gente não percebe, mas as pessoas viram suportes de nossas vidas. Então, a gente vai fazer um trabalho agora com um texto, e eu queria que vocês notassem que vocês estavam num enquadre que não obrigava vocês a interagirem entre si. Ora, um regi- me de contato já estabelecido é uma dinâmica psíquica, é você funcionando psiquicamente na relação com os demais humanos que compõem um quadro no qual você se localiza. A instituição era o quadro que mediava a relação entre vocês, mas agora eu os estou mobilizando para uma interação produtiva com um forte elemento relacional. Então vocês todos agora estarão menos confortáveis do que estavam, pela iminência que eu estou apontando agora, para vocês cooperarem com pessoas que vocês não têm intimidade, que não eram da relação imediata de vocês. Os mais “tímidos”, os mais “introvertidos”, os mais “sociáveis” o farão com um estilo próprio de interação que está relacionado com vários aspectos, alguns exteriores e outros interiores, que envolve o treino que cada um teve para o exercício da sociabilidade, a familiaridade com o contexto em que a mesma se dá – no sentido de conhecimento prévio das regras do jogo – e também de acordo com uma estrutura egóica e com os respectivos mecanismos defensivos que esta estrutura egóica comporta. Estou trazendo isso, porque, na questão da psicose, esse fenômeno tem uma característica muito particular. Durante muito tempo, acreditou-se que a psicose não fazia laço social. A psicose vivia num regime de relação tão própria, tão singular, tão num mundo de significações particulares, que o psicótico não faria laço social; o psicótico, então, não seria um sujeito que teria a sua disposição essa característica que é uma característica de todos nós humanos. O que seria então essa experiência na psicose? É que esse movimento de regulação, de incorporação do outro compartilhado, de avaliação, de administração, para nós todos normo-neuróticos, tem referência numa experiência centralizada, numa experiência egóica que nos sustenta como uma ficção unificada diante do outro e a ilusão do compartilhamento intersubjetivo. É a partir do ego que nós fazemos os nossos mecanismos de projeção, de introjeção, dentre aqueles que Freud chamou de mecanismos de defesa. Então, é nesse movimento de administração do incômodo do “outro” – o que eu falei para vocês da última vez e é bom retomar isso - nós temos uma verdadeira condenação ao “outro”. Essa é uma idéia importante que deduzimos do Freud: nós estamos condenados ao “outro”. Não sei se vocês já pensaram nessa perspectiva: nós estamos condenados ao “outro” é uma perspectiva muito radical. Nós não temos alternativa: o “outro” se impõe para nós como condição inevitável para nossa existência. Nós podemos falar em dois tipos de solidão: positiva e negativa. Quando eu falo da solidão positiva, é da possibilidade de qualquer um de nós poder se recolher na sua condição solitária, com o outro, é óbvio, atravessando o imaginário; mas quando eu falo da solidão negativa, é do fato de poder se recolher para uma certa introspecção, para um acerto de contas acerca de uma percepção de mim mesmo, uma certa ruminação mental, é um movimento que nós fazemos na direção de nos restabelecermos do ponto de vista desta condição egóica. Se isso, para nós, é dessa maneira, na psico79 se, isso é muito mais problemático. É isso que é problemático na psicose, é o controle desse movimento que é muito problemático na psicose. Então, durante muito tempo, a psicanálise afirmou que o psicótico não fazia laço social. Qual era a idéia? É impossível analisar o paciente psicótico, é impossível analisar a psicose. Por que é impossível analisar a psicose? Porque o psicótico não transfere. Vocês lembram que, da outra vez, eu falei para vocês da questão da transferência. Então, essa é a dinâmica que é complexa na psicose, é esse movimento de poder fazer isso, de se destacar, de andar no grupo, de estar exposto. A idéia é que o delírio é um momento de muita desorganização. Aí temos de pensar por que é que alguém delira. O que é o delírio? Nós podemos pensar que o delírio é uma saída, quando o lugar onde o sujeito está posto na significação imaginária, o lugar onde ele se põe na significação imaginária é insustentável, impossível e insuportável para ele. É como se o sujeito, não pelo que ele é, mas pelo que ele constrói, o lugar de onde ele se projeta como sendo ele – porque nós estamos sempre nos projetando, a identidade, como queira chamar esse lugar imaginário onde a gente se projeta. E, eventualmente, quando o sujeito projetado nessa condição imaginária ou, às vezes, fruto de uma equação real, de uma situação real de expressões muito tensas, esse lugar fica insustentável. Então, como ele experimenta isso, como ele vive isso? Ele vive com uma angústia radical, impossibilidade de sustentar estar naquele lugar que significa submeter-se a uma morte ou a uma destruição. 80 Então, nós podemos pensar o delírio como uma desorganização benéfica e necessária, que suspende o regime das significações e libera o sujeito dos sentidos mortíferos em que havia se aprisionado. Quando o Antonio Lancetti está falando, nesse texto, da experiência da desorganização, nos ajuda a marcar que esta é uma experiência muito angustiante. A desorganização é acompanhada por muita angústia, porque é como se fosse um sem fio, sem rumo, sem direção, sem parâmetro. O sujeito vive a desorganização movida por muita angústia, e o que o Lancetti está chamando a atenção é que essa angústia, às vezes, encontra umas palavras menos virulentas, que desmontam a ameaça, que criam miraculosamente, podemos dizer nesse sentido, a repentina sensação de que aquele delírio não é tão delírio, de que aquela desordem não é tão desordenada, de que o mundo não vai acabar, de que tem solução. Então, creio que ele esteja falando em continência, nesse sentido de oferecer um referencial de alteridade. Então, ele diz assim, nada melhor que alteridade – e não autoridade. Autoridade é quando a gente diz assim: ‘pára de delirar, toma conta, toma tenência, você já está passando do limite; ô fulano, não fica assim não’. Isso aí é autoridade, é a tentativa de exercitar sobre o sujeito um certo comando de poder. Autoridade pressupõe ordem, hierarquia, valor, lugar de quem manda e de quem obedece. O sujeito está fora da ordem, então o que pode conter o sujeito? O que pode conter o sujeito é algo que lhe inspire, de alguma forma, ordem; que lhe inspire, não que lhe submeta; que lhe ins- pire, que produza sentido, que produza significação. Então, nós podemos pensar que, quando um psicótico fala pro outro: ‘olha, eu também já passei por isso e posso te afiançar que daqui a pouco o seu delírio vai passar’ , isso tem um efeito e um poder. A verdade que essa fala carrega tem um imenso poder de afetação do sujeito, diferente da fala do psiquiatra e do psicólogo que diz ‘ô fulano, fique tranqüilo, vai ficar tudo bem’. Essa fala produz uma continência para a angústia, essa fala ressoa pro sujeito. Essa palavra do outro que dá o testemunho de que isso já se passou com ele é como se tivesse um poder de comunicação naquele horizonte caótico, poder que a gente despreza muitas vezes. Poder de comunicação do compartilhamento da experiência, porque a gente sabe que o trabalho com os Alcoólicos Anônimos e os demais grupos de auto-ajuda têm uma grande importância, só que, normalmente, com o psicótico, a gente diz que não vai funcionar, ‘ o que pode um delírio dizer para outro delírio?’, ‘o que pode um delirante dizer para outro delirante?’ É como se houvesse um preconceito de que há uma sociabilidade, mas que não será uma sociabilidade instalada nos moldes que nós instalamos nos grupos de neuróticos. Esse regime regular de comunicação produz algo, mas o que é que nós podemos aproveitar quando reunimos sujeitos que são marcados por essa mesma condição? O que é que um oferece para o outro do ponto de vista de suporte, de sustentação? Como é que esses sujeitos também entram nesse jogo? É claro que entram, e entram ao seu modo; se não entram ao modo como nós, neuróticos, estamos mais acostumados, não podemos desprezar o seu modo de entrar em relação. E a grupalidade, a grupalização dos psicóticos pode ser um passo fundamental para sustentar essa coisa que responde à problemática da solidão, que é a de dizer assim: ‘ai, que bom, existe outro bizarro como eu’, ‘existe alguém tão bizarro quanto eu’, ‘eu não controlo tudo do ponto de vista da estranheza. Como é que eu compartilho com o outro a diferença que ele tem e como é que ele compartilha a diferença que eu tenho. É que eu compartilho, de repente, que há outras formas de existir, e que elas são legítimas, que elas têm direito de estar no mundo’. É isso que um psicótico, às vezes, oferece ao outro, essa sensação de que existem outras formas, formas bastante singulares de estar no mundo e que elas podem se complementar. Nós, quando trabalhamos num grupo, achamos que o grupo funciona porque um vai falar, outro vai falar, e as coisas vão se complementando. Mas temos de valorizar o impacto da própria presença, por isso esse trabalho apresenta sempre surpresas, porque trabalhamos no grupo como se ele fosse uma ferramenta para os “nossos” propósitos, os da instituição, queremos fazer grupo para os interesses particulares, para o benefício de oferecer algo, para a nossa finalidade, nós estamos sempre pensando que essas pessoas poderão se encaixar através desse recurso. Então, penso que o Lancetti nos alerta como se dissesse assim: ‘gente, nós abusamos dos grupos, nós muitas vezes aviltamos os grupos’, porque, quando estamos 81 trabalhando com pacientes com essas características, nós precisamos suportar o grupo que eles são, precisamos dar conta desse grupo que é possível e entender que, dentro desse grupo que é possível, há um trabalho que não depende só da nossa fala, de nós dizermos coisas para eles, e que o que eles se dizem dentro de uma dinâmica grupal, muitas vezes, tem muita potência. E uma das potências que está em jogo é a potência da continência, de que isso produz continência, de que isso produz um alívio por parte do sujeito que encontra um referencial para sua presença na companhia dos demais, um sentido na companhia dos demais, e é esse sentido que nós chamamos de continência. Mas a enfermaria do hospital psiquiátrico não produz essa possibilidade, apesar de lá encontrarmos muitos pacientes. Talvez a questão seja a de que nós não patrocinamos, porque isso não é espontâneo, não é da relação de um psicótico com outro psicótico; pelo contrário, o que nós vemos é um dar cadeirada na cabeça do outro. É que é preciso unir um mínimo de técnica, um mínimo de enquadre, mas é o mínimo, e aí, quando vamos lá, queremos botar o máximo de ordem, queremos enquadrar tudo. Será que suportaríamos, no manejo de grupo com psicóticos, essa questão do mínimo do enquadre, será que daríamos conta de entender que a nossa tarefa, o nosso papel, é um mínimo de enquadre, será que vamos suportar assistir o grupo, secretariar o grupo, apoiar o grupo? Se não atrapalhamos, já ajudamos muito. Vejam, isso é importantíssimo. A idéia é de que há 82 uma potência no vínculo e na sociabilidade, já que eles é que sustentam a possibilidade de deslizamento da significação – as significações deslizam a partir dos lugares concretos que o sujeito pode se colocar diante dos outros sujeitos. A questão psicótica define-se pela questão do sujeito, da posição que o sujeito imagina que está colocado diante do outro. Ora, o grupo é esse espaço onde coisas podem acontecer para o sujeito, muitas coisas podem acontecer para o sujeito no grupo. O grupo é um espaço de aproximação, de trocas bilaterais. Por que, em um grupo, temos de estar todos centrados em um mesmo lugar? É isso que pira os coordenadores de grupo. Quantas interações transversais se produzem no grupo? O que é que vai fazer sentido para alguém? A que horas alguma coisa vai fazer sentido? Nós nunca sabemos exatamente; agora, estar em grupo é muito confortante. É uma coisa muito poderosa, a roda grupal é uma coisa muito poderosa, talvez vocês não percebam, porque já estão muito acostumados com isso, mas há um poder nessa configuração em que todos estão diante de todos. Quando alguém diz algo, ele está dizendo para todos, ele é para todos. O samba de roda é lindo nesse sentido, essa matriz afro-brasileira. É um belo dispositivo cultural de relacionar o particular com o universal, o direito à experiência narcísica, a administração do narcisismo. Faz-se uma roda – como se diz lá na Pirajuía, cada um tem seu samba para mostrar – e cada um vai lá mostrar o seu jeito de sambar. Aí todos os outros te apreciam, e o sujeito de- pois volta para ser o apreciador, para oferecer a especularidade, porque dançar sem ter ninguém para olhar não tem graça, não é, mesmo? Então, a roda, do ponto de vista de dispositivo, tem um poder muito grande. Toda vez que resolvemos colocar pacientes psicóticos na roda sem querer previamente que ela tenha uma missão a cumprir com isso, vamos nos surpreender... É que nós somos muito produtivistas, e, muitas vezes, quando estamos atrás dessa certa produção, nós perdemos de vista o que está se produzindo nas transversalidades, nessas formas vinculares. Trata-se de uma relação especial com o grupo, de sustentação. Então, podemos pensar que não há grupalidade entre psicóticos - se, por grupalidade, entendermos essas formulações genéricas e alegóricas que se enunciaram sobre os grupos. Mas os humanos se tornam humanos em grupo, e a produção de subjetividade não pode acontecer sem um processo coletivo. Essa é uma idéia que precisamos considerar, pois, de modo geral, somos muito descrentes na ordem de sociabilidade que se produz na experiência psicótica. A nossa clínica tem de se aportar nisso. Não é que a clínica psicossocial negue as outras coisas, mas ela fala: ‘olha, tem um poder aí, um poder inexplicável, um poder curioso que se estabelece na relação vincular, produzindo um deslizamento das relações de significação’. Tem um texto, no módulo de vocês, que se chama “O grupo como instituição e a instituição como grupo”, do Bleger, que traz conceitos muito interessantes, que são o de sociabilidade organizada e sociabilidade sincrética. Nós temos dois níveis de sociabilidade, e é o nível de sociabilidade organizada que passa pelo simbólico, que passa pela interação com o simbólico. Mas, ao mesmo tempo, existe uma dimensão que ele fala também que são os estados psicóticos da personalidade. Isso serve para a gente pensar que nós, neuróticos, somos uma entidade ficcional organizada, em torno da idéia original do ego, um eixo de ordenamento simbólico. Mas nós não somos somente ordenamento simbólico, e esse ordenamento sob o regime do ego, tem um poder de manter submetidas as forças disruptivas, as forças desorganizadoras, a dimensão desorganizada do nosso psiquismo. Gosto de pensar que é um iceberg, uma pontinha organizada para fora e um monte de desorganização profunda. Este seria o estado estável da organização neurótica. No psicótico, às vezes, é o contrário, e essa pontinha fica de ponta cabeça, e a desorganização emerge como um todo visível. Mas o que vale a pena ressaltar é que uma dimensão de desorganização é constitutiva da condição humana, e que a desorganização não é uma ilha, e sim um continente, submetido à potência da organização simbólica do ego. Se o ego falha, toda a desorganização emerge. É fácil perceber isso no cotidiano: diante de situações inesperadas muito invasivas e ou violentas, na maioria dos sujeitos se produz uma perda do controle, e a desorganização emerge, numa ruptura com o quadro simbólico. Os sujeitos se tornam irracionais e imprevisíveis. Podemos pensar também que a sociabilidade sincrética estabelece um certo estar no mundo 83 que se estabiliza depositando certas dimensões do psiquismo no outro, que deposita psiquismo nas coisas e no ambiente, através de uma projeção de matéria psíquica investida. Um exemplo curioso disso diz respeito às dificuldades de se produzirem mudanças nas instituições: nas repartições públicas, quando você quer mudar uma mesa do lugar, o funcionário resiste. O que é a resistência? Quer dizer assim, a mesa não é só uma mesa, ela está ali segurando uma identidade, uma vida, uma experiência, um sentido no mundo, uma certa localização psíquica, espacial e identitária. Por isso que as instituições não gostam de mudar, porque se extrai segurança dessas depositações psíquicas no ambiente, se estabiliza psiquicamente fazendo essas depositações no ambiente e nas pessoas. Por isso que se procuram sempre os mesmos grupos e pessoas; as pessoas têm esse poder de nos garantir uma certa estabilidade para nos referenciar. Mas, ao lado disso, existe uma sociabilidade organizada. E a questão no grupo de psicóticos é que essa dimensão tem vindo à tona, ela surge muito, ela não está sob controle, ela explode muito como desorganização, e isso, para nós que coordenamos o grupo, é extremamente inquietante. Então, podemos pensar que, para coordenar um grupo de psicóticos, devemos desenvolver uma atitude muito plástica, de uma plasticidade mental. do capaz de recebê-las. A desorganização não pode nos atingir ameaçadoramente, a ponto de ouriçarem os estados desorganizados que mantemos guardados à pena de muita energia dispendida para garantir que a apresentação individual diante do mundo pareça o de uma pessoa organizada. Muitas vezes, custa, para alguns de nós, manter a sua dimensão organizada sob seu próprio controle. Aí quando o sujeito se desorganiza na sua frente, é como se fosse uma convocação aos seus estados desorganizados. Nós podemos pensar isso em todas as situações de crise, não só de crise psicótica, mas nós podemos pensar em situações que se caracterizam como sendo de crise do ponto de vista do psiquismo e da subjetividade. A leitura sobre a multidão, sobre o fenômeno da multidão, é muito interessante nesse sentido do contágio da turba. A turba é um conceito interessante para a gente pensar esse funcionamento psíquico: o linchamento, a destruição das torcidas, essa força disruptiva desorganizada que, de repente, é convocada toda para fora e toma completamente o estrato organizado, domina o estrato organizado. Então, essa é uma forma interessante; o Bleger fala em clivagem, esse movimento que nós temos de submeter o estrato desorganizado do psiquismo a uma certa subordinação, e como, muitas vezes, diante da experiência de desorganização do sujeito, isso convoca que nós reajamos defensivamente. Então, nós podemos pensar que, Cada vez que fizermos a atividade, isso signifi- na lida com psicóticos, nós temos de levar em cará acolher esse conjunto de produções, de ex- consideração sempre a possibilidade de que nós pressões, sem nos afetarmos muito com ela, sen- atrapalhamos, porque reagimos defensivamente 84 frente à produção, nós, muitas vezes, terminamos por resolver os nossos problemas, as nossas ansiedades, tentando dar conta delas e, de certa forma, impedindo a expressão do próprio sujeito, a verdade dele. Então, por isso é difícil coordenar o grupo ou o coletivo de psicótico. É preciso ser plástico para coordenar. Eu acho que nós precisamos, todos, desenvolver essa capacidade. E falo disso a partir de um tipo de experiência que tenho compartilhado com outros colegas, nos últimos anos, de produzir eventos que reúnem quatrocentos, quinhentos usuários do serviço de saúde mental nos dispositivos políticos chamados de reunião das “assembléias”. É muito interessante, antropologicamente falando. Quando você reúne duzentos, trezentos sujeitos que têm essa condição de, às vezes, sair fora e desorganizar, as coisas que acontecem, os esforços para manter a organização, os tipos de enunciação, os métodos de participação, as formas de expressão desses sujeitos são muito interessantes e proporcionam uma grande oportunidade de aprendizagem. Trago essa informação para dizer assim, que, com o passar do tempo, talvez esse tipo de experiência traga para nós uma posição um pouco mais, de fato, não é contemplativa; mas assim, de abertura para a experiência com a novidade desse tipo de sociabilidade, e que seja de mais confiança também, de uma aposta mais decidida de que a ameaça de que vai tudo se desorganizar tem mais a ver com uma fantasia nossa do que com as limitações dos sujeitos psicóticos para estarem juntos em grupos e em coletivos. Acho que os subestimamos, que, se a gente juntar um bando de doido, a confusão vai pegar, e a gente acaba por colocar certas exigências formais que acabam oprimindo a expressão desses sujeitos. De qualquer forma, é isso, coordenar grupo não é fácil. Até que ponto coordenação de grupo corresponde ao que nós aprendemos como coordenação de grupo? Nós temos um fascínio em descobrir significados. Coordenar grupos, nesse caso, não é dessa ordem. Nós somos fascinados em significados, achamos que, se pegarmos o fio da meada do delírio, se escutarmos aquelas palavrinhas todas que vêm do delírio e fizermos um esforço, nós vamos compreender, nós vamos entender o que é que o paciente está falando, que, efetivamente, o que o paciente está falando não está dito nas palavras que ele diz, é como tradução da experiência da impossibilidade, e aí fazemos o caminho de buscar o sentido e a significação. A questão da interpretação é importante, mas tem seus limites, porque não se interpreta o vínculo, não se interpreta sociabilidade. “Fulano está bem com sicrano”, o máximo que eu posso dizer é: vejam, que interessante, hoje o fulano está tão bem com o sicrano. Vejam, o que eu estou fazendo é sendo um speaker, um crooner da corrida de cavalos, do futebol; estou narrando um conjunto de eventos que está colocado nessa esfera, do que está colocado, sem profundidade nenhuma. Fazer essa narrativa do que está acontecendo na superfície é, muitas vezes, emprestar à narrativa o papel de sustentadora do vínculo entre os sujeitos, é uma forma de noticiar para o sujeito aquilo que 85 está se dando com ele e que é visível para todos, que é assimilável por todos. Então, retomando o texto do Lancetti, vemos que o grupo produz a possibilidade de uma matéria inventiva, o grupo produz algo de novo como experiência. E aí ele diz: “vai inteirando uma rede vincular, os componentes dos grupos vão sendo atraídos pelos seus companheiros por gestos, por expressões verbais e por atitudes, as mais variadas, a que denominamos elementos massa”. É óbvio que nós temos de enfrentar a questão do mutismo, da destrutividade, do narcisismo que emerge, da centralidade que um paciente assume na cena grupal. Mas nós não interpretamos, nós enfrentamos como questões que estão se dando ali. Então, esse chamado ‘outro’ não é uma interpretação, mas uma constatação, e isso tem um grande efeito nessa rede vincular. Há um dado interessante que temos desenvolvido na nossa clínica no programa de Intensificação de Cuidados, que gostaria de compartilhar com vocês: a constatação de que o psiquismo se produz incessantemente e nós podemos escutálo o tempo todo, e não apenas nos settings que convencionamos! Alguns acham que só se escuta quando se marca uma hora, um momento particular que o sujeito vai até ali para ser atendido e o outro para atendê-lo. Não estamos negando que essa demanda se instaure no paciente psicótico. Eventualmente, ela se instaura mesmo. Mas o tempo todo que os sujeitos estão nas mais diversas modalidades grupais, eles estão produzindo psiquicamente, a psicose está produzindo psiquicamente. 86 Então, nosso desafio é, em todos os grupos, em todos os momentos de reunião, todos os instantes em que o sujeito se agrega ou é agregado à dinâmica institucional em que é proposta alguma coisa, em todos esses momentos, nós estamos escutando a produção do inconsciente do sujeito. Em todos os momentos, o inconsciente está se produzindo, é um presente para o analista, você não sabe exatamente quando é que algo significativo vai ser despertado, será trazido à tona, você não sabe qual evento, qual palavra de outro paciente vai desencadear, como um sinal, para o outro sujeito na produção profundamente reveladora de um conjunto de experiências que são marcantes na experiência psíquica desse sujeito. Então, todos nós que estamos acompanhando esses sujeitos, somos ouvidos, olhos, percepção. Então, permanentemente, deve estar havendo um trabalho clínico de conexão das preciosas informações que nós precisamos para estruturar a compreensão do caso. Nós não somos aquele que vai para a anamnese e fica ali escutando o sujeito falar sobre si naquele momento. Eu estou o tempo todo sabendo da relação dele com a mãe, com os irmãos, das vivências, dos acontecimentos, do dia anterior, de dez anos atrás, da sua memória mais remota... Essas coisas vêm! Nós precisamos todos, independente da formação profissional, seja psicanalista, assistente social, ter uma leitura e interpretação da psicofarmacologia, da psicodinâmica da psicose, da compreensão da psicose enquanto um efeito. Então precisamos todos também desenvolver uma certa interpretação dos efeitos sociais do psiquismo psicótico. Eu fico pensando que vemos acontecer muito as pessoas falarem diante de uma agitação, de um surto: ‘leva pra enfermaria, leva pra emergência’. É interessante essa relação que, diante da agitação, manda levar para a emergência. É curioso esse modo de operar com os fenômenos com os quais a gente lida. A agitação também deve e pode ser escutada. Todos nós precisamos ter uma apropriação e uma compreensão do que significa essa posição psíquica da psicose, todos que vão trabalhar nessa clínica; pois é tendo uma compreensão organizada, que nós vamos poder pensar em como intervir nele, saber que sentido tem essa produção, para ver que possibilidade nós temos de intervenção. Eu estou trazendo isso, porque os grupos de trabalho, os passeios, as praias, em todos esses lugares, os sujeitos estão produzindo psiquicamente. O que nós precisamos é aprender a colher os dados para fazer uma compreensão do que está acontecendo com estes sujeitos nesses diversos eventos. Uma outra coisa relevante seria a coisa do preparo possível para o trabalho com a coisa mental, o quanto nós somos humanamente defendidos em relação à desordem da coisa mental, e aí a gente tem de entender que a defesa que nós temos são as nossas mediações identitárias. O Franco Basaglia falava disso. Todo recurso que façamos às identidades corporativas profissionais significa um esforço defensivo. Defensivo de que e para quê? Defensivos da desordem e para criar organização e se proteger através dela. Não estou querendo dizer aqui que não de- vamos nos defender – isso seria impossível - mas essa é uma interpretação interessante, sobretudo se nós recorrermos à receita técnica. Mas temos a obrigação de colocar em análise as nossas defesas. Toda vez que a gente deixa de entrar em contato com o fenômeno para prescrever o que o fenômeno é a partir de um construto qualquer que a gente traga mentalmente, a diferença é muito sutil. A diferença é que, quando você entra em contato com o fenômeno e vai buscar uma fórmula dentro do saber organizado que você tem para interpretar o fenômeno ou se você, ao entrar em contato com o fenômeno, impõe ao fenômeno, antes de entrar em contato com ele, pela mera aparência do mesmo, você já o destacou como uma hipótese. E, toda vez que a gente trabalha com hipóteses, a gente está fazendo a tentativa de se aproximar do fenômeno e exercer domínio sobre ele, controlá-lo, porque isso afasta a angústia da ignorância. Uma atitude mais interrogativa é mais adequada do que uma atitude que tem certezas. O que será isso aqui? O que é que está acontecendo aqui? Essa curiosidade sincera de saber o que quer dizer aquilo que o sujeito fala. O que ele está vivendo, o que está experimentando desperta a empatia. E muito rapidamente, antes de fazer esse movimento, você diz “é um delírio”, “é uma histeria”. E isso vai te dar segurança. Isso é muito sutil, óbvio, porque envolve uma questão de atitude, de abertura, de disponibilidade, e isso envolve outra questão que é a nossa relação com a ignorância. Nós temos um problema, já que não podemos 87 ser ignorantes. As nossas profissões e o exercício delas está baseado na pressuposição de termos um saber. Quanto mais as instituições são competitivas, menos nós podemos ser ignorantes. Como é que eu posso, diante do outro que quer me destruir, me abrir e dizer “desculpa, eu não sei”. Vão me dizer que eu sou um estúpido, que não sei. Não estou querendo dizer para entrarmos no registro do gozo da ignorância, mas de poder ter uma relação tranqüila com a ignorância, porque, no gozo da ignorância, não se quer saber, se quer ficar seguro naquele lugar e pronto; é uma posição que não possibilita muita coisa. Falo de reverenciar esse outro tipo de ignorância e construir uma cultura em torno dela, de poder compartilhar com o coletivo o não saber, de poder construir interpretações coletivas sobre o que está acontecendo, poder perguntar como é que o outro está vendo, admitir que está com dificuldade. Então, no fundo, nós estamos falando que a nossa relação com a ignorância depende da nossa relação com o poder, tem a ver com o poder que nós atribuímos ao saber. Se nós acharmos que o saber é a coisa mais importante do mundo, nós não vamos conseguir admitir que não sabemos, mas aí nós estamos colocando o saber num lugar de falo, e aí, o grupo de psicóticos não decola. O grupo pode ser um lugar de profundas aprendizagens, em todos os sentidos, de aprender a coordenar, de ter de dar conta da ansiedade, de se perguntar por que aquilo que acontece me mobiliza tanto e é uma escola e tanto do ponto de 88 vista da criatividade psicótica. Nós aprendemos com a psicose o seu grande poder de reinventar a forma da vida para o sujeito, recriar a vida do sujeito de uma forma que possa ser viável para ele. Nós já estamos na metade do curso, então, não vou mais enganar vocês: não tem nenhuma novidade nesse assunto de clínica psicossocial da psicose. O que tem de novo é que, em tudo o que nós formos fazer, nós vamos considerar que a questão da sociabilidade e a questão do vínculo são questões fundamentais para o sujeito psicótico, e a clínica não pode seguir ignorando-as. A psicose e as relações vinculares: um esforço de referenciação teórica Marcus Vinicius de Oliveira Silva* T omada como a significação mater, raiz da possibilidade de toda e qualquer significação, a significação de cada sujeito como um “eu” só pode ser estabelecida na trama complexa das relações humanas, ensejadas desde a sua aparição num mundo pré-existente, organizado simbolicamente, no qual ela emerge como uma função do “outro”. A aquisição do recurso psíquico da simbolização, condição de uma construção interna do “eu”, derivaria, nesse caso, da operação original de ruptura com o patamar da experiência especular e fusional, onde, ilusoriamente, este sujeito, sem consciência própria dessa condição, se plasmava como extensão ou contigüidade dos organismos adultos que lhe emprestavam sustentação tanto material como emocional pela via das impressões e sensações. (Lacan, Escritos) A operação de censura psíquica fundadora *Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de Psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC – Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. da significação original do “eu” que se identifica como uma porção diferenciada nessa mescla indistinta e básica recortaria imaginariamente uma porção da angustiante experiência possível – marcada pelas características singulares da sua proto-história como sujeito – para criar, ao mesmo tempo, o ser, o sentido do ser e o próprio regime da significação. A contra parte da qual o sujeito se descolou – o domínio do, a partir daí, definido como “outro” e “distinto do si” – e os sentidos e significações que receberá como “outro”, encerrará, portanto, sempre uma dimensão de arbítrio, resultante do modo como essa operação de censura buscou ser eficiente para enfrentar a questão da angústia, mola propulsora da individuação e condição fundamental de instauração do registro psíquico. A fundação da sociedade se produz e se reproduz na experiência singular através da qual as crias humanas, movidas pela angústia, são impulsionadas a instaurar uma clivagem entre o seu organismo biológico vitalmente autônomo e os organismos biologicamente autônomos, cultural89 mente estabelecidos, que lhe oferecem suporte e cuidados para viabilizar o seu desenvolvimento. Entretanto, mais do que uma direção biologicamente apontada e dada como inevitável, a individuação psíquica seria uma resultante das dinâmicas do trabalho singular operado pela angústia que se instala pelo descompasso entre a autonomia biológica de dois organismos, desigualmente autônomos, colocados em relação, sendo que o mais autônomo deles se localiza em relação ao menos, a partir de um regime de significações que, além de indisponível para esse, inclui uma significação própria para cada um para o conjunto formado por ambos e instrui e orienta a ação do primeiro em relação ao segundo. Assim, seria o descompasso entre as expectativas brutas – biologicamente orientadas - do organismo indistinto e as resultantes da movimentação culturalmente orientada do adulto o que ofereceria a base experiencial da angústia geradora do movimento da individuação psíquica, marcada por uma profunda especificidade em cada situação, responsável pelos modos absolutamente singulares de como cada indivíduo se significa no mundo, bem como, ao mesmo tempo, estabelece certas possibilidades para a existência do “outro”. Ao mesmo tempo, tal condição explicaria certos modos ou direções do “arranjamento psíquico” dos sujeitos, a partir do caráter melhor ou pior sucedido dessa operação, sucesso compreendido como uma eficiência no enfrentamento da angústia através da aquisição do registro simbólico. O recurso à simbolização seria percebido, desse modo, como um mecanismo de defesa contra as ansiedades persecutórias através de uma operação de controle do mundo pela via da sua incorporação interna como significação1. Tal seria a marca distintiva da estrutura existencial que caracterizaria os sujeitos designados genericamente como “psicóticos”: um modo singular de arranjamento psíquico em que se evidencia o caráter precário dessa operação fundamental em que se estabelece a possibilidade da instauração de um psiquismo compreendido como uma delimitação ficcional da existência de um “eu” que guarda em si um registro do “outro” e que pressupõe nos outros empíricos a possibilidade de que contenham algo do “eu próprio” como lócus identitário, base da organização simbólica e interna do mundo. A precariedade estaria dada pela descompensada construção do “outro” como instância interior (introjeção) ao psiquismo ou como possibili- 1 - Tal hipótese, de extração psicanalítica, oferece interessantes possibilidades para pensar a instauração do psiquismo como instauração orgânica do regime social da vida humana, rompendo com a dicotomia indivíduo /sociedade. A instauração do psiquismo individual converte a cria humana em “sujeito social”, ao estabelecer, concomitantemente, o acesso ao registro simbólico da cultura pela via singular da demarcação do “eu” e do “outro”, como matriz ou base de apoio de toda a sucessão de significações que a partir daí se tornam viáveis. A aquisição individual do psiquismo, baseada na aquisição do registro matriz do “eu” e do “outro” constitui-se, portanto, numa operação social em todos os sentidos: porque o pressupõe – o social – como sua condição radical; porque resulta das primeiras relações de “socialização” do candidato a sujeito com os outros humanos da cultura; porque estabelece as condições básicas da identidade por diferenciação, etc. Tornar-se “sócio” da sociedade é, portanto, realizar a operação de censura imaginária, num certo estágio do desenvolvimento, permitindo a instalação de uma instância do “eu” como uma função derivada da imposição da existência autônoma do “outro”. 90 dade da pressuposição no “outro” (projeção) dos registros que seriam próprios do “eu”, condição básica da regulação das relações vinculares mediadas simbolicamente. Dessa forma, o efeito de alienação, que pressupõe a ilusão da intersubjetividade, é constituído na condição do bem sucedido arranjo psíquico ao modo da neurose: “É assim que, em toda esta relação com o outro, haverá essa ambigüidade para o indivíduo, que se trata de alguma maneira de escolher, ele ou eu, que em toda relação com o outro, mesmo erótica, haverá algo do eco que se produzirá desta relação de exclusão que se estabelece a partir do momento em que o ser humano é um individuo que, sobre o plano imaginário, é constituído de tal maneira que o outro é sempre prestes a retomar este lugar de domínio em relação a ele, enquanto que nele há um eu que é sempre, em parte, alguma coisa que lhe parece de algum modo estranho, que é uma espécie de senhor implantado nele acima das tendências globais suas, dos seus comportamentos, de suas pulsões... a síntese do eu não se faz nunca, alguma coisa que talvez fosse melhor chamar de função de senhorio, de domínio. E este senhor, onde está ele? No interior? No exterior? Está sempre, ao mesmo tempo, no interior e no exterior; e é por isso que qualquer equilíbrio puramente imaginário com o outro sempre é atacado por uma espécie de instabilidade fundamental” (Lacan, Seminário de 18 de janeiro de 1956, apud Mannoni, M. , 1967) Ainda seguindo a mesma construção, poderíamos dizer que tal jogo oscilatório instalado no psiquismo humano seria a condição de produção da própria vida social, como um registro possibilitador das trocas, em diversos níveis, entre os sócios neuróticos da sociedade. Na psicose, os arranjos psíquicos disponíveis, resultantes das construções possibilitadas pelas interações dos sujeitos com o ambiente – material e humano - instabilizariam radicalmente a posição do sujeito em relação ao “outro”, posto ora na condição da proximidade excessiva e fusional própria do registro simbiótico ora na condição de alteridade radical paranoicamente ameaçadora. Deste modo, enquanto o registro psíquico “normo-neurótico” do funcionamento da vida social2 pressupõe como condição a alienação vincular – colocado o vínculo como modo fundamental de ligação com o outro, “philia”3 – propiciadora da ilusão do compartilhamento intersubjetivo; no registro da psicose, o “outro” aparece como um elemento enigmático diante do qual o psicótico titubeia, problematiza a 2 - O individualismo moderno, conforme anteriormente referido, veio problematizar sobremaneira a condição destes sujeitos com registros precários da instauração do psiquismo, conferindo-lhes a condição de baixa funcionalidade social, na medida em que toda a avaliação e validação do sujeito social está baseada na competência performática dos indivíduos, medida sobretudo pela sua capacidade de interação com os outros indivíduos. 3 - Aristóteles afirma que, como o homem é um ser social, não basta ser bom intrinsecamente, mas sim atuar na comunidade como um ser político. Se ele deve atuar, não pode prescindir de ser afetado por meio da noção de philia. Não se traduzem philia e philos simplesmente como amizade e amigo. Philia inclui os variados vínculos, bem como os mais afetivamente intensos. Os requisitos básicos para que haja autêntica philia: Reciprocidade - a philia exige compartilhar e devolver o benefício e o afeto. Independência: o philos deve ser percebido como um ser totalmente independente, dotado de um “bem próprio”, e o verdadeiro philos deseja o bem do outro por ele mesmo, “a troco de nada”. Os philoi devem ser e perceber-se reciprocamente como centros individuais de decisão e ação. A necessidade da convivência é fundamental 91 volvidos em iniciativas do tipo psicoterapêuticas ou, como enunciamos, para o “preparo para o trabalho com a coisa mental” ou ainda para o trabalho com as dimensões da subjetividade. Mais do que simplesmente estabelecer uma compreensão acerca do que hoje é possível denominar como fenômeno transferencial - dos modos de atualização de certos afetos originalmente reprimidos, reeditados em certas circunstâncias específicas e direcionados a um agente estrategicamente posicionado diante do sujeito – a noção de transferência, como um saber do agente sobre si mesmo, inaugura novas possibilidades de que este agente suporte certas cargas afetivas, que, não fora esse o recurso, imprimiriam ao relacionamento em questão destinações absolutamente Vínculo, fragilidades vinculares e tecnologias imprevisíveis. de gestão social Saber de natureza originalmente intelectual A descoberta da transferência ou a invenção da – como conceito que pode ser apreendido e que noção de transferência por Freud pode ser con- incide sobre a subjetividade do agente - a noção siderada como a matriz de toda a produção de de transferência opera por via de uma clivagem tecnologias de intervenção relacional que reco- psíquica que, objetivamente, alarga as possibilinhecem a condição do “outro” - alvo de alguma dades da experiência do mesmo, permitindo-lhe iniciativa intencionada de um agente especializa- um certo exercício de controle dos efeitos nele do - como um sujeito. No advento da transfe- provocados pelos afetos que lhe são dirigidos rência, podemos identificar também a condição pelo outro sujeito, ao separar a sua pessoa dainaugural que estabeleceu as bases dos processos quela identidade de agente da função exercida. Ao modo do teatro, é possível ao agente susde uma “formação possível” para os agentes ententar como personagem – a função analítica para os philoi. “Não há nada tão característico do amor como a convivência”. Os pode ser pensada como uma interpretação de um philoi devem conviver, compartilhar atividades intelectuais e sociais e o gozo, o prazer sofisticado papel – e não como a sua pessoa mespela companhia do outro. “A convivência é preferível a tudo”. ma, certas cargas de afetos endereçados, sem se deixar, imediatamente, afetar por isso, no sentido reacional. Ao mesmo tempo em que se alarga a relação e encontra limitações relacionais. Poderíamos pensar, portanto, os psicóticos como uma dissidência vincular – “os arautos do vínculo” – pois eles oferecem visibilidade para o mais elementar dos traços da vida social, estabelecidos como condição mesma da própria, a saber, o fenômeno através do qual o compartilhamento simbólico se torna possível entre os sujeitos não apenas a partir da aprendizagem vinculante de signos e significados como a partir da sua introjeção tornada possível pela formatação psíquica de cada indivíduo como um sujeito da cultura. Dos embaraços vinculares da psicose, das estratégias organizadoras dos seus “arranjamentos”. 92 possibilidade de suportar as expressões da afetividade alheia, pela via de uma desidentificação com a condição de sujeito originariamente destinatário da mesma, torna-se possível ao agente manejar essa relação afetiva no sentido de certos objetivos pré-estabelecidos como terapêuticos. Como conceito capaz de produzir um efeito subjetivo no agente alargador da sua capacidade de “suportar” a experiência do outro e sustentar diante dela uma intervenção eticamente dirigida a certas finalidades, a invenção da transferência como um conceito operacional inaugura um novo modo de relação entre teoria e prática, no que diz respeito à clínica, edificando as bases de todo o preparo para lidar com a coisa mental. De algum modo, tal como ocorre mais explicitamente com o conceito de transferência, todos os conceitos operativos da clínica mental deveriam colaborar para a produção de uma expansão, para uma ascese subjetiva, da condição prévia do sujeito em treinamento para uma nova condição, em que resultaria alargada a sua possibilidade objetiva e subjetiva de suportar um conjunto de fenômenos e expressões que lhe são dirigidas em função do seu trabalho pelos sujeitos atendidos e que, não fora tal recurso, impactar-lhe-iam de modo absolutamente diverso. Mas é de outra natureza a conseqüência que achamos mais significativa e que devemos destacar em relação à invenção freudiana do conceito de transferência. Tal como ela foi postulada, revela uma forma específica, no olhar de Freud, de modo de vinculação entre dois sujeitos marcados por certas características dentre as quais ele destacou a diferença objetiva e subjetiva de posição que permite a atribuição de autoridade a um dos pólos da relação, a demonstração de disponibilidade e interesse em relação às questões trazidas pelo outro pólo, a suposição de que, no pólo oposto, se encontraria alguém com um saber capaz de atender a certas necessidades do mesmo e a repetição regular do encontro entre os dois, etc. Como afirma Zigouris (2002) “Freud introduziu no ocidente um vínculo até então inédito entre duas pessoas, dois desconhecidos: chamouo “transferência”. No início de sua atividade, referia-se à relação médico-doente, mas muito rapidamente esse novo conceito veio a designar não mais o encontro médico-paciente, e sim um vínculo específico em relação ao inconsciente, às pulsões e à repetição. No início, a transferência foi transferência de amor... e, para Lacan, “alguma coisa em relação ao amor”. Desde aí uma interrogação cultural não cessa de se produzir: o que desse campo relacional, definido originalmente como relativo a certas relações de características específicas – médicopaciente, professor-aluno, chefe-comandado – seria compartilhado e poderia nos informar sobre o conjunto das relações humanas “amorosas”, socialmente estabelecidas, em suas distintas versões, mesmo nos casos em que os sujeitos nos parecessem neutros afetivamente ou revestidos de “amorosidades” negativas ( desprezo, raiva, asco, irritação). 93 Em que poderíamos articular essa noção de transferência com as dinâmicas mais gerais do modo de produção dos “afetos”, tomados transitivamente como os impactos ou efeitos produzidos subjetivamente em um sujeito a partir da presença real ou imaginada de um outro sujeito ou de símbolos, objetos ou coisas ligados a outro sujeito ou sujeitos? E como derivar daí uma abrangência extensiva para a noção de vínculo como uma noção central para a compreensão das dinâmicas psiquismo/sociedade? Aí se torna necessário introduzir a questão da significação como uma questão referida ao vínculo. A relação entre dois ou mais sujeitos encontrase sempre antecedida pela significação que cada um deles atribui a si mesmo e pela significação adquirida pelo(s) outro(s) para o sujeito que com ele interage. Isso fica reforçado pela idéia de que as relações de dependência são básicas em todas as relações sociais: dependência real, simbólica e/ou imaginária. É impossível existir fora das relações de dependência. De algum modo, podemos formular que todas as relações humanas sejam entre humanos e lugares, entre humanos e objetos de sentido humano, pressupondo, portanto, a presença desse elemento vincular, pois o campo da significação, o campo simbólico da cultura, se constitui a partir das relações do tipo vincular. O sentido é a forma mais elementar do vínculo: vínculo entre um signo e um significado mediado pela experiência singular do sujeito promotor dessas articulações. Tais temas derivados dessa apreensão tão original da obra freudiana vêm sendo desdobrados 94 em esforços teóricos variados de esclarecimento, que constituem o campo do manejo das relações vinculares, estabelecendo as bases das tecnologias de intervenção social, incluindo aí as tecnologias do tipo psicoterapêuticas ou sócio-terapêuticas. De alguma maneira, a invenção da transferência veio introduzir um suporte teórico para o manejo técnico de relações interpessoais no interior dos quadros institucionais reguladores do governo da pessoa, encontrando-se presentes nos mais variados projetos de gestão social, tanto como recurso para a reprodução disciplinar da sociedade quanto como recurso de administração dos seus elos mais frágeis. Fazendo o PIC acontecer *Todos os nomes dos pacientes citados nos artigos a seguir são fictícios. A Clínica Psicossocial da Psicose: Aprendizagem, Cuidado Intensificado e Reinserção Social Adriana Bittencourt Nunes* Ana Luísa Marques Fagundes** Isadora de Andrade Pinheiro*** Lucineide Santiago de Souza**** Milena Silva Lisboa***** Resumo: O presente artigo objetiva relatar a experiência de um ano vivida por estudantes de Psicologia e Terapia Ocupacional, atuando como acompanhantes terapêuticos de pacientes com transtorno mental e desenvolvendo trabalhos de cunho biopsicossocial. As atividades foram realizadas com o apoio de uma instituição psiquiátrica (Hospital Especializado Mário Leal) tendo como premissa básica promover a reinserção social e o estreitamento de vínculos dos pacientes. Para tal, foram utilizados, fundamentalmente, os pressupostos teóricos da clínica psicossocial da psicose que contribui para um novo olhar sobre o fazer clínico e sobre o fenômeno da psicose. Ademais, esta experiência de estágio curricular contribuiu para a formação profissional e acadêmica dos estudantes, demonstrando a possibilidade de construção de novas formas de intervenção, pensamento e reflexão acerca do fenômeno em questão. * Estudante de Psicologia da UFBA e ex-estagiária do PIC ** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC *** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC Introdução A busca de uma atuação em saúde mental que respeite a integridade e autonomia dos psicóticos e seja capaz de oferecer o suporte necessário aos pacientes e familiares de maneira menos invasiva é um desafio constante para todos os profissionais da área. Desde meados do século passado, vêm sendo propostas, no Brasil e no mundo, alternativas terapêuticas que vão além do velho recurso da internação psiquiátrica. Na Bahia, tais propostas ainda se encontram muito pouco desenvolvidas, de modo que merecem uma atenção especial os esforços empreendidos nessa perspectiva. O programa de estágio implantado pela Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Fundação Bahiana para o Desenvolvimento dsa Ciências (FBDC) e a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, vem inaugurar uma nova forma de ***** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC 97 atuação e formação em saúde mental em Salvador. O Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC), implementado em janeiro de 2004, insere-se na perspectiva de uma clínica psicossocial da psicose e objetiva oferecer cuidados intensivos a alguns pacientes atendidos pelo Hospital Especializado Mário Leal (HEML), situado no bairro do IAPI, em Salvador, Bahia. A equipe inicial contou com a participação de sete estudantes de graduação de Psicologia da UFBA e cinco de Terapia Ocupacional da FBDC, supervisionados por dois professores das referidas áreas de saber. Dentre os principais objetivos do programa destacam-se o fortalecimento das redes de suporte social dos pacientes e a promoção de discussões acerca das novas formas de atuação em saúde mental no ambiente acadêmico, contribuindo para uma prática profissional mais competente e ética. A proposta do Programa coaduna-se com as reflexões da reforma psiquiátrica e com as diretrizes da nova legislação em saúde mental. A reforma psiquiátrica, ao analisar os fundamentos do modelo assistencial do hospital psiquiátrico, constata sua incapacidade para a atenção à saúde mental, no que diz respeito à promoção do bem-estar físico, mental e social dos seus usuários. O modelo centrado na instituição do hospital psiquiátrico não permite a participação da comunidade, já que centraliza as decisões e dificulta a participação dos pacientes e de seus familiares na gestão do tratamento de uma forma integral e preventiva. Ademais, promove a exclusão dos pacientes, o estigma social e a alienação quanto 98 à própria doença, anulando o papel do portador de sofrimento psíquico enquanto agente e sujeito; rompe-se, assim, com os direitos humanos e civis (GOFFMAN, 1985). Diante disso, uma reforma psiquiátrica pautada na necessidade de reestruturar esse modelo de dominação e domesticação dos pacientes caminha na direção de promover modelos alternativos que tomem como centro da discussão e foco de atuação a comunidade e suas redes sociais. A Declaração de Caracas (1990), enquanto um documento que expressa essa necessidade de uma reforma psiquiátrica, propõe que a legislação em saúde mental garanta os direitos humanos e civis dos usuários, descentralize a assistência através da promoção de serviços comunitários e aloque a assistência a emergências psiquiátricas em hospitais gerais. A lei n˚ 10.216, de seis de abril de 2001, protege os direitos humanos e civis dos “portadores de transtorno mental”, sem qualquer tipo de discriminação. São listados nove direitos: melhor tratamento referente às suas necessidades; tratamento com humanidade e respeito; proteção contra exploração ou abuso; sigilo de informações; acesso aos meios de comunicação; assistência médica; conhecimento sobre a doença; tratamento com os meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários. Além de garantir os direitos fundamentais para um tratamento mais humano, a lei prevê a criação de políticas em saúde mental pelo Estado, oferecendo a possibilidade de participação da comunidade. Atendendo à necessidade de descentralização, a lei também incentiva a reinserção social do doente e desestimula a internação psiquiátrica. A reforma psiquiátrica e a nova legislação vêm lançar um novo olhar sobre a loucura, abordada tradicionalmente de forma excludente devido a uma série de fatores. Em primeiro lugar, a loucura reflete um mal-estar social, denuncia que algo está funcionando mal. Em nossa cultura, a única forma de existência que a loucura encontra é sob a forma de doença. A vida do sujeito fica limitada ao tratamento, sendo que o projeto-doença, de fato, é a única forma de se ter o sofrimento reconhecido; sofrimento que, na verdade, é social. O louco funciona como porta-voz de um mal estar que diz respeito a toda sociedade, e sua diferença representa uma ameaça ao modus vivendti da mesma. O modo de abordar a alteridade da loucura é, conseqüentemente, a exclusão. (CARRETEIRO, apud GARFUNKEL, sd). A exclusão denuncia a falta de recursos da sociedade para lidar com o psicótico e acaba por fragilizar as suas redes sociais. Qualquer atuação que vislumbre a inserção social deve debruçarse sobre a questão vincular, passando a valorizar os laços sociais. Na psicose, uma dificuldade na formação de vínculos coloca essas pessoas numa posição diferente no mundo; qualquer abalo na sua estrutura de vínculos pode significar uma dificuldade na sua experiência subjetiva compartilhada e individual. A vulnerabilidade relacional do psicótico está calcada na forma de estruturação psíquica do sujeito. A dificuldade de inserir-se no mundo e criar instâncias de significações relevantes configura-se a partir de uma espécie de retorno aos padrões de comportamento vivenciados no desenvolvimento infantil. Os conceitos de depositante, depositado e depositário de Pichon Rivière (apud Bleger, 1977, p.20) contribuem para a compreensão da psicose enquanto fenômeno intrapsíquico. Esta teoria estabelece um tripé, no qual o sujeito (depositante) projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma vez que a introjeção do mesmo pode causar desestabilização psíquica (BLEGER, 1977). O sujeito psicótico utiliza a transferência autista e simbiótica para relacionar-se com o outro e o mundo externo; o autismo e a simbiose como formas de vinculação remetem às relações narcísicas, pois estas se dão com objetos internos (material depositado, mente, corpo). Autismo e simbiose coexistem, o que permite compreender o caráter paradoxal das relações objetais de psicóticos, a alternância entre relações de profunda dependência e outras de isolamento/distanciamento. Tanto a simbiose quanto o autismo são expressões dos conflitos de dependência/independência, que têm por base uma cisão entre o projetado e o introjetado. No autismo, o sujeito deposita conteúdos sobre parte de seu próprio corpo e/ou mente, distanciando-se do mundo externo, enquanto na simbiose, há uma interdependência entre duas ou mais pessoas, com o objetivo de satisfazer as necessidades da parte mais primitiva (imatura) da personalidade, mantendo-a imobilizada. A depositação simbiótica maciça e frágil ocorre sobre o mundo externo (outro). Não obstante, ambas as maneiras de vinculação funcionam como meca99 nismos que visam a conservação do estado psíquico (certo grau de organização) através da não intervenção do mundo externo e conservação do princípio do prazer. Na simbiose, embora o vínculo pareça muito intenso, há um empobrecimento do depositário, que funciona como mero locus de depositação. É com o material depositado que o psicótico se relaciona, não com o outro propriamente. Estes padrões narcísicos de vinculação podem ser compreendidos sob a luz da teoria Kleiniana. M. Klein (apud BLEGER, 1977) denomina estado esquizoparanóide à fase do desenvolvimento infantil na qual a criança começa a distinguir características contraditórias presentes em um mesmo objeto. É o estágio em que a diferenciação está presente e se faz necessário dividir, separar, para que, posteriormente, o ego possa se estruturar solidamente. O retorno ao autismo e simbiose como padrões de relacionamento remetem à fase desenvolvimental anterior, ao estado esquizoparanóide. Nesta fase, a criança encontra-se em um processo de indiferenciação. Não há clivagem entre eu e nãoeu. Os aspectos contraditórios e divergentes fazem parte de um todo e não são percebidos como tais pelo sujeito. É uma fase caracteristicamente ambígua e contribui para a formação da parte psicótica da personalidade ou núcleo aglutinado, esfera mais desorganizada, densa e complexa. Esta, como um amálgama fusional, permanece separada do ego na vida adulta. É exatamente a parte psicótica da personalidade que é projetada pelo paciente, como uma espécie de organização 100 primitiva e depositada no mundo externo de maneira intensa (simbiose) ou sobre o próprio indivíduo (autismo), já que sua reintrojeção ameaçaria a parte mais organizada do ego (parte neurótica da personalidade) (BLEGER, 1977). Em grupos narcísicos ou simbióticos, as pessoas não se vinculam de forma objetiva. Cada uma delas representa para as demais mero depositário de suas tensões. Por outro lado, cada sujeito internaliza e atua papéis correspondentes às tensões dos demais (BLEGER, 1977). Tal tipo de organização grupal é freqüentemente encontrada em famílias de psicóticos, especialmente na relação entre os pacientes e seus cuidadores primários. Constantemente, ocorre uma fusão entre o material depositado e o depositário, de modo que o depositário acaba assumindo o papel que foi nele projetado, contribuindo para a não distinção entre o mundo interno e o mundo externo do psicótico. Assim, a partir do entendimento da estruturação psíquica pertinente à psicose, pode-se compreender a outra face deste fenômeno (além das questões de cunho sócio-histórico) que contribui com o processo de estreitamento e ruptura dos laços sociais e com a dificuldade de inscrição do sujeito no mundo. A partir da compreensão de tal dificuldade vincular dos psicóticos, a qual freqüentemente é fortalecida pela exclusão social da loucura, as novas atuações em saúde mental se direcionam para a inclusão através de uma atuação biopsicossocial. Novas formas de cuidado começaram a ser pensadas como alternativas à exclusão dos muros do manicômio: Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS e NAPS), Lares Abrigados, Casas de Acolhimento e hospitais gerais. A psicologia aparece aqui como uma abordagem que atenta para a questão dos sujeitos psíquicos em suas dimensões familiares, sociais, políticas e econômicas. A direção da mudança caminha do isolamento para a convivência social da loucura, por mais difícil e paradoxal que possa parecer. Fazer caber a loucura no seio da sociedade de origem passa a ser o objetivo quando se acredita serem os vínculos sociais os suportes para o convívio. O caminho da ressocialização da loucura tira das mãos da psiquiatria a tarefa de compreender e tratar o louco em asilos de exclusões, e coloca a comunidade em contato mais direto com a loucura, criando novas formas de relacionamento e novos recursos interacionais e institucionais. É dentro dessa perspectiva que o Programa de Intensificação de Cuidados se insere. A partir da criação de espaços terapêuticos pouco convencionais, o Programa foi sendo pensado e construído para atender em torno de 30 pacientes divididos em dois grupos, em sua maioria, psicóticos jovens provenientes da internação ou ambulatório do HEML. Em diversos contextos de atuação, que ultrapassam os serviços oferecidos pelo HEML, a escuta de suas subjetividades foi realizada, ampliando a própria noção de clínica e fortalecendo uma atitude transdisciplinar que gira em torno da noção de cuidado. A noção de cuidado, segundo Roselló (1998) é uma derivação da idéia de fragilidade humana. Não se trata de querer solucionar a tragédia, mas de compartilhar o sofrimento e estar presente. Trata-se não de piedade, mas de reconhecimento da sua própria fragilidade para a compreensão da fragilidade do outro. Cuidado implica uma atenção especial aos aspectos que podem estar sendo negligenciados para uma aproximação do sofrimento do outro. Isso requer uma apreciação do sujeito de uma maneira mais integral, para além das especificidades das áreas do saber. Os espaços considerados terapêuticos foram organizados em diferentes categorias: encontros semanais no hospital, visitas domiciliares regulares, encontros com cuidadores, passeios terapêuticos, acompanhamento a consultas, contribuições no encaminhamento de documentações e benefícios, além de atendimentos psicoterápicos de caráter individual ou participação em oficinas terapêuticas, quando se detectavam estas necessidades. Essas atividades podem estar inseridas nos modos de atuação conhecidos como grupos terapêuticos e acompanhamento terapêutico (AT). A noção de manejo aparece, no campo do AT, como técnica privilegiada de atuação, partindo do princípio winnicottiano (apud Barretto, 1998) de que o indivíduo se desenvolverá caso encontre condições favoráveis, cabendo ao acompanhante terapêutico (at) suprir as falhas ambientais. “(...) o manejo se refere a uma intervenção no setting (enquadre) e/ou no cotidiano do sujeito, levando em conta suas necessidades, sua história e a cultura na qual está inserido, a fim de promover seu desenvolvimento psíquico. É através dessa técnica que se exercerão as diversas funções ambientais que são fundamentais na constituição do self de 101 um sujeito” (BARRETTO, 1998, p.196-197). Barretto (1998) descreve onze funções do at, as quais foram referenciais para a prática do estágio: Holding (função de amparo, apoio, sustentação, estar junto com, fornecendo à pessoa a experiência de continuidade, constância); Continência (envolve a compreensão da situação angustiante por um outro significativo e discriminação desta, de modo que se possa, através da imaginação, transformar as experiências do sujeito); Apresentação do objeto (possibilitar a vivência de uma experiência completa em que o sujeito se interesse por um objeto, ouse usá-lo e, por fim, possa separar-se dele); Handling (função de manipulação corporal e contato com as necessidades corporais); Desilusão (capacidade de discriminação entre a realidade subjetiva e a realidade compartilhada); Interdição (associada à função paterna, ao terceiro objeto que interfere na relação simbiótica mãe-bebê. A interdição só é enriquecedora se o sujeito tiver vivenciado anteriormente a experiência de satisfação); Interlocução dos desejos e angústias (não se trata de interpretar o paciente, mas sim de atentar para suas questões psíquicas relacionadas aos desejos e necessidades que são expressas por preocupações, angústias, dúvidas através de conversas cotidianas); Discriminação de campos semânticos (apreender as significações do discurso para ampliar o campo da experiência, oferecendo novos olhares, novos recortes do fenômeno); Função especular e emergência da função estética (ocorre a partir do encontro com o outro ou com um objeto da cultura que revela um aspecto do próprio self); Função de ali102 viar as ansiedades persecutórias (objetiva permitir que o indivíduo estabeleça uma troca enriquecedora consigo e com a vida, já que intensificadas, as angústias paralisam o mundo psíquico do sujeito); Modelo de identificação (o at pode auxiliar no desenvolvimento de diversas funções psíquicas, como responsabilidade, cuidado pessoal, além de, muitas vezes, servir para resgatar algum aspecto da história do sujeito). Tais funções foram exercidas nos diversos espaços de atuação do PIC. Os encontros semanais dos dois grupos foram realizados no ambulatório do HEML (às segundas e quintas-feiras) e tinham o objetivo de estimular e fortalecer a sociabilidade. Tarefas e temáticas que dizem respeito a algumas questões que ressoam diferentemente no modo de viver psicótico (como a vivência do corpo, a autonomia, os projetos de vida) foram trabalhadas, sempre relacionadas com a criação e o fortalecimento de suas redes sociais. O grupo tornou-se, ao longo do tempo, um espaço de troca de experiências, onde amizades foram construídas junto com o sentido de cuidado e atenção. É essencial observar a relação do sujeito com a família, visto que esta representa o grupo primário, o qual, geralmente, funciona como depositário no núcleo aglutinado. Desse modo, constata-se que o paciente comporta-se de maneiras divergentes, estando na presença do grupo primário ou de grupos secundários. É comum a sensação de perda de sentido da realidade na presença do grupo primário, justamente porque o sujeito entra em contato com a parte da personalidade que foi projetada, ou seja, a primitiva e imatura. As visitas domiciliares proporcionaram o entendimento dessa dinâmica, já que foi possível entrar em contato mais direto com o cotidiano dos participantes do programa, compreender suas dinâmicas familiares, suas redes de apoio locais e como transitam, vinculam-se e se colocam diante do outro. Cada paciente era visitado regularmente por uma dupla de estagiários que cuidava de forma mais próxima e intensa das peculiaridades de cada caso. Essa aproximação possibilitou intervenções mais fundamentadas nas interações desses pacientes junto a seus familiares, amigos e cuidadores. Assim, pôde-se interferir nos padrões de relacionamento objetais que poderiam estar trazendo dificuldades à sociabilidade. Foi possível também uma apreciação dos recursos sociais e institucionais acionados pelos seus cuidadores em momentos de crise. Segundo Melman (2001), algumas teorias psicológicas contribuíram para a instauração da idéia da família como causa de doença mental, a exemplo da psicanálise e da teoria do duplo vínculo. Pode-se ir além dessa concepção, considerando a família como um contexto, retirando a culpabilização materna do seio da cultura e do técnico de saúde mental o papel de juiz. Ou seja, não se trata de considerar o sujeito inocente e o entorno familiar culpado, mas sim de compreender o sujeito para buscar facilitar os vínculos. Pode-se ir ainda mais além, pensando a família não como causa ou contexto, mas como recurso. Família passa a ser a solução ao invés de problema. Isso implica a escuta, o acolhimento, de fato, da família, sem limitá-la apenas ao papel de controle do sujeito. Dentro dessa perspectiva, o Programa de Intensificação de Cuidados realizou encontros com os cuidadores. Essas reuniões configuraram-se como trocas de experiências em um espaço onde dúvidas, medos, preocupações, crenças, idéias e sugestões foram ouvidas e compartilhadas, onde o sofrimento e a alegria daqueles que convivem cotidianamente com a psicose puderam ser escutados e validados. Uma vez que as atividades externas mostraram-se de cunho terapêutico, por se tratarem de iniciativas legitimadoras do convívio social e do exercício dos direitos e deveres que os pacientes merecem dispor, alguns pacientes com dificuldade de sair do ambiente familiar puderam, com os passeios, sentir-se mais seguros para transitar em outros espaços, o que viabilizou o aumento da autonomia. Os vínculos estabelecidos com pacientes e estagiários ofereceram a continência necessária para que o sentimento de pertença grupal garantisse segurança e confiança. Acompanhamentos a consultas psiquiátricas e neurológicas possibilitaram uma maior compreensão do fenômeno da psicose em seu aspecto fisioquímico, auxiliando na lida diária com os benefícios e dificuldades trazidas pelas medicações psiquiátricas. O acompanhamento concomitante dos pacientes junto a psiquiatras ambulatoriais trouxe importantes benefícios para uma clínica que acredita na não internação, mas que se beneficia do saber psiquiátrico medicamentoso, o que contribui para o diálogo entre os diversos saberes que atuam na saúde mental. 103 Tarefas como tirar documentos, dar entrada ao benefício de aposentadoria, denunciar abandono ao Ministério Público, acompanhar consultas clínicas, podem não se configurar como uma atuação propriamente de cunho psicológico, mas através delas foi possível abordar questões centrais nas vidas dos pacientes (às vezes questões emergenciais) tornando-se mais um meio de aproximação de suas subjetividades. São atitudes transdisciplinares como estas que devem permear o modo de atuação dos profissionais de saúde que querem cuidar da psicose numa perspectiva ampliada em favor da ressocialização. Após mais de um ano do início das atividades do Programa de Intensificação de Cuidados, observa-se uma melhora significativa no quadro clínico da maioria dos pacientes, merecendo destaque a redução das reinternações e o aumento da autonomia e dos laços sociais dos mesmos. As recaídas e pioras que aconteceram durante o ano foram abordadas pelos cuidadores de uma forma mais compreensiva e cuidadosa, surgindo outros recursos sociais e institucionais, como a procura pela emergência psiquiátrica, a ida a uma igreja, a conversa mais estimulada e a escuta mais atenta. O recurso da internação começou a ser questionado pelos pacientes e seus cuidadores; alternativas mais acolhedoras trouxeram as crises psicóticas para mais perto do convívio social e mais longe da exclusão do manicômio. Percebe-se também um amadurecimento profissional dos estudantes dentro de uma perspectiva de atuação, em geral, pouco trabalhada nos 104 meios acadêmicos tradicionais. Além disso, o caráter inovador e transitório deste tipo de atuação é cerceado por algumas questões de ordem macro. O enquadramento de atuação calcado na psiquiatria tradicional dificulta a viabilização de propostas que ultrapassem este molde. O Estado, os serviços de saúde e a própria cidade não estão preparados para lidar e dar suporte a um portador de transtornos psíquicos que seja mais autônomo, mais cidadão. A internação como recurso terapêutico é largamente utilizada, destarte os esforços que convergem para o oposto desta situação. O paciente ainda não tem um lugar genuíno de escuta nestas instituições tradicionais, o que pode ser confirmado nas consultas médicas de curta duração. Também ocorre, freqüentemente, a falta de medicação nas farmácias, que prejudica o andamento do tratamento. No entanto, alguns espaços como o promovido pelo PIC têm surgido, com uma visão mais integrada e abrangente. Trata-se de uma visão psicossocial que compreende o tratamento não só do ponto de vista médico (através do uso de medicações) como também envolve a família e a comunidade, com o intuito de resgatar laços sociais. A predominância do modelo médico em detrimento de uma abordagem mais flexível dificulta muito a prática das mudanças preconizadas pela Reforma Psiquiátrica. Muitas barreiras hão de ser enfrentadas pelos profissionais engajados nessa luta, mas as conquistas alcançadas, ainda que longe do considerado “ideal”, podem ser encaradas como vitórias e estímulos para os que desejam que seja destinada uma outra posição para o “louco” em nossa sociedade. Referências BARRETTO, K. D. Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo, UNIMARCO, 2000. BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1977. Declaração de Caracas. 14 de novembro de 1990. GARFUNKEL, J. L. Inclusão/Exclusão: Limites e Possibilidades desse conceito. São Paulo, Instituto de Psicologia PUC – SP, p. 9 – 26, s/d. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Editora Perspectiva, p. 109-143, 173-259 e 261312, 1985. Lei n˚ 10.216, de 6 de abril de 2001. MELMAN, J. Família e Doença Mental. São Paulo, Escrituras, 2001. ROSELLÓ, F.T. Antropologia Del Cuidar. Cap. 8: La radical vulnerabilidad del ser humano. Institut Borja de Bioética. Fundación MAPFRE Medicina. Espanha, 1998. 105 Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para a Qualidade de Vida Fernanda Abreu R. Nascimento* Resumo: O presente artigo é um resumo de monografia do curso de Terapia Ocupacional da Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências (FBDC) / 2005, que tem como título “Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para a Qualidade de Vida”. O Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) é um trabalho de acompanhamento de cunho biopsicossocial destinado a portadores de transtornos mentais desenvolvido por professores e estudantes de psicologia e medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e de Terapia Ocupacional da FBDC em parceria com Hospital Especializado Mário Leal (HEML). Este trabalho consistiu numa pesquisa de campo, onde buscou-se avaliar as mudanças que podem ter ocorrido na Qualidade de Vida dos usuários inscritos no programa. *Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC 106 Introdução A o longo da história, a forma de ver e tratar o doente mental tem sido transformada e reconstruída. O Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) para psicóticos do Hospital Especializado Mário Leal é um trabalho de acompanhamento de cunho biopsicossocial desenvolvido por estudantes da Universidade Federal da Bahia e da Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências, sob a supervisão de professores que idealizaram o programa. A partir de uma lógica de trabalho que tenta transpor as barreiras manicomiais, o PIC, compartilhando com os pensamentos da Reforma Psiquiátrica, vem questionando o saber clínico da psiquiatria clássica e construindo um novo olhar e fazer clínico no cuidado aos portadores de transtornos mentais. Reconhecendo que a psicose é um fenômeno de intensas ressonâncias sociais que fragilizam as relações interpessoais do sujeito, o PIC dispensa uma atenção intensiva aos aspectos das vincula- ções sociais com vistas à melhoria da continência social e qualidade de vida do paciente. Para atingir tais objetivos, os estudantes do programa realizam um trabalho de acompanhamento terapêutico a esses pacientes, que inclui visitas domiciliares, encontros grupais e familiares, passeios, assessoramento e outros. Foi realizado um estudo, onde se buscou avaliar se o programa tem sido um dispositivo que promove a Qualidade de Vida dos usuários inscritos no mesmo e a repercussão na vida daqueles. Tal pesquisa foi apresentada no trabalho de conclusão de curso do curso de Terapia Ocupacional da FBDC no ano de 2005, que tem como título “Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para a Qualidade de Vida”. O impacto da doença mental repercute imensamente na qualidade de vida dos portadores de transtornos mentais. Um estudo feito pelo The Global Burden Disease (OMS / Banco Mundial / Harvard) revelou que das dez doenças mais incapacitantes no mundo, cinco são de natureza psiquiátrica. (PITTA, 2000). A OMS definiu qualidade de vida (QV) em um conceito amplo que inter-relaciona o meio ambiente com aspectos físicos, psicológicos, nível de independência, relações sociais e crenças sociais. Essa organização define qualidade de vida como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (The WHOQOL Group, 1995, apud FLECK, 2000). Esse conceito valoriza a percepção própria do in- divíduo frente a todas as dimensões de sua vida. Metodologia Para a realização da pesquisa, foi aplicado um questionário com dez pacientes inscritos no PIC que foram escolhidos através dos seguintes critérios: não estar institucionalizado e estar participando há mais de um ano do programa. A elaboração do questionário foi baseada no Instrumento de Qualidade de Vida da WHOQOL-100, considerando os aspectos que mais se relacionam aos objetivos do PIC e ao cotidiano dos portadores de transtornos mentais, buscando avaliar as mudanças que podem ter ocorrido na qualidade de vida dos pacientes pela participação no PIC. O questionário é composto de 24 itens, que podem ser agrupados em categorias, conforme segue: Relacionamentos Sociais (averigua as relações com familiares e amigos do sujeito), Atividades Sociais (averigua as atividades que o indivíduo tem realizado), Estado de Saúde (averigua a saúde do indivíduo quanto à freqüência de internações, bem como sua dependência de terceiros e utilização de medicações), Auto-estima (averigua sentimentos positivos em relação a si mesmo) e Projeto de Vida. Dos dez pacientes participantes da pesquisa, sete são do sexo masculino e três do sexo feminino, sendo que as idades variaram entre 20 e 43 anos. Cinco possuíam o primeiro grau incompleto, um tinha o primeiro grau completo, três com segundo grau incompleto e apenas um com se107 gundo grau completo. Nove eram solteiros e um casado. Apenas um entrevistado possuía emprego remunerado, dois dependiam da renda familiar e sete recebiam benefício do INSS. Resultados Segundo os dados obtidos referentes à categoria de Relacionamentos Sociais, percebeu-se uma mudança significativa quanto ao sentimento de solidão. Os dados mostraram que a maior porcentagem de pacientes – 80% – passou a se sentir menos sozinho. Verificou-se também que 80% dos pacientes conseguiram fazer novos amigos, apenas 20% deles não conseguiram ampliar o número de amizades, continuando com os mesmos amigos de antes. O resultado mostrou que 60% das pessoas afirmaram ter tido melhora na convivência com as pessoas em casa, enquanto 20% delas disseram que continuou ruim a relação, e os outros 20% disseram que a relação sempre foi boa. A maioria dos pacientes - 70% - passaram a receber mais ajuda de outras pessoas. Metade respondeu haver mudança no quadro de atividades que realiza com outras pessoas, e a outra metade diz não ter havido mudança. 50% dos pacientes disseram que sentimentos depressivos e de tristeza diminuíram, em 30% não mudaram esses sentimentos, enquanto que 20% disseram nunca se sentir assim. Sobre a categoria de Atividades Sociais, 50% dos pacientes disseram sempre ter saído de casa para passear ou fazer outras coisas, 30% disseram que não passaram a sair mais de casa para 108 realizar essas atividades. Dentre os motivos para isso, alguns responderam não ter vontade, não ter oportunidade ou a confiança da família para sair mais de casa. Os dados apresentaram que 30% dos pacientes passaram a se sentir mais seguros para sair de casa sozinhos, enquanto 30% ainda não se sentem confiantes. A maioria dos pacientes - 80%, disseram sempre ter feitos coisas para se divertir. Os dados mostraram que mais da metade dos pacientes – 60% – voltou ou passou a realizar atividades fora de casa. Dentre essas atividades, encontram-se: voltar aos estudos, freqüentar a academia, dar aula de dança, freqüentar a igreja e vendas de produtos por encomenda. Apenas 20% não passaram ou voltaram a realizar alguma atividade. Referente à categoria de Estado de Saúde, os dados mostraram que a maioria dos pacientes já estiveram internados, sendo que 30% já estiveram várias vezes e 30% já estiveram, porém poucas vezes. Verificou-se que a maioria do pacientes 70% - não se internaram nesse ultimo ano, 20% foram internados poucas vezes e 10% foram internados, mas apenas uma vez. 40% dos pacientes passaram a tomar sua medicação corretamente, sem precisar da ajuda de outra pessoa; 10% passaram a tomar, mas ainda precisando de orientação; enquanto a maioria dos pacientes – 50% – disseram sempre ter tomado corretamente. Os dados destacam que nenhum dos pacientes teve a quantidade de remédios aumentados, enquanto 70% pacientes tiveram a medicação diminuída. A maioria dos pacientes – 80% – tiveram menos necessidade de ir ao médico, enquanto apenas 20% não diminuíram a ida ao médico. Observou-se que para 60% dos pacientes, houve uma melhora no quadro de sono, enquanto para 20% deles nada mudou. Metade dos pacientes passou a ter bons sentimentos em relação a si mesmo, enquanto 20% disseram não haver mudança nesse quadro, e 30% sempre se sentiram bem consigo mesmos. Em relação à categoria de Auto-Estima, observou-se que metade dos pacientes disse achar que as pessoas passaram a se importar mais com eles, sendo que 20% responderam que não acham que passaram a ser mais percebidas pelas outras pessoas. Observou-se que 50% dos pacientes responderam que sempre sentiram vontade de se cuidar e se arrumar, porém 30% disseram que houve mudança nestas questões e 20% não têm sentido vontade de cuidar de si. Metade dos pacientes passou a acreditar mais na sua capacidade de realizar suas atividades, enquanto apenas 20% relataram não ter havido mudança quanto ao sentimento de capacidade para fazer bem as coisas. No que tange à categoria de Projeto de Vida, ficou bem destacado que a maioria dos pacientes – 60% – sempre tiveram um sonho a ser realizado, 20% passaram a ter um e 20% não possuíam um projeto de vida. Dentre os projetos de vida relatados pelos pacientes estão: ter um carro, comprar uma casa melhor, estudar, casar, ter filhos, dar continuidade à carreira profissional e ficar bom. Discussão De acordo com as questões referentes à categoria de Relacionamentos Sociais, pode-se notar que houve uma mudança significativa para melhor nesses aspectos. Os dados mostram que os pacientes passaram a se sentir menos sozinhos. Tais achados podem estar relacionados ao aumento do número de amizades, a um maior apoio prestado pela família ou vizinhança, à realização de atividades fora de casa junto com outras pessoas, pela própria presença constante dos acompanhantes terapêuticos (ats). Logo, esses fatores podem também ter influenciado na diminuição de sentimentos de tristeza e depressão. As atividades realizadas pelo PIC, como o funcionamento do grupo com os pacientes, podem ter contribuído para a formação de novos amigos, pois é um dispositivo que proporciona a eles um espaço de construção de novas amizades, que alguns conseguem manter fora do ambiente institucional. Para muitos, depois da doença, os amigos se afastam, às vezes, até os próprios parentes. A doença também causa um grande peso na estrutura familiar, tornando a convivência doméstica ruim e conflituosa. Os ats atuam muito no sentido de intermediar as relações entre os pacientes e seus familiares que, em alguns casos, não compreendem as dificuldades psíquicas do doente, orientando e conscientizando estes sobre a importância de assumirem a responsabilidade de se cuidar. Quando se consegue o apoio dos familiares ou do cuidador, estes passam a melhor valorizar o sujeito. Em algumas situações, quando os familia109 res se dão conta da atenção prestada ao doente pelos ats, também acabam por mudar o trato com estes. O grupo de familiares do PIC proporciona a troca de experiências. Todos esses são fatores que podem ajudar na convivência familiar, o que é de extrema importância para o sentimento de acolhimento do psicótico. A intervenção na rede social do paciente também é realizada, principalmente quando o paciente não possui uma família. Muitas vezes, faz-se necessário fazer parceiros na comunidade do indivíduo que possam colaborar com os objetivos do programa. Na categoria relacionada às Atividades Sociais dos pacientes, destacou-se também um aumento no quadro de pessoas que voltaram ou passaram a realizar atividades fora de casa. Segundo as repostas obtidas na pesquisa, voltar aos estudos, freqüentar academia, dar aula de dança, freqüentar a igreja e vender produtos por encomenda foram as atividades mencionadas por eles. Esses dados são um bom sinal de mudança, na medida em que, quando estão estudando, estão ampliando seu conhecimento, suas oportunidades e sua rede de relações, assim como quando realizam alguma atividade remunerada, que proporciona uma melhora de suas condições econômicas e sociais. Muitos, quando ficam doentes, deixam de fazer suas atividades costumeiras, principalmente os estudos e o trabalho, tornando-se ociosos. Existem famílias que não incentivam e até não permitem que o doente volte ao trabalho ou estude, pois considera que essas atividades podem provocar a recaída deles. O próprio estigma da doença mental leva-os a acreditar que são incapazes de reali110 zar qualquer tipo de atividade, desprestigiando-os socialmente e diminuindo sua auto-estima. Esta questão pode ter ligação com o sentimento de capacidade para realização de certas atividades. Segundo os dados, 20% dos pacientes relataram não se sentirem capazes. Alguns se desestimulam facilmente e não se sentem seguros frente às dificuldades, deixando de acreditar em si mesmos e na sua capacidade de fazer suas atividades costumeiras. Por isso, desistem de continuar essas atividades, seja o trabalho, os estudos, algum curso, etc, e acabam também por diminuir sua rede de relações sociais, já que muitos passam a se isolar, ficando a maior parte do tempo em casa. Também é importante comentar que alguns pacientes se acomodam quando passam a receber o benefício pelo INSS e não acham mais necessidade de fazer alguma atividade, como as discutidas anteriormente. A mudança no quadro de atividades realizadas pelos pacientes pode ter sido influenciada pela intervenção dos ats junto ao paciente e a sua família. Os ats incentivam o paciente, ajudando-o a encontrar segurança e desmistificar seus anseios. E, quando necessário, faz-se uma intervenção familiar quando, em alguns casos, os parentes não são a favor que o indivíduo retorne a esses tipos de atividades. De acordo com a categoria referente ao Estado de Saúde, percebe-se um bom resultado nas freqüências de internações psiquiátricas. Nota-se que apenas 20% dos pacientes não tinham sido internados antes do programa, sendo que, dos que já se internaram, apenas 30% relataram te- rem sido internados várias vezes. Porém neste último, a maioria – 70% – não ficou internada, 20% ficaram poucas vezes e 10% uma única vez. Esses dados são muito importantes, uma vez que se trata de um dos principais objetivos do PIC. Este programa pode ter contribuído para essa redução do número de internações psiquiátricas, devido a um acompanhamento constante dos estagiários aos pacientes, que estavam atentos aos sinais e sintomas da doença, intervenção familiar através de conversas e orientações quanto à experiência que o sujeito passa na internação e continência nos momentos de crises. Os dados referentes ao controle e freqüência no uso de medicações mostraram que a metade dos pacientes sempre tomou corretamente as medicações, 40% passaram a tomar sem precisar de ajuda e 10% passaram a tomar, mas ainda necessitam do auxílio de outra pessoa. A correta medicação é bastante importante para a estabilidade psíquica do paciente, reduzindo o número de crises e a probabilidade de futuras internações. É tarefa também dos ats orientar os pacientes quanto à importância de tomar os remédios corretamente e também tornar os familiares parceiros nesta função quando se fizer necessário. Outro dado importante relacionado à saúde do doente apresentou que para 70% dos pacientes a medicação foi diminuída. Os pacientes se queixam que algumas medicações estimulam o sono e os deixam indispostos para fazer as atividades do dia-a-dia, e estimulam o apetite, engordando-os. Considerações finais A convivência com os não iguais é o que se tem buscado nesta luta em prol daquelas pessoas que sofrem de algum transtorno psíquico. Num momento social em que se prega e valoriza os direitos humanos, a cidadania e a democracia, o programa tem procurado oferecer um tratamento que permita a esta clientela viver em liberdade, respeito, dignidade e reconhecimento de seus pares, pois é essa condição desse sujeito no mundo, como alguém que pertence, se relaciona, pensa, decide, escolhe e participa, que se encontra mais afetada, refletindo na diminuição da sua qualidade de vida. O PIC, aos poucos, tem conseguido alcançar seus objetivos, promovendo mudanças significativas na vida do paciente, atuando e mediando as relações sociais destes. É imprescindível conhecer e fazer parte do cotidiano desses indivíduos para ser colocado no lugar de depositário de confiança e, conseqüentemente, estabelecer um vínculo capaz de permitir as intervenções nas diversas situações de cada um. A maior repercussão da doença mental se dá no campo dos relacionamentos sociais, razão pela qual o programa procura mediar as relações interpessoais dos pacientes, reconhecendo a importância desse convívio para a estabilidade psicossocial do indivíduo. De acordo com os resultados da pesquisa realizada, podemos constatar que um bom número de pacientes conseguiu formar novos vínculos e fortalecer outros, passaram a estar menos isolados e 111 a receber mais apoio e ajuda familiar, tornando a relação mais sustentável e tranqüila; ampliaram o número de amizades, passaram a realizar atividades externas, como retornar aos estudos, trabalho, saídas para passeios e outros, atividades que ocupam o tempo e dão sentido à vida. Merece destaque também a redução do número de internações psiquiátricas durante o ano, pois estas desestruturam e interferem na vida social e cotidiana do sujeito. Este modelo de tratamento tem uma repercussão positiva, pois não exclui e não interrompe a vida do sujeito, dá continuidade a ela no seu próprio meio social. O acompanhamento terapêutico dispensa uma atenção especial ao indivíduo e o faz sentir valorizado, pois há espaço para escuta de suas subjetividades, desejos, partilha de novos vínculos e experiências que o ajudam a compreender e dar sentido ao seu mundo de significações. Essa prática se torna importante por levar em consideração aquilo que é de significado para o indivíduo: sua família, suas atividades, seu cotidiano, seus desejos, projetos, etc., eles passam a perceber que a doença mental não invalida a capacidade das pessoas e que muitos podem ter uma vida ativa, trabalhando, estudando e se relacionando. A despeito das respostas positivas que o programa vem alcançando, sua realização tem representado um grande desafio para os estudantes, que, ao longo de seu caminho, têm enfrentado alguns obstáculos. Este trabalho exige comprometimento, disponibilidade de tempo e recursos financeiros. A maioria dos pacientes foi selecionada 112 a partir dos casos mais graves, pois são estes os que mais se encontram à margem da sociedade e necessitam de um cuidado especial. Alguns demandam maior atenção, requerendo tempo para um acompanhamento mais constante. Muitas residências visitadas são distantes, implicando num investimento financeiro significativo. Outro grande desafio a ser vencido é o que diz respeito à forma de pensar das pessoas na família e na comunidade acerca da doença mental que, na maioria dos casos, está baseada fortemente na exclusão e no preconceito. Isso se reflete numa resistência e falta de apoio ao modelo de tratamento proposto, pois a concepção de excluir para tratar está arraigada na mente das pessoas, além de ser, muitas vezes, uma condição cômoda para a família, a comunidade e a instituição. Pode-se concluir, então, que, apesar das dificuldades encontradas, o Programa de Intensificação de Cuidados é um dispositivo que, ao seu tempo, tem promovido a qualidade de vida dos pacientes. Para o programa, esta busca da qualidade de vida não se limita a eliminar os sintomas que o indivíduo produz para, assim, normalizá-lo e adequá-lo dentro da sociedade, mas antes de tudo, reconhecê-lo como um ser humano capaz de conviver no seio social com suas diferenças e ampliar suas possibilidades sociais que proporcionam uma melhora na sua qualidade de vida. Referências FLECK, M. P. DE A. O Instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL – 100): características e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2000. MINAYO, M. C. S.; HARTZ, Z. M. A.; BUSS, P. M. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2000. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Projeto desenvolvido no Brasil pelo Grupo de Estudos em Qualidade de Vida. Versão em português dos instrumentos de avaliação de qualidade de vida (WHOQOL). Porto alegre. Universidade Federal do rio de Janeiro, 2001. PITTA, A. M. F. Qualidade de Vida: uma utopia oportuna. Ciência & Saúde Coletiva, ABRASCO. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2000. 113 Programa de Intensificação de Cuidados: Uma Experiência de Intervenção Psicossocial Allann da Cunha Carneiro* Lygia Silva Pedreira de Freitas** Resumo: Este artigo objetiva descrever o Programa de Intensificação de Cuidados, vinculado ao Hospital Especializado Mário Leal. Esse programa coaduna-se com as novas diretrizes políticas de atenção à saúde mental e atende pacientes psicóticos, em sua maioria, jovens, em casos de primeira internação ou de internações recorrentes sobretudo por motivações sociais. A clientela é proveniente da internação e ambulatório do HEML, selecionada e indicada pelos profissionais destes setores, com base nos critérios supracitados. Parte-se da perspectiva teórica e prática de uma clínica psicossocial da psicose, que visa proporcionar aos pacientes inscritos uma ação intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade e das vinculações sociais, com vistas à melhoria da continência social e da qualidade de vida dos mesmos. Para tanto, são realizados encontros de grupo semanais, visitas domiciliares, reuniões com cuidadores, etc. Os resultados dessa experiência têm apontado para uma melhora significativa no *Picólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC **Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC 114 quadro clínico dos pacientes, com aumento de sua autonomia e redução das internações e das crises; busca por outros recursos terapêuticos que não a internação, fortalecimento dos vínculos sociais e ampliação das redes sociais de apoio, além de um significativo amadurecimento pessoal e profissional dos estagiários. Introdução O Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC) integra o programa de estágio supervisionado de Psicologia e Terapia Ocupacional, a partir de uma parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Fundação para o Desenvolvimento das Ciências com a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Uma equipe multidisciplinar, composta por estudantes de Psicologia (UFBA) e Terapia Ocupacional (FBDC), atende pacientes psicóticos que já utilizavam serviços tradicionais em saúde mental do SUS, como internações, emergências e serviços ambulatoriais psiquiátricos. Este programa insere-se na perspectiva de uma clínica psicossocial da psicose e tem por objetivo proporcionar aos pacientes inscritos uma ação intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade e das vinculações sociais, com vistas à melhoria da continência social e da qualidade de vida dos mesmos. Busca-se, sob esta perspectiva, interferir na dinâmica da “carreira manicomial” dos pacientes, diminuindo a recorrência das reinternações; fortalecer as redes sociais dos mesmos, ampliando os suportes extra-assistenciais de base familiar e comunitária; colaborar com os objetivos assistenciais da unidade por via da promoção de discussões e seminários teóricos, bem como ampliar os recursos humanos disponíveis por via do trabalho dos estagiários e supervisores; e, por fim, contribuir para a formação profissional dos estagiários no campo da clínica psicossocial, oferecendo referências teóricas e técnicas compatíveis com as novas diretrizes políticas de atenção à saúde mental. No campo da reforma psiquiátrica, onde se percebe a atuação de diversos saberes, encontrase a formulação de programas baseados no modelo de reabilitação psicossocial, em que são oferecidos aos indivíduos incapacitados e debilitados a “oportunidade de atingir o seu nível potencial de funcionamento independente na comunidade. (...) Inclui assistência no desenvolvimento das aptidões sociais, interesses e atividades de lazer que dão um senso de participação e de valor pessoal” (Organização Mundial de Saúde, 2001, p. 94). De acordo com a nova legislação brasileira de saúde mental, fundamentada na Lei 10.216, de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG), que entrou em vigor em seis de abril de 2001, o sistema de atendimento a pessoas com transtorno mental passa a ter como princípio norteador a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por recursos extra-hospitalares, tais como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), Lares Abrigados, Casas de Acolhimento e Hospitais Gerais. Nesse sentido, busca-se oferecer aos pacientes psiquiátricos um tratamento mais amplo e de melhor qualidade, em que a internação só ocorra quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Para tanto, é primordial um maior investimento na rede de apoio social, no intuito de que esta se implique no tratamento, já que toda pessoa portadora de transtorno mental deve “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (Ministério da Saúde, 2004, p. 17). Essa reorientação do modelo de assistência em saúde mental inaugura, dessa forma, um novo olhar sobre as abordagens dos transtornos mentais, marcado pela crítica ao reducionismo biologizante, em que a internação dos pacientes e a utilização indiscriminada dos psicofármacos se constituem na única estratégia terapêutica eficaz. Assim, o progresso das neurociências e da psicofarmacologia apontam para a importância de se demarcar um limite ético no questionamento das práticas que incidem sobre o sofrimento do paciente psiquiátrico (Assad et all, 2003). 115 Vínculo social e psicose A abordagem psicossocial, nesse contexto, mostra-se como peça chave no trato com a loucura, em virtude de uma das principais questões que se colocam diante do sujeito psicótico dizer respeito à formação de vínculos e conseqüente exclusão social. Esse sujeito, por ter uma acentuada dificuldade de estar no mundo com o outro, tende a formar vínculos sociais muito frágeis. Acrescido a isso, há a idéia de que “lugar de louco é no hospício”, amplamente difundida e, sobretudo, o próprio embaraço do outro em lidar com ele, já que o louco torna flagrante a loucura e a possibilidade de desorganização presente em cada um. Esses fatores favorecem a exclusão do psicótico através de sua internação em hospitais psiquiátricos. Esse afastamento do convívio social e as precárias condições de tratamento, por sua vez, cronificam o quadro patológico, tornando o retorno do paciente à sociedade ainda mais árduo. A vulnerabilidade relacional do psicótico está alicerçada na forma de estruturação psíquica desse sujeito. Bleger (1977) considera que o homem, no início de seu desenvolvimento enquanto sujeito, passa por um período de indiferenciação primitiva, em que não consegue estabelecer um limite entre si e o mundo externo. Ainda que não haja essa distinção, cabe salientar que se trata não de um estado de indiferenciação, mas de uma organização particular que inclui, sempre, o sujeito e o meio que o circunda. Quando a personalidade adulta organiza-se a partir da persistência de núcleos dessa etapa inicial (núcleos aglutinados), 116 tem-se o surgimento de uma personalidade ambígua, com traços, simultaneamente, de simbiose e autismo. Para uma melhor compreensão desses dois fenômenos, faz-se necessário um breve comentário acerca dos conceitos de depositante, depositado e depositário, oriundos dos estudos de Pichon Rivière (apud Bleger, 1977). O tripé por ele formulado é composto por um sujeito (depositante) que projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma vez que a introjeção do mesmo pode causar desestabilização psíquica (BLEGER, 1977). De acordo com Bleger (1977) por considerar o outro ou como um enigma ou como uma extensão de si mesmo, o psicótico tem visíveis dificuldades vinculares, orientando-se ora por uma postura autista ora por uma simbiótica. Ele postula que a primeira caracteriza-se por um isolamento do ambiente externo e predomínio relativo ou absoluto da vida interior, que reflete uma conduta defensiva diante de situações persecutórias. O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de caráter narcísico, pelo fato de predominar uma relação com objetos internos. A conduta simbiótica, em contrapartida, é marcada por um vínculo de dependência intensa com um objeto externo, ocorrendo uma projeção de parte do ego do indivíduo nesse objeto. Há, na realidade, uma identificação projetiva entre o psicótico e o objeto, que tem por finalidade manter um certo nível de organização e satisfazer as necessidades do âmbito mais primitivo da personalidade do sujeito (Bleger, 1977). Tanto a simbiose quanto o autismo são exemplos de vínculos narcísicos e, portanto, constituem relações com objetos internos, que objetivam assegurar a satisfação do princípio do prazer e proteger tais objetos da intromissão da realidade externa. Ambas coexistem no modo de funcionamento do sujeito psicótico, podendo haver três formas de ascendência de uma sobre a outra: ou há predomínio absoluto ou relativo, havendo ainda a possibilidade de ambas se alternarem no modo de funcionamento psíquico do sujeito (Bleger, 1977, p. 20). Entendendo a psicose como um fenômeno psíquico de intensas ressonâncias sociais, em que a questão da vinculação dos sujeitos se coloca de forma crítica, considera-se a necessidade de intensificação de cuidados direcionados a reforçar os laços sociais destes indivíduos em seus contextos relacionais. A reconstrução da cidadania dessas pessoas visa assegurar-lhes uma participação ativa, digna e verdadeira, consistindo na tentativa de criação de um espaço em que possam expressar a dimensão política do seu discurso (Garfunkel, sd, p. 21). Para tanto, o trabalho do PIC é realizado com base nos princípios do acompanhamento terapêutico, que consiste num novo modo de manejo clínico pautado nas reflexões de Winnicott acerca das intervenções no campo da Psicanálise. Nessa abordagem, a atuação do terapeuta se dá não só através da palavra, mas também pela utilização de objetos da cultura. O manejo clínico objetiva possibilitar ao sujeito a simbolização de alguma questão existencial e/ou o desenvolvimento de al- guma função psíquica (Barretto, 2000, p. 17) por meio de uma intervenção que não se restrinja à prática puramente clínica, alcançando um caráter também social. O acompanhamento terapêutico constitui-se, portanto, numa peça fundamental à desinstitucionalização dos pacientes, ao se utilizar dos espaços públicos como alargamento do campo possível de tratamento e, desse modo, dar visibilidade à doença mental, além de possibilitar a reorganização subjetiva e social dos pacientes através de dispositivos e estratégias terapêuticas descentradas de seu antigo aspecto assistencial (Pelliccioli, Guareschi & Bernardes, s.d.). Barretto (2000) descreve onze funções inerentes ao trabalho do acompanhante terapêutico: holding, continência, apresentação de objeto, handling, desilusão, interdição, interlocução dos desejos e angústias, discriminação de campos semânticos, função especular, função de aliviar as ansiedades persecutórias e função de servir de modelo de identificação. A função de holding refere-se ao apoio e amparo, tanto físicos quanto psíquicos, oferecidos pelo acompanhante terapêutico (AT) como forma de propiciar ao acompanhado a experiência de constância e continuidade através de uma atitude empática. A continência, por sua vez, embora guarde semelhanças com a função anteriormente descrita, corresponde à capacidade de o AT ajudar a manter as experiências do sujeito dentro de limites suportáveis, por lhe apresentar novas possibilidades de simbolização. Do contrário, correse o risco de transbordamento de afetos, emoções 117 e impulsos, como se, por exemplo, o sujeito fosse possuído por sua ansiedade e não apenas a possuísse (Barretto, 2000). Outra função, a de apresentação de objeto, diz respeito ao oferecimento, por parte do AT, de possibilidades de que o acompanhado entre em contato com um dado objeto, permita-se utilizá-lo e possa, por fim, separar-se dele sem que isso se constitua numa experiência disruptiva. As experiências do sujeito passam, portanto, a ser vivenciadas de modo completo, isto é, passam a ter início, meio e fim. Já a função de manipulação corporal (handling) trata da leitura do corpo do acompanhado a partir do próprio corpo, possibilitando que ele vivencie suas necessidades corporais de modo a integrar psique e soma (Barretto, 2000). A desilusão ou capacidade de discriminação relaciona-se à possibilidade de utilização de uma situação potencialmente frustrante e desagregadora, como forma de enriquecer o campo de experiências do acompanhado. Assim ele torna-se capaz de suportar suas angústias e frustrações, ao tempo em que pode alcançar uma melhor noção de realidade subjetiva e realidade compartilhada. Como auxiliar do processo anterior, existe a interdição, que ocorre quando o AT exerce a função paterna, barrando uma situação potencialmente satisfatória. Para que essa ação tenha o efeito desejado, é necessário que o sujeito já tenha vivenciado uma experiência de satisfação anterior (Barretto, 2000). A função de interlocução de desejos e angústias trata do processo por meio do qual, através de conversas, o acompanhado pode elaborar 118 seus conteúdos e questões subjetivas. Por meio da discriminação de campos semânticos, o AT pode auxiliar o sujeito a ampliar sua consciência a respeito de si e do mundo, ao lhe apresentar novas categorias de significação. A função especular efetiva-se no momento em que o acompanhado identifica no AT, ou em algum objeto da cultura, algum aspecto de si mesmo. Já o apaziguamento das ansiedades persecutórias consiste no aumento, por parte do acompanhado, da percepção de si e do mundo e conseqüente redução dos fenômenos alucinatórios. Por fim, a função do AT como modelo de identificação opera na ampliação dos repertórios de vinculação e dos mecanismos de defesa fornecendo ao acompanhado diferentes modos de atuar e reagir diante dos percalços que permeiam seu cotidiano (Barretto, 2000). Metodologia O PIC conta com a participação, preferencialmente, de pacientes psicóticos, em sua maioria, jovens, em casos de primeira internação ou com histórico de reinternações freqüentes, sobretudo por motivações sociais. A clientela é de baixa renda e proveniente da internação e ambulatório do HEML, selecionada e indicada pelos profissionais destes setores, com base nos critérios acima definidos. O Programa de Intensificação de Cuidados efetiva-se por meio de algumas atividades tais como: visitas domiciliares, encontros grupais, reuniões com cuidadores, acompanhamento a consultas, atividades externas, assessoria em questões de cidadania e atendimentos individuais. As visitas domiciliares consistem em contatos sistemáticos com a dinâmica familiar e o entorno social mais próximo dos pacientes. Cada um deles é visitado, regularmente, por uma dupla de estagiários. Essa aproximação possibilita intervenções mais fundamentadas nas interações desses pacientes junto a seus familiares, amigos e cuidadores. Assim, torna-se possível interferir nos padrões de relacionamento objetais que podem estar trazendo dificuldades à sociabilidade. Além disso, pode-se também constatar os recursos sociais e institucionais aos quais os cuidadores recorrem em momentos de crise e, dessa forma, intervir de modo mais eficaz no manejo destas situações. Outra atividade desenvolvida no programa diz respeito aos encontros grupais, que constituem espaços de troca de experiências semanais cujo objetivo é ampliar o espaço de convivência entre os participantes do programa, além de estimular e fortalecer sua sociabilidade. Para tanto, são realizadas diversas atividades, que incluem vivências corporais através de dança e dramatizações, trazendo à tona aspectos significativos do cotidiano dos participantes; e discussões sobre temas variados, como autonomia, projetos de vida, relações familiares, uso de medicações, dentre outros. Ainda são efetuadas reuniões mensais com cuidadores, em que a troca de experiências abre espaço para o compartilhamento de dúvidas, preocupações, crenças e sugestões acerca do manejo da psicose. É muito freqüente familiares relatarem vivências que são comuns a outros participantes, criando, assim, um ambiente de acolhimento e cumplicidade que favorece sobremaneira o convívio deles com os que estão sob seus cuidados. Ao mesmo tempo, viabiliza-se uma relativa desmistificação do transtorno mental e uma mudança na forma de lidar com o mesmo, já que os cuidadores podem vislumbrar novas possibilidades de interação e deixar de lado vícios adquiridos ao longo dos anos, muitas vezes nocivos ao desenvolvimento da sociabilidade e autonomia do paciente. Nas atividades externas, são realizados, periodicamente, passeios terapêuticos em diversos locais da cidade, iniciativas legitimadoras do convívio social e do exercício dos direitos e deveres, que viabilizam o aumento da autonomia e o sentimento de pertença grupal dos pacientes. Estas vivências objetivam ainda dar visibilidade à psicose, possibilitando uma diminuição do estigma social que a envolve ao levá-la a espaços públicos como shoppings, praias, museus, cinema, zoológico etc. É realizado, igualmente, acompanhamento a consultas psiquiátricas, que se apresenta como um importante espaço de interlocução entre saberes que atuam na saúde mental, possibilitando uma maior compreensão do fenômeno da psicose, por promover uma interação entre seus aspectos fisioquímico e psicossocial. Devido às dificuldades enfrentadas pelos pacientes no manejo de questões relativas à cidadania, também é prestado um auxílio nessa área. Os participantes do programa são acompanha119 dos pelos estagiários em tarefas como tirar documentos, dar entrada a benefício e aposentadoria, além de serem realizadas denúncias ao Ministério Público em casos de abandono. Por fim, ocorrem, excepcionalmente, atendimentos individuais nos casos em que são percebidas demandas por este tipo de serviço, seja por meio de atendimentos psicoterápicos seja pela participação em oficinas terapêuticas ocupacionais. Para dar suporte teórico às atividades desenvolvidas, acontece, semanalmente, durante três horas, supervisão coletiva com um Professor do Departamento de Psicologia (UFBA) e uma Professora de Terapia Ocupacional (FBDC). Nesta atividade, são apresentados, pelos estagiários, seminários teóricos acerca do tema da psicose, acompanhamento terapêutico, encontros grupais, etc, sendo realizadas discussões sobre o texto exposto. Além disso, os casos atendidos pelo programa são apresentados e debatidos. Resultados e Discussão No decorrer destes mais de dois anos de Programa de Intensificação de Cuidados, pode-se observar uma relevante melhora no quadro clínico da maioria dos pacientes acompanhados, merecendo destaque a redução das reinternações e o aumento de sua autonomia, assim como o fortalecimento de laços sociais. Mesmo nos casos em que houve crises, os familiares, com a ajuda dos estagiários, puderam lidar com a situação de uma forma mais compreensiva e acolhedora, 120 buscando outros recursos terapêuticos que não a internação. Passaram a procurar o auxílio de autoridades religiosas de referência, como pastores e padres; vizinhos e parentes; dos próprios acompanhantes terapêuticos; e da emergência psiquiátrica. Com isso, a recuperação dos pacientes tem se tornado mais rápida, e diminui não apenas o tempo em que ficam desestabilizados, como a intensidade das crises. Pode-se perceber também um gradual e relevante incremento na autonomia e inserção social de muitos pacientes. Alguns, por exemplo, que não saíam de casa ou só saíam acompanhados, passaram a freqüentar lugares públicos com maior regularidade e grau de ansiedade reduzido. Como exemplo de ampliação da autonomia, podemos citar um caso em que o paciente foi sozinho à formatura dos alunos do curso de psicologia que haviam lhe acompanhado durante a atividade de estágio. Do mesmo modo, outra paciente, cuja relação com a família e o ex-marido era conflituosa em virtude da falta de compreensão, por parte deles, dos problemas associados ao seu transtorno; deu início a um processo de reconciliação, e hoje os visita, com freqüência, no interior da Bahia, onde residem. Também tem se tornado possível notar as repercussões positivas da atuação dos estagiários junto aos pacientes em questões relativas à cidadania. Um determinado paciente, por exemplo, recebia uma aposentadoria da Marinha, mas vivia em situação precária, em razão de seu irmão, responsável judicialmente pelo recebimento da quantia em questão, não arcar com as despesas relativas às suas necessidades básicas. Os estagiários, então, entraram com uma ação no Ministério Público, denunciando o abandono sofrido pelo paciente e requerendo a substituição de seu irmão por outro tutor legal. Embora não tenha havido essa modificação de tutela, o irmão do paciente foi obrigado a repassar-lhe os recursos necessários a sua sobrevivência digna. Ainda é digna de nota a experiência dos grupos semanais, realizados no Hospital Especializado Mário Leal, que evidenciou a importância desses encontros na criação e fortalecimento de laços sociais entre os pacientes, na promoção de discussões sobre temas, em geral, relacionados ao transtorno mental e suas repercussões na vida dos pacientes e familiares; e, por fim, na produção de continência, que constitui uma experiência psíquica de contorno, limite, possibilitada pela alteridade, ajudando o sujeito a se sentir mais organizado. Ademais, vale salientar que a atuação no Programa de Intensificação de Cuidados permite aos estudantes um significativo amadurecimento pessoal e profissional, uma vez que é possível entrar em contato com diferentes realidades sociais e, sobretudo, subjetivas. Dessa forma, pode-se obter um entendimento mais abrangente do ser humano e de suas idiossincrasias, o que enriquece muito a nossa formação, conferindo-lhe consistência e uma gama de conhecimentos mais coesa. Além disso, é possível adquirir uma visão consonante com as novas diretrizes políticas de atuação em saúde mental e devidamente voltada para a influência dos aspectos sociais na vida dos sujeitos. Conclusão Durante o desenvolvimento do Programa de Intensificação de Cuidados, a proximidade com a psicose, a precariedade do SUS na Bahia, o persistente predomínio da lógica manicomial e realidades sociais muito distintas possibilitou-nos um aprendizado único, não só em termos profissionais como pessoais. O contato com pacientes, em sua maioria psicóticos, gera um conhecimento desse fenômeno psicossocial que ultrapassa em muito o obtido nos bancos da universidade. Afinal, por mais fundamentação teórica que se adquira sobre esse saber, dificilmente ele será contemplado de modo tão vasto quanto o é com a convivência cotidiana junto à loucura. Em relação às novas diretrizes políticas de assistência aos portadores de transtorno mental, vale dizer que, na Bahia, por mais boa vontade que, eventualmente, se tenha, o modelo de atenção em saúde mental ainda deixa muito a desejar, por não acompanhar, devidamente, as novas regras. Os serviços substitutivos, na capital, especificamente, estão longe de abarcar a população que necessita de atendimentos em saúde mental. Não raro, os pacientes ficam sem os medicamentos, em virtude de estarem em falta na farmácia do hospital; sem falar nas consultas psiquiátricas, cujo intervalo entre uma e outra é muito espaçado (em geral de quatro a cinco meses), todos esses fatores contribuindo para dificultar a interação entre o tratamento médico e o psicossocial e, em 121 conseqüência, o sucesso terapêutico. Assim, fica clara a persistência da lógica manicomial, pelo fato de, dadas as dificuldades de se conseguir medicação e atendimento psiquiátrico, as crises psicóticas terem maior probabilidade de acontecer, o que leva a família e os próprios hospitais especializados a recorrerem em, primeira instância, ao internamento como forma de conter e tratar os pacientes em surto. Ademais, cabe ressaltar a dificuldade de enfrentamento de situações em que a pobreza é alarmante, impondo uma necessária flexibilização e manejo por parte dos estagiários. Cabe citar, por exemplo, situações nas quais alguns pacientes nos pediam dinheiro emprestado, porque não tinham o que comer. Em outras, as circunstâncias eram tão graves que exigiam providências urgentes, como quando uma paciente estava com a casa com risco de desabamento, em razão das fortes chuvas que assolavam a cidade. Esses casos denotam a importância de se levarem em conta os aspectos sociais que constituem, também, a subjetividade dos indivíduos quando o que se pretende é o alcance de um tratamento diferenciado e de qualidade. O Programa de Intensificação de Cuidados funda, na Bahia, uma possibilidade de construção de novas formas de intervenção, pensamento e reflexão acerca da assistência em saúde mental, evidenciando a relevância de uma abordagem psicossocial para a consecução deste objetivo. Referências 122 ASSAD et all. A Clínica da Psicose: Uma Articulação Necessária entre a Extensão Universitária, a Psicanálise e a Reforma Psiquiátrica. Disponível em: www.prac.ufpb.br/ anais/anais/saude/psicose.pdf. Acesso em: 10 de setembro de 2005. BARRETTO, K. Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco Editora, 1998. 210p. BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Tradução de Maria Luíza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977, 402 p. 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Este artigo atémse às duas primeiras, que embasam as atividades do Programa de Intensificação de Cuidados a Psicóticos (PIC), vinculado ao Hospital Especializado Mário Leal, na cidade de Salvador/BA e que objetiva a clínica ampliada como proposta de cuidados para a saúde mental, entendendo que os portadores de transtorno mental caracterizam-se, particularmente, pela fragilidade nas formas de vinculação. Deste modo, delineiam-se os estudos de Lacan (1985) no que se refere à postura de secretariar o alienado e as teorizações propostas por Barretto (1998) acerca do surgimento do acompanhante terapêutico (AT) e da importância da função de holding neste processo. A família surge *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiário do PIC nesse âmbito de práticas extra-institucionais como co-autora da continuidade da assistência. As mútuas relações entre a assistência domiciliar e as redes sociais são ressaltadas, porque se acredita ser imprescindível o apoio destas últimas como possibilitadoras de novas alternativas para os sujeitos. E, evidenciando-se um pouco da estranheza que a loucura ratifica, buscou-se ilustrar o texto com expressivas citações de Clarice Lispector. Introdução “... para os gregos não se esgotava aí seu sentido; na sua crença de que seu destino era comandado pelos deuses, a loucura tinha um sentido de místico, de revelação, sem nenhuma conotação pejorativa. Os gregos não descartaram o sagrado, presente em todas as manifestações humanas” (FOUCAULT, 1994). A saúde mental, assim como tantos outros fenômenos sociais, pode ser apresentada como 125 um fenômeno composto, em seus domínios, por representações históricas e socialmente construídas. O excerto supracitado condiz a uma passagem da obra de Foucault – Doença Mental e Psicologia. Nesta, o autor faz ressaltar como as formas de exclusão e estigmatização desse conceito se delineiam até a constituição do cerceamento social a que, por longos anos, esteve e ainda encontra-se refreada a loucura. O texto de Foucault (1994) aponta que é com o advento da era clássica que a loucura vai esvairse das significações míticas que a ela estavam associadas e passa a ser apreendida enquanto desvio. Não existia uma preocupação médica com o louco e muito menos com o seu isolamento. A exclusão, àquele momento, incidia sobre os leprosos, que eram ao mesmo tempo temidos e sacralizados. A sua doença era símbolo da cólera e da bondade de Deus, uma vez que simbolizava para o leproso o caminho à purificação e a salvação. Uma análise da forma da produção de saberes e do exercício do poder se evidencia necessária na compreensão dos fluxos conceituais que incidem sobre esses sujeitos e que são fundantes do pensamento moderno. A história da loucura nos séculos XVIII e XIX é quase sinônimo da história do seu enlace pelos conceitos de alienação e, por conseguinte, de doença mental. Esse desdobramento de conceitos encerra seu significado vinculado à criação de um novo modelo de homem ou de um novo sujeito na modernidade (AMARANTE, 2001). A emergência do valor aferido à razão à época do renascimento consentiu com surgimento 126 de um ‘sujeito da Razão’. A loucura, deste modo, se torna seu contraponto. O seu representante major – o louco – passa, desde então, a ser concebido como sujeito da desrazão. Por conseguinte, surge a criação de espaços para confinamento daqueles que conformam a falha nas concepções quiméricas de ser humano. Nesse modelo de terapêutica dispensado ao cuidado da loucura, sobejam sentidos, ditos científicos, de ordem marcadamente nosológica, que enquadram e representam a figura do louco para a humanidade. De tal modo, assenta-se a denominação de alienado, enquanto indiferente ao universo de concepções compartilhadas pelos demais ‘indivíduos sociais’. “A alienação é entendida como um distúrbio das paixões humanas, que incapacita o sujeito de partilhar do pacto social” (AMARANTE, 2001). Os sentidos conferidos ao alienado expressam um estar fora de si, fora da realidade, seria aquele indivíduo que tem alterada a sua possibilidade de juízo. Como efeito da aplicação deste conceito, delimita-se um modo particular de relação social com o sujeito representante da loucura. Destarte, sendo o alienado incapaz do juízo, incapaz da verdade, determina-se, por extensão, simbolizar perigo, para si e para os demais. Neste ponto, funda-se uma lógica que circunda as justificativas à implementação dos espaços de isolamento institucionais – o manicômio ou hospital psiquiátrico encontra deste modo, sua legitimidade. A proposta deste estudo é conferir sentidos à desinstitucionalização das práticas de cuidado dispensadas à saúde mental entendendo que uma ressignificação da loucura mostra-se conexa nesta caminhada. Para tanto, será desenvolvida a proposta da assistência domiciliar como estratégia de cuidado aos sujeitos que sofrem de desordens psíquicas. (pp. 235). Por conseguinte, ao desenvolver essa noção de secretariar, ele ressalta, com metáforas, formas de compreensão outras que escapariam a uma apreciação de investigação superficial. Assim, ele expõe a relevância de oferecer ao delírio do psicótico uma escuta que permita significá-lo A Clínica Ampliada como Terapêutica na sua linguagem. “Por que então, condenar de à Saúde Mental antemão à caducidade o que se externa de um sujeito que se presume estar na ordem do insenA Psicose pode ser pensada como um fenôme- sato, mas cujo testemunho é mais singular, e mesno psíquico de intensas ressonâncias sociais que mo inteiramente original?” (pp. 237). fragilizam as relações interpessoais dos sujeitos Essa ‘condenação à caducidade’ de que nos (NASCIMENTO, 2005). Desta maneira, atenta-se fala Lacan poderia ser elucidada na magnitude à importância de novos modelos que proporcio- de estranheza que o fenômeno psicótico parece nem à saúde mental um cuidado e atenção con- revelar. Esse real que fascina a uns tantos e expõe tinuados. a outros encontra um caminho nas alíneas disLacan (1985) aponta as nuances imperativas a corridas por Clarice Lispector. No seu primoroso serem alcançadas no momento de proporcionar texto ‘a paixão segundo GH’ ela torna evidente a cuidado a um sujeito que apresenta uma forma sensação de estranhamento provocada diante da de funcionamento diversa daquela compartilha- percepção do inusitado: “... mas só enquanto eu da pelos neuróticos – que representam a grande não assustar ninguém por ter saído dos regulaparcela dos cuidadores em saúde mental. “Mas, mentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que contrariamente ao sujeito normal para quem a re- guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu alidade lhe chega de bandeja, ele tem uma cer- der o grito de alarme de estar viva, em mudez e teza, que é a de que aquilo de que se trata – da dureza me arrastarão, pois arrastam os que saem alucinação à interpretação – lhe concerne. Não é para fora do mundo possível, o ser excepcional é de realidade que se trata com ele, mas de certeza. arrastado, o ser gritante” (pp. 62-63). O ‘ser griMesmo quando ele se exprime no sentido de dizer tante’ caracteriza as desconexões representativas que o que sente não é da ordem da realidade, isso da psicose. Secretariar esse indivíduo torna-se não atinge a sua certeza, que lhe concerne. Essa uma possível maneira de experienciar estratégias certeza é radical” (LACAN, 1985). Lacan ainda de cuidado que acresçam novas significâncias à define o cuidador do sujeito psicótico como ‘se- loucura. cretário do alienado’. “Vamos aparentemente nos Um novo modelo de pensar a saúde mencontentar em passar por secretários do alienado” tal surge a partir das contribuições advindas do 127 movimento psiquiátrico inglês, da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia institucional francesa. Em torno dessa nova proposta, surgem algumas denominações conferidas àqueles que implementavam terapêuticas com os loucos. Amigo qualificado, atendente terapêutico, auxiliar psiquiátrico. Com os desdobramentos dessa atividade de cuidar, surge o Acompanhante terapêutico, à medida que o trabalho extrapolava as paredes das instituições psiquiátricas (BARRETTO, 1998). Dentre a totalidade de intervenções terapêuticas destinadas à saúde mental, o Acompanhante Terapêutico (AT) despende um cuidado de amplo alcance de maneira que a subjetividade do sujeito possa ser acompanhada em suas constantes metamorfoses. A figura do AT poderia ser pensada como a de alguém que busca estar ao lado do seu acompanhante sem lhe imprimir formas de conduta, mas constantemente atento aos possíveis acontecimentos expressos. Deste modo, o AT surge como o fiel escudeiro que observa atentamente os passos do seu senhor. Barretto (1998) ressalta o valor da experiência do acompanhamento porque esta se processa não apenas pela existência de um corpo físico. Sua primazia reside na crença de que esse corpo passa a ser “um corpo habitado, um corpo atento, um corpo que carrega a história do próprio vínculo. Em outras palavras, a experiência é integradora porque o sujeito está sendo acompanhado por um corpo simbólico (simbolizado e simbolizante), e não somente matéria física” (BARRETTO, 1998). A função de Holding desenvolvida por Winnicott e retomada por Barretto encontra um parale128 lo no conceito de secretariar esboçado por Lacan no seu seminário do livro III – as psicoses. “A essa função... Winnicott denominou holding” (BARRETTO, 1998). Este autor define a função de holding (a qual ele também chama de sustentação) como os múltiplos elementos que, encontrados no ambiente, fornecerão a uma “pessoa a experiência de uma continuidade, de uma constância tanto física quanto psíquica” (BARRETTO, 1998). Essa experiência de holding seria delineada por quaisquer objetos concretos que fornecessem aos sujeitos possibilidades terapêuticas ou, de igual forma, pelo desejo de um indivíduo em acolher à demanda de um outro no percurso de sua trajetória. Nos seus desenvolvimentos concernentes ao conceito de holding, Barretto fala da importância da mãe cuidadora que dispensa atenção às necessidades do bebê e lhe provê do que necessita. Winnicott a chama de mãe suficientemente boa, aquela que fornece cuidados e limites (BARRETTO, 1998). Nesse contexto de novas propostas que atentem à saúde mental, é que se implementou o Programa de Intensificação de Cuidados para psicóticos (PIC) no Hospital Especializado Mário Leal, fundando um novo molde de estágio interdisciplinar que compreende a primazia das relações vinculares no manejo e cuidado à psicose. A reforma psiquiátrica e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial defendem a negação do manicômio como forma de tratamento para a saúde mental. Deste modo, propõem novas alternativas terapêuticas ao indivíduo portador de transtornos psíquicos. Embasado nessa premissa, o PIC tem como objeto norteador de sua prática o cuidado intensivo ao indivíduo em crise, de forma que a internação seja evitada. Assim, como apontou Nascimento (2005) em seu estudo sobre a qualidade de vida dos pacientes participantes desse programa, o mesmo reduziu em aproximadamente 70% as recorrências a internações psiquiátricas durante o seu decurso. As atividades do programa compõem a implementação de duplas de estagiários para o acompanhamento de cada paciente. O trabalho acontece em dois momentos: encontros grupais no supracitado hospital ou em recintos públicos da cidade; e as visitas domiciliares. Estas permitem aos acompanhantes uma compreensão do lócus que referenda cada sujeito e objetivam a reinserção dos mesmos em suas originárias redes sociais. Barretto (1998) afirma que a função de holding poderia ser pensada como um ‘suporte’ ao acompanhado. Assim, os encontros em locais diversos daqueles já conhecidos pelos participantes possibilitariam a descoberta de novos espaços. Destacando-se a fragilidade das formas de vinculação empreendidas pelos psicóticos em suas redes sociais e familiares, faz-se mister a concepção de modelos que imponham um olhar diferenciado a este sujeito, abarcando as inumeráveis idiossincrasias a que este personagem encontra-se arraigado. A assistência domiciliar, em concordância com o acompanhamento terapêutico, revela-se uma promissora estratégia no percurso desta prática. A Assistência Domiciliar A assistência domiciliar é definida como um conjunto de procedimentos hospitalares possíveis de serem realizados na casa do paciente. Abrangem ações de saúde desenvolvidas por equipe interprofissional, baseadas em diagnóstico da realidade em que o paciente está inserido, visando à promoção, à manutenção e à reabilitação da saúde (FABRICIO & cols., 2004). O histórico da prática de assistência domiciliar localiza seus primórdios nos EUA, particularmente no hospital de Boston com ‘as enfermeiras visitadoras’. Ainda ressaltam-se os possíveis desenvolvimentos dessa atividade na Europa, em virtude do incremento da população idosa (FABRICIO & cols., 2004). No Brasil, acredita-se que esta atividade tenha surgido com a implementação do Serviço de Enfermeiras Visitadoras no Rio de Janeiro, na primeira metade do século passado, e com a criação do serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU). A promoção dessa nova prática surge prioritariamente para dispensar cuidados a pacientes com doenças crônicas que pudessem ser acompanhados no domicílio, pacientes convalescentes que não necessitassem de cuidados diários de médicos e enfermeiros, e ou portadores de enfermidades que exigiam repouso. Observa-se que a inclusão da doença mental nessa proposta de cuidado parece também ter surgido em meados do século passado com a criação dos atendentes psiquiátricos na cidade de Porto Alegre e a figura do auxiliar psiquiátrico na clínica Vila Pinheiros no 129 Rio de Janeiro (BARRETTO, 1998). A assistência domiciliar pode ser compreendida enquanto três esferas de prestação de cuidados: visita domiciliar, atendimento domiciliar e internação domiciliar. Bellido (1998 citado por Rehem e Trad, 2004) refere que esta diversa nomenclatura deriva das dificuldades históricas de expressar claramente as características dessa modalidade assistencial, diferenciando-a das outras formas de assistência. Dentre as denominações constituintes dessa prática, enfoca-se, particularmente, a visita e o atendimento domiciliar, pois constituem os tópicos que embasam a atividade de cuidados intensivos à saúde mental ora em foco. A visita domiciliar pode ser entendida como atendimento realizado por profissionais de saúde ou por uma equipe, que se desloca da instituição e vai à busca do paciente. A atividade almeja uma avaliação das necessidades do paciente, de seus familiares e do ambiente adscrito em que vivem. Assim, visa estabelecer um plano assistencial voltado à recuperação e/ou reabilitação. As visitas são realizadas levando-se em consideração a necessidade do cliente e a disponibilidade do serviço de saúde. Ela abarca atividades de orientação às pessoas responsáveis pela continuidade do cuidado no domicílio – em grande parte a família. O Atendimento domiciliar abrange atividades assistenciais exercidas por profissionais e/ou equipe de saúde na residência do cliente. Este objetiva a execução de procedimentos mais complexos, que demandam formação técnica para tal. De igual forma, são realizadas orientações aos res130 ponsáveis pelo cuidado no domicílio, e a periodicidade do atendimento acontece de acordo com a complexidade do cuidado requerido. A internação domiciliar também constituiria um tipo de assistência especializada, exercida por profissionais da equipe de saúde na residência do cliente, e diferencia-se das demais pela disponibilidade de maiores recursos técnicos e humanos. Como ela objetiva a criação de um ‘mini-hospital’ na residência do sujeito, ratifica-se a necessidade da oferta de medicamentos e atenção de longa permanência, o que caracterizaria um ambiente hospitalar. Como já referido outrora, o programa de cuidados intensivos para pacientes psicóticos (PIC) engloba as primeiras duas dimensões da assistência. No ínterim das visitas domiciliares, os estagiários freqüentam as residências dos pacientes e buscam estabelecer hipóteses das formas de vincular até então assumidas pelos sujeitos e demais membros integrantes de sua rede social. Por conseguinte, empreende-se uma atividade de ressignificações das formas de pensar a saúde mental naquele âmbito. Essa forma de cuidar da saúde implica no encontro com a família e demais constituintes da rede social na qual o sujeito está imerso. Esta, a família, pode representar um entrave ao desenvolvimento das práticas ou emergir como co-autora no processo de cuidado que lhe for dispensado. De tal forma, evidencia-se a primazia em situar os intercursos a que estão expostos, família e cliente, nesta nova forma de trato. O desencadear da crise psicótica expõe senti- mentos que, em muitos momentos, são avassaladores para o familiar do doente mental. Melman (2001) afirma que “o surto psicótico de um filho, de um irmão ou de um companheiro rompe e desorganiza a vida de muitas famílias. O evento representa, de certa forma, o colapso dos esforços, o atestado da incapacidade de cuidar adequadamente do outro, o fracasso de um projeto de vida, o desperdício de muitos anos de investimento e dedicação”. Portanto, faz-se imprescindível atentar ao sofrimento da família em presença das vivências traumáticas desses sujeitos, ainda que a mesma pareça revelá-lo de forma hostil. É pertinente ressalvar que formas silenciosas no trato com o sujeito psíquico afetado por distúrbios mentais, de igual modo, poderiam ser reveladoras das dificuldades por que passa a família. “P”, paciente acompanhada no programa, (PIC) parecia encontrar diversas dificuldades em falar sobre a sua doença. No trabalho de assistência que lhe foi prestado, observou-se que o seu genitor referia, continuamente, que sua filha não apresentava quaisquer comprometimentos psíquicos (“Minha filha não ouve vozes, ela está curada”). Assim, foi possível aventar como se processava a circulação do discurso entre esses sujeitos. Atendendo a um desejo paterno, “P” parecia não expor as suas construções fantásticas. Ela afirmou para as estagiárias que a acompanhavam que elas seriam as moças das vozes e lhes mostrou, em um outro momento, seu guarda-roupa repleto de acessórios para bebê – evidenciando uma possível fantasia de gravidez. Desta forma, “P” parece encontrar um arranjo psíquico para lidar com suas dificulda- des e para não falar dessas possíveis construções delirantes. Neste caso, percebe-se que, embora o genitor da paciente pareça contribuir para que ocorra um bloqueio no seu discurso, “P” mostra que encontrou uma forma de escoamento para o mesmo, evitando o desencadeamento de situações que, porventura, suscitassem sofrimento ao seu núcleo familiar. Uma outra circunstância ocorrida no estágio parece ser reveladora da função de holding exercida pela família – por um membro desta – na estabilização dos sintomas. “R” é um paciente masculino, jovem, que residia com sua mãe e sua irmã, numa localidade próxima desta cidade. As visitas domiciliares eram realizadas quinzenalmente em virtude da distância. Contudo, quando preciso, os estagiários o visitavam semanalmente ou ainda duas vezes por semana. “R” possuía um relacionamento difícil com sua irmã, que havia se casado e aguardava a chegada de um bebê. “R” mencionava constantemente as brigas e discussões travadas com sua irmã. Era o som, a televisão, o aparelho de DVD, sempre existia algo que os irritava. Durante as visitas, “R” falava sobre sua irmã e relatava suas desavenças e o respeito pela mesma. Demonstrava muito desejo em poder ‘virar tio’, era algo que aguardava com muita expectativa. Barretto (1998) salienta que a função de holding pode ser estabelecida por diversos elementos do ambiente que proporcionem uma experiência terapêutica para o sujeito. Deste modo, é possível supor que o nascimento desta criança na família de “R” alvitra-se como um objeto que lhe permite encontrar satisfação 131 e um lugar outro na estrutura familiar. “R” agora deixa de ser ‘o filho caçula, mimado, que tem problemas’, para figurar como o tio do bebê. Neste ponto, evidencia-se como o nascimento do sobrinho de “R” emerge como um recurso terapêutico para a estabilização do seu sintoma. Retomando as discussões empreendidas por Melman (2001), no que tange à esfera da família, depreende-se que existe uma dificuldade grande dos serviços de saúde em “conseguirem reconhecer o familiar como um importante recurso terapêutico a ser mobilizado”. Portanto, a experiência da assistência domiciliar parece ser favorecedora de que esse recurso seja validado e utilizado. A observação dos sujeitos e familiares, aliada ao desenvolvimento de vínculos, possibilita a emergência de sentimentos de parceria e atenção àqueles indivíduos que estão sendo cuidados. No momento em que os estagiários freqüentam as comunidades dos seus acompanhados, eles mostram que ali há um sujeito, há uma pessoa com quem se pode preocupar e que é merecedora de cuidados. Imagina-se que possa ocorrer nesta hora um processamento de novas acepções diante da percepção daquele indivíduo para a sua rede social. Melman (2001) afirma que “além dessa ampliação territorial do espaço terapêutico, as intervenções na rede social podem mobilizar importantes recursos internos e externos à família; muitas vezes recursos esquecidos, deixados à margem, que podem ser acionados e ser de grande utilidade no tratamento”. Assim, poder-se-ia pensar que a função das visitas domiciliares também seria fornecer ao su132 jeito que sofre de adoecimento psíquico novas possibilidades diante das pessoas que compõem a sua rede social. Esta não se restringiria apenas à família “nuclear ou extensa, mas inclui todo o conjunto de vínculos interpessoais significativos do sujeito: família, amigos, relações de trabalho, de estudo, vínculos na comunidade, vínculos coletivos, sociais e políticos” (MELMAN, 2001). Adentrando ao campo das relações mútuas entre redes sociais e visita domiciliar é importante salientar passagens de dois casos acompanhados no PIC. Ambos os pacientes são do sexo masculino. Os chamaremos de “W” e “V”. “W” é um paciente morador de rua. Durante as visitas e atendimentos domiciliares, o trabalho era desenvolvido sempre em algum local do bairro onde ele morava – que funcionava como a sua casa. Ele demonstrava sentir uma tristeza muito grande e, entre momentos de crise, expunha uma grande revolta pelo bairro e por todos os seus moradores. Contudo, era nesses mesmos momentos, precisamente quando “W” atentava contra si, que os moradores intervinham. Eles o levaram ao hospital em um episódio em que “W” utilizou uma cartela inteira de sua medicação. Esses mesmos moradores retiraram “W” do bueiro de esgoto quando ele resolveu que iria morar lá dentro. Destarte, percebe-se como é imprescindível o apoio da rede social como possibilitadora de novas alternativas aos sujeitos. Melman (2001) observa que a presença de enfermidades crônicas poderia comprometer a qualidade de suas interações sociais. E, dessa maneira, as visitas domiciliares atuariam como corroboradoras dos cuida- dos dispensados àquele sujeito, evidenciando a importância de que se busque tentar compreendê-lo, ainda que o mesmo esboce comportamentos de tamanha estranheza. Melman (2001) define a Rede Social de Sustentação como “a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como importantes ou diferenciadas da massa anônima da sociedade”. Ele ainda postula que essa rede alude a “um nicho interpessoal, uma microecologia na qual a pessoa desenvolve um modo particular de expressão de sua singularidade” (Sluski, 1997 pp. 42 citado por Melman, 2001). Assim sendo, durante as visitas à “W” era importante a construção de redes de referência que dessem continuidade ao trabalho desenvolvido pela dupla. A barraquinha de lanches de Dona “A”, a casa de Dona “T”, a banca de artesanato de “R”, todos esses – que eram os locais em que combinávamos para nos encontrarmos com “W” – figuravam como pontos de apoio estratégicos na busca de ‘suportes’ terapêuticos para o paciente. O caso de “V” ressalta-se como ratificador dos resultados advindos da efetiva participação das redes sociais no trabalho de assistência domiciliar. “V” sempre referiu ser uma pessoa muito sozinha. Durante o período em que o acompanhamos não chegamos nem mesmo a conhecer sua família nuclear (“eles não querem saber de mim não”). Ele residia num quarto alugado. As visitas domiciliares primaram, inicialmente, pelo estabelecimento de vínculos com a dona e os moradores da casa onde ele residia. A senhora dona do estabelecimento funcionava como elo entre os estagiários e “V”. Apenas uma irmã dele morava próximo. Contudo essa irmã trabalhava o dia todo, e era muito difícil encontrá-la. O bar de dona “J” também funcionou como um outro ponto de suporte para a continuidade do trabalho desenvolvido com “V”. Este fazia suas refeições naquele local e as pagava mensalmente. Convidamos dona “J” a nos auxiliar no cuidado com suas medicações. “V” precisava tomar a medicação juntamente às refeições, e, dessa forma, a participação de dona “J” se mostrava necessária porque ele sempre se esquecia dos horários. Os membros da igreja evangélica que “V” freqüentava também foram promotores de uma assistência continuada. Percebendo as dificuldades encontradas por “V”, contribuíam junto à comunidade, explicitando-lhe as dificuldades por que ele passava. De tal modo, salienta-se a importância do trabalho de assistência domiciliar em continuidade com a formação de pontos de apoio nas redes que referendam o sujeito para a comunidade. A presença dos acompanhantes terapêuticos dentro da realidade social dessas pessoas possibilitaria, portanto, a ressignificação de conceitos arraigados sobre o portador do sofrimento psíquico. Contiguamente, a edificação de novas redes de suporte contribuiria com o sustento do trabalho e a continuidade da assistência. A rede emerge como ancoradouro para a prática do AT ou mesmo da assistência domiciliar. Melman discorre sobre as aquisições que o grupo poderia proporcionar: “o poder grupal tem a função de proteger seus integrantes das forças ameaçadoras” (Melman, 2001). 133 Portanto, compreendendo que a saúde mental caracteriza-se por um mal-estar crônico na vida dos sujeitos, formas terapêuticas que dispensem uma atenção global e continuada mostram-se necessárias. Dessa maneira, como apontam Andrade e Vaitsman, “muitas vezes, o enfermo experimenta fragilização da identidade, do próprio sentido da vida e da capacidade de resolver problemas que o afetam, já que tudo aquilo que organizava a identidade é alterado de forma brusca com a doença” (Gibson, 1991 citado por Andrade & Vaitsman, 2002). Esta fragilidade que permeia o vínculo na psicose fundamenta a implementação desses novos modelos de práticas. de significados e valores aos sujeitos em desordem mental. Melman (2001) esboçou a importância de compreendê-la como um recurso terapêutico e enfatizou o valor de que se atente a todas as possíveis representações condizentes à loucura que nela se encontram fixadas. A função de holding ou suporte destacada por Barretto (1998) corrobora as formas de cuidar desses indivíduos, além de incluir neste espaço a rede social que sustenta e promove a vinculação. No percurso deste artigo, constatou-se que a disponibilidade do trabalho de atendimento (ou assistência) domiciliar ressalta-se como um prérequisito fundante para o trabalho com sujeitos afetados por desordens mentais. Considerações Finais A magnitude do estranhamento que as manifestações do sujeito psicótico desencadeiam no A assistência domiciliar demonstra ser revela- outro semelhante poderia ser suscitada como um dora da promoção de novos significantes dispen- dos elementos contributivos ao cerceamento do sados à saúde mental. A inserção de práticas de louco. Freud salienta que ocorreria na psicose cuidado que atentem às diversificadas demandas uma substituição da realidade – perdida, por ouexpressas pelos sujeitos brotam como um possível tra. “Na psicose o que ocorreria é que um mundo móbil de compreensão dos fenômenos psíquicos. novo seria recriado e colocado no lugar da realiDestaca-se que a assistência domiciliar pode dade perdida” (FREUD, 1915). Em meio a tantas aferir ganhos diversos àqueles que se destinam teorizações concernentes ao que seria ‘esta realidesde que a sua implementação aconteça de for- dade’, o que se depreende é que a loucura não se ma responsável, com competência e planejamen- confina a estes parcos critérios. Ela tão somente to. Assim, o cuidado e a reconstrução das redes é: inconstante, exuberante e múltipla em suas expodem ser realizados de forma mais segura e efi- pressões. “É que eu não estava mais me vendo, caz, proporcionando um cuidado embasado na estava era vendo” (Lispector, 1998, pp. 63). realidade social em que vive o sujeito a partir de uma melhor compreensão da mesma. A família surge, neste contexto da assistência domiciliar, como peça fundamental na atribuição 134 Referências ANDRADE, G. R. B. & VAITSMAN, J. (2002). Apoio social e redes: conectando solidariedade e saúde. Ciência e saúde coletiva. [online]. 07, 04. Disponível em: <http:// www.scielo.br BARRETTO, K. D. (1998). 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Neste terreno, a Atenção Domiciliar surge como proposta de atuação, apostando na relação vincular como alicerce para a construção de novos laços sociais para as pessoas em sofrimento psíquico. Algumas dificuldades operacionais são apontadas para a implementação desta tecnologia, bem como alguns caminhos são vislumbrados. Introdução D esde o surgimento dos primeiros debates em saúde mental no Brasil, que culminou com a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei Paulo Delgado, é trazido como discussão principal qual forma de cuidado deve ser prestado ao portador de transtornos psiquiátricos. Este dito “cuidado” que, durante muito tempo, resumiu-se ao confi*Estudante de Medicina (UFBA) e ex-estagiária do PIC **Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC ***Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC 136 namento de pessoas em hospitais psiquiátricos e que hoje, pela legislação, é proposto como uma abordagem humanizada voltada para cidadania e ressocializacão, ainda encontra entraves e posturas heterogêneas quando posto em prática, devido a dois principais questionamentos: 1) Os atuais profissionais em saúde mental estão realmente preparados para atuarem neste novo modelo de assistência preconizado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira? 2) Como vêm sendo democratizados os conhecimentos em saúde mental, até então restritos aos “profissionais psi”, para que todos possam se responsabilizar por este cuidado? A atual legislação em saúde mental, no Brasil, tem buscado progressivamente substituir os hospitais psiquiátricos por outros serviços como os CAPS, NAPS, enfermarias psiquiátricas em Hospitais Gerais, Residências Terapêuticas e serviços de saúde mental na rede de atenção básica e Programa de Saúde da Família. Muitos destes serviços substitutivos utilizam a estratégia de visitas domiciliares, visando um acompanhamento mais “humanizado” do paciente. Mas no que consiste e para que realmente serve a visita domiciliar? Sendo utilizada primeiramente pelo Programa de Saúde da Família, a visita domiciliar assume, muitas vezes, um caráter compulsório de atendimento em casa para pacientes impossibilitados de irem ao Posto de Saúde (idosos, acamados, portadores de alguma deficiência) ou para cumprir algum objetivo preestabelecido (reconhecimento familiar, por exemplo) reproduzindo a lógica tradicional de consultório sob o pressuposto de humanização. Seguindo lógica semelhante, os atuais serviços de saúde mental, a partir do momento que buscam os seus pacientes em casa somente por conta de ausências repetidas nas atividades propostas, situações de crise e não adesão a medicação, acabam por não abarcar as reais necessidades deste tipo de paciente que apresenta especificidades em suas relações. O presente artigo visa contrapor a visita domiciliar à atenção domiciliar, acreditando nesta como tecnologia fundamental no cuidado em saúde mental, proposta-base do Programa de Intensificação de Cuidados ao Paciente Psicótico, do qual as autoras participaram. do profissional? Quem é ele que, mesmo quando recluso, calado, absorto, mobiliza família, comunidade e trabalho? Ele tem nome? Tem desejos? É cidadão? Na perspectiva da abordagem do sujeito é que ampliamos a percepção da psicose para além de um conjunto de sintomas psicopatológicos, dos estigmas e medos da população de uma maneira geral, inaugurando uma nova forma de atuação e formação em saúde mental a qual prioriza as relações vinculares, responsabilização e quebra do enquadre terapêutico. Propomos, desta forma, um “ambulatório que verdadeiramente ambula” e se preocupa com este grupo específico de pacientes e sua relação com o meio em que vive. Da Atenção Domiciliar... Em contraposição à visita domiciliar, a atenção domiciliar apresenta-se como uma tecnologia que propõe cuidar integralmente do indivíduo, preocupando-se em ampliar suas redes de apoio, responsabilizando a família e apoiando-a, buscando meios que melhorem a qualidade de vida do paciente. Esta tecnologia busca ser sistemática e contíDo psicótico... nua. Os encontros com o paciente, a família e a comunidade não pressupõem retirar uma inSingular, fragmentado, frágil, misterioso, im- formação, mas estabelecer relações vinculares previsível, rindo e chorando de maneira peculiar... com finalidade de se aproximar e contribuir com Será realmente inacessível o diferente? Temos nós eles, estando à disposição e secretariando a realguma interferência na direção dos seus moinhos lação deste paciente com o meio. Neste aspecto, de vento? Será que se depararão com a violência podemos ilustrar como um exemplo o holding, do vizinho, o grito do parente ou a indiferença definição introduzida por Winnicott como sendo 137 “tudo que, no ambiente, fornecerá a uma pessoa a experiência de uma continuidade, de uma constância tanto física quanto psíquica” (BARRETTO, 1998: 60). Estas atitudes favorecem mecanismos para que o paciente se movimente, se questione, se coloque no mundo, estabelecendo uma ampliação da troca de poder contratual. Por se propor a ocupar a função de um acompanhante dentro desta relação, o profissional acaba transcendendo os protocolos técnicos existentes hoje em dia, no que se refere às restrições de acompanhar o paciente somente em situações especiais e pré-estabelecidas, como os momentos de crise. Amplia-se o atendimento, atuando nos espaços urbanos e rompendo com o enquadre e a proteção que o setting proporciona. Este tipo de atenção expõe o profissional ao afetamento com as questões do paciente, permitindo-se tocar com seus sentimentos. Haja vista suas características de funcionamento, a tecnologia da atenção domiciliar se faz necessária e fundamental no atendimento da saúde mental dentro dos moldes da nova proposta psiquiátrica. Das dificuldades... trar isso com um caso do estágio em que, depois de algum tempo de acompanhamento, quando fomos visitar o paciente, encontramo-lo na frente de casa com um pedaço de “pau” na mão levantado pro alto nos dizendo “ninguém entra em casa, só parente e amigo”; ou situações de manejo do vínculo de um paciente que se “apaixonou” pela acompanhante. Outro fator dificultador é o da disponibilidade, o estar disponível requer entrega afetiva bem como temporal. Combinar esses itens nem sempre é possível e viável, tornando-se umas das dificuldades centrais do acompanhamento. Há também as dificuldades de âmbito operacional, como a falta de profissionais capacitados para lidar com situações “previstas” de atuação neste tipo de atenção, bem como a inexistência de formação permanente. Dificuldade de um apoio para este tipo de atendimento foi se estendendo ao longo dos anos, o que gera uma contratação defasada de profissionais na área, tanto pela falta de incentivo de contratação quanto pela falta de profissionais capacitados. Juntamente a isso, há a falta de incentivo educacional, como a não-reformulação dos currículos objetivando formação de profissionais preparados para as reformas institucionais como a reforma psiquiátrica. Dentre as dificuldades do processo de trabalho, podemos citar a exposição criada pela quebra do Considerações Finais enquadre terapêutico, que pode ser exemplificada Com o advento da Reforma Psiquiátrica e a imnão somente como exposição de afetos em que há uma troca com a questão do outro, como tam- plementação da lei Paulo Delgado, foram precobém nuances físicas ao se adentrar em um territó- nizados novos princípios para o cuidado em saúrio que até então é desconhecido. Podemos ilus- de mental. A Atenção Domiciliar é desenvolvida 138 neste contexto como uma tentativa de resposta ao novo modelo de atuação que se faz necessário. Esta nova tecnologia leva em consideração aspectos singulares do indivíduo, apostando na relação vincular como base para intervenção. A Atenção Domiciliar busca desenvolver a autonomia do sujeito, oferecendo dispositivos para sua sociabilidade e formação de vínculos. O profissional atua como um secretário, gerenciando as relações do paciente, negociando com familiares e agentes da comunidade, ampliando suas redes sociais e de apoio, de modo a oferecer-lhe maior poder contratual na sociedade. Não obstante a relevância desta tecnologia de cuidado, existem alguns entraves que precisam ser superados para fins de sua implementação. O primeiro deles é o preparo dos profissionais. Existe um descompasso entre a atuação desses técnicos e as novas diretrizes para a reforma da saúde mental. O lidar com pessoas em sofrimento psíquico, principalmente psicóticos, exige uma tecnologia de cuidado especial que vai além dos conhecimentos técnicos e científicos. Corrobora para esta constatação a observação de pessoas que, embora desprovidas desses conhecimentos técnicos, possuem grande habilidade no manejo das relações com este público. Um outro obstáculo a ser superado é a burocracia dos serviços públicos de saúde. A implementação desta nova tecnologia de cuidado encontra dificuldades, uma vez que exige recursos humanos e materiais freqüentemente em falta nesses serviços, como transporte, profissionais etc. Em contrapartida, iniciativas de inserção da saúde mental na Atenção Básica têm apontado para direções possíveis quanto à implementação da Atenção Domiciliar. Tem-se observado que muitos agentes comunitários de saúde (ACSs), nos Programas de Saúde da Família (PSFs), possuem grande habilidade no trato com os usuários de saúde mental. Quando capacitados tecnicamente, esses trabalhadores adquirem um preparo, no qual se combina sensibilidade, vínculo estabelecido e saberes teóricos e técnicos. Tal iniciativa apresenta-se como tentativa de aproveitamento dos recursos já existentes, mas não resolve o problema da capacitação de novos profissionais que encontra na reformulação curricular e na mudança de posturas os seus principais desafios. Com a proposta da Atenção Domiciliar, vislumbra-se um novo saber em saúde mental que pressupõe a socialização dos saberes até então restritos às disciplinas. Ainda não há respostas que atendam a todas as dificuldades para a implementação desta tecnologia de cuidado. Portanto, fazem-se necessários maiores estudos e novas estratégias para formação de recursos humanos com práticas consoantes aos princípios da Reforma Psiquiátrica. 139 Referências BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998. LANCETTI, Antônio. 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Faz-se uma tentativa de elaboração teórica sobre este tema por parte das autoras, com subsídio de alguns depoimentos colhidos junto a estagiários e ex-estagiários do PIC. Cada paciente atendido pelo programa é acompanhado por uma dupla de estagiários (um de Psicologia e outro de Terapia Ocupacional), numa freqüência estabelecida de acordo com a demanda do caso. O trabalho em dupla visa amenizar as dificuldades encontradas nesse, em geral, primeiro contato dos estagiários com a questão da loucura e de seu manejo clínico. O compartilhamento de angústias, sofrimentos e questionamentos é, sem dúvida, um fator de grande destaque no andamento do estágio, na medida em que engendra o surgimento de questões não só na relação dos estagiários com os *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC pacientes, como deles entre si e consigo mesmos. A possibilidade de acompanhar um caso junto à outra pessoa propicia uma observação muito mais rica e fidedigna, em razão de ser feita durante o próprio acompanhamento, ampliando, assim, as “versões dos acompanhamentos” que são apresentadas durante a supervisão grupal. Sem falar na possibilidade de auto-observação a partir do olhar do outro, fundamental nesse processo de formação profissional. Desse modo, evidencia-se que a experiência vivenciada pelos estagiários que passam pelo PIC é não apenas informativa, como também, e essencialmente, formativa. Introdução O Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC) é efetivado por diversas formas de trabalho: atenção domiciliar, encontros terapêuticos grupais entre pacientes e estagiários/ extensionistas, atividades externas, reuniões com cuidadores, atendimentos individuais, quando necessário; acompanhamento a 141 consultas médicas e psiquiátricas, supervisão em grupo semanal, etc. Neste artigo, será enfocado o trabalho em dupla, realizado durante os atendimentos em domicílio. Será feita uma tentativa de elaboração teórica sobre este tema por parte das autoras, com subsídio de alguns depoimentos colhidos junto a estagiários e ex-estagiários do PIC. No Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, cada paciente do programa é acompanhado por uma dupla de estagiários, numa freqüência estabelecida de acordo com a demanda do caso. Há pacientes que são acompanhados semanalmente; outros, quinzenalmente e, em algumas situações, sobretudo quando o paciente está em crise, as visitas são realizadas todos os dias. Inicialmente, quando os estudantes são selecionados para o programa, é feita uma breve explanação, por parte dos estagiários que estão saindo ou mesmo dos que vão permanecer no estágio, acerca dos casos que compõem a clientela do PIC. Formam-se as duplas, buscando-se, sempre que possível, que, em cada uma, haja um estagiário de Psicologia e outro de Terapia Ocupacional, no sentido de propiciar a troca de experiências técnicas e teóricas que o trabalho multidisciplinar possibilita. Além deste critério, que é o principal, outro que fundamenta a formação das duplas é a questão da empatia, interesse e/ou identificação por cada caso apresentado, além, logicamente, da compatibilidade de dias e horários para a realização dos atendimentos domiciliares. Depois de formadas as díades que acompa142 nharão os pacientes, tem início a passagem dos casos, em que cada nova dupla realiza um contato inicial com os mesmos, acompanhada dos antigos estagiários. Num primeiro momento, convém aos ingressantes no programa uma postura mais discreta e de observação, no intuito de irem se familiarizando com a dinâmica de cada paciente e, em contrapartida, serem reconhecidos como alguém de confiança, em que eles podem depositar suas angústias, alegrias e sofrimentos. Após esse primeiro contato, os novos responsáveis pelo caso vão adotando um estilo mais ativo e participativo, com intervenções sobre o que, na etapa anterior, eles apenas observaram. Assim, dá-se a despedida dos antigos estagiários, e uma nova relação vai se estabelecendo. Com a saída deles, os iniciantes assumem o caso em definitivo, tendo respaldo técnico e teórico para suas condutas durante as supervisões. O aprimoramento teórico, portanto, vai se dando simultaneamente à ação propriamente dita, que é feita junto aos casos. 2 – Por que trabalhar em dupla? Inicialmente, o trabalho em dupla pode ser justificado como uma tentativa de amenizar as dificuldades encontradas nesse, em geral, primeiro momento em que os estagiários se defrontam com a questão da loucura e de seu manejo clínico. Tendo em vista que, geralmente, tanto os estudantes do curso de Psicologia como os de Terapia Ocupacional só se deparam com essa problemática já no fim da graduação, o trabalho em dupla mostra-se um recurso de apoio àqueles que estão iniciando na prática em saúde mental que complementa a supervisão. “Assim como os cavaleiros andantes saem à cata de emendar todas as situações que, porventura, carreguem algum erro ou injustiça e exijam do seu exercício alguma intervenção ou mediação, também os escudeiros os acompanham, a fim de poderem, igualmente, dar amparo a seus senhores em ocasiões adversas”. Kleber Barretto (2000, p. 59) Embora, na situação ora focalizada, não se trate de uma relação hierárquica, mas horizontal entre os estagiários, essa citação de Barretto explicita bem a nuance de suporte exercida, mutuamente, durante o trabalho em dupla. O compartilhamento de angústias, sofrimentos e questionamentos é, sem dúvida, um fator de grande destaque no andamento do estágio, na medida em que engendra o surgimento de questões não só na relação dos estagiários com os pacientes, como deles entre si e consigo mesmos. Ademais, a possibilidade de discussão e de busca pela questão dos sujeitos que são acompanhados pelos estagiários, por aquilo que deve nortear o trabalho feito com eles, propicia a indispensável experiência de “pensar em voz alta”. Esta, por sua vez, permite um melhor entendimento do caso e conseqüente alcance das estratégias de manejo clínico mais adequadas a cada um deles. Segundo Barretto (2000), para exercer a atividade de apoio (holding) aos pacientes, é necessário que o (futuro) profissional tenha vivido e internalizado essa função, uma vez que só é possível dar holding a alguém na medida em que já se tenha experimentado tal vivência. “Na maior parte das vezes, o profissional não consegue exercer essa função, porque lhe é difícil aceitar e compreender que ‘faz algo’ ao não fazer absolutamente nada – só estar presente”. (p. 64) Desse modo, fica claro que a função de holding acaba sendo praticada tanto na relação dos estagiários com os pacientes (e entorno social dos mesmos) como na dupla de estagiários entre si. “Em um dos casos que acompanhei, a função de holding foi exercida entre os próprios estagiários. O suporte e o apoio psíquico tão falados entre estagiário e usuário (ou acompanhante e acompanhado), neste caso, foram também percebidos entre estagiário e estagiário (acompanhante e acompanhante). Um deu apoio ao outro tanto na divisão como no revezamento do que precisava ser feito para evitar ou amenizar a sobrecarga psíquica característica do caso.” Ana Cláudia Braga (estagiária de Terapia Ocupacional do PIC durante 1 ano) Cabe salientar que não se trata de uma atitude exclusivamente ativa, incluindo também, em certos momentos, uma certa passividade, apenas um estar junto, estar presente. Também é digna de nota a importância da troca de conhecimentos e experiências que o trabalho em duplas formadas por estudantes de Psicologia e Terapia Ocupacional possibilita. Esse tipo de experiência favorece a construção de um saber teórico-prático comum às duas disciplinas, num verdadeiro trabalho interdisciplinar. Em algumas situações, entretanto, pode-se ob143 servar certa dificuldade em se atingir esse compartilhamento de saberes, em virtude, muitas vezes, de alguns estagiários se fecharem dentro das teorias obtidas nos bancos da faculdade, não sendo flexíveis a idéias que divirjam, em algum aspecto, daquilo que acreditam ser terapêutico ou mesmo o mais adequado à dada circunstância. Vale assinalar que também há outras ocasiões em que o trabalho a dois não funciona de modo satisfatório, o que sugere que a dinâmica entre os membros de cada díade precisa ser trabalhada, de modo que se compreendam as diferenças de estilo individual e mesmo de valores e concepções, que podem tanto contribuir como prejudicar o andamento dos casos. Em diversos períodos, foi possível perceber que um dado caso, que não se desenvolvia satisfatoriamente com determinada dupla de estagiários, obteve avanço significativo quando houve a mudança dos responsáveis pelo caso. “Na primeira experiência em dupla não pude aproveitar muitos diálogos sobre a experiência com os pacientes, o que empobreceu um pouco o trabalho. Já nesta segunda, está sendo ótimo. Acho que conseguimos, em várias oportunidades, compartilhar, principalmente antes e depois das aulas de xadrez e dança, muitas experiências, interpretar e discutí-las. Assuntos como receios, do que poderia acontecer conosco e com o paciente, medos de um surto acontecer, já que achamos nossa intervenção corporal, a dança, um pouco ousada. Pudemos 144 suportar uma a outra diante de situações inusitadas, quando a força acabou as aulas eram puxadas, quando “bateu um branco” ou tomamos um susto ou uma surpresa. Sempre uma das duas encontrou uma saída. Rimos muito juntas, o que aliviou a ansiedade em algumas situações difíceis e dividimos também a responsabilidade”. Vera Hittel (estagiária de Psicologia do PIC durante 1 ano) “Intensificar cuidados em dupla é interessante, na medida em que se torna possível compartilhar as experiências vivenciadas com o sujeito acompanhado. Compartilhar com um outro (a dupla) o estranhamento diante da desorganização do discurso de um paciente foi fundamental para refletir sobre os desafios de se estar com o sujeito que possui um sofrimento mental e um arranjo psíquico diferenciado”. Tatiana Medeiros (estagiária de Psicologia durante 1 semestre) 3 – Considerações Finais Diante do exposto, fica claro que o trabalho em duplas de estagiários, desenvolvido no Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, pode ter tanto aspectos positivos como obstaculizantes. A possibilidade de acompanhar um caso junto à outra pessoa propicia uma observação muito mais rica e fidedigna, em razão de ser feita durante o próprio acompanhamento, ampliando, assim, as “versões dos acompanhamentos” que são apresentadas durante a supervisão grupal. Sem falar na possibilidade de auto-observação a partir do olhar do outro, fundamental nesse processo de formação profissional. Desse modo, evidencia-se que a experiência vivenciada pelos estagiários que passam pelo PIC é não apenas informativa, como também, e essencialmente, formativa. “Acho que o legal de trabalhar em dupla é poder contar com um outro que sinaliza para algo que você fez de errado, que dá suporte, que percebe coisas que você não vê. Intervém quando faltam palavras, age quando você está falando demais. É um equilíbrio necessário e produtivo”. cansaço e desânimo causado pelo esforço inerente a essa prática clínica. O parceiro, muitas vezes, pode constituir um terceiro na relação muitas vezes dual com o paciente e, assim, diluir a depositação intensa direcionada ao estagiário. Para mim, a importância de um companheiro na caminhada foi essencial para conseguir planejar, organizar e dar continuidade nos momentos de angústias e tristeza e para poder continuar acreditando, enfrentando dificuldades e obstáculos. Como a relação entre os estagiários é bastante intensa, acabamos por constituir grandes amizades e até alguns desafetos”. Mabel Jansen (estagiária de Terapia Ocupacional do PIC durante 1 ano e extensionista durante 1 semestre) Érica Coelho (estagiária de Psicologia do PIC, durante 1 semestre) Dividir anseios, expectativas, intervenções adequadas e outras frustradas com um parceiro gera um trabalho muito mais consistente do que se o acompanhamento dos casos fosse feito de modo individual. As contribuições obtidas com essa modalidade de trato da loucura favorecem, sem dúvida, tanto o âmbito do manejo clínico como o da formação profissional de cada um. “Um parceiro possibilita compartilhar dúvidas, pensar em estratégias, como também dividir as angústias, tristezas e alegrias. Um estímulo ao 145 Supervisão: Espaço de continência, aprendizado e reflexões Eduarda Mota* N as terças à tarde, ocorre um momento crucial do Programa de Intensificação de Cuidados - a supervisão dos estagiários, que é coordenada por uma dupla de supervisores, com formações (psicólogo e terapeuta ocupacional), instituições (UFBA e FBDC) e estilos diferentes, mas complementares, que se esforçam para criar um espaço ao mesmo tempo acolhedor das mobilizações dos estagiários e gerador de uma tensão provocadora que estimule o compromisso com o aprendizado e o cuidado intensivo. Essa parceria vem ocorrendo há quatro anos com uma sintonia crescente; as diferenças citadas enriquecem o trabalho conjunto, demarcando que a clinica psicossocial não pertence a nenhuma categoria profissional, mas sim àqueles que se detêm em estar constantemente se preparando para trabalhar na área da saúde mental dentro de uma visão ampliada. A metodologia foi se consolidando ao longo da experiência. A supervisão é dividida em dois momentos: um de discussão teórica, que pode ser por explanação, leitura e discussão de textos, fil- *Supervisora de Terapia Ocupacional do PIC 146 mes, e outro de discussão dos casos e da direção dos atendimentos. Complementando o embasamento teórico, o Professor Dr. Marcus Vinícius (pesquisador e estudioso da psicose) oferece um seminário à parte – Elementos Teóricos para uma Clínica Psicossocial das Psicoses, como disciplina de extensão da UFBA. Trabalhamos com o princípio da autonomia e do compromisso com os casos. Apesar de termos alguns acordos de participação (grupo semanal e visita domiciliar semanal), o tempo, a presença dos estagiários é regulada pela necessidade de cuidado com os casos. Quando o cuidado é insuficiente, aparece sob a forma de crise; o descuido ou não implicação nos casos são trabalhados na supervisão dentro da clínica, e não somente como uma questão burocrática. Vale ressaltar que os estagiários, de modo geral, nos surpreendem pela disponibilidade e investimento pessoal e profissional, indo muito além do esperado. Iniciamos com a constituição das duplas interdisciplinares de estagiários, que serão a referência para cada paciente e responsáveis pelo caso. Os estagiários, tanto de terapia ocupacional quanto de psicologia, chegam desprovidos de uma experiência significativa com relação à psicose. Acreditamos que o maior aprendizado vem do contato com o psicótico. A orientação inicial é de exposição à psicose; estar com, escutar, olhar o paciente de referência e tudo o que está a sua volta, ler os registros das estagiárias e não atrapalhar o trabalho da psicose (partindo do pressuposto que a psicose trabalha em direção de retorno à cultura). Os primeiros meses são dedicados à formação de vínculo, pois acreditamos que esta é a condição necessária para que se dê alguma possibilidade real de intervenção. Nessa fase, as supervisões atuam como um suporte, recebendo e acolhendo as ansiedades e inseguranças comuns nos primeiros encontros. Os contatos iniciais dos estagiários novos são acompanhados pelos que estão saindo do programa, fase conhecida como passagem. Paralelamente, vamos construindo um respaldo teórico, entrelaçando as teorias que tecem a complexa teia da psicose. As temáticas teóricas passam pela crítica ao modelo de internação como forma de tratamento, pela clínica psicossocial, reforma psiquiátrica, estruturas psíquicas, simbiose, acompanhamento terapêutico, vínculo, redes sociais, família, grupos, interdição, solidão, entre outras. Tendo acompanhado até o momento oito grupos de estagiários, percebemos que algumas questões e situações são recorrentes – a desestabilização de alguns pacientes no momento da troca de estagiários; discussão a respeito de quando devemos concordar quando um paciente recusa atendimento; o que fazer com o “investimento amoroso” do paciente. Apesar das repetições, não existe regra ou respostas prontas. Cada caso é ouvido e pensado a partir de sua história, contexto e relações, analisado à luz de uma teoria que contribua para o entendimento da psicose, seja esta lacaniana, winnicottiana, rosellóniana ... No entanto, o que está por trás das questões tem quase sempre a ver com a dificuldade do psicótico na relação com o outro. Surpreendentemente, não é o contato com o discurso delirante ou a estranheza da experiência alucinatória, nem mesmo situações de crises onde eles são chamados a intervir o que mais mobiliza os estagiários, mas sim a miséria, a fome, a falta de condição básica para existência, a solidão, as dificuldades institucionais até mesmo nos serviços atuais de saúde mental. A supervisão, segundo os próprios estagiários, é o local de organizar o pensamento e a ação. Porém muitas vezes temos que desorganizar idéias preconcebidas, cristalizadas a respeito da loucura, para que possa surgir um posicionamento diferenciado diante do psicótico. Na saúde mental, não basta fazer, é preciso saber o porquê, para quem e como fazer. E isso se constrói com experiência, estudo, reflexão e delicadeza. Não é somente cada caso de paciente que acompanhamos, e sim cada caso na ótica de cada estagiário que o acompanhou, e isso é um repertório imenso de aprendizado e reflexão para os supervisores, que também aprendem com cada estagiário e com cada paciente. 147 Complexidades A abordagem da Crise na Psicose Fernanda Blanco Vidal* Ana Claudia Silva Braga** Adelly R. Orselli Moraes Sodré*** Resumo: Este artigo pretende tratar de uma forma de abordagem da crise na psicose à luz do cuidado integral e intensivo. O sujeito é aqui entendido como uma construção histórica, fundamentada num projeto societal normo-neurótico que exige autonomia e capacidade de produzir vínculos. Os sujeitos psicóticos dispõem de poucos recursos para tal. Sendo assim, a psicose se configura como um embaraço na ordenação da sociedade moderna, o colapso do modelo ideal de sujeito. A crise, que emerge quando o sujeito é colocado em questão, representa a tentativa de lidar com o insustentável, sendo um arranjo providencial que se tem quando todos os recursos psíquicos já foram utilizados. Por essa perspectiva, o que precisa ser tratado é o sujeito, e não a crise. Nesse sentido, na proposta de cuidado apresentada, o acompanhamento terapêutico, cujo recurso básico é o estabelecimento do vínculo acompanhante-usuário, *Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC **Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC ***Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC é uma prática possibilitadora do manejo da precariedade dos recursos subjetivos e objetivos dos sujeitos, uma tentativa de (re) significação da vida. N este artigo, a partir do relato de algumas situações vividas como estagiárias do Programa de Intensificação de Cuidados - PIC e de referenciais teóricos que embasam esta prática, pretende-se justificar algumas das abordagens utilizadas e, assim, estruturar elementos que possibilitem contestar outras. A experiência com o caso que aqui será discutido levantou questões acerca das formas de abordagem do sujeito em crise. Para tal, faz-se importante apresentar, brevemente, a proposta de ação deste programa, visto que, para nós, constitui-se como uma referência importante no cuidado com pacientes psicóticos, e mais especificamente, no trato com situações de crise. O Programa de Intensificação de Cuidados, em conformidade com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, tem como principal objetivo promo151 ver a qualidade de vida de pessoas com transtorno mental, especificamente a psicose, por meio do cuidado intensivo e do desenvolvimento das redes sociais de apoio. Nesse sentido, a atenção é dirigida para os diversos âmbitos da vida dos sujeitos, visando a (re) significação subjetiva, o reconhecimento da alteridade, a construção e o fortalecimento de vínculos sociais, a inclusão na cultura, na escola, no trabalho, nos espaços da cidade, etc. - a responsabilização da família, comunidade, instituições e outros, no cuidado a essas pessoas, de modo a produzir a descoberta de novas possibilidades de vida e, acima de tudo, a efetivação dos direitos humanos. A prática dessa forma de cuidar integral, como aponta Silva (s/d, a), é possível através da noção de Intensificação de Cuidados, definida por ele como: “Um conjunto de procedimentos terapêuticos e sociais direcionados ao indivíduo e/ou ao seu grupo social mais próximo, visando o fortalecimento dos vínculos e a potencialização das redes sociais de sua relação, bem como o estabelecimento destas nos casos de desfiliação ou forte precarização dos vínculos que lhes dão sustentação na sociedade (s/d, p.01”. Nessa proposta, a intensificação de cuidados se efetiva através do Acompanhamento Terapêutico, em que o estabelecimento do vínculo acompanhante-usuário é o recurso básico por meio do qual este último pode “desenvolver e/ou (r)estabelecer funções psíquicas que na sua história de vida ficaram comprometidas” (BARRETTO, 1998, p.43). 152 Nesse sentido, considerando o redirecionamento da atenção à saúde mental e a ampliação da oferta de serviços, é pertinente indagar de que modo, na atual conjuntura, a crise vem sendo abordada. Quais são os recursos acionados? Lança-se mão de mecanismos terapêuticos flexíveis que estejam em consonância com as propostas de uma Clínica Integral ou ainda se reproduzem modos de intervenção descontextualizados e segregadores? Na tentativa de responder a tais questionamentos, serão trazidas as vivências de estágio documentadas em diário de campo. Essa experiência proporcionou o contato direto com o sujeito e seu cotidiano, por meio do trânsito na sua família, na sua comunidade e nas redes sociais de suporte com as quais ele possui relação, como, por exemplo, o CAPS de sua região. 1 – A Crise do Sujeito Convencionalmente, supõe-se que o sujeito é idêntico a si mesmo; (...). Ele é o centro da identidade, estável e inabalável(...).O sujeito é Um: universal, indivisível e eterno. O sujeito é o sujeito e, portanto, cumpre duas funções distintas na topografia social: universalização e individuação. Por um lado, o sujeito é uma figura de universalização na medida em que é o grau-zero da humanidade (...).Em suma, o re-conhecimento se transfere- por meio de corpos e faces individuais (DOEL, 2001, p. 86 e 87) Problematiza-se, nesta primeira parte do artigo, a noção de sujeito e, por conseqüência, a interpretação desta noção como uma produção teórica e política datada no projeto social da revolução burguesa e que pressupõe a existência de seres humanos como seres iguais, universais, autônomos e racionais. Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, foi uma das precursoras na crítica ao sujeito, desafiando sua presumida universalidade, neutralidade e unidade, argumentando que, no mundo social, existem aqueles que ocupam a posição não específica, sem marcações (sexual, racial, religiosa), “universal”; e aqueles que são definidos, reduzidos e marcados por sua “diferença”, sempre aprisionados em suas especificidades, designando o Outro. Essas críticas colocavam em evidência o fato de que a noção de sujeito estava marcada por particularidades que se pretendiam universais e, na medida em que pretendiam universalizar as especificidades do homem branco, heterossexual e detentor de propriedades e “autônomo”, este sujeito tornava-se uma categoria normativa e opressora, para usarmos a definição de Judith Butler. (MARIANO, 2006) Tomando-se estas importantes problematizações como pontos de partida, é preciso perceber e conceber, além destas questões colocadas, o lugar do registro psíquico na fundação das sociedades humanas, a fundação simbólica do lugar do Eu e do Outro como etapa fundamental para produção das organizações sociais. Neste sentido, as diversas formas de organização sócio- cultural desenvolvem, nos diversos lugares e momentos da história, certos modos de estruturação e instauração do Psiquismo. O sujeito social, tal como conhecemos, não é a-histórico. O que somos, portanto, deve ser tomado como uma forma de organização, um arranjo particular de certo processo civilizatório que, em nosso caso, podemos considerar como parte do projeto da sociedade moderna ocidental. Em cada sociedade, produzem-se os modos de formatação dos sujeitos e as falhas desse projeto. Consideramos que o modo de apresentação da loucura, na experiência da psicose, guarda íntima relação com a produção humana na sociedade moderna (SILVA, 2006). Em nosso projeto civilizador mais atual, datado de cerca de 300 anos, produzimos um nível de individuação muito radical na história humana. Mais do que nunca, a habilidade da individuação é requerida dos sujeitos para viver nesta sociedade. O êxito da vida humana nesta sociedade é medido pela nossa capacidade de produzir vínculos. Essa sociedade exige dos sujeitos certa competência para a autonomia radical. Se a sociedade está posta desta maneira, a relação com ela fica constrangida para os sujeitos psicóticos, que dispõem de poucos recursos para o trato com as relações vinculares. Nesta perspectiva, a psicose se apresentaria como a expressão dos sujeitos embaraçados com o Outro e com a ordenação societal moderna (SILVA, 2006). Além disto, é neste contexto, que pressupõe a regulação social dos atos e comportamentos a partir de uma certa instância administrativa e 153 controladora no “interior” dos sujeitos, que os psicóticos, enquanto sujeitos nos quais tais instâncias são precárias, representam uma crise e a desordem deste projeto. É sob estas condições que a sociedade ocidental moderna pode ser vista como denominaremos aqui: Normo-neurótica. Ela torna o modo de estruturação neurótica não só o modo universal de produção humana necessária, mas também o modo regulador da existência em sociedade. Torna-se, portanto, uma normatização dos modos de registro psíquicos suportáveis no interior desta organização social. Os psicóticos, neste processo, são uma crise, a crise dos projetos de sujeito. São a expressão da crise dos modelos de sujeito ideal de nossa sociedade. A partir destas problematizações e tomando-as como pressupostos de análise, começaremos a exposição da história de um sujeito em crise e da crise deste sujeito. Como será possível notar, este é um sujeito cuja individuação imposta é extremamente radical e torna-se um desafio constante e complexo, num contexto em que a competência para o gerenciamento e a autonomia da vida e de suas circunstâncias se colocam como única opção para a sobrevivência. O acompanhamento a Joaquim foi realizado em um período de dez meses pelas autoras do presente artigo. Ele faz parte do PIC há três anos, sempre sendo atendido semanalmente, por dois ou três acompanhantes. Joaquim (35 anos) é portador de esquizofrenia e tem um longo histórico de internações recorrentes desde a adolescência. É considerado um dos mais complexos casos atendidos pelo programa, por sua precária con154 dição familiar, social e de saúde, a qual se configura como uma extrema situação de desfiliação/ exclusão social. Na história dessa família, a perda pode ser considerada uma palavra constitutiva, visto que, na entrada de sua adolescência, a mãe de Joaquim morre, e o pai abandona os filhos quase que à própria sorte, deixando apenas uma pequena casa que hoje é disputada entre os irmãos. Joaquim e seus cinco irmãos foram criados separados por senhoras da vizinhança e uma avó. Um dos irmãos foi morto, não se sabe exatamente como, mas aparentemente o motivo guarda relação com a história de loucura que atravessa os membros dessa família. Dos outros quatro irmãos vivos, três possuem algum tipo de transtorno mental. Conforme informação do usuário e da irmã, ele apresentou a primeira crise, quando foi internado pela primeira vez, aos dezessete anos. A situação da família é de extrema pobreza. Quase todos têm renda muito baixa e vivem da ajuda de poucos. Joaquim vive com uma irmã no térreo do prédio deixado pelo pai. Sua condição social é precária. Serviços básicos como fornecimento de água e energia elétrica estão cortados. A casa é um lugar extremamente escuro, onde morcegos, ratos e baratas encontram abrigo. A comida é pouca, episódica e não garantida. O pouco que conseguem vem da doação de terceiros, da ajuda de alguns vizinhos mais compreensivos e solidários e de algum dinheiro que conseguem catando papelão, ferro velho e lixo reciclável. Joaquim mora num bairro de baixa renda, muito violento, com ações comuns de grupos de extermínio e com convivência cotidiana com a morte. O tráfico de drogas também é parte da rotina, e a convivência com a vizinhança é marcada por conflitos e desentendimentos constantes. A relação com os irmãos é quase uma não relação. Vivendo seus próprios problemas, ninguém se responsabiliza por apoiá-lo, e as poucas intervenções que fazem são para interná-lo em momentos mais críticos. Internando-o, não realizam visitas e reatualizam a história de abandono da família. Alfabetizado, Joaquim gosta de escrever histórias com conteúdos diversos. As histórias têm relação com sua vida, com o convívio diário com a violência e com suas esperanças de, por exemplo, ser um grande escritor. Faz uso de medicação controlada e é usuário intensivo do CAPS de sua região. Devido à gravidade de seu caso, Joaquim tem grande dificuldade em gerenciar e tomar as medicações nos horários indicados e todos os dias, ficando longos períodos sem tomá-las. Outras dificuldades somam-se a estas tão objetivas. A dificuldade no cuidado com o corpo, consigo, com a higiene pessoal e alimentação são algumas de suas peculiaridades. A precária vinculação com a família, com a comunidade e com o CAPS agrava sua condição. Joaquim está posto num lugar fora das normas sociais, sendo repudiado e pouco tolerado pelos que o cercam. O desamparo, por não achar esse lugar no mundo, e a ausência de estrutura para lidar com essas situações - se é que se pode lidar com elas - lançam Joaquim para um estado de crise. A experiência da angústia e da destruição de si é parte dos sofrimentos envolvidos neste caso. 2 – O Sujeito em Crise ...que eu me organizando posso desorganizar que eu desorganizando posso me organizar... (Chico Science) Durante os vários meses do atendimento a Joaquim, o trio de acompanhantes pôde conhecer não só sua história de vida e seus modos de relação, mas também perceber os primeiros sinais de sua crise. Essa foi uma crise longa e muito difícil. Intensa e bastante angustiante tanto para Joaquim quanto para as estagiárias. Durou cerca de 60 e poucos dias e oscilou entre momentos de maior e menor intensidade. Para o Programa de Intensificação de Cuidados, a crise deve ser concebida na esfera da falta de tratamento, como uma expressão do desacompanhamento e, em certa medida, de uma série de etapas de falta de cuidados que pode começar na escassez de medicações no SUS (Sistema Único de Saúde) e ser ratificado em outras esferas da vida caracterizadas por abandono e descuidado. É preciso, portanto, tratar o sujeito, não a crise. O sujeito tem tratamento. A crise é um arranjo providencial que se tem à disposição quando todos os outros recursos psíquicos do sujeito já foram utilizados. A crise é ponto de corte. Ela representa a experiência de inconsistência subjetiva que se coloca para o sujeito quando este é colocado em questão. Nem todo evento externo produz crise, e nem sempre é com um evento objetivo e concreto que estamos lidando, mas com aqueles que colocam 155 em questão as significações fundantes e constitutivas dos sujeitos, aquelas que, em sua fragilidade, dão a consistência do que é o sujeito para o sujeito. Tais significações são pontos de apoio que o ajudam a SER-NO-MUNDO e, portanto, ao colocá-las em xeque, produz-se a experiência de Desmoronamento, a Angústia da Destruição, do Não-Eu, do que não é possível significar. O vínculo é um importante sinalizador do modo de estruturação e desestruturação dos sujeitos psicóticos. Entendemos que o psicótico detecta, registra permanentemente que é de natureza vinculante a estruturação das relações sociais. A alienação deste registro permanente do vínculo permite aos neuróticos a sensação de conforto diante do outro, o conforto de não se perceber em relação continuamente. Na psicose, esta questão vincular se coloca como um elemento problemático em sua experiência com o mundo, já que, na relação com o Outro, existem poucos recursos para uma mediação simbólica. O Outro como algo enigmático e invasivo em certos momentos (SILVA, 2006). Outro ponto importante é que, diferentemente dos neuróticos, que possuem recursos como os mecanismos de defesa do ego para mediar simbolicamente suas relações com o mundo e com o Outro, a psicose não possui tais recursos disponíveis, ou os tem em precariedade. Na psicose, o “corte, portanto, é no real”. Há a experiência psíquica da morte, do Não-Ser, da destruição de si, quando certas condições insuportáveis para o sujeito colocam em questão sua capacidade de permanecer como tal (SILVA, 2006). 156 Para BARRETTO (1998), o homem necessita intermediar suas experiências – afetivas, pulsionais, existenciais - do contrário estas podem ser disruptivas, pois o sujeito passa a viver o horror de não mais sentir uma emoção ou sentimento, mas transformar-se neles; não mais experimentar um impulso, mas ser este impulso. Neste momento da experiência da destruição, uma possibilidade de lidar com tal sensação torna-se disponível para o psicótico, ele abre a porta de emergência e suspende a significação, descolando os signos dos significado. No delírio, os signos deslizam sobre os significados, e as palavras se descolam umas das outras (...). A crise é o fim da angústia, a angústia precede a organização. Quanto mais desorganizado, menor a experiência da destruição. Este afastamento de tal sofrimento, entretanto produz um outro sofrimento: desconexão com a cultura, o estranhamento do compartilhado e a perda da conexão de sentido com o mundo. Diante da experiência da proximidade da morte, o psicótico faz um suicídio simbólico (SILVA, 2006). Tomando estes pressupostos como pontos de partida de nossas análises e intervenções, traremos um pouco da nossa leitura da entrada na crise de Joaquim. Sinalizaremos aqui alguns de seus comportamentos que consideramos indícios desta entrada e apresentaremos algumas de nossas hipóteses, norteadas por estes pressupostos anteriores. A seguir, traremos cerca de três ou quatro relatos de episódios de nosso atendimento nos quais a crise era mais intensa e difícil e de como intervimos em tal situação, a fim de fornecermos certas exemplificações que ajudem a compreender um tipo de manejo apropriado, mas não único, para situações como esta. A ocorrência da crise pode ser conseqüência de vários fatores. No caso de Joaquim, supõe-se que tenha ocorrido devido a algumas situações insustentáveis em que ele mostrou-se inquieto e desorganizado. Consideramos estes fatores: a saída de estagiárias anteriores com as quais tinha um forte vínculo, o falecimento de um tio próximo, o aluguel de um ponto comercial que fica em sua casa pela irmã cujo valor também tem direito a receber - e não recebe - e os recorrentes desentendimentos com esta, além da irregularidade no uso da medicação. O riso imotivado, delírios freqüentes, comportamento libidinoso e agressivo foram os sintomas apresentados de forma mais acentuada no período anterior e durante a crise. Várias situações desconfortantes decorriam deste momento, e o contato com Joaquim precisava ser cauteloso, preciso e cuidadoso. Ele recusava aproximação de qualquer pessoa nos momentos em que não estava bem, sendo nossa permanência junto a ele sempre algo cauteloso e cuidadoso, de tal maneira que, aos poucos, ele conseguia retomar o contato conosco. A fala desorganizada, assuntos íntimos como homossexualidade e orgias, convites a práticas sexuais com as acompanhantes, delírios sempre voltados à morte e destruição, tanto de si e dos outros, além de agressões físicas se tornaram freqüentes nesse período de 60 dias. Joaquim passou por sofrimentos intensos, e este sofrimento interferiu também nas estagiárias. Nas primeiras visitas em que a crise foi evidenciada, fomos à casa de Joaquim, que estava muito agitado e agressivo. Ele gritava bastante, dizia não querer nos ver e entrava e saia de casa diversas vezes. Ficamos muito ansiosas com a agressividade até então não vivida. Conversamos um pouco, tentando compreender as motivações de seu comportamento tão diferente. Relembramos a questão do enquadre trazida por Thiago - antigo acompanhante de Joaquim - que o levava para passear sempre que, chegando a sua casa, percebia-o inquieto e violento. Este local parece ter grande efeito sobre Joaquim, e foi importante a percepção deste elemento para nossa intervenção. Joaquim repetia os gritos e tentativas de nos agredir - importante ressaltar que eram sempre tentativas, nunca chegando a realizar o ato. Convidamo-lo a sair de sua casa para irmos a uma praça lá perto. Ele estava muito apreensivo e se comportava como se todos ao seu redor o estivessem olhando ou o invadindo. Sentamos em torno dele, fazendo uma espécie de proteção que o acalmava. Falávamos que estávamos com ele, que nada deixaríamos ocorrer e que as pessoas não o iriam machucar. Aos poucos, ele se acalmou e começou a nos presentear. Interagiu conosco de forma mais tranqüila e alegre, contandonos de nossa importância em sua vida. Cantamos algumas canções, e o clima ficou menos hostil e invasor. Imaginávamos o tipo de experiência que ele devia estar vivendo e como o ambiente e as pessoas (os Outros), em seu estado de crise, colocavam-se mais ameaçadores e devastadores do 157 que efetivamente eram. Tentamos, neste sentido, dialogar com a angústia que vivia, criar uma situação mais favorável, alterando o enquadre do local e produzindo certo nível de proteção corporal a partir de nossa proximidade com ele. A elaboração de um discurso sobre morte se fazia cada vez maior. Joaquim começou a falar do desejo de matar um vizinho, misturado a um delírio de este ter tentado estuprar as antigas estagiárias que o acompanhavam. Ele detalhou, a cada visita, o desejo de matar diferentes pessoas, e nós, sempre que podíamos, pontuávamos, levemente, que tal ato não resolveria seus problemas e que o levaria para um lugar pior, coisa que não queríamos. Em certa etapa de elaboração das mortes de pessoas com quem convivia, Joaquim pensava em matar sua irmã - fonte de muitos conflitos no dia a dia. Visita após visita, ele trazia dados mais reais de sua intenção, primeiramente, dizendo que havia conseguido uma arma com um amigo “bicho-solto” chamado Bartolomeu; depois, que faltavam as munições, e por fim, que estava perto de conseguir as balas com alguém. Este ponto é importante, por nos ter trazido muitas angústias e ser o discurso mais organizado e aparentemente mais real. Nossa agonia aumentava junto com nossa preocupação e, buscando o amparo do CAPS, pouco conseguíamos evoluir na melhora do quadro. No dia 14 de agosto, quando vamos realizar uma nova visita, somos surpreendidas por um momento ímpar e complexo de sua crise. Traremos aqui trechos de nosso diário de campo para contar sobre este momento e sobre nossa intervenção. 158 Chegamos às 9:15h na casa de Joaquim e batemos na porta, como sempre, chamando-o. Ouvimos uma leve gritaria, quando, de repente, Maria (sua irmã) abriu a porta e começou a gritar conosco, dizendo que devíamos levá-lo ao hospício, pois ele estava maluco (...). Então Joaquim aparece com uma madeira enorme na mão e tenta bater com bastante força na cabeça de Maria que escapa e é empurrada por ele para fora da casa. Imediatamente, e movidas pelo susto, saímos da frente da casa. Ele continua empurrando a irmã, que se senta em casa mesmo, numa cadeira na pequena salinha, e começa a rezar. Ele sai da casa transtornado e começa a nos procurar com os olhos, entrando em casa em seguida. Ficamos distantes um tempo, por acharmos perigoso entrar em contato com ele portando um pedaço de madeira na mão. Este tempo em que permanecemos afastadas foi utilizado para nos acalmarmos e pensarmos em como agir numa situação como aquela, visto que nunca havíamos nos deparado com algo assim. Sabíamos que Joaquim não tomava as medicações regularmente, e, em momentos de crise, esta dificuldade se agravava. Discutimos um pouco, nos acalmamos umas as outras e resolvemos levá-lo à emergência do Hospital Mário Leal para que tomasse uma medicação e pudesse descansar um tempo e se reorganizar minimamente. Ficamos num local em que podíamos ver a casa, mas de onde não éramos vistas. Decidimos ligar para o SAMU para levá-lo ao hospital. O SAMU nos informou que precisávamos de um familiar ou comprovante de residência. Não havia unidade disponível no momento. Neste intervalo começamos a perceber certa movimentação na comunidade de pessoas com paus e pedaços de ferro em punho - cerca de cinco pessoas. Não tínhamos certeza se tinha relação com Joaquim, mas, diante da tentativa de machucar a irmã - visível para todos - e dos conflitos comuns na comunidade, achamos que poderia ter relação com ele. Ligamos para a supervisão, buscando orientação sobre como agir em relação à comunidade. Nos orientaram a conversar com as pessoas que estavam armadas e a colaborar com o SAMU quando este chegasse.(...) Esperamos o SAMU por cerca de 20 a 30 minutos, tempo utilizado para conversarmos sobre o que faríamos, como falaríamos com ele e como agiríamos em caso de violência contra nós. Era mais difícil lidar com nossas fantasias do que acreditar que tudo daria certo. Pensávamos que a situação ficaria impossível de ser controlada, que a comunidade começaria a agredi-lo e também a nós. Com a agressão da comunidade, ele ficaria mais desorganizado e violento e não agüentaríamos a pressão do conflito. Produzíamos fantasias tão destrutivas quanto as sensações que Joaquim devia viver. Pensávamos em ir embora, já que uma situação de violência nos colocaria em risco, e não deveríamos ir tão longe. Com esta racionalização, conseguíamos nos sentir mais calmas, mas mais irresponsáveis também. Pensávamos na importância de nossa permanência e auxílio num momento como aquele e que, como responsáveis pelo caso, não devíamos deixá-lo entregue à própria sorte como acontecia tantas vezes. Despedi- mo-nos de nossas fantasias decididas a fazer o que deveria ser feito e não o que, no fundo, mais gostaríamos de fazer. Lembramos alguns elementos teóricos importantes, como a importância da delicadeza para abordá-lo e a experiência de invasão e destruição a que ele deveria estar submetido. Após certo tempo, as pessoas se dispersaram, e o SAMU chegou. Fomos ao seu encontro para combinar a estratégia. Combinamos com o SAMU que, caso o paciente não aceitasse ou estivesse agressivo, a policia não seria chamada. Ao chegarmos à casa, chamamos Joaquim, e Maria abriu a porta com a bíblia na mão e com um amigo de sua igreja que estava dentro da casa rezando. Joaquim sai, ainda transtornado, e fala que irá conosco, mas apenas se for internado, porque não agüentará chegar lá e retornar para casa novamente. Se isso ocorrer, prefere se jogar pela janela do SAMU e acabar com isso. Tentamos acalmá-lo, e o escutamos. Ele continua dizendo seguidamente que precisa ser internado e que não vai conosco se for para tomar medicação e voltar. Falamos que vamos com o SAMU, e lá conversaremos tudo com a médica. Ele vai buscar sua mochila, e ficamos fora, conversando com os atendentes do SAMU que não devemos falar de injeção, pois ele não ficou bem quando usou a injeção e está recusando bastante este procedimento. Ele retorna, falando que o Diabo está em sua casa, e, num momento breve, sai da casa e fala “oh meu Deus porque esse Armagedon não vem logo e acaba com tudo”. Há um pequeno conflito entre ele e Maria , mas negociamos com 159 ele que pegue a mochila para irmos logo, pois precisava de cuidados. Maria se recusa a ir com ele ou entregar qualquer documento. Ela pouco fala conosco. Ele retorna, e falamos que vamos com ele. Joaquim fala que sabe que só se interna com familiar e que nós não poderemos interná-lo e que, portanto, não vai. Falamos que ele deve ir para tomar a medicação, e decidimos tudo lá (...). Enfim, entramos na ambulância e vamos. Diferentemente de tudo que imaginávamos, Joaquim aceitou de imediato nossa ajuda e não tentou nos atacar ou agredir. Como é possível notar em algumas falas dele, como a destruição do armagedon e algumas relacionadas à existência de um diabo em sua casa, Joaquim vivia um momento de enorme desespero misturado a um desejo da destruição, de término da angústia, do fim daquele mortífero sofrimento que estava vivendo e que não conseguia mediar simbolicamente, vivendo como uma experiência que o tomava em absoluto. Como Barretto afirma, é o sofrimento de não viver um sentimento de angústia, mas tornar-se a Angústia. Tentávamos dialogar e mediar o que imaginávamos estar vivendo, não nos referindo aos temas dos delírios, mas sim dialogando com as experiências que vivia e com as quais buscávamos nos relacionar. Joaquim está com alguns plásticos enrolados no pé, dizendo que foi um corte ocorrido na noite anterior por uma briga com o vizinho, que jogou uma garrafa em seu pé, ocasionando um corte profundo. Na ambulância, ele fala que queria matar seu irmão Pedro Sérgio. Ana pede que repita, porque não escuta bem, e ele grita com ela e 160 diz que não mexa com ele ou lhe dará um murro. Ana se cala, e ele continua o relato. Fala de uma violência bastante confusa, ora em relação a ele ora dele em relação aos outros. Pergunta a Fernanda se Maria pegou a arma que conseguiu e guardou embaixo da cama numa caixa de sapato e diz que pegará a munição logo. Ela responde que não sabe, mas que ele não deve ter arma, pois isso trará problemas e não resolverá o que quer, que devemos agora cuidar dele e depois resolvemos outros problemas. Ele faz variadas perguntas. Pergunta sobre a arma. Pergunta sobre a internação. Num dado momento, fala: “Fernanda, sabe que eu tô com vontade de me matar aqui agora”. Pedimos que se tranqüilize, que estamos ali com ele e que tudo ficará bem. Ele sacode a cabeça positivamente. Pergunta se ficará com essa loucura para sempre. Fala que tem “ouvido vozes e visto visões”. Diz que quer ver o pai para tentar conseguir o cartão da Coelba para se internar no Bom Viver. Que pode ficar lá seis meses até melhorar um pouco e organizar a cabeça. Tentamos acalmá-lo e falamos que vai melhorar e que tudo ficará bem. Falamos que é preciso cuidar do corte no pé e dele para que não fique pior. Ele conta sobre seus livros, diz ter terminado dois. Falamos que compramos um caderno e que traremos na próxima visita. Ele se alegra, mas retorna para os outros temas. Sobretudo no momento de crise, quando para todos é difícil lidar com o sem sentido produzido pelo sujeito, é preciso manter-se e suportar estar com este em sua estranheza, em sua bizarrice, de modo que possibilite certa posição de alteridade diferente das alteridades comuns que o cercam e que se relacionam com sua estranheza como se fosse apenas isso. Acreditamos que tudo que está desorganizado busca se reorganizar. No momento da crise, o sujeito faz um grande esforço para se reorganizar. É preciso, no acompanhamento destes momentos, estar atentos à angústia, dialogando com esta e buscando uma reconexão do sujeito com o mundo e com a possibilidade de compartilhamento (SILVA, 2006). Chegamos ao Mário Leal e entramos na emergência. Ele só quer ficar e ser atendido se for ser internado, saindo algumas vezes do local e dizendo que estávamos armando para ele. Às vezes ri sozinho. Fala sobre o corte, conta novamente a situação (...). Falamos que cuidaremos disso também. Ele continua falando da arma para matar Maria e que teme que ela a encontre e entregue no módulo. Diz que conseguiu com um “bicho solto ali de perto” e só falta a munição. Falamos que não deve matar ninguém e que deve cuidar de si e que os problemas tentaremos resolver de outra maneira. Ele fala que tudo que está ocorrendo com ele é culpa das antigas estagiárias que o tiraram do Hospital. O tiraram e o deixaram só. Pontuamos que estávamos ali com ele (...). Ligamos para a supervisão por acharmos que ele ficaria em observação um tempo e que poderíamos aproveitar para ir à comunidade e conversar com Maria. A supervisão nos orienta a esperar ele tomar a medicação, acalmar-se e deixá-lo falar com a médica. dendo pontualmente a suas falas. Não falávamos muito nem com frases extensas, visto que tal ação não tinha nenhuma eficácia, sendo inclusive pouco adequada para momentos críticos como aquele. Dialogávamos apenas com os pontos que nos articulavam com ele, no sentido da experiência que vivia e do cuidado que buscávamos ter, lembrando-lhe sempre que precisava ser cuidado e que estávamos ali para realizar este cuidado. Sabíamos que não estava bem e estávamos com ele no que precisasse. Após certo tempo, entramos na sala, e ele diz à médica que quer se internar e que não tomará injeção. Ela fala que injeção seria melhor e que, como ele se internava sempre, estava acostumado com este procedimento. Ele fica agressivo e sai da emergência em direção à rua. Vamos atrás dele, alguns funcionários o chamam, e ele retorna. Fala que não quer injeção e que quer ser internado. Ela fala que passará outra medicação e que deve tranqüilizar-se. Ele fica olhando para a enfermeira que prepara a medicação para ver se será injeção e fica muito inquieto e agressivo. A médica sai e chama os seguranças, que ficam com ela do lado de fora da sala. Ele fala que não tomará Haldol em gotas porque lhe faz mal, e ela retruca, dizendo que ou toma isso ou injeção. Ele fala conosco que devemos impedir, e falamos que deve tomar o remédio para melhorar e que fique calmo, porque a dosagem é menor e não lhe fará mal. Ele levanta, grita e se inquieta, mas depois toma a medicação. Ficamos com Joaquim na sala o tempo todo. Após tomar medicação, a Ficamos todo o tempo a seu lado e respon- médica faz a receita e diz que está liberado. Ele 161 quer falar com ela, que lhe diz que só poderá fazer mais uma pergunta e sair. Ele pergunta se ainda há vagas para se internar, ela diz que não. Explica-lhe que os manicômios foram fechados. O paciente pega a receita, e vamos buscar sua medicação. Diante do quadro apresentado na emergência, acreditávamos que deveria permanecer um tempo deitado até o efeito da medicação acalmá-lo. Entretanto, para aqueles que o atendiam, era preciso apenas receitar e pedir-lhe que se retirasse. Em nenhum momento a médica dialoga com suas inquietações e por vezes usa de sua posição para questionar e interpelar o sujeito em sua exigência por não tomar injetável. Sair da sala correndo e chamar seguranças foi o único procedimento encontrado pela equipe, que o tratava como se fosse um perigo para todos. Claro que suas atitudes nos assustavam, mas sabíamos do enorme desespero que vivia e de como a posição invasiva dos médicos, por vezes exigindo que tomasse a injeção, só agravavam o quadro. Permanecemos na sala todo o tempo, mediando o desejo da equipe de livrar-se dele com o remédio mais eficaz e a experiência de invasão do outro e do ambiente vivido por Joaquim. Vamos à farmácia buscar suas medicações (...) Explicamos como deve tomá-las. Ele pergunta constantemente se a médica mentiu, porque não queria interná-lo ou se não tem mais vaga mesmo. Falamos que não tem mais vaga. De tempos em tempos, ele retoma a pergunta. Explicamos como tomar a medicação e dizemos que deve tomá-la para ficar bem. Falamos que entendemos que, 162 quando fala de internação, o que quer mesmo são cuidados e um tempo distante dos problemas, mas que não deve se preocupar, porque o ajudaremos a lidar com os problemas e cuidaremos dele lá fora. Ele quer voltar para casa. Falamos que seria melhor que voltasse ao CAPS, para almoçar e ficar lá à tarde até melhorar. Ele prefere voltar para casa. Pergunta que horas são, para esperar e ir para o grupo no Mário Leal . Falamos que eram 11 horas e que talvez fosse melhor descansar e ir ao CAPS perto de sua casa, por conta da distância (achamos ele ainda muito agressivo e agoniado para retornar andando para o grupo). Vamos com ele pegar o ônibus para voltar para casa. O retorno no ônibus é difícil para Joaquim. Quando vamos entrar no ônibus, ele pega com força o braço de Ana e diz para não subirmos, que não tem dinheiro e depois pagará (...). Falamos que deve se acalmar e que vamos pagar sua passagem. Ele quer ir a pé, e falamos que a pé não podemos. Uma de nós senta a seu lado e a outra em sua frente fazendo uma espécie de muralha que o protege do contato com outros. (...) O caminho é longo, e Joaquim varia entre a agressividade e a “normalidade”. Achamos que, pelo tempo e pelo horário, deve estar com fome, então lhe oferecemos uma barra de cereal. Chegamos a sua casa às 12:15. Ele quer que entremos, mas achamos melhor não. Nos despedimos e falamos para tomar medicação e descansar. Tentamos, durante esta longa intervenção, abordá-lo de uma forma tranqüila e delicada, mediando as circunstâncias tão difíceis para ele e para os outros. No momento da crise, é preciso cuidar do tom. Ser delicado na presença e no uso sutil e leve das palavras. Num momento de crise, a experiência de invasão e destruição de si, para os sujeitos, é demasiado grande para que atuemos de forma comum. É preciso mediar o insuportável para o sujeito. Acalmar o em torno para que seu momento seja possível. Saber esperar e saber intervir, dialogando com a angústia, e não com as frases em si. Dialogar com a comunidade em que vive é também uma etapa importante. Acalmar a família, acreditando que o sujeito irá melhorar. Tentar mediar a pressão que vem de fora, as falas e atos que se dirigem aos sujeitos, de modo a evitar as interpelações radicais que o atingem de forma invasiva e destrutiva. A desorganização do sujeito tem lógica. É preciso conhecer sua história, perceber o que lhe é ameaçador, hostil e destrutivo. O sujeito faz uma interpretação desta hostilidade e ameaça, derivando daí a importância de se mediar as situações enquanto este busca se reestruturar. Da técnica do Acompanhamento Terapêutico, baseada nas teorias de Winnicott, utilizamos, ao longo desta intervenção, o conceito de Holding como uma função importante no manejo da crise. O Holding é dado pelos aspectos invariantes do meio ambiente que tanto podem ser objetos concretos de um lugar, quanto a disponibilidade de outra pessoa estar junto de nós, atenta às nossas necessidade ao longo do tempo (...). No Acompanhamento Terapêutico, em muitos momentos, essa função HOLD exerce papel marcante. São momentos em que simplesmente estamos ali, juntos (...) o fato de estarmos ali, nossa presença, já significa bastante (...) o valor dessa experiência não se dá somente por haver um corpo junto (...) mas por ser um corpo habitado, um corpo atento, um corpo que carrega a história do próprio vínculo(...) a experiência é integradora porque o sujeito está sendo acompanhado por um corpo simbólico e não apenas matéria física. Um outro capaz de testemunhar e compartilhar as experiências do acompanhado. A estabilidade e a constância nas atitudes do terapeuta também exerciam uma função de Holding (BARRETTO, 1998 p. 64) Durante os dias que se seguiram a essa semana, intensificamos as visitas e os cuidados, investindo naquilo que consideramos ser parte da expressão da crise: o descuidado. A vivência nessas situações novas e angustiantes interpelounos psiquicamente, afetando inclusive o vínculo que estava sendo construído, visto que Joaquim passava a ser temido. O apoio buscado junto ao CAPS foi insuficiente e precário, demonstrando a dificuldade na equipe em lidar com o caso. Foi preciso aprender a lidar com este modo de estar e produzir uma presença suave, sem interpelações bruscas nem julgamentos, para restabelecer e fortalecer o vínculo com ele, produzindo a experiência para Joaquim de um suporte psíquico necessário em momentos como este. Os dias seguintes foram repetições deste relatado anteriormente. Após uma semana, sem terminar a crise, Joaquim tem um primeiro momento de maior tranqüilidade e reelaboração dos momentos vividos. Traremos aqui este dia pela riqueza de aprendizados que ele apresenta. Em outros momentos, ao longo dos 60 dias da crise, tivemos 163 dias de maior complexidade na abordagem e dias de melhoria no quadro. Essas melhoras, entretanto, não permaneciam por muito tempo, visto que a única intensificação de cuidados que o paciente vivia era advinda de nossos encontros. As dificuldades com a irmã permaneciam, os conflitos com esta e com a comunidade também. Realizamos algumas visitas aos vizinhos, tentando explicar o momento que vivia e a importância em saber respeitar este momento, mas o cansaço visível da comunidade era claro e a lembrança da dificuldade em lidar com Joaquim era sempre convocada como justificativa dos comportamentos. O tratamento no CAPS não era particularizado e ampliado neste momento. O gerenciamento da medicação continuava difícil. A vida continuava a mesma, com pouca comida, pouco abrigo e nenhum cuidado. A esperança era menor, para ele e para nós, e, por tudo isto, a crise não cessava mesmo quando havia momentos de significativa melhora. O dia que se segue é exemplo de muitas aprendizagens compartilhadas, de trocas e de demonstrações de que o cuidado humano tem efeito na vida e nas crises de usuários como este, mas que sozinho e sem uma rede social real que signifique apoio e suporte, torna-se insuficiente e limitado. Vejamos alguns trechos dos relatos da semana seguinte: Chegamos às 9:30h e conversamos antes de adentrar ao CAPS e encontrarmos Joaquim. Conversamos sobre a melhor estratégia e sobre como estávamos compreendendo os acontecimentos. Consideramos que a ausência de Mabel e Lygia, antigas estagiárias que o atendiam, estava sen164 do trazida junto com o tema da internação, pela sensação que tem destes momentos e por considerarmos que está vivendo momentos difíceis em sua relação familiar e comunitária. Consideramos que a dificuldade de lidar com tais circunstâncias, bem como o não uso das medicações e a ausência no tratamento no CAPS têm contribuído na sua desorganização e crise. O discurso sobre a morte de Maria vem sendo mais e mais elaborado, deixando-nos preocupadas com a veracidade dos dados: primeiro sinalizou que seria uma boa idéia, depois que teria conseguido a arma com Bartolomeu, fuzileiro Naval que é seu amigo e “bicho-solto”, faltando apenas a munição, e, em seguida, que está tentando arranjar a grana para comprar a munição. Não conseguimos delimitar bem o que seria delírio e o que seria real, e, portanto, tememos que a arma pudesse existir, já que a idéia da morte da irmã vinha ocorrendo há três semanas (...) Na ultima reunião do CAPS, eles nos informaram que sua conclusão sobre o caso era de que Joaquim deveria ser internado e que deveríamos parar de nos arriscar tanto, demonstrando assim a limitação da equipe e da instituição para lidar com momentos e pacientes como este. Nossa esperança estava diminuída, e as opções de trabalho no caso tornaram-se poucas. Vivemos o que, possivelmente, vivia Joaquim: a impossibilidade de encontrar meios para sobreviver e suportar a vida. Ele tentava, de maneiras variadas e divergentes, lidar com sua difícil condição. A destruição de si e dos outros que o cercam parecia-lhe uma possibilidade sempre disponível. Ele não lidava, ou lidava pouco, por meio de es- tratégias simbólicas tais como a tentativa de compreender ou conversar sobre estas questões que o angustiavam. Os conflitos freqüentes, a vida difícil ou as perdas que acabara de viver não encontravam mecanismos relativizadores e simbólicos para que pudessem ser elaboradas. Diante do quadro colocado, a autodestruição ou a destruição total da situação e dos outros por meio da morte, do assassinato ou de um “Armagedon” foram uma saída. Encontramos Joaquim no CAPS às 10:00h conforme havíamos combinado. Ele estava com aparência abatida e inicialmente parecia fortemente dopado. O segurança, que inúmeras vezes nos ajuda a conversar com Joaquim, reclama que ele tem dormido muito e participado pouco das atividades. Começamos a conversar com o paciente, que nos mostra seu braço engessado - teria brigado na rua e quebrado o braço (...). Após certo tempo, notamos que não estava com o pé enfaixado ou com plástico cobrindo como antes, quando teriam lhe jogado uma garrafa e cortado seu pé. Olhamos discretamente, e não havia nenhum corte. Parte da enorme confusão dos dias anteriores começava a ser dissipada. Após um tempo conosco, começa a conversar animado. Num dado momento, pergunta sobre o passe-livre e os benefícios . Falamos que estamos pegando o documento que atesta sua condição junto ao CAPS, para começarmos a tirar sua documentação. Ele nos mostra alguns documentos, como um relatório de sua doença que, aparentemente, recebeu quando tentou internação com seu irmão semanas atrás. Após certo tempo, mostrou-nos uma carteirinha que estava em sua carteira dentre os documentos. Era uma carteira de papelão que ele mesmo havia feito onde estava escrito PasseLivre de Joaquim Souza Silva e tinha duas fotos de revistas de homens do exército. Ele nos diz que um deles é Bartolomeu, seu amigo fuzileiro que serviu com ele no quartel e teria lhe dado à arma. Perguntamos, bastante surpresas, se era ele mesmo, e ele confirma novamente. Este foi, sem dúvida, um momento muito mágico para nós, ver o desejo de tirar seu passe-livre num documento de papelão feito por ele mesmo e descobrir, de forma tão simples, que tudo que nos estava deixando ansiosas e amedrontadas era parte de um delírio. Por não ser tão irreal a possibilidade de conseguir a arma e por este delírio aparentar um discurso “normal”, linear, lógico e bem elaborado, estávamos, por que não dizer, “delirando junto com ele” e fantasiando todas as formas de tentarmos resolver algo que, até então, nos parecia real e iminente. Quando Joaquim nos mostrou parte de sua realidade num recorte de revista, passamos a notar que não era mais tão compartilhada a possibilidade da existência da arma. Foi balsâmico e mágico este momento, e todas nós ficamos muito alegres e nos sentindo “pegas pelo delírio” - como alguém que nos prega uma peça e, no final, tudo se dissipa. Fernanda entregou-lhe o caderno que havia comprado conforme tinha prometido (...) Ele então buscou um de seus cadernos-livro e começou a mostrar algumas histórias. Algumas que falavam de uso de drogas e práticas sexuais que teria participado numa “heavy” foram vetadas por ele. 165 Depois de um tempo, mostrou-nos um pequeno trecho em seu caderno que falava algo parecido com isto: “e naquela noite de insônia e gritos, demônios e neblina, fez-se a guerra, muita guerra e neblina e no meio da Neblina chegou Fernanda e as Estagiárias trazendo a felicidade”. Perguntamos a ele sobre o que era esse trecho, e nos disse que era sobre aquele dia que chegamos a sua casa, e Maria teria tentado bater com um pau em sua cabeça, o derrubando no chão onde ele teria batido a cabeça. Diz ter saído de casa, correndo pela rua armado, quando chegou a polícia (viatura) e o liberou após a apresentação de seu documento do exercito. Perguntamos se este foi um momento de neblina. Fala que sim. Comenta sobre como é difícil viver com Maria. Fala que sua irmã sempre mexia com ele, eles brigam há muito tempo, pois ela que tinha epilepsia e ficava chamando ele de maluco. Diz então ter se desfeito da arma, pois Bartolomeu teria dito que poderia machucar alguém. Deste trecho, duas questões nos chamam atenção. A primeira diz respeito à primeira possibilidade, depois de alguns dias, de viver e significar o vivido a partir dos pequenos trechos de textos de seus cadernos. Após o dia de crise aguda, no qual investiu contra a irmã e estava bastante desorganizado e delirante, Joaquim consegue mediar e reviver simbolicamente o que houve e demonstrar, por meio da escrita, a importância de nossa presença para “dissipar a neblina e terminar com a guerra”. Outro ponto importante é perceber, a partir do que nos conta sobre os fatos do dia da crise, como, para Joaquim, a percepção e vivência do 166 eu e do outro neste dia era imprecisa, confusa e fundida. Para ele, Maria teria lhe batido, ele teria caído e batido com a cabeça, e não o contrário, como ocorreu. Como vimos em discussões iniciais deste artigo, a produção da separação simbólica do eu e do outro na psicose ocorre de forma precária e imprecisa, de tal forma que, em momentos de menor organização, este processo de viver a relação com outro pode ser apreendida como se o outro fosse um invasor, hostil, destruidor, que o toma de seu lugar no próprio corpo. Continuando a leitura de seu caderno, Joaquim escreve sobre sua fama como escritor e como esta fama estava sendo conseguida graças a nossa ajuda na busca pela Editora abril, mais importante editora do Brasil, nas palavras dele, que lançaria seu livro. Esse trecho tem formato de uma nota de jornal e fala dele e de outros grandes escritores como Saramago e Paulo Coelho. Após vermos esta nota, ele retorna ao tema das mortes e do desejo de matar algumas pessoas, e novamente falamos que não deveria fazer isso. Dialogamos com ele, dizendo que, como escritor, não deve fazer isso, porque nunca vimos escritores famosos matando ninguém, e isso não era bom para a história e futura carreira dele. Joaquim sorri, fica pensativo e fala que é verdade, que matar não é coisa de escritores.” O desejo de tornar-se escritor é enorme para Joaquim. Ao tentarmos esta intervenção, relacionando seu desejo de ser um outro alguém com o desejo de cometer um ato que o afastaria deste sonho, o toca de uma forma diferente de outros momentos em que pontuávamos que não deveria resolver seus problemas dessa forma. Desde então, de tempos em tempos, quando há um retorno para este tema com muita intensidade, relembramos o seu sonho e a importância de persistirmos para que sua vida mude e torne-se melhor e mais possível para ele. Após um tempo, começa a nos presentear. Deu um presente para cada uma de nós. Comentou que sua madrinha havia lhe dado aquelas coisas para ele dar a sua namorada, mas, como não tinha uma, quis dar o presente pra gente, pois somos suas amigas. Fernanda ganha uma capa de celular, Ana ganha uma flor e uma bandeira do Brasil para pôr na mesa e Adelly, uma bolsa e um Papai Noel. Fala que quer nos presentear, porque ajudamos muito ele. Ana pergunta se ele tem certeza que quer nos dar, já que sua tia tinha dado para dar a namorada. Ele fala que sim, que sabe que somos apenas suas amigas. Ele retoma o tema de manter relações sexuais com as acompanhantes, e, quando novamente falamos que não estamos lá para isso, ele, diferente de momentos anteriores, diz que está brincando conosco e que resolverá isso num “brega”. Aproveitamos o assunto para falarmos sobre a importância da higiene pessoal para arrumar uma namorada. A importância de estar limpo, ter as unhas cortadas e os dentes escovados para abraçar e beijar alguém. Ele concordou. Diz para Adelly que ela lembra sua mãe, e então ela fala que deve ser pelo cuidado que tem com ele e que por isso acaba se lembrando dela. Ela sorri, e continuamos papeando até termos de ir. Antes, ele nos pede para escutarmos uma música, e depois nos despedimos alegres por esta nova etapa que se iniciava. “... a gente espera do mundo e o mundo espera de nós... um pouco mais de paciência...” (Lenine) Referências BARRETTO, K. D. Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: andanças com D. Quixote e Sancho Pança. São Paulo, UNIMARCO, 1998. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sergio Milliet. v.1, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. BRASÍLIA. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 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Diário de Campo do Programa de Intensificação de Cuidados. 2006 (mimeo). 168 Dança e xadrez: O papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de Felipe Luane Neves* Vera Rittel** A raposa calou-se e observou por muito tempo o pequeno príncipe: - Por favor... cativa-me! – disse ela. - Eu até gostaria – disse o principezinho -, mas não tenho muito tempo. (...) - A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. – Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Cativa-me! (...) - Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno príncipe. - É preciso ser paciente – respondeu a raposa. – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, cada dia, te sentarás um pouco mais perto... Antoine de Saint-Exupéry em “O Pequeno Prínipe” *Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC **Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC Resumo: O presente artigo constitui-se num relato sobre o direcionamento clínico adotado com um usuário do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos do Hospital Especializado Mário Leal, com vistas ao fortalecimento da autonomia. Este paciente é acompanhado pelo programa há três anos e por nós há aproximadamente seis meses, por meio de visitas domiciliares semanais. Um ponto central para o desenvolvimento adotado neste caso foi o fato de a intensificação de cuidados ser realizada em dupla. Isso permitiu que pudéssemos tomar consciência, discutir e elaborar as questões em nós suscitadas pelo paciente e pelos direcionamentos que consideramos mais adequados. O presente artigo constitui-se num relato sobre o direcionamento clínico adotado com um dos usuários do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos no Hospital Especializado Mário Leal (PIC), com vistas ao fortalecimento da autonomia. Compreendemos que a autonomia constitui eixo central na relação do 169 sujeito consigo e com o mundo externo e adotamos a conceituação explicitada no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, pelo qual a autonomia é definida como a “1. Faculdade de se governar por si mesmo. (...) 3. Liberdade ou independência moral ou intelectual. (...) 5. Propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem a sua conduta”. Destaca-se ainda que o PIC, ao contrário do modelo tradicional de atenção à saúde mental - baseado no princípio normatizador psiquiátrico - considera a extrema vulnerabilidade vincular do paciente e por isso atua na intensificação de cuidados focando no desenvolvimento e fortalecimento do sujeito e das redes sociais do mesmo, aumentando desta forma sua qualidade de vida. Sendo assim, o PIC funda-se na clínica psicossocial, que ao invés de centrar sua atenção na pessoa doente, considera a “existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o espaço social” (Nascimento, 2005, p. 34). Este paciente é acompanhado por nós há aproximadamente seis meses. Vera o conheceu quando ele fez uma apresentação de dança numa festa de confraternização do estágio e depois o viu apenas uma vez no grupo dos pacientes, quando ele estava se queixando de dor de cabeça e percebeu seu jeito gentil e muito calmo. Já Luane o conheceu a partir das passagens, momento em que é feita a transição de estagiários. A dança é um processo marcante na vida de Felipe e acreditamos ter sido significativo Vera o conhecer em uma de suas apresentações, pois fortaleceu diante de nós a expressão dele como um sujeito psíquico 170 multifacetado, em que a posição de dançarino se sobressaiu à de doente mental. Após algumas visitas da passagem, começamos a juntar mais as peças do quebra-cabeça de sua biografia, inicialmente através de conversas e depois quando ele tirou alguns álbuns de fotografias do baú para nos mostrar, o que ressuscitou muitas memórias, principalmente sobre a época em que ele trabalhava como dançarino de dança de salão. Felipe foi adotado quando criança, numa família de oito irmãos. Sua mãe biológica ainda está viva e mora na região litorânea acerca de 30 km de Salvador. O paciente mantém um contato esporádico com ela e atualmente reside com sua família adotiva, numa casa de classe média baixa com dois cômodos e um pequeno quintal, onde a mãe cria aves. Há quatro anos, ele teve a primeira crise psicótica com internação por 26 dias. A partir de então, toma medicação com antipsicóticos e já foi internado outra vez. Nessas ocasiões, o prontuário médico destaca que o comportamento de Felipe era muito agressivo. Entretanto, sua forma de nos receber, sempre solícita e afetuosa, nos fez questionar onde foi parar sua raiva e agressividade. Posteriormente, percebemos que essas nuances de sua personalidade se apresentam no delírio e nos momentos de crise. Considerando a perspectiva psicanalítica de que o homem se constrói a partir das relações que desenvolve com o ambiente, é interessante refletir sobre o tipo de ambiente a que ele estava exposto no período de internação. Além disso, destaca-se também a condição psicológica precária da família para li- dar com os desconfortos que uma crise psicótica produz. Embora conste que sua crise foi paranóica, a família sempre se refere à sua doença como sendo depressão, destacando que, nesses momentos, ele ficava em casa, sem vontade para fazer nada. Felipe era dançarino profissional (com formação em ballet), tendo feito cursos e algumas apresentações na região sudeste. Aparentemente, foi o surgimento da doença mental, aliado a seus desdobramentos, que interromperam sua carreira profissional. Apesar do relato de que, a partir da crise, Felipe passou a não sair muito de casa devido a este suposto estado depressivo, nos momentos em que ele nos acompanha até o carro, no término da visita, podemos observar que, na vizinhança, tem muitos conhecidos com os quais ele conversa. Além disso, sua casa é bastante movimentada, o que inicialmente não nos leva a pensar num quadro de isolamento social. Visto que ele não se apresenta muito disponível para realizar saídas de casa conosco, as primeiras visitas a Felipe (período de transição de estagiárias) seguiam sempre um mesmo padrão: nós chegávamos e ficávamos na sala com ele e seu pai, sempre com a televisão ligada. O diálogo entre nós circunscrevia-se a questões do cotidiano, em geral, desenvolvidos a partir de comentários sobre programas televisivos. Vale ressaltar que Felipe mantinha rotinas bem estabelecidas em relação ao decorrer da visita: sempre nos recebia com alegria, sorriso no rosto, ficávamos na sala quase sempre nas mesmas posições e, no fim das visitas, ele nos acompanhava atenciosamente até o carro. Além disso, ele não se apresentou disponível para trocar o dia e horário das visitas, proposta feita por nós em um dos primeiros encontros. Neste sentido, ganha relevo a constante apresentação de Felipe como uma pessoa gentil e solícita, aparentemente com pouca demanda de cuidado. Destaca-se ainda que a necessidade de se apresentar socialmente conforme o suposto desejo do outro pode denotar pouca autonomia. Segundo Tatossian (2006), a atitude de alegria constante não significa que a pessoa realmente esteja alegre, podendo refletir uma inautenticidade não somente das expressões afetivas, mas dos sentimentos mesmos; o que pode se traduzir em alguns sintomas psiquiátricos. Compreendemos que essa atitude, apesar de reforçada socialmente, nem sempre é positiva para o desenvolvimento psíquico de Felipe, pois pode cristalizá-lo no papel de buscar sempre sentir e atender as necessidades externas. Teoricamente, essa questão é também abordada por Keleman (1992) que, ao analisar a estrutura do sujeito, a partir de sua postura corporal emocional, observou traços de imaturidade em pessoas que apresentam “estruturas corporais inchadas” (possível caso de Felipe, segundo nossa percepção). De acordo com o referido autor, essas pessoas preocupam-se em ser aquilo que os outros querem que ela seja. Almeida (2006, p. 89) complementa tal questão, ressaltando que “o psicótico goza de ser, ser o falo que completa o Outro, o que equivale a dizer que o gozo está localizado no Outro”. 171 Notamos, então, a necessidade de desenvolver outras atividades que favorecessem a Felipe apresentar suas necessidades e desejos. Neste sentido, Barretto (1998) afirma que - para ser interlocutor dos desejos e angústias do paciente - o terapeuta não deve se limitar a interpretações, mas sim agir como pessoa real, por exemplo, num simples bate papo. Outro ponto importante era estabelecer uma maior aproximação da família, para perceber como Felipe inseria-se neste contexto. Para tanto, demonstramos interesse por aquilo que sua mãe gostava: a criação de galinhas e codornas e algumas pequenas plantações no quintal, o que propiciou alguns momentos de diálogo. Somente a partir daí, fomos convidados a entrar mais no interior da casa. Destaca-se, entretanto, que a aproximação com a mãe de Felipe ficou estagnada na compra de ovos de codorna, que se tornaram quase sempre semanais. Percebemo-nos, depois, neste sentido, submetidas tanto quanto Felipe à força do desejo de sua mãe. Atentas para o surgimento de alguma necessidade apresentada pelo paciente, ele nos revelou que sempre quis aprender xadrez, após Vera lhe contar uma história, a “Novela de Xadrez”, de Stefan Zweig, em que um preso político se defende de enlouquecer durante a tortura através da prática do jogo de xadrez na imaginação. Combinamos com ele, então, uma troca: nós lhe ensinaríamos xadrez e ele nos ensinaria dança de salão; forma por nós encontrada de incentivá-lo a voltar para sua antiga ocupação (a dança) e re-experimentar como se sente na posição de bailarino e professor. Essa também foi uma forma de valo172 rizar o saber do paciente e propiciar um espaço em que ele pôde atuar como sujeito no mundo. Considerando a noção de complementaridade ou reciprocidade exposta por Fumagalli (1995) em concordância com a teoria de Pichon-Rivière - pela qual a constituição de um papel implica a instituição do papel contrário - colocamo-nos no lugar de alunas para propiciar um espaço em que ele pudesse assumir a posição de professor. Além disso, sentimos que as aulas de dança fortaleceram o vínculo entre nós, o respeito no estar junto, a alegria espontânea e a criatividade de Felipe ao planejar as aulas. Ressalta-se ainda que, no caso dele, a escolha pelas aulas de dança ocorreu por, aparentemente, constituir-se no elo capaz de fortalecer mais sua rede social, engajando-o na cultura; uma vez que ele demonstrava interesse pela atividade e já possuía uma história vinculada à mesma. Felipe aceitou prontamente a troca, e, a partir daí, começou dinamicamente a conduzir o planejamento de nossos encontros, alterando em diferentes momentos sua postura, da passividade para a atividade e autonomia. Ele guiava a ordem das atividades nas visitas: primeiro a aula de xadrez, depois a aula de dança e, entre elas, assistir um filme sobre dança. Isso foi marcante, pois Felipe anteriormente apresentava certa indefinição sobre as coisas, por mais simples que fossem. E, a partir deste processo, ele começou a se posicionar mais, expondo com antecedência o que queria fazer nas nossas visitas futuras. A partir das visitas em que jogamos xadrez, além de perceber sua iniciativa de organização, observamos também uma delimitação maior de seu espaço através de palavras firmes em diversos momentos: a exemplo de quando uma amiga bem próxima de sua família quis que Luane ficasse com ela conversando, enquanto ele precisava dela para apóiá-lo na partida de xadrez que jogava com Vera, e ele não permitiu. No jogo, observamos que Felipe aprendeu com rapidez o significado de cada peça, bem como seus movimentos específicos e, após certa hesitação, pôde também mostrar iniciativa e enfrentamento, “matando” as figuras do adversário para tentar ganhar. Um outro ponto que surgiu a partir desse semestre foram as constantes desmarcações em nosso horário de visita, fixado em dia e hora específicos, por escolha do próprio paciente. Teve alguns momentos em que não sabíamos como interpretar essas desmarcações no dia da visita, mas, através de sua voz alegre ao telefone, confiamos em suas explicações sobre saídas inadiáveis para aniversários e festas acompanhando sua antiga professora de dança e percebemos que ele também passou a organizar, de certa forma, a freqüência de seus encontros conosco. Além disso, compreendemos que o processo de mudanças em curso mobilizou o paciente de diversas maneiras, e seguindo um dos princípios da clínica psicossocial, de tensionar e destensionar as questões, decidimos respeitar o seu espaço. Refletindo posteriormente, percebemos também um outro ponto significativo neste contexto: as desmarcações de Felipe, em geral, referiam-se às visitas marcadas para assistir filmes ou para as aulas de dança. Além disso, ele desmarcou duas visitas posteriores às aulas de dança. Acrescentase a isso que, no final do semestre, Felipe nos relatou que vinha repensando se seu desejo e seus planos continuariam a incluir a dança e que sentia recorrer à televisão como uma fuga, utilizando esse recurso às vezes na tentativa de entender o que acontecia com ele. Podemos perceber, assim, que Felipe desenvolveu conosco um “projeto” (termo utilizado por ele) que buscava novas experimentações e que foi permeado também por reflexões sobre o direcionamento que dará à sua vida, a partir das vivências anteriores. Quanto às aulas de dança, o resultado foi surpreendente. Na primeira visita que ele marcou para este fim, chegamos à sua casa e encontramos um ambiente novo: ele já tinha esvaziado a pequena sala, elaborado um roteiro de aula bem estruturado, posicionado o pai numa cadeira atrás da cortina que separa a cozinha da sala e desligado a TV; reconfigurando o espaço para sua necessidade naquele momento. Podemos considerar, a partir das contribuições teóricas de Winnicott, retomadas por Safra (2006), que a atitude de Felipe modificando o ambiente segundo suas necessidades pode ser compreendida como um placement, que produziu novas tensões no ambiente, além de proporcionar a revivência de memórias. Quanto ao roteiro elaborado por ele, as aulas iniciavam e terminavam com alongamento, perpassando cerca de quatro estilos de dança de salão e, no fim ele nos trazia pipoca e suco para um relaxamento; destacando que o lanche foi feito por ele para nós. Esse momento 173 final foi especialmente importante, por propiciar um espaço em que ele pôde reviver algumas de suas lembranças da época de dançarino profissional e elaborá-las junto a nós. Durante as aulas, Felipe demonstrou bastante profissionalismo e paciência, feedback dado a ele por nós também. Podemos compreender essa vivência junto ao paciente como uma experiência estética e de satisfação. Segundo Safra (2005), nestes momentos, tanto o paciente quanto os terapeutas experienciam vivências de encanto, de alegria ou de beleza. Winnicott (1967, apud Safra, 2005) acrescenta que, nestas ocasiões, o reflexo especular fornecido pelo outro abre a possibilidade do paciente encontrar a si mesmo e, ao mesmo tempo, ao outro. Uma grande questão trazida nos relatos das estagiárias anteriores sobre Felipe e também percebido por nós nas primeiras visitas era que ele costumava fazer muitos planos, mas apresentava pouca iniciativa para realizá-los. Neste sentido, as aulas de dança funcionaram como oportunidade de reviver, na prática, essa posição antes ocupada com orgulho, de ser um professor de dança. Além disso, através de nossas dificuldades nas aulas, pudemos lhe demonstrar como expressar e lidar com vulnerabilidades, erros, vergonhas e vivenciamos algumas saídas possíveis. Rimos muito nesses momentos. Considerando as intervenções e a convivência com a família, no caso de Felipe, retomamos as teorizações de Barretto (1998) ao esclarecer que, através do trabalho em nível dramático-vivencial, o paciente aprende modos diferentes de atuar e reagir frente às vicissitudes 174 da vida cotidiana. De maneira semelhante, aconteceu com o jogo de xadrez, em que a necessidade de avançar frente aos campos desconhecidos (campo do outro) constituiu-se em ato, ao invés de somente palavras. O autor supracitado acrescenta ainda que o jogo de xadrez pode ser utilizado também como espelho da vida. Durante as aulas de dança, percebemos mais vitalidade e graciosidade em seu corpo, resgatando um pouco da flexibilidade e auto-regulação (Lowen, 1982), o que se refletiu, posteriormente, em algumas intervenções na família e em suas ações e reações. Segundo Pitiá e Santos (2005), é possível inferir que a consciência do limite corporal proporcionada pelo toque constante, na dança de salão, pôde ajudar Felipe a delimitar seu espaço dentro da família, fato observado na prática. Além disso, os referidos autores destacam que o trabalho corporal proporciona mudanças de pensamento e atitudes, ao facilitar uma maior integração mente-corpo; podendo ter como conseqüência uma diminuição da ansiedade. Por tudo isso, notamos que a inter-relação entre oferecermos as aulas de xadrez para Felipe e ele nos ofertar as aulas de dança permitiram uma alternância na posição de saberes (aquele que doa e aquele que recebe) e podemos perceber, então, o fortalecimento da autonomia de Felipe. Em nossas visitas regulares, fornecemos holding – processo pelo qual uma pessoa se disponibiliza para outra, utilizando da presença do seu corpo simbólico e habitado de forma constante, tanto física quanto psíquica, com vistas a oferecer sustentação. Para tanto, são necessários tranqüi- lidade e um referencial teórico bem integrado, no caso de terapeutas (Barretto, 1998). No decorrer do trabalho, sentimos que Felipe desenvolveu uma maior confiança no vínculo conosco e segurança para, em ato, planejar seu futuro, conduzindo-se, agora, não somente em idéias, mas também em ações: decidiu se matricular novamente no 3o ano do Ensino Médio e, por isso, foi até a escola saber informações sobre a matrícula para o próximo ano. Interessante que, nesta visita, ele passou um bom tempo falando, animadamente, sobre a escola que visitou e suas idéias para o próximo ano: combinou com sua antiga professora de dança de receber aulas pela manhã, ministrá-las com ela pela tarde e estudar à noite. A partir desses fatos, inferimos que sua falta de reatividade relatada pelas estagiárias anteriores diminuiu. Destaca-se, também, que ele já consegue demonstrar para nós, de modo mais claro, seus sofrimentos e mágoas. Notamos, contudo, que para a efetividade na execução dos planos desenvolvidos por Felipe para sua própria vida, serão necessárias muitas mudanças, as quais incluem desde um novo posicionamento do paciente diante da vida até uma reformulação na visão da família sobre suas potencialidades de se autogerir a partir das crises psicóticas; visto que o cuidado pode também se revestir em controle. Na tentativa de compreender e lidar melhor com o fenômeno da psicose, alguns de seus familiares explicam o surgimento da doença mental em decorrência da mente trabalhar muito rápido e do excesso de atividades. Esta visão equivocada é comum a alguns familiares de usuários de saúde mental, sendo inclusive difundida anteriormente pela psiquiatria. Devido a tais concepções, um de seus familiares preocupa-se em delimitar o horário de Felipe voltar para casa, quando este sai, por exemplo. Ele destaca que Felipe tem de voltar a fazer as coisas devagar e ter um tempo para “descansar a cabeça” (sic). De fato, o processo de mudança de Felipe deve ser gradual para que ele possa adaptar-se às mudanças de maneira saudável, contudo, o ritmo e o desejo dessa readaptação só podem ser determinados pelo próprio paciente, e não pelo ambiente externo. Considerando o surgimento de seu desejo de mudança, Felipe avançou ao verbalizar que se percebe cristalizado e segregado na função de doente mental e o quanto isto é doloroso; fazendo-o sentir-se incompreendido. Neste sentido, compreendemos ter sido muito importante para o paciente poder constituir junto conosco um espaço de escuta, em que suas experiências puderam ser compartilhadas, simbolizadas e elaboradas; fenômeno exposto por Barretto (2005) como continência. Em um de nossos últimos encontros em 2006, Felipe, pela primeira vez desde o seu ingresso no programa, falou para nós de si e de maneira bastante mobilizada. Neste encontro, o ambiente estava diferente, além das pessoas estarem deslocadas de suas posições habituais. Felipe parecia sentir-se oprimido e sufocado. Começou dizendo que não queria mais ser acompanhado pelo programa e que não queria estagiárias novas, pois estava bem e existiam outros pacientes que precisavam mais de tratamento do que ele. Ele 175 retomou que entrou no programa por que quis e agora queria sair, pois não queria lembrar das coisas que já passou. Sentimos que, por trás dessa fala de querer sair do programa, havia outras coisas que ele precisava externalizar, mas não sabia como. Por isso, perguntamos-lhe o que estava sentindo e o porquê desse desejo de deixar de participar do PIC, sinalizando que era importante para nós ouvir o que ele tinha a dizer. Foi então que Felipe começou a falar várias coisas, dizendo que iria abrir o jogo. Começou dizendo que ninguém sabe o que ele passou quando internado e que ele iria morrer sem aceitar o que aconteceu com ele. Relatou que não gosta nem de passar pelo Mário Leal para não recordar isso e que não queria mais ser acompanhado, pois não queria mais este rótulo de doente mental. Retomou sua mágoa, dizendo que sua família não soube apoiá-lo e, ao invés de dar as mãos para juntos caminharem, o internou mais de uma vez. Esse momento foi muito rico, pois o fato de poder ter nos contado o que sentia quando foi internado, traduzindo a experiência numa linguagem, significou certa elaboração/simbolização por parte do paciente e, conseqüentemente, desenvolvimento psíquico. Ele destacou não querer mais acordar e somente arrumar a casa, que ele quer mais. Valorizamos muito seu desejo de mudar, destacando que ele tem muitos potenciais. Discutimos bastante sobre o estigma da doença, temática trazida também em visitas anteriores, e sobre o desconforto que esse sentimento de ser taxado de “maluco” produz, destacando que é preciso aprender a lidar com esses desconfor176 tos para não se paralisar diante do preconceito do outro. Neste sentido, Goffman (1982) postula que, diante do estigma, expressões emocionais mais fortes ou atitudes menores (a exemplo de uma briga na família) podem ser interpretados de forma errônea, associando tais processos aos atributos diferenciais estigmatizados, neste caso, a patologia mental. Enquanto isso, nas pessoas consideradas normais, não se interpreta tais acontecimentos como expressão sintomática. Compreendemos também que, na postura diferenciada do terapeuta, é possível aliviar os impactos que a visão estigmatizante produz. Segundo Barretto (1998), estar junto como pessoa real e não apenas como profissional ajuda a evitar um lugar excessivamente institucionalizado, embora exija bastante discriminação, capacidade de análise e reflexão. Refletindo sobre as mudanças vivenciadas e aquelas que Felipe deseja empreender, reforçamos que tudo isso só foi possível por ele estar aberto e que a própria idéia do xadrez partiu dele. Neste momento, ele nos disse que tem se questionado sobre o que quer de fato, inclusive repensando a dança em sua vida. Vera falou um pouco de como as mudanças, de modo geral, nos afetam e afetam os outros ao nosso redor, relatando sua experiência ao sair da Alemanha para o Brasil, o que implicou no afastamento de sua tradição familiar, e as dificuldades de sua família em aceitar as diversas quebras de padrões. Felipe concordou, e sentimos que ele se identificou com isso, representando, de algum modo, o que também sente, diante de todas as diferenças que vivencia com a sua família. Para Barretto (1998), nestas ocasiões, o terapeuta age como pessoa real, inserido numa cultura em que elaborou suas experiências. Referindo-se ao desejo de sair do programa, por não querer mais se ver como doente mental, Felipe relatou que não está tomando a medicação psiquiátrica há cerca de cinco meses e não está sentindo nada. Foi muito importante estarmos atentas a esse caso, pensando clinicamente sobre o mesmo, para não cairmos na cilada de priorizar os remédios ao invés do sujeito, pois, neste sentido, perderíamos toda chance de dialogar com a experiência que ele estava vivenciando, que era justamente a de não se posicionar como doente. Destaca-se, neste sentido, a importância de estabelecer junto ao paciente um lugar que sustenta ser depositário de suas angústias (Rivière, 2000). Discutimos que a medicação, o programa, a psicoterapia, dentre outras coisas, são possibilidades, as quais ele pode ter acesso para sentir-se bem e que poderia articular-se diante delas de diversas maneiras. Ele acrescentou que não queria mais se consultar com os médicos, enfim, rejeitou essa rotina que o faz sentir-se cristalizado na posição de doente, ao invés de um sujeito com potencialidades. Destacamos para Felipe a necessidade de realizar um processo de mudança gradual e que respeite o seu ritmo interno, para não sentir o peso de uma transição brusca; mas, na realidade, essa mudança já vem ocorrendo há muito tempo dentro dele e agora eclodiu. Ele falou, também, da noção de projeto que nossos encontros tiveram e aproveitamos para falar que estávamos dispo- níveis para desenvolver novos projetos com ele, assim como as novas estagiárias, segundo suas necessidades. Felipe demonstrou bastante implicação no processo, centrando nele a responsabilidade de mudar: falou da necessidade de perder peso, que somos os nossos maiores psicólogos e que ele precisava lutar contra si mesmo, para se controlar. Barretto (1998) destaca que, uma vez estabelecida a confiança, o paciente pode apresentar algo de sua realidade psíquica, sendo que, ao compartilhar a angústia com o outro, esta se torna suportável e humanizada. A experiência de investir confiança em Felipe e acreditar que ele pode ser capaz de dar conta de sua liberação dentro e fora da família, respeitando seu desejo de ficar sem contato conosco durante o período de festas de final de ano e nas situações em que as visitas foram desmarcadas, nos trouxe muitas inseguranças. Contudo estamos conscientes de que, para chegar a um certo grau de autonomia, é necessário passar por desafios. Outro aspecto central observado na situação do desabafo é que esta proporcionou a oportunidade de Felipe direcionar certas questões também para a família, e isso, de algum modo, mobilizou a todos: fosse na maior movimentação de seu pai na cadeira, na saída de seu irmão de casa ou nas panelas que sua mãe deixou cair. Ao final desta visita, fomos nos despedir da mãe de Felipe, e ela já havia separado os ovos de codorna para levarmos. Como combinado anteriormente entre nós, dissemos-lhe que não levaríamos os ovos essa semana, ao que ela insistiu 177 enfaticamente. Felipe fez sinal para seguirmos, o que fortaleceu a nossa decisão de não cedermos, com a intenção de modificar a relação com a mãe. Mais do que nunca, depois de tudo que ele trouxe nessa visita, não podíamos nos submeter à força do desejo de sua mãe; terapeuticamente precisávamos nos posicionar diante dela também. Percebemos a beleza deste encontro e como esta experiência foi capaz de liberar um acúmulo interno de suas necessidades, aliviando a tensão e também o libertando de alguma forma das exigências externas. Keleman (1992, p. 140) aborda bem esta questão ao explicitar que “o corpo inchado grita para ser deixado em paz, sem ser abandonado”. Segundo Safra (1995, apud Barretto, 1998), uma experiência, para ser integradora e constitutiva deve ter início, meio e fim, em que o ritmo da criança (e da vida – nascimento, constituição do sujeito – morte) deve ser respeitado até chegar a um gesto espontâneo. Expandindo essa visão para o processo terapêutico, o paciente, após uma fase de hesitação, começa a estabelecer um vínculo de confiança com a figura e a pessoa real do terapeuta. Depois, o setting terapêutico precisaria ser destruído aos poucos pelo paciente, até que a relação dos dois (paciente – terapeuta) possa se encerrar, construindo a possibilidade do sujeito vir a exercer sua autonomia frente ao terapeuta. Será que Felipe agora expressou o gesto espontâneo? Muitas outras questões podem vir a ser trabalhadas nesse caso, a exemplo da relação do paciente com a mãe biológica, pois, compreenden178 do de outra forma a sua origem e ressignificando as circunstâncias de sua adoção, ele poderá se localizar com mais sustentação no mundo, e, dessa forma, desenvolver mais segurança e autoconfiança. Ademais, Marinho (2006) destaca que o psicótico apresenta dificuldade em achar o seu lugar diante da história familiar, necessitando reconstruir as origens de sua vida, o que se expressa no delírio. Contudo, compreendemos que esta necessidade deve partir do próprio paciente, para que sejam as necessidades dele, e não as dos estagiários ou da família a serem trabalhadas. Um ponto central para o desenvolvimento adotado neste caso foi o fato de a intensificação de cuidados ser realizada em dupla. Isso permitiu que pudéssemos tomar consciência, discutir e elaborar as questões em nós suscitadas pelo paciente e também adotar os direcionamentos que consideramos mais adequados. Depararmo-nos com nossos pré-conceitos e imaginários sobre a saúde mental e o investimento no fazer clínico foi de fundamental importância para que pudéssemos sustentar essa posição de troca, que exigia um grande envolvimento e disponibilidade, inclusive física, para o processo. Neste sentido, revelase não apenas o cuidado para com o paciente, mas também entre as próprias estagiárias que, no processo da clínica, formularam, para além de um conhecimento sobre o paciente, um maior conhecimento sobre si mesmas. Referências Almeida, B. H. M. de (2006). Que Paris é esse? Fragmentos Clínicos. In Santos, R. G.(Org.). Textos, Texturas e Tessituras no Acompanhamento Terapêutico. (pp. 79-103). 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Para tanto, utiliza-se da experiência de acompanhamento a um paciente inserido no PIC (Programa de Intensificação de Cuidados a pacientes psicóticos). A solidão psicótica é um assunto de grande relevância clínica e social. Entre os fatores que contribuem para a presença desse sentimento estão o processo histórico de exclusão do diferente do convívio social e a própria relação frágil do psicótico com o outro. Durante a discussão do caso, são levantados pontos importantes, assim como comentadas as intervenções realizadas com vistas à criação e fortalecimento dos laços sociais do acompanhado. A solidão é um fenômeno pungente em nossa sociedade. Na Modernidade, análises sócioantropológicas já apontavam para uma tendência à alienação e ao isolamento do indivíduo, principalmente nas grandes metrópoles. A passagem do modo de produção coletivo, sociedades holísticas, para as sociedades de consumo, capitalistas e individualistas trouxe o embrião para a experiência do sentir-se só de cada um. Nas grandes cidades, o sentimento de solidão se torna cada vez mais intenso. Imersos na multidão indiferenciada, os indivíduos andam alheios uns aos outros, cada qual em busca dos seus interesses particulares. Se voltarmos um pouco da atenção para o nosso comportamento durante o transcurso de um dia, não raro nos flagraríamos a planejar o próximo comQuem é esse que perambula pela es- promisso, a pensar na discussão com o colega trada sem rumo em meio à multidão? O de trabalho ou a fantasiar um possível encontro que ele busca? O que deseja? É um so- amoroso para o final de semana. Ou seja, vivelitário, absorto em seus delírios: a última mos um tempo em que a nossa rotina tende a chance de se livrar do insuportável sentinos levar para um ensimesmamento que não nos mento de solidão. permite olhar a nossa volta. Como Brentano traduziu: “Todos os que eu via andavam na mesma * psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC 180 rua, uns ao lado dos outros e, no entanto, cada um parecia seguir seu próprio caminho solitário, ninguém se cumprimentava, cada um ia atrás de seu interesse pessoal (...)” (BRENTANO apud TANIS, 2003, p.57). Atualmente, observamos o fracasso da profundidade das relações, que estão cada vez mais superficiais e fugazes. Estamos experimentando uma carência de substância que pode ser observada nos padrões de comportamento das pessoas. Os relacionamentos virtuais ganham espaço e vão, passo a passo, substituindo o contato físico. Os encontros ficam a cargo da fatalidade ou coincidência, e as promessas de reencontros, aos poucos, vão sendo esquecidas com o passar dos dias. Não fazemos muita questão do outro, de estarmos com o outro, embora este outro seja fundamental para nossa sobrevivência enquanto humanos. Normalmente, quando este é procurado, é por um motivo pontual, claro e objetivo. Seja como uma companhia para diversão seja como um confidente de nossas conquistas e desilusões. A celebração do encontro e o prazer de estar com o outro são cada vez mais raros na nossa cultura. As análises mais pessimistas (ou realistas?) diriam que viver de forma isolada e alienada é uma tendência do homem urbano contemporâneo (TANIS, 2003, p. 55). Para Tanis (2003), este comportamento tem a ver com a atomização da sociedade, com a incapacidade de comunicação e uma certa falência da linguagem (TANIS, 2003, p. 13). Podemos falar também do surgimento de um novo tipo de comunicação e linguagem quando pensamos na Internet. E por que não dizer de uma certa condenação à solidão? O mundo das virtualidades, ao qual o homem contemporâneo se encontra submerso, de certa forma, anuncia a sua condenação a ser solitário (KATZ, 1996, p.63). De acordo com Katz (1996), a presença do outro é insuficiente para que a solidão se finde. Esse autor afirma que é na busca pelo outro que o homem se depara com a solidão. O “ir em busca”, para este autor, desvela a constatação do “ser só” que não é sanado no encontro com o outro. Ao contrário, “quando o indivíduo busca mais desesperadamente a procura do outro, é nesta procura que ele encontra a solidão” (KATZ, 1996, p. 29). A concepção universalizante de que o homem deve viver em sociedade faz com que a solidão seja vista como uma anormalidade, como um sentimento negativo que todos devem evitar (KATZ, 1996, p.29). Contudo há quem visualize uma positividade na experiência do sentir-se só. Katz (1996) fala da solidão positiva, o que vai de encontro à norma geral da solidão como algo negativo (KATZ, 1996, p. 30). O autor defende que momentos de solidão podem nos permitir experiências inalcançáveis quando se está na vida social. Ele chega a defender o asilamento como uma forma de estar com os seus pares, libertados das regras sociais ou psíquicas ditas normais (KATZ, 1996, p.141). Para Tanis (2003), esta solidão diz algo sobre a capacidade de estar só e de usufruir a experiência de agir apenas de acordo com o que nos manda a nossa vontade. (TANIS, 2003, p. 151). É compreensível que, muitas vezes, queiramos nos isolar, 181 fugir da correria das cidades grandes, estarmos sós com nós mesmos. No entanto esta decisão deve ser voluntária, não imposta pela sociedade. De acordo com Tanis (2003), vivemos de forma defensiva a todo instante. É que, para o autor, se configura como uma ameaça o contato com o outro e com seus próprios conflitos internos, pois nos remete a nossos próprios conflitos. Isso leva o indivíduo a voltar-se para si mesmo, a escapar do contato com o mundo e a estar, permanentemente, alerta e precavido, embora não se saiba muito contra o quê. Esta é a solidão dos neuróticos, que todos nós, ditos normais, vivemos (TANIS, 2003, p.99). Desta forma, a solidão se faz presente como uma produção social da qual todos fazem parte. A solidão também pode desorganizar psiquicamente o neurótico. O “sentir-se só” ou, simplesmente, a ausência da presença do outro pode levar a uma desestruturação, podendo chegar a uma alteração do estado de consciência, desorganização espaço-temporal e vivências alucinatórias (TANIS, 2003, p.139). O “sentir-se só” é denominado pelo mesmo autor como a solidão da diferença (TANIS, 2003, p.29). Esta solidão é engendrada pela exclusão da diferença. É a solidão do não pertencimento, freqüentemente experimentada pelos indivíduos à margem da sociedade. Esse sentimento se aproxima da sensação de estranhamento do mundo no qual se está inserido, como nos conta Tanis (2003): pensavam em abrir caminho na multidão. Outros, de faces coradas, também numerosos, andavam com movimentos inquietos (...), como se a densidade da massa que os rodeava lhes fizesse sentir mais a própria solidão (TANIS, 2003, p. 68). Para Tanis (2003), há uma diferença entre “estar só” e “sentir-se só”. Esta solidão é experimentada mesmo na presença de muitas pessoas. O sentir-se só é uma experiência próxima ao desamparo em nossa sociedade. Para o autor, a solidão resulta do “esvaziamento do papel do outro” e dos vínculos do sujeito com este. De acordo com o autor, o que está nas bases da solidão são as relações entre o eu e o objeto. Para ele, não existe solidão sem referência ao outro (TANIS, 2003, p.168). Nesse sentido, merece destaque a experiência vivida pelo psicótico, uma vez que sua relação com o outro é estabelecida de forma precária, ou seja, a posição que este ocupa não está bem definida nas relações de objeto. A psicose desenvolve uma relação especial com o objeto (TANIS, 2003, p. 123). O “louco” compõe um grupo específico, no qual a solidão existe de forma impactante e concreta. Esta é a solidão da exclusão, considerada aqui como imposta. Nossa sociedade exclui aquelas pessoas que não teriam condições de compartilhar das mesmas regras sociais da maioria. No dizer de Katz (1996), são os solitários naturais, “pois não teriam condições naturais de se comunicar e conviver com outros de modo natural”. A maior parte tinha um modo de andar satisfeito e prático e evidentemente só O ser “natural” significa, para o autor, possuir 182 a capacidade de atender às variadas exigências produtivas dos grupos sociais. Para ele, o “louco” se expressa numa linguagem impossível de ser socializada (KATZ, 1996, p. 43). Esta solidão tem um aspecto negativo, por ser marcada pela impossibilidade do indivíduo de compartilhar algum projeto grupal ou social.Como se não bastasse tamanho determinismo “natural”, o psicótico ainda se insere em um outro grupo: o grupo dos solitários sociais. Neste grupo, estão aquelas pessoas destinadas ao isolamento social, pois não conseguem acompanhar o sistema educacional, entrar no mercado de trabalho, além de serem isoladas, muitas vezes, pela própria família. Os “loucos” estão aí incluídos por possuírem características que os tornam incapazes perante as exigências sociais (KATZ, 1996, p. 45). Segundo Katz (1996), “a solidão desses grupos é da ordem geográfica ou física e corresponde mais estritamente a um isolamento” (KATZ, 1996, p. 46). Essa idéia vem combater o isolamento como algo voluntário, fruto de um desejo interno do homem. “A solidão que se recusa à inscrição social é produzida pelos saberes socialmente organizados, vivida e pensada como um processo negativo” (KATZ, 1996, p.111). O psicótico vivencia a experiência da solidão de forma muito particular. Este sujeito é a própria solidão, uma vez que o outro, para ele, é sempre um enigma. Essa forma particular de ser no mundo encontra a intolerância e indiferença das pessoas que, perturbadas com a diferença, afastam a loucura da sociedade, temendo modos de subjetividade que perturbem “uma dita continuidade e coerência do mundo da vida, uma expectativa de felicidade e harmonia” (KATZ, 1996, p.45). Desse modo, esta solidão deve ser afastada da sociedade dos ditos normais sob risco de contaminá-la com a loucura que está em cada um de nós. O louco recusa-se a ficar sozinho. Angústia desesperada do indivíduo na multidão solitária. Mesmo - o outro - não estando estruturado psiquicamente para o psicótico, ele procura a sua presença. “A simples proximidade física parece lhe conferir uma tênue sensação de pertinência” (TANIS, 2003, p.72). Segundo o autor, seria uma forma de criar uma familiaridade, maneira concreta de suportar a dor de sentir-se só. A solidão como fenômeno psicótico “parece referir-se a pessoas e objetos fragmentados, assim como é a própria noção de si” (TANIS, 2003, p.89). Na psicose, a formação de laços sociais é uma questão crítica, ou seja, esse sujeito não criou vínculos ou esses são muito frágeis. Assim sendo, o psicótico precisa de alguém que gerencie suas relações, pessoas que se importem com sua questão, proporcionando o fortalecimento de suas redes sociais. Neste sentido, este artigo tem como objetivo refletir sobre a temática da solidão psicótica a partir da experiência de um acompanhamento terapêutico a um paciente psicótico. A importância do tema pela sua presença na prática contrasta com a carência de estudos. Pretendemos dar visibilidade a um sentimento particular de solidão vivida pelos psicóticos o qual julgamos de extrema relevância clínica e social. Não é fácil abordar um tema que estamos vivenciando. Falar sobre 183 a solidão nos faz pensar sobre a nossa própria. Pessoas como nós, especificamente, que fazem do lidar com o sofrimento do outro seu trabalho, têm ainda a oportunidade de ver uma outra face da experiência do sentir-se só. Isso nos obriga a não negligenciar ou camuflar a solidão através dos nossos mecanismos de defesa. Ao contrário, temos o compromisso ético de divulgá-la e assim tornar pública a dor, dor de que nenhum de nós está livre. Cenário da Solidão A experiência de acompanhamento terapêutico aqui relatada parte das atividades do Programa de Intensificação de Cuidados a pacientes psicóticos (PIC), o qual tem como foco a reinserção social do sujeito, ao lançar mão do recurso do acompanhamento terapêutico para formação de redes do acompanhado. O PIC tem como objetivos a criação e o fortalecimento de redes sociais dos pacientes mediante a intensificação de cuidados realizada pelas duplas de estagiários que ficam mais próximos de cada caso, podendo intervir nas interações desses pacientes junto a familiares, amigos e cuidadores. Caso V. V. tem 33 anos, é solteiro, natural de Feira de Santana-Ba, residente de um bairro popular da cidade de Salvador-Ba, mora sozinho, de aluguel. É responsável por todas as suas despesas, as quais arca com o salário mínimo que recebe por conta 184 de sua aposentadoria por invalidez. Foi deixado num orfanato pela mãe aos três anos de idade, onde viveu até os nove. Para lá também foram suas duas irmãs. V. morou até os 19 anos com “sua patroa”, modo como se refere à mulher para quem trabalhou como servente, e suas irmãs como babá e cozinheira. Ele sofreu um acidente de carro, aos 16 anos, em que estavam presentes sua patroa com filha e genro. Sofreu princípio de traumatismo craniano e, por conta disso, interrompeu os estudos na 6ª série do ensino fundamental. Morou por um período com sua irmã mais velha, ajudando-a nas despesas. Nessa época, ele trabalhou em diversas funções, entre elas, vigilante e vendedor de picolé, ocupação que tinha na época da primeira internação, em abril de 1997. Na ocasião, alegou-se desgaste físico e mental. Depois desta internação, V. passou ainda por vários hospitais. Ao sair de alta, passou a morar sozinho numa casa alugada pela irmã mais nova, responsável por sua última internação. Desta vez, os motivos alegados foram: ausência do uso das medicações, falta de higiene pessoal, perambulação pelas ruas, dejeções em público e risos imotivados. Em março de 2005, V. passou a ser acompanhado pelos estagiários do Programa de Intensificação de cuidados. A primeira visita das estagiárias a V. se deu em julho de 2005 num momento de passagem do caso. O encontro aconteceu num bar. Esse estabelecimento se localizava numa residência da qual a proprietária alugava quartos. Era num deles que morava V. Ele já tinha conhecimento da mudança de duplas e, ao ser apresentado às novas estagiárias, voltou-se para o antigo e perguntou: “Você já passou tudo para elas?”. O acompanhamento das andanças de V. possibilitou a seus acompanhantes um entendimento da questão desse sujeito. A atenção dispensada a V. era freqüente e contínua. A nossa insistente presença fez com que V. nos depositasse a confiança necessária para que compartilhássemos dos seus conflitos, angústias e solidão. O homem só na multidão: a diferença excluída Durante o período de um ano em que acompanhamos V., fomos observando o quanto era pungente o seu sentimento de solidão. Sabemos que a experiência do sentir-se só parece ser uma tendência do homem contemporâneo. Contudo, na psicose, esta solidão existe e insiste anteriormente aos fatores que contribuíram para a emergência da sociedade individualista. É evidente que se faz necessário levar em consideração o fato de que a solidão do “louco”, nas grandes cidades, só tende a aumentar. Isto porque o homem urbano está muito voltado para si, para seus interesses pessoais. Não há muito lugar para o outro em nossas vidas, principalmente, quando esse outro se apresenta como diferença. V. é esta diferença. A sensação de estar só entre muita gente foi experimentada por V. a todo instante. No decorrer dos acompanhamentos, pudemos compreender como a solidão se impôs na vida do acompanhado de uma maneira muito peculiar, tendo em vista a sua condição psíquica. Ela - a solidão - estava por toda parte: em seu discurso, em sua moradia, na disposição dos seus pertences domésticos. A presentificação desse sentimento foi produzida pelo processo de isolamento sofrido por V. por parte dos seus vizinhos, família e comunidade. O programa do qual fazíamos parte tinha como objetivo reinserir o paciente socialmente, bem como secretariá-lo nas suas ações, buscando pessoas dispostas a ajudá-lo. Afetamo-nos com a presença e recorrência, no discurso de V., da sua questão: “Morar sozinho e não fazer nada é muito enjoativo”, “Estou cansado de morar sozinho, quero uma mulher para me fazer companhia”. Começamos, então, a suprir a solidão de V. com a nossa presença e atenção, ao mesmo tempo em que nos sentíamos no dever de fazer algo para mudar a sua situação. A solidão de V. nos incomodou a ponto de utilizarmos, “inconscientemente”, de estratégias para saná-la. Ficávamos horas em sua casa, passeando pelo bairro etc. Era angustiante e muitas vezes insuportável nos depararmos com tamanha sensação de estar sozinho, uma vez que nos deparávamos com a nossa própria solidão. V. era realmente só, não havia ninguém interessado por ele. Só mais tarde percebemos, com a ajuda das supervisões e discussões, o quanto as práticas que estávamos implementando eram assistencialistas, ao irem de encontro ao objetivo do nosso trabalho. Ou seja, o que precisávamos era encontrar formas, buscar pessoas que se sensibilizassem com a questão do nosso acompanhado e se dispusessem a colaborar, ao trazê-lo para mais 185 próximo da convivência em sua comunidade. Na tentativa de buscar moradores do bairro interessados por V., vislumbramos D. Maria (nome fictício), proprietária do quartinho alugado pelo paciente. Em cada visita, a procurávamos para conversar, no intuito de explicar a situação do acompanhado e solicitar a sua colaboração. D. Maria, sempre muito atenciosa, disponibilizava seu telefone e seu bar para entrarmos em contato com V. Era, até então, a única pessoa com que podíamos contar. Aos poucos, percebemos o quanto a intolerância à convivência com o acompanhado se fazia presente. V. tinha um modo peculiar de ser e de agir, o qual provocava muito incômodo nas pessoas. Em uma das visitas, fomos surpreendidas com o semblante preocupado de D. Maria, ao nos alertar quanto à insatisfação do vizinho de quarto de V. para com algumas de suas atitudes. Conversamos com Sr. José (nome fictício), o qual nos disse que, se dependesse dele, o paciente já teria sido expulso de sua casa e internado. Sr. José se justificou, afirmando não gostar do cheiro de V. nem do seu comportamento em relação a sua filha e esposa, aparecendo em trajes íntimos diante delas. A proprietária, apesar de saber da existência, por parte de Sr. José, de uma intencionalidade em relação à saída de V., concordou com sua retirada, alegando estar em atraso seu pagamento do aluguel. Isso nos mostra o engendramento da solidão do acompanhado pelo seu afastamento da sociedade. Como vimos, é muito comum excluirmos o diferente do nosso convívio, principalmente, quando 186 este diferente nos diz algo sobre a nossa própria fragilidade psíquica. Entre os fatores que contribuíam para a solidão de V. estava o incômodo gerado nas pessoas diante da sua presença e na convivência com ele. V. desafiava o nosso equilíbrio, a nossa razão, questionava a nossa integridade psíquica com o seu modo particular de ser no mundo. Era expulso do convívio social, e, junto a isso, sua solidão se acentuava cada vez mais com o freqüente afastamento das pessoas da comunidade onde morava. A solidão de V. era a solidão da exclusão, imposta pela sociedade. Primeiramente, pela sua condição psíquica, e, em segundo lugar, pela sua condição socioeconômica, a qual acentuava o seu sentimento de solidão. V. era louco, pobre e negro, ou seja, reúnia características que só acentuavam a sua condição de solitário no mundo e que o excluíam do mundo dos sócios da nossa sociedade. Esta solidão tem um aspecto negativo, por ser marcada pela impossibilidade do indivíduo de compartilhar algum projeto social e de se enquadrar no repertório das exigências sociais. V. era visto pelas pessoas como “o louco”, aquele indivíduo que nada entendia, nem era capaz de entender. Era o incapaz, o doente, o desajuizado. Desse modo, ninguém lhe dava crédito ou lhe depositava confiança. V., devido a sua condição psíquica, não conseguia compartilhar de projetos ou grupos sociais, ou, pelo menos, era visto desse modo. Da mesma forma, ele também era excluído por não conseguir seguir os padrões sociais exigidos. Ou seja, não conseguia estudo, trabalho, o que era reforçado pela sua situação social precária. Chegou a se matricular numa escola do bairro anterior, onde morava. Todavia não chegou a cursar, porque entrou em crise. Ele também procurava trabalhar. Dizia-nos passar sempre pela oficina mecânica do seu bairro e perguntar se havia trabalho para ele, mas a resposta era sempre negativa. Quem daria trabalho a um louco? Quem acreditaria que este poderia estudar e aprender? Esses preconceitos arraigados em nossa sociedade aumentavam a condição solitária de V. A solidão de V. era amplificada ao ser excluído, também, pela família. Uma das irmãs do paciente era moradora do seu bairro. Era o único membro da família com o qual o nosso acompanhado mantinha contato, ainda que este fosse objetivo e esporádico. Sônia (nome fictício) funcionava como uma espécie de fiadora do irmão, a exemplo da casa alugada por V., a qual negociou, garantindo honrar com o compromisso, caso ele não o fizesse. O paciente quase não encontrava sua irmã e contava, ocasionalmente, que esta estava “sempre com pressa”, e o portão estava sempre fechado quando ia visitá-la. Sônia nos contou que V. “é uma pessoa difícil de se conviver, é insuportável, é para viver sozinho”. Disse ter informado a todos do bairro sobre a doença de seu irmão, a fim de lhe avisarem caso acontecesse algo com ele. A irmã de V. acreditava ainda defendê-lo porque “o sangue ainda puxa”, mas recusava-se a abrigá-lo em sua casa, mesmo sabendo e dizendo entender a sua solidão. Sônia disse não levar V. à casa da sua mãe, para que não aprendesse o caminho. Uma das vezes em que isso aconteceu, a mãe “precisou” mudar de casa. V. era completamente excluído do convívio da família. Ele foi rejeitado pela mãe e irmãos, os quais desveladamente disseram não querer estar na sua presença e convivência. Essa rejeição só acentuou a condição de V. como um ser solitário, abandonado à própria sorte pela família, vizinhos e comunidade. A solidão de V. estava presentificada em sua vida. Sua casa era a moradia da solidão. Esta era sentida, até mesmo, na carência de objetos domésticos, assim como na disposição dos mesmos. O nosso acompanhado possuía apenas duas cadeiras, que ficavam dispostas em sua sala, a qual se tornava ampla pela carência de móveis. Quando chegávamos, únicas visitas, esses objetos eram utilizados para sua verdadeira função, uma vez que, usualmente, serviam de guarda-roupas ou suporte para outros objetos. V. comparava o isolamento no qual ficava em sua casa ao de um exílio. Dizia passar a maior parte do tempo em sua residência, ouvindo rádio, afirmando estar esperando o tempo passar, sem trabalhar, sem estudar, só a comer uma refeição ao dia e dormir. V. dizia não achar certo ficar em casa o dia todo sem fazer nada. Ele utilizava um ditado popular, corriqueiramente, para referirse a sua angústia: “mente parada é oficina do diabo”. O paciente fez uma comparação da sua casa à internação. Nela, V. sentia-se distanciado do mundo, das pessoas, assim como se sentia, quando estava internado. Contudo, em alguns momentos, quando a solidão se fazia mais presente, V. referia o desejo de 187 voltar para o hospital. Ainda que os aspectos negativos de uma internação fossem incontestáveis para o nosso acompanhado, ele a cogitava como uma alternativa para livrar-se do sentimento insuportável de sentir-se só. O Hospital aparecia como último recurso, e não como um desejo de V. O paciente se justificava, ao dizer que lá encontraria pessoas com as quais fez amizades, como o vigilante do hospital, o auxiliar de enfermagem, e conversaria com elas, passaria o tempo... Entre uma andança e outra na busca de parceiros sensíveis à questão de V., encontramos Celeste, a proprietária do bar onde o acompanhado almoçava. Ela surgiu em momentos conturbados da vida do nosso acompanhado e se mostrou sensível a sua questão. Quando a intolerância dos vizinhos se fez mais forte e concreta, V. não suportou e entrou em crise. Estava na iminência de ser despejado, sem ter para onde ir, além de estar sendo pressionado pela proprietária para pagar as contas em atraso. Antes disso, já vinha há algumas semanas sem tomar as medicações, alegando que queria descansar. medicações do acompanhado e dar-lhe nas horas certas. É interessante notar o local emergencial que Celeste conseguiu para abrigar V. Era a casa do seu empregado que tinha uma leve deficiência mental e morava só. Isso nos fez pensar sobre a atitude histórica da humanidade de reunir os diferentes e afastá-los do seu meio. Por outro lado, Celeste, de certa forma, contribuía para a manutenção do diferente na comunidade, fazendo do seu bar um ambiente de socialização e inclusão. V. passava todas as tardes nesse estabelecimento. Lá ele conversava com alguns freqüentadores, enquanto outros diziam o que ele devia ou não fazer. O paciente comentava com impaciência que todos ficavam perguntando se ele havia tomado os remédios, até quem ele não conhecia. Não obstante este contato de V. com as pessoas, sua posição na comunidade era bem demarcada, visto sempre como aquele “louco”, pois não se enquadrava nas normas sociais estabelecidas. Desta forma, V. continuava sozinho, marcado pela diferença. Eram as ocasiões em que V. se encontrava em crise os momentos em que a sua exclusão se fazia Nestas condições, a rejeição do paciente pela mais evidente. O paciente em crise descuidavacomunidade se fez ainda mais presente. Ninguém se da higiene pessoal, perambulava pelo bairro, queria alugar uma casa para um “louco”. Celeste mexia com as mulheres na rua, dizia o que peno abrigou na casa do seu empregado. Era, na sava. Desse modo, despertava o incômodo dos verdade, um casebre situado um pouco afastado moradores do bairro, os quais queriam expulsá-lo da área central do bairro. V. apenas dormia nesta da comunidade. Freqüentemente, eles se dirigiam casa e fazia todas as suas refeições, apenas duas, a nós, acompanhantes, a fim de que tomássemos no bar. Ele havia feito um acerto com Celeste de uma atitude: “tem que encher de remédio até o pagar, mensalmente, pelas refeições. A dona do teto e internar”. bar também resolveu, ela mesma, ficar com as Algumas vezes, flagramo-nos tomando partido 188 de V., ou seja, ficávamos intolerantes e indignadas com a atitude das pessoas. Percebemos, mais uma vez, mediante orientações dos supervisores, que oportunidades como estas deveriam ser aproveitadas para conquistar mais parceiros interessados em colaborar para a melhora da situação do acompanhado. Busca pelo outro dilacerado: encontro da solidão A experiência do sentir-se só vivenciada por V. se fazia presente no seu encontro com o outro. A solidão vivida pelo paciente lhe era peculiar. Ele era a própria solidão, uma vez que o outro não se encontrava bem estabelecido psiquicamente para ele. A solidão como fenômeno psicótico é a solidão da ausência de algo que não se sabe bem o que é. Todavia V. procurava a presença do outro, buscava estar próximo das pessoas, o que parecia lhe conferir uma certa familiaridade, ou seja, uma sensação de pertencimento: única maneira de suportar a dor de sentir-se só. V. continua a sua solitária luta. Luta não se sabe bem contra o quê ou contra quem, mas que se faz incessante, pois deseja livrar-se do sentimento insuportável da solidão. A experiência de sentir-se só do paciente nos disse muito sobre a sua capacidade de ficar sozinho. Perguntávamos até onde V. suportava sua solidão. Qual o seu limite? O que o fazia suportá-la? V., em sua busca por livrar-se do insuportável sentimento de solidão, procurava o bar de Celes- te, a igreja, a escola, os vizinhos e, até mesmo, o hospital. Sabemos que o psicótico tem uma forma particular de estar no mundo e vincular-se às pessoas. Portanto entendemos as atitudes do acompanhado como esta tentativa de busca, uma vez que era freqüente o seu discurso de insatisfação quanto a sua situação. O paciente cumprimentava a maioria dos moradores do seu bairro. Conversava com o pastor da igreja, com o rapaz da mercearia, com o mecânico da oficina. Todos sabiam quem era V., conheciam seus hábitos e sua condição de “doente mental”, porém não passava disso. Para o acompanhado, viver nesta aparente proximidade parecia lhe abrandar o sentimento de completa solidão. O paciente recusava-se a ficar sozinho, não obstante a fragilidade vincular que lhe era constitutiva. Devido a tal característica, seus vínculos sociais, quando existiam, eram muito frágeis, como a sua relação com a dona do bar e seu empregado. Agimos em direção ao fortalecimento dos laços sociais de V. A sua situação econômica não permitia que freqüentasse os grupos semanais realizados pelo programa, bem como participasse de alguns passeios promovidos pelo mesmo. Todavia, constantemente, o paciente fazia perguntas sobre tais atividades. V. nos perguntava quem dos demais participantes havia comparecido, que atividades haviam sido realizadas etc. Freqüentemente, buscávamos alternativas para que o acompanhado participasse das programações, pedindo uma contribuição financeira junto a sua irmã ou mesmo tirando do nosso próprio bolso. 189 No intuito de corroborar com esta busca de V., tentávamos sensibilizar as pessoas quanto a sua situação, de modo a conseguirmos parceiros para a luta que nos propomos travar. Conseguimos aliados como Celeste, a dona do bar, que se configurou como a nossa principal aliada, pois era sensível à questão de V., e ele estabeleceu um vínculo de confiança com a mesma. Outra pessoa importante foi o pastor da igreja, que se propôs a ajudar no que fosse necessário, inclusive disponibilizando o espaço do centro comunitário do bairro para realizarmos reuniões informativas sobre o lidar com o “louco” na comunidade. Procuramos durante o período em que acompanhamos o paciente criar uma rede social de apoio, a fim de reinserí-lo na comunidade e, dessa forma, abrandar o seu sentimento de completa solidão. Obtivemos alguns êxitos como expomos anteriormente. Ao término do acompanhamento, não deixamos de sentir com pesar a separação de V. Talvez esta tenha sido sentida muito mais forte por nós que nos vinculamos ao paciente ao modo neurótico. Ele, em contrapartida, nos disse: “Foi bom enquanto durou”. Disse-nos que sentiria saudades, ao mesmo tempo em que se preocupou em passarmos tudo para as próximas estagiárias, o que nos diz algo sobre o lugar que ocupamos em sua vida. V. continua sendo acompanhado pelo programa. Considerações Finais A solidão é um sentimento negativo em nossa cultura. Algo que todos devem evitar. Contudo 190 caminhamos a passos largos para um estado de ensimesmamento, no qual o outro se torna prescindível para a nossa existência. Ou, pelo menos, a sua presença, uma vez que os relacionamentos virtuais dominam o nosso cotidiano e o aprisionamento da rotina não nos deixa tempo para os encontros casuais, os quais são cada vez mais raros. A concepção universalizante de que o “louco” não possui capacidade de compartilhar das regras sociais, aliada a idéia de ele ser detentor de uma linguagem impossível de ser socializada está nas bases do processo de exclusão da loucura em nossa sociedade. Diante desse contexto, assistimos à presença de um modo particular de solidão que é anterior, embora amplificado, pelo processo vivido ao modo contemporâneo. É a solidão da diferença, solidão do não pertencimento ao mundo dos sócios. A nossa experiência enquanto estagiárias do PIC – Programa de Intensificação de Cuidados a pacientes psicóticos – nos possibilitou entender o engendramento de uma solidão que tem suas principais bases no processo histórico de exclusão do diferente do convívio entre os ditos normais. O “louco” como o diferente, o estranho, o incapaz, o alienado é colocado à margem da sociedade. Tudo em função da preservação da homogeneidade do comportamento e do enquadramento do psiquismo às exigências sociais. Compreender a solidão do psicótico só nos foi possível mediante a ampliação do cenário da clínica tradicional, ou seja, acompanhamos o paciente em outros âmbitos da sua vida, como comunidade, família e pudemos observar como pôde ser produzida a sua solidão, assim como ter acesso a um discurso só possível a partir do estabelecimento de uma relação de confiança entre acompanhante e acompanhado. Essa relação de confiança só foi estabelecida, porque insistimos com a nossa presença na vida de V. A nossa presença contínua e incondicional foi condição fundamental para o estabelecimento do vínculo, o que permitiu fazermos intervenções importantes em sua vida. Neste trabalho, buscamos contribuir para dar visibilidade ao tema da solidão psicótica, uma vez que este é de grande relevância clínica e social, além de muito recorrente em nossa prática. Uma segunda contribuição deste artigo reside na desmistificação da idéia do isolamento como algo voluntário. Ao contrário, destacamos e buscamos identificar o que está por trás da solidão na psicose. Tal solidão também é chamada de solidão imposta, produzida pelo processo de exclusão sofrido pelo psicótico. Este artigo trata de um tema muito caro à reforma psiquiátrica, uma vez que toca em questões relativas à reinserção social dos pacientes psicóticos. A reflexão sobre a solidão imposta ao dito louco leva a um entendimento sobre as bases do processo de exclusão sofrido por este. Desse modo, fazem-se necessárias mais intervenções clínicas pautadas no acompanhamento do paciente na família, comunidade, a fim de que o sentimento de sentir-se só seja mais bem compreendido e aliviado. Tendo em vista tamanha importância, novos estudos fazem-se necessários, visando um aprofundamento do assunto. Sugerimos mais estudos que abordem a busca peculiar do psicótico, não obstante a sua fragilidade vincular, bem como trabalhos que versem sobre intervenções sociais e comunitárias baseadas no manejo das relações com este público. Referências BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998. KATZ, C. H. O Coração Distante: ensaio sobre a solidão positiva. Rio de janeiro: Revan, 1996. PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. TANIS, B. Circuitos da Solidão: entre a clínica e a cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003. 191 Transbordamento psicótico: Desafios e possibilidades de intervenção Lygia Freitas* Mabel Jansen** Resumo: O presente estudo trata de um caso desenvolvido durante o Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, programa de extensão universitária que constitui parceria entre a UFBA, a FBDC e o HEML e efetiva-se por meio de atendimentos domiciliares, encontros grupais com os pacientes, reuniões com cuidadores, acompanhamento a consultas, supervisão grupal, dentre outras atividades. Este texto busca descrever o acompanhamento realizado durante nove meses com um indivíduo do sexo masculino portador de transtorno mental, solteiro, 35 anos, com longa carreira manicomial e precária condição sócio-econômica. Durante o acompanhamento do caso, pôde-se perceber que investir ativamente na constituição e fortalecimento do vínculo com o paciente ocasionou mudanças em suas formas de vinculação social. As internações, antes freqüentes, sofreram significativa redução. Tornou-se flagrante a concepção de que, para *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC 192 ser cuidado, o paciente pode e deve permanecer em sua comunidade, já que a reclusão em hospitais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já tão vulneráveis laços sociais desse sujeito. Outra questão relevante refere-se aos desafios impostos pela aproximação com a pobreza e todas as repercussões que ela pode gerar no psiquismo do sujeito. Sem dúvida, os bancos das universidades ainda não preparam seus alunos para lidarem com as classes menos favorecidas e com as diferenças culturais que a convivência com esse tipo de clientela faz aflorarem. O sujeito psicótico não “fica ou está em crise”, mas é a expressão da crise do ideal, do ideal do homem contemporâneo, racional, autônomo, dono de si. E tratá-lo requer muito mais do que sua mera inclusão em serviços de assistência ao portador de sofrimento psíquico. É premente que, ao tempo em que são constituídos serviços substitutivos em saúde mental, sejam construídas também novas formas de lidar com o louco, que possibilitem seu cabimento no seio da sociedade. 1- Introdução O presente trabalho trata de um caso desenvolvido durante o Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC). Compreende a descrição da trajetória particular de um indivíduo do sexo masculino (Emerson ) portador de transtorno mental, solteiro, 35 anos, com longa carreira manicomial. Busca ainda abordar os recursos terapêuticos disponíveis, bem como o processo de aprendizagem ocorrido durante os nove meses em que o paciente foi acompanhado. 2- Fundamentação Teórica 2.1 – Sobre o desenvolvimento do sujeito A entrada do ser humano no mundo da cultura se dá, sempre, por intermédio de um outro, um outro que cuida dele. Toda produção de significação depende, num primeiro momento, de introduzir o outro como ponto de referência . Segundo Winnicott (apud BARRETTO, 2000), o homem, no início de seu desenvolvimento enquanto sujeito, passa por um período de indiferenciação primitiva, de não-integração com o mundo externo, quando, a partir da convivência e experiências com a mãe, são constituídos núcleos de eu, marcas notadamente sensoriais, mas que guardam traços de alguma humanização por intermédio justo desse contato com um ser da cultura. A constituição do sujeito enquanto tal dependerá, fundamentalmente, da capacidade de o ambiente fornecer ao bebê uma experiência de constância e continuidade, através da qual ele poderá, gradativamente, ir integrando os diferentes núcleos de eu. Em outras palavras, a mãe deve modular os períodos em que está ausente de acordo com a capacidade de o recém-nascido suportá-los. Quando a personalidade adulta organiza-se a partir da persistência de núcleos dessa fase inicial, tem-se o surgimento de uma personalidade ambígua que inclui, ao mesmo tempo, traços de simbiose e autismo (BLEGER, 1977). Nesse sentido, a postura autista caracteriza-se por um isolamento do mundo externo e predomínio relativo ou absoluto da vida interior, refletindo uma conduta defensiva diante de situações persecutórias. O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de caráter narcísico, visto que prevalece uma relação com objetos internos. A conduta simbiótica, por sua vez, é marcada por um vínculo de dependência intensa com um objeto externo, ocorrendo uma projeção de parte do ego do indivíduo nesse objeto. Há, em verdade, uma identificação projetiva entre o psicótico e o objeto, cuja finalidade é manter um certo nível de organização e satisfazer as necessidades do âmbito mais primitivo da personalidade do sujeito (BLEGER, 1977). Cabe salientar que tanto o autismo quanto a simbiose coexistem no modo de funcionamento psicótico, havendo constante variação entre a ascendência de um sobre o outro. 193 2.2 – A questão do vínculo na psicose Segundo Pichon-Rivière (2000) o vínculo pode ser definido como uma relação particular com um objeto, que pressupõe uma “conduta mais ou menos fixa com este objeto, formando um pattern, uma pauta de conduta que tende a se repetir automaticamente, tanto na relação interna quanto na relação externa com o objeto”. Uma teorização útil para compreender melhor as nuances de relação vincular concernentes ao sujeito psicótico diz respeito à que trata do tripé formado pelos conceitos de depositante, depositado e depositário, formulados por Pichon Rivière (apud BLEGER, 1977). Essa tríade compõe-se de um sujeito (depositante) que projeta determinado conteúdo (material depositado) sobre o outro ou si mesmo (depositário), já que a introjeção do mesmo pode originar desestabilização psíquica (BLEGER, 1977). Em se tratando do sujeito psicótico, pode-se dizer que o vínculo é constituído de modo bastante frágil, levando o indivíduo a se relacionar com o outro ora como se este fosse uma extensão de si mesmo ora como se fosse uma ameaça na iminência de invadi-lo. Diante desse arranjo em que se sustenta o sujeito psicótico, o outro é tido como implacável: exige, prescreve, condena sem discussão, tornando-se, dessa forma, o separado e o separante, papéis que o próprio psicótico acaba por realizar (CASTORIADIS, 1999). Isso, sem dúvida, contribui decisivamente para a visível dificuldade de vinculação experimentada por esse indivíduo no 194 convívio social e afetivo. 2.3 – Vulnerabilidade social e gestão do sujeito Do exposto, cabe ressaltar que a dificuldade vincular do sujeito psicótico se expressa como desorganização psíquica, e, para enfrentar a vulnerabilidade social a que está exposto o portador de transtorno mental, algumas formas de intervenção se fazem necessárias, dentre as quais podemos destacar a de continência e a de holding. Tais funções foram desenvolvidas por Barretto (2000) como sendo inerentes ao trabalho de acompanhamento terapêutico. 2.3.1. – Sobre a continência O sujeito psicótico, por vivenciar, com freqüência, situações de transbordamento psíquico que podem traduzir ultrapassagem de limites, necessita de um intermediário para suas experiências afetivas e pulsionais. Transformar as experiências de um sujeito por meio da imaginação – eis a principal finalidade da função de continência. A promoção de acolhimento, permitindo que vivências notadamente marcadas pela sensorialidade possam ser passíveis de simbolização é, de fato, o que melhor configura a continência. Analogicamente, segundo Barretto (2000), essa situação pode ser comparada à de um poeta, que consegue expressar, por meio de palavras ou imagens, experiências e sentimentos que permeiam a vivência humana, mas os quais, muitas vezes, não somos capazes de explicitar. Em meio a uma crise, a continência é o que se impõe, a partir da alteridade representada pelo técnico em saúde mental, como produtora de uma sensação de contorno, limite, possibilitando ao sujeito se sentir um pouco mais organizado e integrado, ao inscrever suas vivências no universo simbólico. O lugar que o agenciador do caso passa a ocupar em sua teia de significações, por intermédio do vínculo desenvolvido com o paciente, contribui, portanto, para uma aproximação maior entre o mundo interno do sujeito e sua realidade circundante. É disso que irá se falar no decorrer do presente artigo, da importância do vínculo como elemento mediador da relação entre acompanhante terapêutico e acompanhado e favorecedor da possibilidade de se fazer continência. Foram momentos em que simplesmente estivemos ali, situações em que percebemos que não havia o que fazer ou dizer, e o fato de estarmos ali, nossa presença já era muito importante. O valor dessa experiência estava não só na aproximação de dois corpos, um corpo junto ao do paciente, mas por ser um corpo atento, capaz de testemunhar e compartilhar as experiências do portador de transtorno psíquico. 3 - Introdução ao Caso Emerson tem 35 anos e uma história de recorrentes internações, iniciada aos 18, durante sua entrada no Exército. Quando criança, morou com os pais e os cinco irmãos, até que sua mãe veio a falecer, ainda durante a infância do paciente, e seu pai foi morar em outra cidade, deixando os filhos aos cuidados da vizinhança. Hoje o paciente mora com uma irmã, Joana 2.3.2 – Sobre o holding em condições precárias, numa casa dada pelo pai. Não há nem luz nem água no recinto, e amO holding caracteriza-se como uma função de bos têm como fonte de renda o recolhimento de amparo, suporte, um estar-junto que possibilita papelão e material reciclável. ao acompanhado uma experiência de constânNo andar superior da casa, mora outro irmão, cia, continuidade, tanto física quanto psíquica. Jonas . Casado, tem dois filhos e um relacionaDurante o acompanhamento de Emerson, essa mento bastante conturbado com Joana, demonsfunção precisava ser “acionada” na maior parte trando indiferença aos problemas por que passam do tempo, uma vez que, freqüentemente, o pa- os irmãos do andar inferior. Esse fato evidencia ciente mostrava-se psiquicamente desorganizado, que, na questão da exclusão social, em sujeitos carecendo de um suporte que favorecesse uma psicóticos, não se trata apenas de pobreza, mas sensação de acolhimento e segurança. de desvinculação sócio-afetiva, uma vez que esEm muitos momentos do percurso com o pa- ses indivíduos possuem um arranjo psíquico que ciente, essa função exerceu um papel marcante. restringe sua sociabilidade, suas possibilidades 195 de criarem vínculos sociais. Sem falar no difícil manejo da desfiliação psicótica, no que tange à questão de quem vai cuidar, quem vai se responsabilizar por esses sujeitos. Joana é portadora de epilepsia, e um terceiro irmão, Juvenal , que mora próximo à casa deles, alcoolista. A relação dos três é bastante conflituosa, sobretudo a de Emerson com Joana, que é com quem ele tem maior contato e proximidade. Os dois estão sempre às turras, e a situação piora quando o paciente está na iminência de uma crise. Nesses momentos, invariavelmente, ele é encaminhado para internação por ela ou por Juvenal, o que acabou se tornando algo freqüente em seu cotidiano. Por conta de todas essas questões ilustrativas da grave precariedade social a que Emerson estava exposto, em meados de 2004, ele foi selecionado para participar das atividades desenvolvidas pelo Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos. O acompanhamento do caso durou cerca de cinco meses com uma dupla de estagiários, até que os presentes estagiários assumissem o caso, dessa vez por aproximadamente nove meses. siva e hostil ora como se, de fato, necessitasse de sua presença, expressando, assim, a coexistência de autismo e simbiose na relação vincular. Ao mesmo tempo em que ele se mantinha distante, tentando impedir uma aproximação dos responsáveis pelo caso, estabelecia outro tipo de vínculo, em que fazia destes depositários de uma intensa projeção, visando um vínculo simbiótico que também lhe era necessário ou imprescindível (BLEGER, 1977). Nesse sentido, vale salientar que o papel de depositário exercido pelos estagiários aponta para a possibilidade de que o sujeito integre suas vivências no tempo e, desse modo, resignifique-as. Eram comuns as brigas e discussões entre Emerson e Joana, assim como ameaças à integridade física dos estagiários, o que corroborava sua dificuldade de vinculação aos mesmos. Além disso, outro obstáculo à aproximação dos estagiários dizia respeito ao fato de Joana, quando ia se ausentar de casa, manter sempre Emerson trancado. O paciente costumava escrever histórias com temas dos mais diversificados possíveis: desde terror e Segunda Guerra, que também serviam de fonte inspiradora para seus delírios, até temáticas 4- O processo de vinculação de Emerson ao bucólicas e infantis. As construções delirantes giraPrograma vam em torno de sentimentos de perseguição, em geral, relacionados a soldados e policiais que o No início do acompanhamento, a maior parte ameaçavam, bem como aos estagiários, demonsdas visitas a Emerson era feita em hospitais psi- trando que, para o sujeito psicótico, “a lei surge quiátricos onde ele estava internado. Nos raros sempre como persecutória” (LOBOSQUE, 2001). momentos em que o paciente era encontrado em Está presente de forma atormentadora, mas numa casa, tratava os estagiários ora de forma agres- posição constante de exterioridade, visto que, na 196 própria estruturação de tal arranjo psíquico, a lei não é inscrita no registro simbólico, permanecendo como uma presença exterior. Durante o período inicial de acompanhamento, os diálogos entre os estagiários e Emerson eram travados com a porta da casa servindo de intermediária, o que dificultava uma maior aproximação dele e do caso, de modo geral. Com o passar do tempo, houve a percepção de que era necessário estabelecer algum tipo de relação com Joana, pois, do contrário, Emerson permaneceria trancado em casa quando ela estivesse ausente. Inicialmente, os contatos com Joana eram estabelecidos nas proximidades de onde morava. Ela sempre tratava os estagiários de forma seca e hostil, questionando o porquê de estarem ali e se o trabalho que realizavam daria, de fato, algum resultado. À medida que o tempo foi passando, foi-se percebendo que era importante escutar mais Joana, compartilhar de seu sofrimento e suas angústias, não mais centrando a atenção apenas em seu irmão, mas dividindo-a com ela. “Quando um membro de uma família enlouquece, isto perturba seriamente o grupo familiar; com certeza, a família precisa de apoio e auxílio para lidar com esta perturbação” (LOBOSQUE, 2001). Aos poucos, Joana foi se tornando mais flexível não só na relação com os estagiários como em seu relacionamento com o irmão. Cuidar de Joana acabou se tornando uma estratégia para cuidar do próprio Emerson, uma vez que as precárias condições que afetavam-no também eram prejudiciais a ela, e isso não poderia ser ignorado durante o acompanhamento do caso. Desenvolver uma vinculação com Joana facilitou o estabelecimento de um vínculo com Emerson que, no período inicial do acompanhamento, também tratava os estagiários de forma agressiva e ameaçadora, questionando, a todo momento, o papel que ali ocupavam. A insistência da presença dos Ats sustentava-se na idéia de que era necessário entrar em contato com as angústias do paciente, através de uma atitude empática, para que fosse possível uma efetiva aproximação, tanto física como afetivamente (BARRETTO, 2000). Vale salientar que, mesmo tendo sido facilitado o acesso aos dois, as dificuldades com o caso persistiram, visto que a crença de que o internamento era a única solução para seus problemas já estava enraizada na família. Sem falar que, para Emerson, o hospital psiquiátrico constituía um refúgio. Lá, além da possibilidade de se alimentar e higienizar, ele se sentia útil, auxiliando os profissionais do local em tarefas rotineiras como forrar as camas e limpar os banheiros. Também é digno de nota o escambo realizado por Emerson com os demais internos, que era mais um elemento sustentador de sua presença naquela instituição. Apesar de todas essas aparentes “vantagens”, não se pode fechar os olhos para as condições sub-humanas a que os pacientes psiquiátricos estão submetidos nos manicômios, locais de violência, superlotação, abandono, desvalorização do sujeito, que foram e continuam sendo alvo de denúncias. No caso de Emerson, principalmente, as freqüentes internações contribuíam não apenas para intensificar seu isolamento social, como dificultavam seu posterior retorno à comunidade 197 e a criação de vias alternativas ao manicômio que passou-se a intensificar os cuidados com o padessem sentido a sua existência. ciente, por meio de um incremento na freqüência das visitas domiciliares, uma vez que, para inse5- A ampliação das redes de suporte social ri-lo em tal serviço, seria preciso, primeiramente, mantê-lo fora do hospital psiquiátrico. No decorrer do acompanhamento, foi-se noO trabalho de convencimento para a plena tando que a forma mais eficaz de quebrar o ciclo capacidade de Emerson ter uma vida digna fora de internações vivenciado por Emerson seria ofe- do internamento foi sendo desenvolvido gradarecer a ele uma outra possibilidade de existência, tivamente, tanto com ele, como com Joana e o longe dos hospitais psiquiátricos. Para tanto, co- entorno social em que viviam. O uso correto da meçou-se a pensar em inseri-lo num CAPS. Esta medicação passou a ser incentivado, tendo em idéia baseou-se na necessidade de que o pacien- vista que o paciente ou tomava os remédios de te fosse acolhido em um espaço articulador de forma equivocada ou se desfazia deles na expecuma rede social de cuidados, que promovesse tativa de que fosse internado. Passou-se a orientar sua integração comunitária e familiar, ao passo Joana quanto aos efeitos da ausência de medique estimulasse suas iniciativas em busca de au- cação, fazendo-a discriminar os comportamentos tonomia. que Emerson manifestava quando a usava correOs CAPS constituem uma tentativa de substi- tamente daqueles que emitia quando não a usatuição do modelo hospitalocêntrico, como com- va. Além disso, buscou-se trabalhar a relação dos ponentes estratégicos de uma política destinada dois, uma vez que os desentendimentos entre eles a diminuir a significativa lacuna assistencial que sempre haviam constituído motivos suficientes ainda persiste no atendimento a pacientes com para Joana interná-lo. transtornos mentais graves. As práticas realizadas Numa ocasião, saímos com ele para convernessas instituições ocorrem em ambientes aber- sar com o dono de um estabelecimento no qual tos e acolhedores, inseridos na cidade, no bairro. Emerson tinha demonstrado interesse em trabaSeus projetos, muitas vezes, ultrapassam a pró- lhar. Tratava-se de uma ocupação de carregador pria estrutura física, em busca da rede de suporte de sacos de arroz numa cerealista. Nessa oporsocial, potencializadora de suas ações, preocu- tunidade, pôde-se, a partir da posição que suspando-se com o sujeito e sua singularidade, sua tentamos, dar validade ao desejo do paciente e história, cultura e vida cotidiana (Ministério da amenizar o embaraço que a postura e expressão Saúde, 2004). de Emerson causava no responsável pelo estabeDiante da identificação de que inserir Emerson lecimento e até em nós mesmas. nessa perspectiva de serviço substitutivo seria funNo decorrer do percurso, a idéia de encontrar damental para ampliar sua rede de suporte social, um emprego para o paciente acabou não indo 198 avante, pois ele carecia de maior preparo para encarar um projeto de tal magnitude. Nesse período, as crises de Emerson não cessaram, e as visitas domiciliares passaram a ser diárias. A seguir, serão detalhadas situações específicas, ocorridas dentro do espaço de tempo de cerca de uma semana, que ilustram momentos de crise do paciente e como se deu o manejo terapêutico do caso nessa conjuntura. Numa ocasião específica, quando os estagiários chegaram, o paciente estava bastante agitado e agressivo. Mandou que fossem embora e saiu andando pela rua. Os estagiários, após um breve momento de indecisão, resolveram seguí-lo, chamando por seu nome. Quando, finalmente, o paciente decidiu parar, pôde-se iniciar uma comunicação com ele. A disponibilidade e firmeza demonstradas pelos estagiários fizeram com que, aos poucos, Emerson fosse ficando mais calmo e passasse a aceitar interagir com eles. Nesse episódio, ficou claro que um elo estava começando a ser constituído entre o paciente e os estagiários, ratificando o poder do vínculo social como elemento fundamental da continência psíquica. No dia seguinte, os responsáveis pelo caso retornaram à casa de Emerson, cujo quadro não havia se alterado. Após vários chamamentos, o paciente saiu, abruptamente, de casa, com um grande pedaço de madeira nas mãos. Avançou contra um dos estagiários, empurrando-o e ameaçando-o e, em seguida, fez o mesmo com o outro, retornando para dentro de casa e fechando a porta. Após se refazerem do susto, os estagiários resolveram esperar um pouco para tomar uma decisão quanto à melhor estratégia a ser adotada naquela situação, levando em conta a grande possibilidade de o paciente ser internado pela irmã ou mesmo por algum vizinho se fosse encontrado naquele estado. A primeira tática foi acionar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para que Emerson pudesse ser levado a alguma emergência psiquiátrica e, então, medicado. Após mais de três horas de espera, os estagiários resolveram contatar a equipe do CAPS mais próximo, como forma também de diluir a depositação vincular maciça que o paciente estava realizando sobre eles. Além disso, buscava-se contribuir para que se formasse um elo inaugural com aquela instituição, ampliando as redes de suporte social de Emerson. Dois funcionários do CAPS, um auxiliar de serviços gerais e uma enfermeira, acompanharam os estagiários à casa do paciente, levando medicação injetável. Depois de muita insistência para que Emerson aceitasse tomar a medicação, os estagiários acabaram sendo vencidos pelo cansaço e decidiram, após mais uma “porta na cara”, retornar no dia seguinte. Nessa nova tentativa, os profissionais do CAPS acompanharam os estagiários levando a medicação em forma de comprimido, pelo fato de se ter concluído que, assim, seria mais provável que o paciente aceitasse tomá-la. Depois de muita negociação, Emerson cedeu. O CAPS ainda precisou ser acionado algumas vezes antes que o paciente passasse a freqüentá-lo. Sua inserção naquele serviço foi dificultada não apenas por ele se opor a essa nova forma de 199 investir ativamente na atenção ao paciente e ao caso, de modo geral, ocasionou mudanças nas formas de vinculação social de Emerson. As internações, antes freqüentes, sofreram significativa redução, ao passo que sua relação com a irmã melhorou sensivelmente no que tange aos cuidados que um passou a ter em relação ao outro e ao companheirismo que surgiu entre eles. Evidencia-se, assim, a importância da intensificação de cuidados como dispositivo essencial no trato com o paciente psicótico, tendo em vista as graves ressonâncias sociais que a loucura pode gerar no seio da sociedade, comunidade, bairro, núcleo familiar. É preciso, sem dúvida, apostar no vínculo e, antes de qualquer coisa, trabalhar de forma ativa para favorecer sua constituição e fortalecimento. No caso apresentado, tornou-se flagrante a concepção de que, para ser cuidado, o paciente pode e deve permanecer imerso em sua comunidade, uma vez que a reclusão em hospitais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já tão vulneráveis laços sociais desse sujeito. Outra questão que ficou patente durante o acompanhamento do caso diz respeito aos desafios impostos pela aproximação com a pobreza e todas as repercussões que ela pode gerar no psiquismo do sujeito. De fato, os bancos das universidades ainda não nos preparam para lidar com 6- Considerações finais as classes menos favorecidas e com as diferenças culturais que a convivência com esse tipo de Durante o acompanhamento do caso, pôde- clientela faz aflorarem. Afinal, “onde é que se rese perceber que, apesar de o vínculo de Emerson aliza a vida social do pessoal de classe baixa ? É com o CAPS não ter sido tão fortalecido quanto na rua. Onde é que se dão as trocas, onde é que necessário para sua continência psíquica e social, as pessoas enriquecem os seus conhecimentos ? É cuidado, mesmo antes de conhecê-la, como por alguns entraves institucionais. Era muito difícil fazer com que o paciente aceitasse ir ao CAPS, e, no dia em que se conseguiu levá-lo até lá, não havia profissionais disponíveis para fazer o acolhimento. Quando, finalmente, Emerson foi entrevistado, outros obstáculos se sobrepuseram. A equipe da instituição não pôde se reunir na semana prevista para discutir os casos que seriam admitidos, e o paciente não pôde freqüentar o CAPS antes que isso fosse feito. Tal fato, de certo, contribuiu para a posterior dificuldade de vinculação de Emerson àquele estabelecimento. Além disso, havia uma espécie de mal-estar causado pela presença dos estagiários na instituição. Era como se houvesse uma disputa tácita pelo controle do cuidado com o paciente, que, com o passar do tempo e as tentativas de esclarecimento dos papéis que cabiam a cada uma das partes, foi sendo amenizada. Com a admissão de Emerson no CAPS, a atuação dos estagiários passou a ser pautada na tentativa de tornar aquela instituição um espaço de referência para ele. As visitas domiciliares continuaram, e o acompanhamento paralelo à Joana também. 200 na rua. A possibilidade de refúgio no privado, no particular da classe baixa, é muito menor, muito pequena” (Cesarino, 1991). Ao contrário do que se costuma dizer em algumas situações, o sujeito psicótico não “fica ou está em crise”, mas é a expressão da crise do ideal, do ideal do homem contemporâneo, racional, autônomo, dono de si. E tratar esse tipo de sujeito requer muito mais do que sua mera inclusão em serviços de assistência ao portador de sofrimento psíquico, que, da forma como vêm se configurando, ao menos em algumas instituições do Estado da Bahia, se constituem numa mera transferência de lugar, do hospital psiquiátrico, em que o paciente sofria maus tratos e era obrigado a ficar internado; para o serviço substitutivo, onde há liberdade de ir e vir, mas o portador de transtorno mental continua excluído do convívio social preso às tão propaladas oficinas terapêuticas. É premente que, ao tempo em que são constituídos serviços substitutivos em saúde mental, sejam construídas também novas formas de lidar com o louco, que possibilitem seu cabimento no seio da sociedade, sua real inserção social. Vale salientar, ainda, a importância da articulação dos serviços de atendimento em saúde mental como forma de ampliar as possibilidades de cuidado e potencializar os vínculos que dão sustentação ao sujeito na sociedade. A criação de dispositivos coletivos de acolhimento e convivência que “grupalizem” não apenas os sujeitos como seus familiares contribui significativamente para a auto-regulação e autonomia desses indivíduos. Por fim, compete valorizar a atenção domiciliar como dispositivo essencial no trato com a loucura, principalmente quando se consideram as grandes possibilidades de trocas sociais e afetivas que os profissionais de saúde mental podem intermediar entre os pacientes e os membros da comunidade. Referências BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. CASTORIADIS, C. A construção do mundo na psicose. In: Feito e a ser Feito. Rio de Janeiro: DP & A, 1999. EQUIPE DO HOSPITAL DIA A CASA. A Rua como espaço clínico. São Paulo: Escuta, 1991. LOBOSQUE, A.M. Experiências da Loucura. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. PICHON – RIVIÉRE, E. Vínculo e teoria dos três D (depositante, depositário e depositado). Papel e Status. In: Teoria do Vínculo. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 201 Acompanhamento Terapêutico: Que relação é essa? Maria Clara Guimarães* Resumo: A Reforma Psiquiátrica possibilitou o surgimento de novas clínicas que buscam atendimento alternativo aos manicômios. O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma prática que coopera com essas diretrizes da reforma. Nesta prática, exposições do profissional a afetações que ultrapassam o enquadre terapêutico produzem algumas questões entre o acompanhante e paciente, como “que relação é essa?”. A relação se baseia no vínculo e coloca o profissional em situações intimistas de mão dupla, adquirindo teor afetivo e profissional, como uma espécie de amizade política. D e acordo com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica em busca de um atendimento mais humanizado os pacientes psiquiátricos, especialmente psicóticos, novas clínicas se fazem necessárias. Uma delas foi utilizada pela autora em sua prática clínica – e serviu de base para a construção deste artigo – e engloba algumas técnicas (acompanhamento terapêutico, visitas domiciliares, terapia ocupacional, formação de grupos, etc.) com finalidade de oferecer um atendimento integral, intensificando o cuidado e fornecendo uma nova forma de atendimento que não seja a manicomial. Dentro das técnicas utilizadas neste tipo de atendimento, destaca-se a prática do Acompanhamento Terapêutico (AT). Ela ocorre no espaço extra-muros por meio de visitas domiciliares aos pacientes, permitindo a entrada em contato com seu meio particular, passeios com eles, intervenções nas relações familiares e atuação junto à comunidade. *Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC 202 No formato desta prática, as relações vinculares se estabelecem de forma particular, em que profissional e paciente afetam-se mutuamente. Diante disso, algumas dúvidas surgem: que tipo de relação é essa que se estabelece com o paciente? Até que ponto essa relação não ultrapassa a relação terapêutico-profissional? Ela não pode se tornar uma relação de amizade? Não será um misto de profissionalismo e amizade? Questionamentos como esses atingem especialmente iniciantes. Não há regra que direcione as ações de um acompanhante terapêutico. Ela parte de sua sensibilidade e olhar terapêutico. Dúvidas como essas afetam a relação e o modo de intervenção. Este artigo busca refletir e responder como essa questão pode ser gerada e afetar a intervenção. No caso clínico que será apresentado, a questão levantada tem um recorte que gira em torno de uma relação profissional e de amizade. Para conquistar essa confiança, o terapeuta deve passar por esses testes e ter uma postura “desapreensiva”, sendo capaz de aceitar qualquer coisa que o paciente deposite nele “seja boa ou má, materna ou paterna, feminina ou masculina, etc.” (PICHON-RIVIERE, 1998, p. 110). Em alguns momentos, o AT não consegue apresentar esta postura, afetando-se com as transferências que são trazidas pelo paciente, tais como: as transferências maternas, de namoradas (os), de amigos (as) etc. Como lidar com elas? Como torná-las terapêuticas? São questões que permeiam os iniciantes de AT e que abrem espaço para uma formação vincular particularizada em cada caso de acordo com a transferência e a postura assumida pelo AT. Quanto à amizade: como se dá? Em muitos casos de Acompanhamento TeraSobre relações vinculares: pêutico, observa-se o estabelecimento de uma como se estabelecem? relação de “amizade”. Que amizade é essa? Será uma relação de igualdade? Há trocas mútuas? Dentro da relação AT e paciente, o mecanismo Terá um sentimento de “irmandade”? Como será que viabiliza uma ação terapêutica é o vínculo. esta relação? Uma vez constituído, o paciente torna-se aberto O AT é um profissional com uma equipe de a intervenções, bem como passa a confiar no te- apoio que possui um suporte teórico sustentador rapeuta. desta atividade e das propostas de intervenção. O vínculo se estabelece com o tempo, após Há um objetivo nessa relação que direciona o algumas provas de que o profissional é confiá- acompanhante. A relação oferecida pelo AT é vel, de que não vai sumir da vida do paciente de assimétrica; é ele quem direciona as atividades uma hora para outra, quando testes de seu amor apesar de acordar com o paciente as ações que (interesse) por ele já foram realizados e compro- serão desenvolvidas. vados. Quanto às trocas, elas existem, mas não são o 203 foco da relação entre AT e paciente. Elas ocorrem, independentemente, a partir das afetações ocorridas e das questões que paciente e acompanhante provocam entre si. De qualquer forma, não é uma troca igualitária, afinal a disponibilidade do AT para o paciente é o que existe; o contrário não se espera. Diante de aspectos da postura de um AT, não parece estranho que os pacientes o tomem, minimamente, como um “amigo”, como aquela pessoa com quem podem contar, como um “irmão” para toda hora. No entanto não é apenas um sentimento fraterno que é gerado; a alteridade ocorre. É esperado pelo AT que este sentimento seja despertado no paciente independentemente do que ocorra na relação. A alteridade é um mecanismo que se usa na clínica como meio de intervenção e que não pode ser controlado, ocorrendo espontaneamente. Afinal o acompanhante é uma pessoa diferente do paciente; há uma estranheza que é causada reciprocamente. Quando o vínculo é estabelecido, toda essa disparidade é aceita por ambos, os abalos e a desestruturação causados pelo diferente são acolhidos. Na relação entre AT e paciente, um misto de sentimentos pode ser gerado. A própria postura do profissional promove muitos sentimentos, questões e abalos. As reações que o acompanhante assume diante de tais produções é o que configura a relação. Dentre essas produções, observa-se uma maior freqüência na construção da “amizade”, seja ela permeada por sentimentos fraternos seja pela alteridade em todos os envolvidos na 204 relação. Resultados e discussões Caso: uma relação terapêutico-profissional e de amizade. Alguns pacientes do PIC foram acompanhados pela autora. Dentre eles, um caso foi escolhido para ser discutido e refletido. Os demais também são igualmente importantes, contudo não são tão afins ao tema quanto este. É importante salientar que um recorte será dado, deixando para outro momento informações que também mereceriam destaque. Portanto informações quanto ao vínculo e formação da amizade serão focadas e discutidas. A dupla que atendia anteriormente este caso já havia comunicado da mudança de terapeutas. No dia marcado, meu colega e eu fomos apresentados a Carlos (nome fictício do paciente) e a sua família. Foi afirmado que nós, a nova dupla, iríamos atendê-lo a partir do próximo mês e que nas semanas seguintes participaríamos das visitas juntamente aos antigos terapeutas. Conhecemos Carlos na casa de sua avó. Apesar de morar com a mãe, próximo dali, ele passa muitas tardes com a avó. “Ela [mãe] sempre larga ele aqui pra ir à igreja.”, nos conta a avó. “Ela não deixa ele lá, porque ele sai e deixa a casa sozinha e aberta ... É perigoso, né? Ladrão pode entrar ...”. Na casa da avó, moram um tio, duas tias com os maridos e primos de Carlos. Ele também tem um irmão e uma irmã que já são independentes e moram próximos dali, cada um em sua casa. Seu pai mora longe e tem outra família. A rede de apoio de Carlos se resume à avó, à mãe e ao pai, eventualmente, quando Carlos vai visitá-lo. No entanto a avó é muito idosa, “queria poder ajudar mais” conta ela, já a mãe vive ameaçando internar Carlos, dizendo para ele e todos ouvirem “Não agüento mais Carlos!! Qualquer dia desses, interno ele!”. A família o enxerga como um peso que não querem ter. Apesar de sua educação em nos receber, Carlos não interagia conosco. O diálogo era quase inexistente, ele mostrava-se incomodado com a nossa presença, demonstrando uma ansiedade bem evidente. Não parava um segundo, andando de um lado para o outro da sala. Às vezes, saía sem falar nada, sumindo por minutos ou meia hora, depois voltava com um cigarro na mão ou pedindo um para alguém da família. Quando não conseguia cigarro e ninguém dava dinheiro para ele comprar, dava uns “tragos” no charuto da avó. O nível de ansiedade foi aumentando com o passar das visitas, até que chegou num ponto em que ele foi se tornando agressivo frente aos familiares e principalmente conosco. Um dia, Carlos não quis nos receber, pedindo para que a mãe não abrisse a porta para a gente e ameaçando jogar água em nós. Conversamos com a mãe dele ali mesmo, na porta, com a grade fechada. Ouvimos suas queixas e intolerância com Carlos, tentamos dar apoio a ela para que segurasse o momento e não o internasse. Na visita seguinte, a agressividade de Carlos foi mais intensa e direta, recebendo-nos com um cabo de vassoura na mão levantado para o alto e gritando “aqui não entra ninguém não, só família e amigo”. O clima ficou muito tenso, a família intervindo para que nossa entrada fosse permitida, até que a avó, com autoridade, afirmou que a casa era dela e permitiu nossa entrada. Mesmo contra sua vontade, Carlos respeitou a decisão. Não conseguimos nada além disso e fomos embora em seguida. Após isso, soubemos que o paciente havia sido internado no sanatório São Paulo (próximo dali) devido a uma briga que tivera com a mãe no fim de semana. Durante o período em que ficou internado, Carlos construiu o vínculo conosco. Este vínculo ocorreu quando nos mostramos abertos a ele e dispostos a ajudá-lo no que ele precisava; momento em que a família, inclusive a mãe dele, desapareceu. “Aí então vi que vocês eram meus amigos”, afirma Carlos. Foi o momento que o apoiamos e, em seguida, cobramos esse papel da família. Depois disso, ele gravou nossos nomes e não mais esqueceu. Nossas figuras físicas passaram a ser semelhantes com outras que ele conhecia. Ele passou a ter atenção quando falávamos, interagindo conosco numa postura mais afetiva do que meramente formal. Carlos passou a confiar em nós, contando tudo o que ele pensava: os delírios, as idéias de produção artísticas (músicas e poesias) e de engenharia (o design de skate, de biquíni, etc.) de objetos que passou a desenvolver e construir, entre outros assuntos. Na relação dele com a mãe, Carlos adotou 205 uma postura mais crítica, menos dependente, questionando-a com relação ao dinheiro que ela recebe para sustentá-lo (recebe pensão do pai e do governo). Ele passou a exigir da mãe que atendesse alguns desejos de consumo seus, como tênis e skate que queria. A criatividade dele imperava, e a crítica às relações interpessoais (principalmente familiares) também. Considero que sua vida se tornou mais saudável e independente. Considerações Finais Observa-se que, no AT, a relação entre profissional e paciente é construída a partir dos sentimentos e abalos produzidos por ambos. O vínculo é uma conquista do acompanhante que luta por essa posição de depositário fiel de seu paciente, passando por todos os testes, inclusive os mais agressivos, desde esperar um balde d’água na cabeça até uma cadeirada ou paulada caso entre na casa sem ser convidado, justamente por não ser da família nem amigo. Tem-se de provar que essa posição de confiança será sustentada independente das intempéries da vida, principalmente as provocadas pelo próprio paciente. A partir do momento em que o AT conquista isso, a transferência afetiva do paciente é inevitável, tornando-se amigo dele, como exemplificado no caso, alguém com quem Carlos passou a esperar por considerar como um “irmão”, contando para o que precisar. Apesar da psicose, o paciente teve ciência das diferenças entre nós. Inicialmente, estranhamonos em muitos aspectos e nos abalamos; poste206 riormente, houve uma aceitação dessas diferenças. Aliado a isso, um sentimento de amizade se desenvolveu, afetando não somente a Carlos, mas a nós também. Nossos sentimentos para com ele não foram num grau que poderia considerar amizade fraterna, mas uma afetividade de cuidado desigual, como aquele que é responsável pela relação e bem estar do outro (em certa medida). A relação construída tinha um intuito terapêutico, uma finalidade de promover qualidade de vida a Carlos. Após a construção do vínculo, nossas intervenções passaram a surtir maior efeito, o paciente tornou-se mais crítico e independente. Isso se deve não somente à amizade que se desenvolveu, mas também à alteridade que foi produzida nele pela nossa presença, nossas diferenças. Passado esse momento de estabelecimento do vínculo e de configuração do formato do relacionamento, o profissional pode ficar confuso de que relação é essa. Afinal, ela torna-se extremamente intimista. Não se deve nunca esquecer do próprio papel, a fim de promover um avanço na vida do paciente, mantendo-se numa postura profissional. No entanto não há como não se afetar com o paciente e sentir-se mais próximo, como um “cúmplice” dele. Questionei-me se não era outro tipo de relação que havia construído com Carlos, se era algo além de profissionalismo, se éramos alguma espécie de amigos, como uma amizade política que prevê assimetria e desigualdade, baseando-se na alteridade. Contudo observo que a alteridade produzida tinha um fim, e era previsto que ocorresse dentro dessa nova clínica, como também a amizade, o carinho e cuidado que tenho por Car- em psicologia da UFRGS, orientadora Dra. Rosane Azevedo los fazem parte da construção vincular que se dá Neves da Silva, Porto Alegre, 2005, 144 p. numa mão dupla. A relação é profissional sim, mas também tem uma afetividade que ultrapassa os limites de um consultório, tendo um viés de amizade, de cuidado, como uma relação profissional e de amizade política (afetiva e desigual). Referências ARENDT, H. A condição humana. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2005. BARRETO, K. D. A Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. Sobornost e Unimarco, São Paulo, 1998, 212 p. _______________. Anotações de aula. Material não-publicado, Salvador, 2006. BLEGER, J. Simbiose e ambigüidade. Francisco Alves, Rio de janeiro, 1977, 402 p. GOMES, L. G. N. Semântica da amizade e suas implicações políticas: familialismo e alteridade entre amigos nas classes populares. Dissertação de mestrado, área de concentração: Psicologia Social e do Trabalho, USP, orientador Nelson da Silva Junior, São Paulo, 2005, 216 p. MOREIRA, A.; HORA, A. P. M. e GUIMARAES, M. C. Atenção domiciliar: uma tecnologia de cuidado em saúde mental. In: Revista: In-Tensa Ex –Tensa, vol 1, 1ª edição, Salvador, 2006. OLIVEIRA, M. V. Anotações de aula. Material não-publicado, Salvador, 2006. ORTEGA, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. PICHON-RIVÈRE, E. Teoria do vínculo. Martins Fontes, 6a ed., São Paulo, 1998. TAVARES DA SILVA, A. S. A emergência do acompanhamento terapêutico: o processo de constituição de uma clínica. Dissertação de mestrado, área de concentração: Psicologia Social e Institucional, Programa de Pós-Graduação 207 Derrubando Muros, Construindo Vínculos: Intensificação de Cuidados no HCT/BA Carolina Brandão Vieira Lima* Larisa Andrade e Castro** Tatiana Lacerda Medeiros*** Resumo: Este artigo visa promover um diálogo entre as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e o sistema prisional brasileiro. Em decorrência das experiências, ao longo do trabalho de intensificação de cuidados a um paciente que se encontra no Hospital de Custódia e Tratamento/BA, pudemos constatar a incompatibilidade entre os princípios propostos pela Lei 10.216, que vem assegurar os direitos dos portadores de transtorno mental, e o atual modelo de assistência regido pelos saberes psiquiátricos e jurídicos nesta instituição. Serão abordadas algumas conceituações da literatura jurídica criminal que, ao longo do nosso percurso, tornaram-se necessárias à compreensão e conseqüente intervenção nesse caso. Além de discutilas, pretendemos apresentar a idéia de como estas colaboram para a manutenção do aparelhamento institucional que aprisiona os portadores de sofrimento mental, privando-os dos direitos de cidadania e convívio social. Ao acompanhar este pa- ciente, pudemos testemunhar a suposta forma de tratamento oferecida pela referida instituição que atua tendo em vista os princípios de alienação e exclusão dos portadores de sofrimento mental em conflito com a lei. Por fim, discutiremos a importância da intensificação de cuidados em relação aos pacientes em conflito com a lei, como propulsora de novas possibilidades referentes a uma assistência que priorize a cidadania e subjetividade, apontando para a impossibilidade de conciliar os princípios da Reforma Psiquiátrica e a permanência dos loucos atrás dos muros. Esta proposta de cuidado intensivo aos loucos infratores aposta na substituição das barreiras (dos muros) pelo vínculo, sendo este último aqui compreendido como uma ferramenta de trabalho que permite uma intervenção no cotidiano do sujeito, considerando suas necessidades, sua história e a cultura na qual está inserido. Uma Breve Apresentação *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC ***Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC 208 O objetivo deste artigo é promover um diálogo entre as diretrizes da Reforma Psiqui- átrica e o sistema prisional brasileiro que aprisiona os portadores de sofrimento/transtorno mental em conflito com a lei. Em decorrência das nossas experiências, ao longo do trabalho de intensificação de cuidados a um paciente que se encontra “em tratamento” no Hospital de Custódia e Tratamento, localizado na cidade de Salvador - BA, pudemos constatar a incompatibilidade entre os princípios propostos pela Lei 10.216, que vem assegurar os direitos dos portadores de transtorno mental, e o atual modelo de assistência regido pelos saberes psiquiátricos e jurídicos. Pretendemos abordar algumas conceituações da literatura jurídica criminal que, ao longo do nosso percurso, se tornaram necessárias à compreensão e conseqüente intervenção no caso. Os conceitos que serão desenvolvidos posteriormente - medida de segurança, periculosidade, imputabilidade e inimputabilidade - colaboram para a manutenção do aparelhamento institucional que confina e segrega grande número de portadores de sofrimento mental infratores, privando-os dos direitos de cidadania e convívio social. Torna-se relevante trazer a nossa experiência enquanto cuidadoras de um sujeito que, desde a sua entrada no HCT, vivencia situações cotidianas de opressão impostas pela normatização inerente a este sistema manicomial. Assim, pudemos testemunhar a suposta forma de tratamento oferecida pela instituição que, mesmo tendo o seu nome reformulado de Manicômio Judiciário para Hospital de Custódia e Tratamento, segue atuando a partir dos mesmos princípios: alienação e exclusão dos sujeitos. Por fim, discutiremos a importância da intensificação de cuidados em relação a estes sujeitos, como propulsora de novas possibilidades referentes a uma assistência que priorize a cidadania e a subjetividade; subjetividade compreendida aqui enquanto um conceito que abarca a ordem dos afetos, ou seja, o afetar e ser afetado. Assim, poderemos concluir, diante do exposto, a impossibilidade de conciliação entre tais perspectivas e a permanência dos loucos atrás dos muros. Quem está atrás dos muros... O paciente aqui referido vem sendo acompanhado desde 2004 pelo Programa de Intensificação de Cuidados para psicóticos (PIC) enquanto ainda estava em liberdade, morando com a sua avó materna. N. ingressou no PIC por ter sido internado três vezes em hospitais psiquiátricos e necessitar de cuidados intensivos. A família relata que, ainda quando trabalhava, N. apresentou comportamentos que provocaram a interrupção de suas atividades. Com a permanência desta condição, a mãe deu entrada na aposentadoria por invalidez junto ao INSS, buscando a curatela para o filho. Desde o início do acompanhamento, o PIC tinha conhecimento de que N., antes da mudança de bairro, tinha sido surpreendido por policiais que o levaram a um módulo policial e posteriormente para uma delegacia onde fora acusado de ter cometido um crime pelo qual responde até o presente momento. Durante o período que antecedeu a sentença, a justiça solicitou um laudo psi209 quiátrico, realizado no manicômio judiciário, no qual o paciente não foi considerado um portador de sofrimento mental, o que acarretou no seu julgamento como imputável – responsável pelos seus atos no momento do delito – sendo assim condenado a uma pena privativa de liberdade. Após o habeas-corpus, solicitado por uma advogada contratada pela família, N. foi solto e mudou-se para outro bairro. No entanto, segundo a família e o próprio sujeito, a advogada não acompanhou devidamente o caso, tendo ocorrido o julgamento à revelia. N. só teve conhecimento da sua sentença quando foi abordado no mesmo dia em que havia ido ao Fórum para ser avaliado a respeito da sua curatela. Nesta ocasião, foi levado à Polinter e tratado como um fugitivo da justiça, mesmo sob as contestações da mãe que afirmava ter informado a mudança de endereço. Após um período, foi conduzido à Penitenciária Lemos Brito, onde permaneceu por seis meses, sendo acompanhado ainda de forma mais intensiva pelas estagiárias. Ao longo desses meses, observou-se o agravamento do quadro psiquiátrico do paciente, necessitando uma intervenção ativa das estagiárias, família e alguns funcionários da penitenciária mobilizados com a situação. Estava evidente que aquele local não era o mais adequado para um portador de sofrimento mental cumprir sua pena, já que, nos seus últimos dias neste local, o paciente, que estava desorganizado, foi colocado em uma “solitária” com a justificativa institucional de proteger N. e os outros detentos. Procurou-se uma transferência imediata para o HCT, local considerado 210 “mais adequado”, nas atuais condições e dentro das possibilidades de assistência a estes sujeitos na cidade de Salvador, para acolher o paciente. Desde agosto de 2005, ele está na referida instituição, sendo possível observar melhoras no seu quadro clínico, em comparação ao tempo que permaneceu na penitenciária, ainda que tenha passado por um período de desorganização psíquica quando completou um ano de internamento no HCT. Atualmente, o paciente encontra-se “organizado” psiquicamente e recebe visitas constantes das estagiárias e de sua mãe. O PIC tem trabalhado no sentido de possibilitar um acompanhamento deste paciente em liberdade, a partir do questionamento dos modelos de tratamento atuais para os pacientes com sofrimento mental em conflito com a lei. Recentemente, foi elaborado um novo laudo psiquiátrico pelo diretor do Manicômio Judiciário, atestando que N. é um portador de transtorno mental que já deveria estar sendo assistido em liberdade. O juiz da Vara de Execuções Penais está com o processo em mãos e afirmou para as estagiárias que a pena de N. será, então, convertida para Medida de Segurança. Reforma Psiquiátrica e Medida de Segurança: é possível conciliar? Após tramitar durante 12 anos no Congresso Nacional, no ano de 2001 a Lei Paulo Delgado (Lei Federal 10.216) é sancionada no Brasil. Esta lei se caracteriza pelo redirecionamento da assistência em saúde mental, propondo a construção de uma rede de atenção substitutiva ao modelo hospitalocêntrico – reforçador da internação em leitos psiquiátricos. Com a promulgação da referida lei, um novo ritmo se impôs para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, efetivando – a curtos passos – a desinstitucionalização, que vem sendo colocada em prática pelo desmonte do antigo aparato institucional e pelo engendramento de um novo modelo de assistência de caráter extra-hospitalar e comunitário. A partir de então, lugares de grande tradição hospitalar vêm experimentando a expansão significativa da rede de atenção diária à saúde mental. No entanto, é possível constatar um abismo entre aquilo que foi proposto e o que foi, de fato, efetivado a partir dos pressupostos da Lei 10.216. No que se refere às instituições prisionais responsáveis pelo recolhimento dos loucos infratores – rotuladas de Hospitais de Custódia e Tratamento – ainda é muito pouco o que se observa em relação ao princípio antimanicomial, disposto no § 1º do art. 4º (Lei 10.216), em concordância com o direito assegurado ao portador de transtorno mental no inciso II do Parágrafo Único do art. 2º, que garante o tratamento visando, com finalidade permanente, a reinserção social do sujeito, com a garantia de recuperação junto ao convívio familiar, o trabalho e a livre circulação na comunidade. Diante de tal perspectiva, a internação só se torna admissível, em consonância com o art. 4º, na medida em que os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes para prestação de assistência integral à pessoa portadora de sofrimen- to mental. Sendo assim, caso a internação, em quaisquer de suas modalidades, se coloque como um recurso necessário em uma situação específica, não se deve perder de vista que esta deve ser encarada como uma medida excepcional, temporária e de curta duração, no intuito de garantir a continuidade do tratamento, tendo como perspectiva não o isolamento, mas a permanente inserção social do portador de sofrimento mental (NETTO & MATTOS, 2004). Entretanto uma outra realidade se faz presente nos Hospitais de Custódia e Tratamento, onde se encontram muitos ‘moradores’, com longo período de permanência, extrapolando o tempo de cumprimento da pena. Na realidade, o louco infrator corre um grande risco de, ao ser considerado inimputável e conduzido ao Manicômio Judiciário para realizar “tratamento”, cumprir pena em caráter perpétuo – inconstitucional – e viver em um regime de internação que, além de compulsório, é, muitas vezes, sem fim. Entendemos que esta situação perversa tem sido explicada tanto pela ausência de alguém que os acolha fora da instituição (discurso largamente utilizado pela Defensoria Pública), mas também através de entraves impostos pelo caráter subjetivo do conceito de periculosidade. A periculosidade é compreendida no âmbito da justiça penal como o equivalente da culpabilidade em relação às penas privativas de liberdade. Enquanto a culpabilidade recai sobre aquele que agiu por vontade própria, com capacidade e consciência plena para reconhecer a ilicitude de seu delito, a periculosidade compreende a pró211 pria natureza do agente, quando este não apresenta a referida capacidade ou não consegue se desvencilhar da natureza que o conduz ao ato delituoso. Dessa forma, apenas através da perícia psiquiátrica é possível determinar se o sujeito, plena ou parcialmente, possui ou não capacidade de compreender a ilicitude de seu ato ou de praticá-lo por sua livre vontade, ou seja, se ele é considerado inimputável ou não. Portanto, a imputabilidade do sujeito pode ser explicada através da compreensão do agente em perceber o caráter ilícito do ato praticado, sendo considerado responsável pelo crime cometido e, só assim, submetido a uma pena. Já a inimputabilidade é determinada quando o agente é interpretado como incapaz de entendimento e de autodeterminação, no ato da prática delituosa, por conta de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, sendo considerado perigoso e irresponsável, e assim submetido a uma medida de tratamento, ou seja, a Medida de Segurança. Esta última pode ser compreendida como recurso judicial em que o sujeito considerado inimputável fica detido ou recluso em instituições que funcionam sob forma de regime fechado, por oferecer perigo a si mesmo e a outrem. Neste sentido, a medida de segurança, segundo Jacobina (2003), pode ser pensada como: Um instituto que pune a loucura, sob o fundamento, nem sempre explícito, de a desmascarar, arrancar do ser humano essa doença. E que, de resto, acaba restringindo a liberdade do portador 212 da doença, por via de um internamento que, se no discurso é não punitivo, na prática lhe arranca a liberdade e a voz. (...) Neste sentido, a medida de segurança, mais do que uma defesa social, seria uma paradoxal defesa da pessoa portadora de doença mental contra a sua própria loucura. (p. 21 e 22). Torna-se claro, então, que estes princípios (periculosidade, medida de segurança, imputabilidade e inimputabilidade) são manejados de forma a corroborar e legitimar a exclusão social da loucura, tanto por meio do discurso médico, como através do aparato jurídico. A Psiquiatria se interessou em trazer para si a responsabilidade pelos loucos, cerceando, assim, a liberdade dos que ela considera perigosos para a sociedade – afirmando ser capaz de reconhecê-los. Esta instituição emprestou seu modelo de tratamento como mecanismo de punição ao direito penal, uma vez que os portadores de sofrimento mental não devem permanecer no manicômio judiciário tempo suficiente para serem “curados”, mas sim aquele que a justiça e a psiquiatria impõem com base na sua periculosidade. A definição do destino deste louco em conflito com a lei se dá através de parâmetros muito questionáveis, já que avalia de forma objetiva ao desconsiderar a amplitude e a subjetividade relacionadas ao conceito de periculosidade. Afinal, é admissível definir quem oferece perigo ou não? Para a Psiquiatria é possível: basta avaliar a condição de sanidade mental, baseando-se nos seguintes quesitos encontrados nos laudos anexados aos processos: O sujeito, ao tempo da ação, era portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado? No momento do delito era capaz de discernir inteira ou parcialmente o caráter ilícito do fato? Sendo capaz, poderia se determinar de acordo com esse entendimento? Respondendo à pergunta que introduziu esta seção, podemos afirmar que a Medida de Segurança e as diretrizes da Reforma Psiquiátrica não podem caminhar de mãos dadas, na medida em que a primeira deslegitima a noção de cuidado, inserção social, individualidade, livre-arbítrio, etc., ou seja, os fundamentos norteadores da luta daqueles que vêm construindo uma nova forma de atenção e cuidado aos sujeitos com sofrimento mental. Em tempos de movimento antimanicomial, só um louco defenderia a internação compulsória como terapia bastante e suficiente para a reintegração do inimputável. Não há como ocultar, portanto, que essa medida não se dá em benefício do portador de transtornos mentais, mas que se dá tão-somente em benefício da sociedade que se considera agredida e ameaçada pelo inimputável que cometeu um fato descrito pela lei como típico. (JACOBINA, 2003, p.91). nimo – priva o louco infrator de sua liberdade, afastando-o do convívio social. Sentimo-nos aprisionadas, no que se refere às possibilidades de proporcionar a este sujeito um contato diferenciado com o outro e com o mundo, já que através da intensificação de cuidados, possibilitada pelo estabelecimento do vínculo ocasionado pelos “alicerces de uma presença, alicerces de singularidades jamais generalizáveis” (ZYGOURIS, 2002, p.11), é possível viabilizar, além de uma ressignificação subjetiva, a ampliação da rede social junto com o sujeito. Os muros nos contêm, restringindo a nossa atuação enquanto acompanhantes de uma pessoa que está privada do direito de ir e vir, logo, este trabalho torna-se submetido às poucas possibilidades oferecidas pelo manicômio. Sendo assim, o nosso ponto de partida – presença enquanto alteridade – é o que prevalece como recurso tanto no que se refere ao sujeito objeto de cuidado quanto aos profissionais que fazem parte desta instituição, no caso aqui tratado, o HCT. Este sujeito supracitado passa a viver apenas à mercê do cotidiano normatizador desta instituição, tendo inclusive seu ritmo biológico alterado para se enquadrar na rotina imposta. Os horários estabelecidos são seguidos de forma rígida por As experiências do cuidar entre os muros todos, submetendo esses indivíduos a uma padronização que os aliena enquanto sujeitos constranAo nos dispormos a intensificar os cuidados gidos na sua organização singular da experiência a um portador de sofrimento mental em conflito social. Tomamos como exemplo o horário fixado com a lei, nos deparamos com as peculiaridades para o jantar: todos os pacientes são chamados dessa atenção, que se torna limitada por estar para o refeitório às 16 horas, já que às 17 horas sendo realizada em uma instituição que – no mí- eles são recolhidos para as suas respectivas alas, 213 onde são trancafiados e de onde só podem sair no dia seguinte. Há também, no que diz respeito ao uso da medicação, uma prescrição quase inquestionável, pois, na relação com os profissionais de saúde, a palavra do sujeito não é levada em consideração (ou a ausência de palavras dos que estão dopados). No caso dos internos do HCT, a medicação receitada permanece inalterada por um longo período de tempo, o que é questionável por se tratar de uma instituição com fins terapêuticos. Vale considerar que vivenciamos uma situação na qual o indivíduo apresentava desconforto em relação ao uso da medicação injetável, o que só foi reavaliado pelas equipes de enfermagem e médica após dez meses. Outra situação que negligencia a condição de sujeito é a forma de tratamento por parte de alguns agentes penitenciários que destratam e muitas vezes humilham os internos, como tem sido presenciado por nós nas visitas. Entendemos que existem diversos fatores associados a esta falta de cuidado como: as vivências subjetivas destes profissionais que estão imersos numa sociedade que julga e desumaniza o louco e, mais ainda, o “louco criminoso”, o despreparo no que diz respeito à formação para exercer uma atividade que pressupõe uma delicadeza na relação com o outro e a desvalorização profissional, na medida em que estes não são reconhecidos socialmente pelo trabalho que realizam. No entanto, apesar desta situação ser facilmente observada no HCT, pouco ou nada tem sido feito para transformar este modelo de atenção. 214 No meio deste “caos”, a família surgiria como um sustentáculo para estas pessoas, ora permitindo a relação destas com a realidade extra-muro, ora atualizando a sua condição de sujeito social. Isto pode ser observado claramente no caso que acompanhamos, onde a presença da família, principalmente da figura materna, é essencial para que este indivíduo possa suportar a exposição a tais mecanismos que conduzem a sua anulação enquanto sujeito. Em um lugar onde manter-se organizado psiquicamente é um desafio permanente, a família exerce um papel primordial, porém no caso do HCT prevalece muito mais a ausência do que a presença da mesma. É preciso ousar... Diante da nossa experiência e do contato com novos olhares sobre o louco infrator, entendemos que é necessário devolver-lhe a voz, combater a exclusão e conseqüentemente resgatar sua autonomia e dignidade - direito inalienável de todo cidadão. Contudo, ao expormos a realidade do HCT, constatamos que é preciso ousar: rompendo com a lógica segregadora e violenta do manicômio que invoca com seus muros a ruptura dos laços de convivência social. Um modelo que cria uma instituição para abrigar, em sua maioria, pessoas submetidas à medida de segurança: “(...) um tratamento cuja alta não se dá em razão pura e simples da recuperação do paciente, mas pela sua submissão à ‘perícia da cessação de periculosidade’(...)” (JACOBINA, 2003, p.90), precisa ser urgentemente reformulado, tendo como norteadores os princípios propostos pela Reforma Psiquiátrica. Tendo em vista que o isolamento social perdeu a sua legitimidade legal como uma possível forma de tratamento destes sujeitos, torna-se imprescindível que os profissionais envolvidos com os portadores de sofrimento mental em conflito com a lei estejam dispostos a transformar as práticas até então vigentes, em conformidade com um novo modelo de atenção e cuidado, tendo em vista que cada sujeito é capaz de construir um projeto de vida com cabimento na sociedade. A partir da experiência proporcionada pela participação no Programa de Intensificação de Cuidados, onde acompanhamos um paciente que se encontra no HCT, acreditamos que é possível vislumbrar novos fazeres que partam das necessidades concretas dos sujeitos sociais. Com o fim dos muros, o cuidado intensivo a estes pacientes torna-se uma alternativa interessante, por apostar na substituição das barreiras, que se sustentam por conferir proteção à sociedade, pelo vínculo, aqui entendido como uma ferramenta de trabalho que permite uma intervenção no cotidiano do sujeito considerando suas necessidades, sua história e a cultura na qual está inserido. Referências JACOBINA, P. V. Saúde Mental e Direito: um diálogo entre a reforma psiquiátrica e o sistema penal. 2003. 99 f. Monografia (Especialização em Direito Sanitário) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2003. MENEZES, A. L. É possível conciliar as diretrizes da reforma psiquiátrica ao cumprimento das medidas de segurança? 2006. 109 f. Monografia (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006. ZYGOURIS, R. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta, 2002, 80 p. 215 Psicose Negra: A Imagem de si e a Recusa do Corpo Gisele Vieira Dourado Oliveira Lopes* Mônica Machado de Matos** Resumo: A relação do sujeito com seu próprio corpo inicia-se e sofre influência do outro que o toca e com quem se relaciona. É a partir do olhar do outro que o sujeito se percebe, relaciona-se consigo mesmo e com os outros. Na psicose, existe a impossibilidade de apropriar-se do corpo com suas marcas singulares, de percebê-lo como formando certa unificação. Um aspecto que a clínica das psicoses evidencia é a freqüente relação de estranhamento que os psicóticos mantêm com seu corpo. Pacientes psicóticos muitas vezes vêem o corpo de forma fragmentada, o que é revelado inclusive por vontade de modificações físicas, uma vez que, na sua percepção, seria possível modificar a cor a partir de mudanças em partes do corpo. Durante o acompanhamento de uma paciente no Programa de Intensificações de Cuidados a Pacientes Psicóticos, pôde-se observar que esta paciente psicótica expressava grande sofrimento psíquico e angústia advindos do fato de ser negra, assim como revolta contra aquele ou aqueles que lhe impunham uma posição inferior devido à cor. *Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC *Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC 216 A questão racial surgiu como foco de trabalho e projeto terapêutico apenas nos últimos meses do acompanhamento, possivelmente, por dificuldades e resistências pessoais terem ocasionado a aceitação tardia do tema como foco do acompanhamento. Tais dificuldades estão relacionadas com a questão da suposta neutralidade do branco. Para os indivíduos considerados brancos na sociedade brasileira, a cor nunca é algo a ser questionado e não se constitui como fonte de discriminação; portanto, não é um empecilho para se relacionar. “Vem você dizer que eu sou preta, que eu sou a macaca da sala”. “Eu pareço urubu é?...”. “Eu não sou negra, quem é negra é aquela prostituta que se vendeu”. A relação do sujeito com seu próprio corpo inicia-se e sofre influência do outro que o toca e com quem se relaciona. É a partir do olhar do outro que o sujeito se percebe, relaciona-se consigo mesmo e com os outros. O corpo humano se constitui a partir de um processo de simbolização, da inscrição de marcas deixadas por uma história, pela constante interação com o Outro, por recortes do desejo. Na psicose, existe a impossibilidade de apropriar-se do corpo com suas marcas singulares, de percebê-lo como formando uma certa unificação (Goidanich, 2003). De acordo com Goidanich (2003), um aspecto que a clínica das psicoses evidencia é a freqüente relação de estranhamento que os psicóticos mantêm com seu corpo. Relacionam-se com ele como se fosse um outro, um objeto estranho. No período de crise, os sujeitos psicóticos são quase esmagados pela enxurrada de estímulos que os aflige e sobre a qual não mantém controle - escutam vozes, vêem imagens, sentem empurrões, beliscões e puxões que os dominam totalmente. Evidencia-se que não há nenhum tipo de barreira ou censura, nenhum amortecimento para a torrente de sensações produzidas e percebidas pelo sujeito. A alteridade o esmaga, o domina e aniquila a possibilidade de existir enquanto um sujeito que impõe algum tipo de corte separador (Goidanich, 2003). As frases citadas no início deste trabalho são de M. – uma mulher negra, de 25 anos, classe média, estudante de administração hoteleira. Na presença de estagiárias do Programa de Intensificação de Cuidados, durante um surto psicótico, M. expressa seu sofrimento psíquico e sua angústia advindos do fato de ser negra, mas também sua revolta contra aquele (ou aqueles) que lhe impõem uma posição inferior devido a sua cor. Segundo Andrade e Silva (2006), o desenvolvi- mento do sujeito negro, de sua subjetividade e de sua identidade, é marcado por vivências sistemáticas de discriminação e ofensa em relação a suas características étnicas. Essa experiência, por sua vez, gera uma série de questões identificatórias, a partir das quais o sujeito não pode reconhecer a si próprio de forma serena e não conflituosa, o que permite produzir tanto o sofrimento quanto constrangimento da sua expressão subjetiva. O primeiro surto de M. ocorreu no último ano da escola. Fora desencadeado após uma apresentação de trabalho, na qual ela teria que representar o papel principal numa dança sobre o Ilê-Ayê, por ser negra. Entretanto, ela foi substituída por uma colega branca que, segundo M., era “mais bonita, prostituta e aidética”. Esta experiência foi muito marcante na vida da paciente. Andrade e Silva (2006) salientam que a violência racial e o sofrimento gerado por esta são frequentemente relatados por pacientes psiquiátricos negros, chegando, em alguns casos, a serem centrais na construção do delírio. No caso de M., o sofrimento psíquico advindo da sua cor está sempre presente nas suas falas, não só em momentos de delírios ou em suas fantasias. A questão racial é bastante forte e presente na vida da paciente. A cor é sempre fonte de questionamento sobre si mesma e lhe confere uma aparência que ela rejeita. M. sente-se inferior, inclusive entre seus familiares, por acreditar que é mais “escura do que eles”. Isso pode interferir no sentimento de pertença, de filiação e, portanto, na relação com os outros e na sua auto-estima. Não conseguindo negar sua cor e não poden217 do modificá-la, M. encontra meios para não ressaltá-la. Assim, restringe suas atividades – não vai à praia, clube ou qualquer lugar que possa bronzear a sua pele, evita sair de casa a pé ou ficar em ponto de ônibus em horários em que o sol esteja muito forte. É possível afirmar que M. organiza sua vida em função da preocupação constante com a sua cor. “Eu prefiro ficar assim... amarela”. Em quase todas as visitas, M. observa e nos questiona sobre a nossa aparência. Comenta sobre nosso cabelo, sobre nosso corpo, repara se emagrecemos ou se estamos mais bronzeadas. “Você foi à praia?... Você era mais branquinha”. Na relação da paciente com o próprio corpo, os aspectos que lhe remetem a sua negritude lhes são os mais inquietantes. Estagiária: “Você está sempre preocupada com sua aparência...”. M.: “É, Sempre.” Estagiária: “O que mais lhe incomoda na sua aparência?”. M.: “A cor” Estagiária: “Por quê?” M.: “Porque eu sou negra, né? Na escola diziam que eu era negra. Eu via que tinha diferença. 218 Os meninos só achavam as brancas bonitas. As morenas e as negras ninguém achava bonita.” Nota-se uma percepção negativa de M. sobre seu corpo e uma busca constante de transformação. Ao ser questionada sobre seus desejos e planos para o próximo ano, M. responde: “Quero mudanças! Mudar de casa, de curso, fazer plástica no nariz, mudar meu cabelo, meu corpo.” M. expressa, costumeiramente, o desejo de mudar. Desde mudar de curso até mudar a si mesma, naquilo que a incomoda: a cor e seus traços étnicos. Rejeitar em si o que o outros rejeitam nela promove uma procura constante por meios que possam torná-la mais aceita socialmente e, portanto, sofrer menos. A forma mais fácil, portanto, seria adaptar-se ao ideal de beleza branco, socialmente mais aceito e até mesmo cultuado. Carone (2002), discorrendo sobre o conceito de ideologia do branqueamento, salienta que tal conceito pode ser entendido, inicialmente, como o ideal de “clareamento” da população brasileira resultante da intensa miscigenação entre brancos e negros no período colonial. Entretanto, ressalta que o branqueamento também pode ser entendido como uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição para se “integrar” à nova ordem social pós abolição. Neste sentido, a maioria da população introje- tou o ideal de branqueamento, o que deixou marcas invisíveis no imaginário e nas representações coletivas. Inconscientemente, estas marcas interferem no processo de construção da identidade do negro, bem como na formação da auto-estima geralmente baixa da população negra e na supervalorização idealizada da população branca (Munanga, 2002). O ideal do branqueamento é constantemente percebido no discurso de M.: relação à questão racial podem ter ocasionado a aceitação tardia do tema como foco do acompanhamento. É importante ressaltar duas dificuldades encontradas por nós durante esse processo. Uma delas é o fato de sermos estagiárias brancas e como tais, termos herdado a neutralidade do branco. A nossa cor nunca foi algo a ser questionada por nós, nunca se constituiu como fonte de discriminação e, portanto, não é um empecilho para nos relacionarmos. “Eu vou fazer cirurgia no nariz, pra puxar a Silva Bento (2003) ressalta que o branco semcor, quero ficar igual à Sandy”. pre aparece como modelo universal de humanidade, alvo de inveja e desejo dos outros grupos Fazer cirurgia no nariz simboliza o desejo de raciais não brancos. Dessa forma, o foco de disbranqueamento de M. Na sua percepção, seria cussão é sempre o negro e há um silêncio sobre possível modificar a cor a partir da modificação o branco. Para a autora, parece haver uma esde partes do corpo, o que revela uma fragmenta- pécie de pacto entre os brancos, de não se recoção do mesmo e um dado real de preocupação nhecerem como parte essencial da permanência com a sua identidade étnica. das desigualdades raciais no Brasil. Assim, evitar De acordo com ela, as mudanças físicas (nariz focalizar o branco é evitar discutir as diferentes e cabelo) promoveriam uma melhor auto-estima dimensões de privilégio simbólico da brancura. uma vez que a aproximariam do ideal de beleza A outra dificuldade encontrada por nós é a de branco. Assim, haveria também uma mudança de responder as perguntas que M. nos direciona. Ela posição, sentida como inferior diante da sua con- nos convoca, costumeiramente, a opinar e dar dição estética. respostas sobre ela que possam “solucionar” suas Durante seis meses acompanhando M., a demandas, inclusive sobre sua cor. questão racial surgiu para nós como foco de trabalho e projeto terapêutico apenas nos últimos M.: “Eu sou negra, não sou? meses. A partir de então, realizou-se uma revisão O que você acha? dos relatórios de estagiários anteriores que, apesar de citarem o sofrimento psíquico de M., não Quero saber como as pessoas de fora, na rua, tiveram como objetivo de trabalho essa questão. As nossas dificuldades e resistências pessoais em me vêem.” 219 Esses questionamentos provocam em nós certo desconforto, pois nos levam a indagar sobre nós mesmas e sobre nossa condição de brancas. Além disso, M. constantemente se compara conosco e nos coloca em uma posição “superior” a ela, devido a nossa cor, o que aumenta nosso desconforto. Aceitar nossa branquitude e as implicações culturais, políticas e socioeconômicas de sermos brancas é o primeiro passo para podermos desenvolver um bom trabalho com M. Implicar-nos em estudos e discussões sobre o tema possibilita a construção de um arcabouço teórico que possa embasar uma atuação mais ética e próxima da realidade de M. Entretanto, é também uma dívida social, uma vez que “o problema do negro é também o problema do branco”. Bento (2003) aponta que foi a elite branca brasileira quem criou o problema do negro brasileiro. A primeira fez uma apropriação simbólica que reforça o autoconceito do branco e sua (suposta) supremacia econômica, política e social. Além disso, construiu um imaginário negativo sobre o negro, o que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais (Santos, 2003, p. 32). É importante salientar que os delírios de M. sobre a questão racial são fundamentados em suas experiências sociais e relações estabelecidas com o outro. Supõe-se que essas experiências promovam muito sofrimento psíquico para ela, bem como para outros negros, uma vez que, na socie220 dade brasileira, o preconceito é constitutivo das relações sociais. O mundo pesa sobre os sujeitos impondo seu tempo, seu andamento, seu modo de funcionar, e, com isso, marca o corpo, configurando gestos, velocidades, modos de se comportar. (Goidanich, 2003). Referências BENTO, MARIA APARECIDA SILVA, Branqueamento e Branquitude no Brasil. Psicologia Social do Racismo, estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003. CARONE, IRAY. Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial. Psicologia Social do Racismo, estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003. MUANGA, KABENGELE. Psicologia Social do Racismo, estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópoles: Vozes, 2003. GOIDANICH, MÁRCIA. Configurações do corpo nas psicoses. Psicologia e Sociedade: 15 (2): 65-73, jul.dez. 2003. ANDRADE, N. C.; SILVA, M. V. O. Violência Racial: A Subjetividade em discussão. In: Représentatiosn dês Noir(e)s dans lês pratiques discursives et culturelles em Caraïbe.Ed. Victorien Lavou Zoungbo, Marges 29, Université de Perpignan Via Domitia. Ressonâncias Ela não pode ser mãe! Quando maternidade e loucura se cruzam Mariana Carteado* H avia cerca de quatro meses que nós acompanhávamos Alice. O vínculo vinha sendo construído e reconstruído a duras penas: ela não conseguia compreender como duas pessoas poderiam estar ali disponíveis para ela sem nenhum interesse escuso por trás. Sua trajetória de vida já havia lhe provado que não se deve confiar em ninguém. Antes de conhecê-la, as únicas informações que tínhamos era de que ela reagia sempre muito mal à presença dos estagiários, alegando que iriam lá vigiá-la, investigar alguma coisa errada em sua vida para infligir-lhe algum tipo de punição. No entanto, ainda que essa recusa de Alice em participar do Programa de Intensificação de Cuidados já fosse motivo de tensão suficiente, a informação que mais se destacava para as pessoas que me relataram o caso era o fato de ela ser mãe. Mãe de duas crianças pequenas e grávi*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC da de um terceiro filho. Essas foram as primeiras informações que tive sobre a paciente e, no decorrer do seu acompanhamento, pude perceber o quanto a escolha desses dados pelos antigos estagiários para apresentá-la a mim foi reveladora de como Alice se relaciona com o mundo e, principalmente, de como o mundo - nós, os outros – se relaciona com ela. A simples presença de Alice nos espaços pelos quais ela transita já costuma ser o suficiente para mobilizar as pessoas, no entanto o fato de ser mãe emerge sempre como uma espécie de provocação, algo que gera perplexidade aos olhos do outro. De fato, ao se impor ao mundo como mulher e mãe, ela rompe com o contrato tácito segundo o qual os papéis sociais que lhe são reservados devem respeitar os limites impostos pela sua condição de pobreza e de loucura. De acordo com a psicanalista argentina Marie Langer (1981), a sociedade atual se configura como anti-instintiva e anti-maternal, na qual o nascimento de um filho tende a ser visto como 223 um estorvo econômico-social, e não uma alegria. A maternidade é encarada como um empecilho para a realização profissional da mulher, principalmente se essa quiser competir em paridade com os homens. Ser mãe implica sempre uma disponibilidade para o cuidar do outro, o que muitas vezes está associado a uma dimensão de sacrifício pessoal. Isso, obviamente, se contrapõe ao discurso individualista, tão comum na sociedade contemporânea, de que a mulher deve pensar primordialmente nos seus projetos de sucesso e bem-estar pessoais. Ainda que o ideal de mulher moderna, que subsidia as reflexões de Langer, esteja um tanto distante da realidade da nossa paciente, um olhar mais apurado pode captar sinais de convergência. Alice é percebida como alguém que precisa de cuidados intensos de saúde, tanto física quanto psíquica, além de viver numa situação sócio-econômica extremamente precária. Se o cuidar de si já é tão escasso, como ela conseguiria cuidar dos filhos? E por que ela não recorre ao planejamento familiar e vai cuidar de si mesma? Certo dia, caminhávamos com ela perto de sua casa, quando uma de suas vizinhas gritou “Doutora, dá uma injeção em Alice pra ela parar de ter filho!”. Na mesma hora, veio a resposta “A barriga é minha e se eu quiser ter dez filhos, você não tem nada com isso!”. Langer considera que, em contraposição ao imperativo anti-maternal da sociedade, a biologia da mulher mantém as suas funções de procriação em pleno exercício e o instinto maternal prossegue influenciando o comportamento feminino. Seria tentador atribuir 224 à relação de Alice com a maternidade um triunfo do instinto maternal sobre as normas sociais, no entanto a complexidade do caso nos aponta outras perspectivas de análise. Desde muito cedo, Alice convive com experiências radicais de desamparo e fragilidade vincular. Sua mãe, psicótica com extensa carreira manicomial, desapareceu por algumas semanas e retornou para casa já grávida dela. Do seu nascimento, não tivemos informações, mas sabemos que sua avó assumiu os seus cuidados e a registrou legalmente como filha, contudo nunca a considerou efetivamente como tal. O conceito de vínculo elucidado por Pichon-Riviére (1998) como interjogo de papéis complementares adjudicados e assumidos numa relação permite-nos inferir possíveis repercussões dessa circunstância em seu processo de individuação: não sabendo ao certo quem era a sua mãe, como poderia Alice reconhecer-se integralmente no papel de filha? Os papéis subseqüentes ocupados pela paciente na sua teia relacional vieram a reificá-la numa posição social regida pelo imperativo “NÃO SEJA”. De fato, desde a primeira infância, quando foi diagnosticada como “doente mental”, qualquer expressão sua que escapasse (ou não) à norma passou automaticamente a ser considerada como sintoma de sua “doença”. Também seu destino já estava traçado, pois, com o tempo, ela estaria fadada a assumir o papel que fora de sua mãe, de bode-expiatório da família e da comunidade. Os estigmas da loucura e da pobreza impendiam-na de assumir qualquer outro papel social de valoração positiva. Frente a uma realidade com recursos tão parcos de construção identitária, a maternidade pode ter-se tornado para ela o ponto de ancoragem psíquica capaz de lhe garantir lugar minimamente digno na cultura. Alice, ao gerar um filho, gera também um outro para quem ela é uma mãe. E é a partir desse lugar de mãe que ela passa a circular pelas instituições que, de certa forma, a confirmam nesse lugar: creche, escola, cartório, pediatra, CAPS infantil. Assumir o papel de mãe e se relacionar com o mundo a partir desse papel talvez tenha sido a forma encontrada por Alice para escapar da posição alienada que lhe foi imposta pelo estigma da loucura. Essa saída, entretanto, fez emergir uma nova gama de tensões. O imperativo “NÃO SEJA” para pessoas como ela não admite exceções. Quando se é louco e pobre, não se pode ser mais nada, muito menos mãe! Como dizia no início do relato, fazia aproximadamente quatro meses que acompanhávamos Alice, quando, certo dia, chegamos a sua casa e a encontramos com um bebê nos braços. A menina havia nascido há apenas três dias e Alice estava radiante e cumprimentava orgulhosa a caravana de vizinhos que iam ver a criança. Saímos de lá surpreendidas com sua reação diante da chegada da filha, pois estávamos apreensivas com a possibilidade de ela se desorganizar ou até entrar em crise diante dos desafios que viria a enfrentar para cuidar de um bebê. Pelo contrário, Alice, ainda que meio desengonçada, nos parecia tranqüila e confortável no lugar de mãe. Retornamos três dias depois e ela comentou co- nosco que havia estado com a filha, pela manhã, em uma organização do judiciário, para solicitar um documento exigindo que o pai reconhecesse a paternidade da criança. Quando lá chegou, com a menina nos braços, a assistente social perguntou-lhe como ela estava alimentando o bebê, ao que ela respondeu que estava preparando papas com leite em pó e arrozina. Segundo o relato de Alice, a assistente social lhe disse que ela não teria a menor condição de cuidar da criança e que o melhor seria entregá-la a um abrigo. Tentamos tranqüilizá-la esclarecendo que devia ter ocorrido um mal entendido, a assistente social só deveria ter ficado preocupada porque arrozina é um alimento muito ‘forte’ para a criança. Alice disse que sabia da existência de um leite próprio para recém-nascidos, mas a lata custava quinze reais e ela não tinha condições de comprá-lo. Saímos de lá então com a incumbência de buscar meios para que ela conseguisse o leite apropriado ou até mesmo o materno num banco de leite. No dia seguinte, ao chegarmos à casa da paciente, sua avó veio em nossa direção e me abraçou chorando e dizendo que haviam levado a menina. Alice apareceu em seguida e, muito agitada, começou a mostrar o enxoval que havia feito para o bebê, as fraldas que comprou, e a explicar que sabia cuidar da sua filha, que “fervia a água, passava os panos com ferro”, etc. Após esse primeiro momento de muita tensão, conseguimos acalmá-la para que ela nos contasse o que havia ocorrido. Naquele dia, algumas horas antes, representantes daquela organização do judiciário Estadual estiveram em sua casa e “constataram” 225 que a criança se encontrava em situação de risco. Sendo assim, alguém teria que assumir a responsabilidade pelos cuidados da criança ou ela seria levada a um abrigo. A solução encontrada para o impasse foi colocar a menina sob os cuidados de uma vizinha, que também era madrinha da criança. O clima na casa era tenso. A qualquer barulho de carro na rua, imaginava-se que poderia ser alguém da Justiça que, ao ver Alice próxima a sua filha, iria levá-la ao tal abrigo. No dia seguinte, fomos a organização judiciária para tomar conhecimento do que estava de fato acontecendo. O relato de Alice remetia a procedimentos que nos pareciam no mínimo inadequados para técnicos de um órgão público no trato direto com a população. Lá, em conversa com as assistentes sociais responsáveis pelo processo, pudemos compreender alguns dos critérios utilizados na avaliação do caso. Um dos aspectos levantados com bastante ênfase referia-se à condição de extrema pobreza de Alice e sua família. A ausência de reboco na casa, a proximidade entre a cozinha e o banheiro, a sujeira, os insetos, a alimentação incorreta do bebê, tudo corroborava a constatação de que aquele não era o ambiente adequado para se cuidar de uma criança recémnascida. Diante dessa situação, a resolução adotada pelas autoridades foi a de retirar a criança da casa e entregá-la aos cuidados de outrem, o mais rápido possível, afastando-a assim da mãe. Estranho... Não seria mais justo e mais condizente com o bem-estar da criança auxiliar essa mãe economicamente para que ela pudesse oferecer melhores condições à sua filha? De fato, a po226 breza em si não seria suficiente para justificar a tal intervenção. Sobrepondo-se ao fato de ser pobre, Alice também era louca, o que, por si só, já se configurava como um risco à integridade da criança, percepção baseada no estereótipo que associa loucura à violência. Langer ajuda-nos a pensar um pouco sobre essa questão ao refletir sobre um mito argentino, uma espécie de lenda urbana, na qual a personagem principal é uma “empregada má” que assassina as crianças. De acordo com a autora, todos nós levamos em nosso psiquismo, junto à imagem da mãe boa e devotada, uma imagem da mãe terrível, que destrói, mata e devora os seus filhos. Essas imagens, reminiscências da relação ambígua que estabelecemos com as nossas próprias mães nos primeiros anos de vida, tendem a ser projetadas no futuro de acordo com a valoração social da pessoa objeto da projeção. Para exemplificar a sua tese, Langer nos remete a uma espécie de arquétipo de seu país, no qual a faceta cruel e destruidora da mãe é projetada na figura de uma “empregada má” que maltrata os filhos da patroa. Certamente, essa reflexão elucidada por Langer pode nos ajudar a pensar um pouco sobre as possíveis fantasias que povoam a mente das pessoas que lidam diariamente com a noção de crianças em situação de risco. Com o intuito de dirimir possíveis preconceitos, argumentamos que a maternidade não era uma novidade na vida de Alice, que ela havia criado duas crianças saudáveis, mesmo com todas as dificuldades impostas pela sua condição psíquica e social. Além disso, sua qualidade de vida iria me- lhorar significativamente quando ela recebesse o Benefício de Prestação Continuada do INSS, pelo qual vinha esperando há alguns meses. Quando toquei nesse ponto, para minha surpresa, a assistente social mencionou que o processo de requerimento desse benefício, na verdade, vinha a corroborar a avaliação de que ela não tinha condições de criar sua filha. Na verdade, um dos requisitos para a concessão do BPC consistia na interdição judicial do requerente, ou seja, na declaração pública de que o requerente não possuía discernimento para reger os próprios atos, necessitando para isso de um curador. Sendo assim, como uma pessoa que não era responsável por si própria poderia se responsabilizar por três menores? Tratava-se de uma armadilha legal. Alice estava prestes a abrir mão de todos os seus direitos de cidadã em troca de um auxílio financeiro governamental. A ingerência do imperativo “NÃO SEJA” em sua vida chegara a limites impensáveis: a inacessibilidade a seus direitos civis estava prestes a ser oficializada juridicamente. Essa constatação incidiu significativamente sobre nós, pois percebemos que, a partir daquele momento, nossa intervenção clínica só faria sentido se assumíssemos um posicionamento político ativo, no sentido de exigir a garantia à cidadania plena dos nossos pacientes. A exigência da interdição judicial para a concessão do Benefício de Prestação Continuada não possui respaldo legal, ou seja, é baseada unicamente no estereótipo reducionista de que ser louco implica necessariamente uma incapacidade total para a vida civil. Àqueles tocados pelo estigma da loucura, resta apenas ser loucos, e mais nada. Alice, ao seu jeito, vem tentando escapar dessa posição alienante. Até hoje, o papel de mãe talvez tenha sido o único que ela tenha encontrado para SER em sociedade. Esperamos, com a intensificação de cuidados, poder acompanhá-la por novos caminhos, experimentando novos papéis que, integrados à sua personalidade, lhe permitam SER no mundo com a dignidade que lhe é de direito. Referências LANGER,M. (1981). Maternidade e Sexo. Porto Alegre: Artes Médicas PICHON-RIVIÈRE, E. (1998). Teoria do Vinculo. São Paulo: Martins Fontes 227 Encontros e desencontros com a psicose Lorena de Almeida Oliveira* Thiago Lima Melo** Resumo: Este artigo é fruto da experiência de Estágio Supervisionado no Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos. Procuramos desenvolver, neste texto, como o encontro com o paciente psicótico pôde nos remeter a questionamentos sobre sua presença no mundo, como sujeito em si ou como sujeito da própria psicose. Os encontros, mais do que certeza acerca da psicose, remeteram-nos a questionamentos sobre quem é o sujeito psicótico, seu estado de isolamento, exclusão e solidão, o efeito de nomeação (diagnóstico) da psicose e as formas de intervenção que podem ser delineadas a partir disso. Os encontros, muitas vezes, revelaram-se, então, “desencontros” com a psicose. A os 18 anos, no ano de 1985, João acorda no meio da noite agitado, dizendo que algo havia caído em sua cabeça. Um dos seus irmãos, *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC **Psicólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC 228 que dormia numa cama debaixo da dele, acendeu a luz do quarto e o encontrou na cama, pronunciando palavras em baixo som. Questionado sobre o que estava fazendo, João responde que estava orando. Ele relata que, antes deste episódio, começou a se sentir “vazio por dentro, pragmático”. No dia 11 de junho de 1986, ainda aos dezoito anos, João é levado por uma de suas irmãs pela primeira vez a um sanatório. Segundo ela, o paciente dizia que “via um navio, ficava lendo a bíblia dia e noite, parecia que estava pregando”. João dizia não saber o que estava fazendo naquele local, que não sentia nada e nem entendia o motivo de terem lhe aplicado uma injeção. É provável que, neste mesmo dia, com uma “boa” anamnese e entrevista clínica, tenham sido identificados alguns sinais que indicavam a presença não só de algo errado, mas de uma doença mental. É provável que, neste dia, João tenha recebido uma nomeação além daquela que já carregava desde o dia de seu nascimento; João agora era esquizofrênico e, como a maioria, sujeito a alucinações, delírios, discurso confuso, um comportamento também desorganizado, diminuição da vontade, da fala e demonstrações de afeto concomitantes com a perda de habilidades sociais e interpessoais. João, paciente do sexo masculino, 38 anos, diagnosticado como esquizofrênico, é residente de um bairro popular da cidade do Salvador, o último dos seis filhos de pais já falecidos. Em seu prontuário, há registros de hetero-agressividade, delírios de perseguição, desinibição sexual e inquietude. Segundo informações de seus familiares, ele era estudioso, inteligente, chegou a completar os estudos do segundo grau e a realizar estágios como auxiliar em laboratórios de patologia. Demorou a falar, (somente aos quatro anos de idade), não tinha muitos amigos e sempre foi muito quieto; gostava de desenhar, escrever e ler. Não falava muito com as pessoas de sua casa, gostava mais de ficar sozinho. Após ter sido identificada a doença, a família constata que havia algo errado desde o início. No ínicio de julho de 2005, 20 anos após o primeiro episódio que a psicopatologia denomina de “surto”, aos 37 anos, conhecemos João. Ele nos chega através do programa de estágio de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, com 20 anos de “carreira” na esquizofrenia, na psicose, e é através dela que entramos em contato com ele. Antes mesmo de conhecê-lo, de olhar em seus olhos, já sabíamos que ele era psicótico; antes mesmo de nosso primeiro encontro, já trazíamos em nós o nome “psicótico”. E é assim que se iniciam os nossos encontros, pela psicose. Eram encontros semanais, nas tardes de quinta-feira, em um município da região metropolitana de Salvador. João se encontrava em regime de asilamento há quase um ano, em uma instituição de cunho religioso que se propunha à recuperação de seus “alunos”. Nessa instituição, não havia médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou qualquer indivíduo que se encaixasse na categoria de profissional de saúde mental. Mas, assim como em outras instituições asilares, nesta, havia também a presença do outro que garante que a alienação é de alguns, e suas atribulações podem ser depósitos das mais variadas atuações. Guardadas as dificuldades próprias dos primeiros encontros com João, devido a suas respostas hostis à possibilidade de vinculação com os acompanhantes terapêuticos, (afinal, é difícil receber qualquer um propondo ajuda a males que nem ele mesmo suporta por inteiro), conseguimos, numa tarde desses encontros, mas não muito tarde ainda, sentarmos ao seu lado. Cada um de nós sentado, em seus lugares, numa pequena calçada, onde batia sombra naquela tarde quente. E, dentro de nós, não dele, procurávamos em nossas histórias pregressas algo que garantisse um conforto maior e silenciasse nossos medos. Refazíamos o caminho de nossa formação pelos corredores abertos da faculdade de psicologia procurando por informações claras, mas, mesmo com o nome da psicose em nossas mãos, ainda nos encontrávamos do outro lado de João. Mesmo sentados tão próximos, sendo olhados 229 por aqueles olhos grandes, aquele olhar estranho que só os psicóticos (“os loucos”) possuem, olhos que parecem atravessar os corpos, desvelar as almas alheias, deixando trêmulos e assustados estes acompanhantes terapêuticos, João parecia guardar para si todo o impossível a ser descoberto por nós e nossa psicologia. Para nossa surpresa, ele era mais que um psicótico e, sendo assim, escondia muito bem essa parte. O encontro estava dado, a psicose estava dada, e todos os pré-requisitos para ser realizado o encontro entre nós, acompanhantes terapêuticos, e a psicose estavam ali presentes: as teorias esquecidas nas nossas memórias, alguns sinais vagos e característicos do que seja a psicose (delírios, alucinações...), o nome de João vinculado a um hospital especializado em atendimento a pessoas acometidas por transtornos mentais e o Programa de Intensificação de Cuidados; os desejos individuais de cada acompanhante terapêutico, o estado de asilamento, garantindo encontros “confortáveis”, e, finalmente, a disponibilidade ou indisponibilidade de alguns que permitem a realização de tais encontros e o assentamento dos lugares de psicótico e de acompanhante terapêutico. Mas não sabemos se pela psicose ou por ser próprio de João, os lugares tinham de ser tocados e apontados como denúncia na fala dele: “isso que vocês chamam de transtorno mental, de delírio persecutório, de embotamento afetivo, esses nomes que vocês dizem; isso na verdade sou eu, sou eu que sinto; e isso que sinto, isso que vivo é também realidade, o que vivo aqui dentro é tam230 bém real”. E, se assim se faz, “me responda uma pergunta: o que é a esquizofrenia? Me responda uma outra pergunta: se a psicologia não é igual à psiquiatria, o que é então a psicologia? Como surge a esquizofrenia? E esses medicamentos anti-psicóticos, o que eles fazem?”, e por fim: “Por que eu tenho que ficar aqui nesta instituição?”. Se João toca, balança e troca os lugares, proferindo seus questionamentos, decretando-os, juntamo-nos a ele em seus questionamentos: como é este momento (como num efeito de magia) de nomeação da psicose? A psicose aparece como efeito isolado, a partir de um episódio estranho de alucinações, delírios ou esvaziamento do sujeito? E, num desconforto maior nosso: como é essa “coisa” de, um dia, de repente, ter se tornado psicótico? A vida do sujeito é a psicose ou a experiência própria, radical e enigmática que é nomeada anos seguintes? “Por que tal evolução de determinados sujeitos, conduzindo-os à psicose?” (Castoriadis, 1999. p. 123 ) e por fim, a quem pertence a psicose? A partir desses questionamentos e de outros que, certamente, surgirão, tentaremos apresentar um ensaio que tem como objetivo apreender, em algum nível, nossa gratificante experiência de encontros e desencontros com o sujeito João, tomando sua história como exemplo do que pode acontecer com pessoas acometidas de algum tipo de transtorno mental. Quem é o sujeito psicótico? Pela história de vida de João, podem-se perceber alguns indícios da dificuldade que ele apresentava ao se relacionar com o “outro”, dificuldade que se apresenta como um enigma para o sujeito psicótico. Sempre tímido e quieto, João não tinha muitos amigos e, mesmo em casa, sempre fora muito sozinho. Mas como essa “solidão” se apresenta para ele? Indo mais além, como essa solidão é percebida e “nomeada” pelo “outro”? Na sociedade contemporânea, o homem solitário é visto como “anormal”; a solidão é concebida como uma patologia, e, assim, o sujeito “solitário” é excluído de alguma forma das relações com o outro. Segundo Katz (1996): “... desde seus primeiros movimentos, o infante humano estaria sempre em sociedade, em situação de socius, existente apenas como necessidade dos outros. O que determinaria, para um certo registro do pensamento, a impossibilidade da solidão do humano; que, se manifesta, deve ser tratada, curada enquanto afastamento carente de normalidade social.” (KATZ, 1996. p. 29) Desse modo, atualmente, é impossível se conceber a solidão como possibilidade intrínseca de um sujeito; mesmo cabendo à solidão um importante e essencial papel na constituição da subjetividade humana, sua existência se tornou uma patologia a ser tratada. Apesar da existência de todos os conceitos explícitos ou não sobre a solidão, João não deixava de ser solitário, ou melhor, ele não via essa possibilidade. Inicialmente, isso não era visto como incômodo às pessoas próxi- mas dele; talvez para João esse incômodo fosse sentido ou talvez não fizesse diferença para a vida dele enquanto um sujeito “normal”. Sim! João, antes de ter a nomeação de “psicótico”, era um sujeito normal; um pouco “estranho”, mas normal. Então, o que, afinal, aconteceu para que ele deixasse de pertencer à “categoria” da normalidade e passasse a fazer parte de uma outra categoria, a dos “anormais”? Talvez se possa tomar a questão do incômodo como determinante para essa classificação; o incômodo que João passou a sentir com mais intensidade ou que passou a produzir nos outros. Assim, existe uma aproximação entre o “sujeito solitário João” e o “sujeito psicótico João”. Tanto a solidão quanto a psicose começam a ter existência a partir do momento em que passam a provocar algum incômodo no sujeito e no meio em que vive. Voltando a Katz (1996): “É verdade que, inúmeras vezes, especialmente para o homem burguês contemporâneo, a solidão só se deixa escutar quando atinge um modo insuportável: quando, no ser humano, não encontra mais lugar para ela, eis o momento em que ela emerge para a experiência, insiste em se afirmar.” (KATZ, 1996. p. 29) Da mesma forma que a solidão, a psicose e suas ”desorganizações psíquicas” só são percebidas no momento em que “transbordam” do sujeito; aí passam a ter existência, quando não é mais possível administrá-las dentro dele. Assim como a solidão, a psicose é algo de difícil entendimento tanto para as pessoas ditas “normais” quanto para as “psicóticas”. Desse modo, 231 “... A loucura é uma experiência humana cujas questões se colocam para os loucos ou não loucos, situando problemas para a razão; (...) reconhecemos as experiências da loucura não como aberração ou déficit, mas como experiências legítimas e pensáveis do corpo, da existência, do pensamento. Experiências perturbadoras, sim, porque podem rasgar o sentido; mas podem também, em certos casos, imprimir ao sentido outros cortes, possibilitando inimagináveis refazendas.” (LOBOSQUE, 2001. p. 22) Dada sua vida solitária, ocupando os espaços das sobras no silêncio dos diálogos de sua família, na sua qualidade de “calado, quieto”, descrita pelos seus, João se fazia; e tal quietude, tal solidão, tal monólogo de sensações pôde ser nomeado no agravamento de suas ações. É quando o estado de estranheza, de esvaziamento e angústia desemboca numa completa loucura, que o mórbido pode ser descrito e nomeado, neste caso, por psicose. O mundo privado que é revelado pelos “devaneios” e, dessa forma, exposto aos olhos alheios está apto a ser analisado e classificado como doença mental, sendo revelado então sua “história psicológica” (Foucault, 1984. p. 67-69) susceptível ao casuísmo e efeitos no presente e futuro. Mas, enfim, o que é a psicose? O que a define enquanto tal? Tomadas as devidas dificuldades em se nomear essa “experiência desorganizadora”, tentaremos defini-la, ainda que saibamos da impossibilidade de apreendê-la em sua totalidade. Tomando Katz (1996) como referência: “Irrupções, cortes abruptos, violência psíquica perma232 nente, reclamos insistentes pela mera indicação da ausência de outra coisa, pela presença equivocada destes outros que se podem perder num momento ou de um só golpe. Aflições, recordações de realidades nunca existentes, perdidas lembranças de uma memória a se criar, intervenções de pensamentos não-reclamados, não-esperados pelo ‘pensador’, infiltração de idéias terríveis e inesperadas (contra as quais nada se pode fazer, a não ser, no melhor dos casos, suportá-las com angústia).” (KATZ, 1996. p. 44). A partir disso, pode-se tomar a psicose a partir da complexidade que assume para todos, psicóticos ou não. Aquilo que era quietude durante anos seguidos e construídos a fio lentamente, irrompe-se no estranho, na loucura, na doença mental. Não pretendemos afirmar que sua história, agora, justifica sua psicose, depois que João assim é nomeado, mas sim considerar, a título de reflexão, que ato de “magia” é este que o nomeou como tal. O que parecia ser experiência de vida individual, restrita, solitária e talvez angustiante, parece ter sido absorvido completamente pela doença, e tudo, a partir daquele fato de irrupção do estranho, seguido da nomeação (alucinações, delírios), fez desaparecer o João de antigamente ou justificar de vez aquele João. Agora as fronteiras entre João e os outros estavam de vez alargadas, dito agora a qualquer um que passe na rua, apontado pelos outros, justificando sua presença nos lugares de forma excluída. João agora sai de seu mundo de solidão, de quietude, e adentra na estranheza da pura atuação concreta e vista até mesmo por quem anda de olhos fechados. Psicose: morte ou ressurgimento visível do sujeito? “A loucura é a ameaça e a presença viva da morte, e os loucos são a morte aí, espreitando na sua disrupção não-anunciada mas esperada.” (Chaim Samuel Katz) Voltando novamente à história de João, outros questionamentos surgem: por que ele teve de ser isolado do seu meio? O que legitima essa forma de “tratamento” dispensada a esse sujeito? Algumas respostas podem aparecer. Analisemos, sob o ponto de vista do social, deste social que ajuda a constituir, mas também “exclui” o sujeito. Segundo a família de João: “não havia outra forma de lidar com ele, nossa mãe, que era quem cuidava dele em casa, tinha acabado de morrer. Não sabíamos o que fazer, a única alternativa foi interná-lo”. E assim João está privado de aproveitar sua vida em casa, de fazer as coisas que sempre gostou, de estar próximo das pessoas conhecidas e da sua família. Nota-se que a atitude de interná-lo por um período prolongado deu-se a partir da presença da morte; da morte da mãe e “cuidadora” de João. Antes de tudo, da morte de uma pessoa importante para a família, da morte presentificada. Pensando de uma forma mais ampla, a psicose, assim como a morte, é vista como algo a ser afastado das discussões cotidianas e, dessa forma, é excluída das relações entre as pessoas. Não que não tenham existência; mas são fontes de tão grandes sofrimentos, que não merecem ser pensadas ou faladas. Tomando a aproximação feita por Katz (1996): “... É que a loucura é a presença da morte, morte feita a cada instante, sem respeitar condições fisiológicas e biológicas, etárias e de saúde.” (KATZ, 1996. p. 44). Assim, a aproximação entre a psicose e a morte talvez possa se dar pela imprevisibilidade: não se sabe como serão os acontecimentos posteriores à “instalação” da psicose, da mesma forma que a morte é um grande enigma e, como tal, não tem lugar dentro das relações cotidianas “normais”. Mas, assim como a morte, a psicose também existe. Mesmo sendo afastada das relações cotidianas dessa família, a psicose está aí. Não há como ignorá-la. Então, por que não aceitá-la? Segundo os próprios familiares de João, “não sabemos como agir quando ele entra em crise. Temos a nossa própria vida, nossos trabalhos, não podemos nos dedicar exclusivamente ao cuidado dele. Ficamos mais tranqüilos com ele lá, internado”. E, dessa forma, João continua institucionalizado; mesmo expressando claramente o desejo de voltar à sua casa, ao convívio com seus familiares e sua comunidade. A sua voz emudece, assim como seus desejos e planos são sempre postergados e vistos pelos familiares como sem importância. E, assim como a morte, são ignorados por eles. 233 Por efeito de nomeação Agora João é psicótico. Muitas vezes, fora levado às pressas aos centros de internamentos psiquiátricos por seus familiares, quando se encontrava em momentos de exasperação de sua angústia, quebrando todos os móveis de sua casa. Lá, nestes centros, em suas salas e corredores, as estranhezas de João foram sendo descritas e classificadas. Devemos, então, ao isolamento de pessoas como João o desenvolvimento de classificações semiológicas daquilo que se concebe como doença mental, afinal são nas salas especializadas que se pode debruçar com mais visibilidade sobre as estranhezas comportamentais e estabelecer em seguida uma lógica (Lobosque 2001, pg. 56-57). Mas a qual lógica João e a sua psicose obedecem? A lógica da desrazão e a perda do sentido ou à lógica da produção de sentido através de sua psicose? Vamos situar: quando João se torna psicótico, é nomeado como tal, suas demonstrações estranhas, ou seja, delírios e alucinações, compõem um rompimento em sua vida, e daí se faz sujeito a análises descritivas? Ou suas demonstrações estranhas, acima de qualquer delírio, são dotadas de um sentido que afirma seu caráter singular? Podemos referenciar este tipo de análise nos textos de Lobosque (2001), pontuando a perspectiva psicanalítica e a psiquiatria clássica de Jaspers. Para a autora, este último modelo de análise tende a ressaltar as características do comportamento de pessoas que sofrem de transtorno men234 tal “a título de ilustração de um desarranjo, utilizável para uma identificação diagnóstica, mas não como material para seu próprio trabalho de cura” (Lobosque 2001, p. 50); enquanto que, na psicanálise, é devolvido ao sujeito psicótico o sentido dos seus atos, “a psicose, questão do sujeito” responde, vamos dizer dessa forma: “(...) a posição subjetiva do psicótico enquanto sujeito de um pensamento inconsciente que só pode ser o seu... mas que se apresenta a ele como fora de si” (Lobosque 2001, p. 52). Então, no modelo psiquiátrico, haveria a ruptura da cadeia do sentido a partir da entrada em suas manifestações sintomáticas, aliás, o indivíduo só aparece quando se exaltam seus sintomas, e, neste momento, o sujeito desaparece, pois perde sua lógica de sentido; enquanto na psicanálise, é ali onde parece não haver mais sentido algum que o inconsciente se enuncia; nas produções delirantes teríamos então uma reconstrução do sentido . Ficamos, então, com a discussão se houve um rompimento na vida de João após o seu surto e daí ele se fez psicótico ou se João continua com sua vida enigmática e agora radical após o episódio. Tentamos responder a este questionamento, retirando da psicanálise a condição de lógica na produção do sentido na psicose, pois é o que temos de mais próximo que afirme uma continuidade na vida de João após o episódio de surto, considerando que a teoria psicanalítica se alimenta de tal sentido nessa produção e se afirma aí onde se diz não haver sentido algum (Castoriadis, 1999. p. 119). Se os sintomas psicóticos são invasivos, vêm de fora do sujeito conforme sua estruturação, tais sintomas poderiam ser a justificativa radical de uma existência angustiante ou da própria experiência de João como sujeito. Poderíamos pensar assim, a partir dos questionamentos dele: “isso que não compreendo, mas que me angustia e me faz sofrer; essas coisas que tenho, que sinto, só pode ser por algum motivo. E este motivo só pode se encontrar nos outros, então são eles os responsáveis por tudo o que sinto, não eu”. E, como confirmação máxima de tal certeza, vítima e algoz, temos o internamento psiquiátrico ou o atual asilamento (isolamento) de João na instituição. Com isso, ele constrói uma justificativa para esse fato, ainda que tal justificativa não seja reconhecida pelo outro. Aquilo que parece ser falta de sentido, através dos sintomas psicóticos, parece revelar ou exaltar a experiência subjetiva de João. Melhor ainda, os delírios e as alucinações são a forma de sua fala, e quem quiser entender ou dar significado, assim o faça, ou o tranque de vez o mais distante possível de sua própria vida. Consideramos a produção de sentido na psicose como estritamente, ou estreitamente, implicada no valor representativo e singular do sujeito. A produção do sujeito psicótico apresenta, então, por mais estranho que seja, coerência com sua experiência e seu valor, sem compromisso visível com a representação do grupo social. Como quando João, em um de seus dias, rasga suas roupas e resolve passear nu pela instituição, como se avisasse: “a mim não interessa seus bens, sua categoria de possuidor de coisas; aliás, a mim não importa a condição de possuidor de coisa alguma”. João, então, produz para si mesmo! Antes da lógica “psi”, da lógica orgânica ou de qualquer outra, ele produz, no final da história, para “si-mesmo” (Castoriadis, 1999). Então, de qual João estamos falando, daquele de antes do surto e suas estranhezas ou deste com suas peculiaridades? É possível considerar a existência de duas entidades diferentes numa só pessoa, ou João sempre foi o mesmo, mas com o nível de sofrimento bem mais intenso do que quando vivia calado dentre os seus irmãos? Considerar sua vida como ruptura radical a partir de seu adoecimento beira, para nós, uma incoerência de análise, que se aproxima mais das categorias diagnósticas, sejam elas referentes à estrutura preconcebida ou à descrição do fenômeno, do que da experiência do sujeito João. E, se a nomeação por diagnóstico acaba confirmando de vez a separação dele em relação a sua vida, parece que, neste âmbito, João é somente ele, como psicótico, não como outro, e é assim que ele se faz e é feito por ela, a psicose. Já considerando que, em sua produção psicótica, há sentido (como vislumbrado pela psicanálise), e que seu sentido só se dá agora, dessa forma, pela estranheza, não haveria então dois viventes de João, um antes e outro depois do surto; este é um só, que produz realmente sentido, de forma singular, mas que assim o conhecemos como “João Psicótico”, concebido por uma condição estruturante. Teríamos então de escolher entre duas opções: conceber o João rompido, desfigurado, nomeado e justificado a partir do seu primeiro surto; ou o 235 João organizado, “arranjado”, nomeado e justificado também a partir do seu primeiro surto, só que agora com uma história pregressa desde o seu nascimento. Situando mais uma vez: psiquiatria, psicanálise ou uma boa combinação entre as duas? E João, em qual lugar se encontra? A quem pertenceria João ou a quem pertence João? À psicose, aos pressupostos da psicose, ao “psi”, ao orgânico, à técnica, aos técnicos, à desorganização, aos muros fechados da instituição, ao pastor, ao seu irmão (que o representa civilmente)? A quem pertence João, e, se à psicose, a quem pertence a psicose? “A quem pertence a psicose?” Mas, se formos para bem distante de sua estrutura ou para bem longe da descrição de seus sintomas, que João encontraríamos? Este que se apresentou a nós, negando que ele fosse qualquer destes que dizíamos que era em seus questionamentos e replicações. Dessa forma, entre o João que nos chega e que nos é apresentado pela instituição, existe uma distância considerável, não sei se por nós, mas afirmada por ele próprio. Nessas dúvidas, nesses anseios daqueles encontros que promovem, sempre, a dúvida, não sabemos então em qual lugar João se encontra, se do lado dos “alunos”, dos psicóticos e, dessa forma, também da psicologia, psiquiatria e psicanálise ou em seu lugar ou em lugar algum. Enfim, qual é o lugar de João, quais são os lugares dos loucos? Os lugares dos loucos são na “casa das psicoses” e, porventura, nas formas culturais de determina236 ção da psicose. Seja qual for o lugar de João, dele próprio ou na “casa das psicoses”, este tende a ser um lugar de isolamento e exclusão, pois assim nossa cultura determina: “a loucura (...) situa-se aí: neste nível de sedimentação nos fenômenos de cultura (...)” (Foucault, 1984. p. 89). As estranhezas que chegam ao seu limite no “surto” são, assim, consideradas como doença, como psicose, cumprindo um papel social que lhe é próprio em nossa história. Para se formarem muros, para se formarem quartos, varandas e lugares de psicótico, temos de considerar para que finalidade se erigem as “casas de psicótico”; e, no nosso mundo, mesmo que se derrubem os muros dos manicômios, ou que os reforme, louco ainda é louco, e, por assim ser, “dá trabalho aos outros”, desvirtua a lógica racionalista do dia-a-dia das construções, e “(...) dizer: este é um louco, não é um ato simples nem imediato. Repousa, de fato, num certo número de operações prévias (...) segundo as linhas da valorização e da exclusão (Foucault, 1984. p. 89). E, para que vivamos tranqüilos, para que sua família viva tranqüila, para que o pastor e sua instituição vivam tranqüilos, para que as instituições vivam tranqüilas, para que a psicologia viva tranqüila e para que João também viva tranqüilo, é melhor que ele continue sendo louco, ainda que louco seja apenas louco para alguns e próprio de intervenções para outros. Consideramos que João é psicótico, e sua psicose pertence a sua própria cultura. Então, quais são os espaços (lugares) que se renovam para abrigar os psicóticos? Os loucos retornarão para suas casas quando não hospitalizar e absorver as peripécias da loucura em suas famílias passa a ser a regra? E, se assim é, que tipo de técnicas sofisticadas e “capilares” entrará no dia dos psicóticos, e como estas “comportarão” a loucura? Precisaríamos delimitar, dessa forma, o que pretendemos com a loucura, com a psicose, com João? Quais são as novas regras? Assumindo o lugar de profissionais “psi”, nossa argumentação sobre o modo de cuidado dispensado aos portadores de transtorno mental se baseia em uma clínica que leve em consideração o sujeito; sujeito que sofre que é excluído e rotulado pela sociedade como incapaz, como “perturbador da ordem”. É exatamente esse sujeito “diferente” que nos interessa; e essa clínica deve ser estruturada de modo a dar conta dessa diferença do outro, e mais além, deve ser capaz de fazer o sujeito sustentar sua diferença, sem aceitar sua exclusão social. Não se trata de propostas prontas, cabíveis a qualquer situação e utilizadas como se fossem um “manual de técnicas” preconcebidas; mas sim, de algo a ser construído cotidianamente nas práticas de cada profissional. Esses sim, devem saber os propósitos de suas práticas; devem procurar, nelas, meios que façam minimizar o sofrimento dos sujeitos atendidos, além de os colocarem em primeiro plano. Entendemos que, no cuidado dispensado aos psicóticos, eles devem ter a relevância, e não os rótulos a eles atribuídos. Assim, a psicose, o transtorno mental ou qualquer outra designação dada, deve ser apenas o pano de fundo de uma prática comprometida com a verdade de cada sujeito atendido. Pensamos também que essa clínica aqui proposta tem o papel de reflexão sobre a sociedade em que está inserida, de forma que a loucura seja aceita socialmente; isso se dá através de profundas discussões sobre práticas clínicas que têm, em sua base, a interlocução com variadas espécies de práticas e pensamentos. Referências CASTORIADIS, Cornelius. A construção do mundo na psicose. In: Feito e a ser feito. (pp. 117-131) Rio de Janeiro: DP & A, 1999. FOUCAULT, Michel. (1926) Doença mental e psicologia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. KATZ, Chaim Samuel. O coração distante: ensaio sobre a solidão positiva. (pp. 27 - 63). Rio de Janeiro: Revan, 1996. LOBOSQUE, Ana Marta. A experiência da loucura: da questão do sujeito à presença na cultura. In: Experiências da Loucura. (pp. 13-35) Rio de Janeiro: Garamond, 2001. __________. Neuroses X Psicoses: uma primeira abordagem quanto ao diagnóstico diferencial. In: Experiências da Loucura (pp. 54-70). Rio de Janeiro: Garamond, 2001. __________. A psicose, questão do sujeito. In: Experiências da Loucura. (pp. 41-53) Rio de Janeiro: Garamond, 2001. 237 O incrível poder do vínculo Lygia Freitas* D epois de muita insistência por parte de Marta , resolvi acompanhar Thiago na visita domiciliar que ele, costumeiramente, lhe fazia. Marta fora “minha” paciente logo quando iniciei no estágio, mas, com os freqüentes remanejamentos das duplas de estagiários, deixara de ser. Isso, contudo, não evitava que ela, sempre que ia aos grupos que realizávamos no Mário Leal, questionasse quando eu iria a sua casa, alegando que seus pais sempre perguntavam por mim. Naquela tarde de sexta-feira, atendi seu pedido e fui visitá-la com o estagiário responsável por seu caso. No caminho, fomos conversando; eu, à vontade como sempre, como se fora moradora daquele bairro; e Thiago, mais sério como de costume, mas também relaxado. Foi então que aconteceu algo que nunca nos havia passado pela cabeça acontecer, sobretudo quando íamos visitar os pacientes do Programa, já que o fato *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC 238 de os visitarmos com freqüência nos tornava meio membros das comunidades em que estavam inseridos: fomos assaltados. Um homem nos seguiu na descida de uma ladeira e, quando chegamos ao beco que nos levaria à casa da paciente, abordou-nos, supostamente com uma arma escondida embaixo da camisa, exigindo que lhe déssemos nossos pertences, minha bolsa e a mochila de Thiago. Meu parceiro ainda tentou dialogar com o rapaz, mas ele não estava para conversa. Entregamos-lhe nossas coisas, e o rapaz mandou que voltássemos por onde tínhamos vindo, sem olharmos pra trás. E foi isso que fizemos. Fiquei descontrolada e comecei a chorar, não sei se porque aquela era a primeira vez em que eu era assaltada, se pelo susto do inesperado ou se pelo fato de terem me roubado justo quando eu ia fazer uma “boa ação”. Talvez pela conjunção desses fatores! Fomos para o Mário Leal, que ficava no topo da ladeira que tínhamos descido para ir à casa de Marta. Meu choro provocou uma comoção geral entre os funcionários do HEML, e fomos conduzidos para a diretoria da instituição. Ainda tivemos de ouvir algumas críticas ao Programa, pois “era muito perigoso fazermos as visitas em bairros como os que os pacientes moravam, e ainda por cima sem seguro de vida!” (sic). E, em meio a essas sutis ressalvas ao funcionamento do PIC, quando eu menos esperava, aparece Marta, trazendo nossos pertences de volta! Eu, que já estava mais calma, quando vi minha bolsa, com a carteira e tudo que nela havia antes do assalto, voltei a chorar. Marta, bastante emocionada, pediu-me desculpas por haver insistido para que eu fosse visitá-la, o que acabou sendo até bom para que eu me acalmasse, retomasse a postura de estagiária e deixasse um pouco de lado a emoção que me tomava naquele momento. Disse-lhe que assaltos acontecem a toda hora e em todo lugar, que não havia razão para ela se sentir culpada, etc. Saímos da sala da diretoria para conhecer o benfeitor que havia recuperado nossas coisas. Era um homem alto, magro, negro, com “seios” de silicone e trejeitos bastante femininos, conhecido como Bida. Foi então que Marta nos contou que havia visto o assaltante passar e reconhecera a mochila de Thiago. Como já estava esperando nossa visita, ligou as peças daquele quebra-cabeça e concluiu que o rapaz, seu vizinho, havia nos roubado. Foi, então, à casa de Bida e pediu que ele fosse buscar o que nos havia sido tirado. Nosso herói nos disse que ficou com medo, pois o assaltante era viciado em drogas e parecia bastante nervoso, mas atendeu ao pedido da vizinha e foi à casa dele recuperar minha bolsa e a mochila de Thiago. Chegando lá, mandou que o rapaz devolvesse o que roubara, e o dito cujo jogou tudo em cima da cama. No fim das contas, perdemos apenas nossos celulares, pois o assaltante já tinha dado sumiço neles antes que o herói da história chegasse a sua casa. E foi assim que vivi um dos dias mais emocionantes de minha vida, em que tive a certeza de que o trabalho que realizamos no Programa de Intensificação de Cuidados, propiciador da criação de vínculos com os pacientes, pode gerar bons frutos não apenas para eles, como para os estagiários que os acompanham. Afinal de contas, se o elo entre Thiago e Marta não houvesse sido bem estabelecido, ela jamais teria reconhecido sua mochila em mãos alheias e essa história não teria o desfecho fantástico que teve! Até hoje, quando lembro desse fato, fico impressionada ao me dar conta de como as relações que cultivamos com os pacientes podem ir muito além do que postulam as teorizações acerca dos “modos de vinculação do sujeito psicótico”... 239 Entre amores, quase-amores e não-amores Fernanda Rebouças* Resumo: Este artigo tem como objetivo tecer uma discussão a respeito da transferência e do vínculo no acompanhamento de pacientes em intensificação de cuidados. O artigo transcorre dentro de uma pequena revisão sobre o que pensava Freud quanto à relação com o paciente, ao mesmo tempo que traz as idéias de Radmila Zygouris, em seu “O vínculo inédito”, onde ela se nega a reduzir o vínculo estabelecido à repetição. É a contraposição – e complementação – dessas duas posições que permitirá compreender, ao longo do artigo, o conjunto das manifestações que se inauguram - ao se repetirem - na relação com os pacientes. Assim, considerando o que é próprio de cada sujeito, os sentires, o sensível e a subjetividade, é feita uma analogia entre a intensificação de cuidados e a dança, tomando-as ambas como arte e como vida. O artigo, dentro dessa discussão, traz a análise de um caso em acompanhamento, *Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC 240 sobre o qual se tem uma hipótese não exatamente de amor transferencial, mas ao menos de uma depositação mais maciça. A partir daí, discute-se como manejar as relações vinculares, no caso do paciente, e como lidar com o que ele adjudica a quem o acompanha, reconhecendo que o crescimento dentro dessas vivências é recíproco. P ontos de convergência. É sabido que há milhões deles entre a intensificação de cuidados e a própria vida, embora, entre enlaces e entrelaces, ambos se misturem. Mas, então, arriscar-meei a puxar pelas artes – que são tão vida quanto qualquer outra coisa - enquanto teço comentários sobre o conjunto das manifestações que se inauguram - ao se repetirem - na relação com os pacientes. Não aspiro novidades, strictu sensu, mas, não menos audaciosa... “(...) Aquilo que revelo e o mais que segue oculto em vítreos alçapões são notícias humanas, simples estar-no-mundo, e brincos de palavra, um não-estar estando mas de tal jeito urdidos o jogo e a confissão que nem distingo eu mesmo o vivido e o inventado. Tudo vivido? Nada. Nada vivido? Tudo.” (Drummond, 1991) Freud anunciava nuances de nossos modos de existir com as discussões sobre transferência, e inaugura uma nova possibilidade de fazer com a saúde mental, uma experiência inédita do ponto de vista social e subjetivo. Assim, em sua Conferência XXVII (1916/1917), ele fala sobre o sujeito transferir para a pessoa do médico intensos sentimentos de afeição ou de hostilidade, sendo que estes não podem ser explicados pela conduta do profissional nem justificados pela situação que se criou durante o tratamento. Por isso é que Freud suspeitou de que esse arsenal de endereçamentos proviesse de outro lugar, já estando preparado no paciente e pronto a emergir tão logo surgisse uma oportunidade (Freud, 1916/1917). Parte das idéias de Radmila Zygouris já aparecia indiretamente nos escritos psicanalíticos de 1914, quando Freud, em “Recordar, repetir, elaborar”, fala da transferência como um fragmento de experiência real, tornado possível por condições favoráveis. De certa forma, essa posição é concordante com Zygouris em seu “O vínculo inédito” (2002), embora ele ainda se mantenha na idéia pouco abrangente de doença artificial. Zygouris vai mais além dessa posição ao falar “de um encontro, seja de duas estruturas, seja de duas falhas, seja de duas demandas em abismo”, deixando a céu levemente mais aberto a subjetividade de ambos os dançarinos, bem como os aspectos pessoais inconscientes (Santos, 2006); ambos se apresentam nesse ínterim. A arte apareceu sem que eu decidisse o momento. Mas aí está a dança, posta, como a música, que invade os sentidos mesmo quando não fomos nós a ligarmos a vitrola. Como a dança, essa “modalidade” sobre a qual falamos da intensificação de cuidados deixa à mostra que tipo de dançarinos somos nós, que ritmo nos é mais confortável, que espécime de parceiro nos faz bambearmos na pista, que momento vacilamos pedir para que a dança se interrompa. Mas, enfim, como sujeitos que se propõem a acompanhar e muito mais, tornamonos também dançarinos dispostos a ouvir a música em alto volume e a dançar, com o parceiro que vier, a música que nos convocar. Com muita sorte (leia-se trabalho, implicação, arte e técnica), na manhã seguinte, poderemos descansar os pés ao som de um cool jazz, até que a vitrola toque outra batida. Dessa forma, respeitando o que há de único em cada dança e em cada parceiro, é que Zygouris se nega a reduzir o vínculo estabelecido à repetição, pois “a transferência remete também ao 241 novo em virtude de sua eterna falha”. Essa relação, para a autora, é feita de “sentires”, de emoções conscientes e inconscientes, da presença, do que é único em cada um, do que é próprio, das “singularidades jamais generalizáveis” e que não podem exatamente se repetir. E como toda dança e encontro de corpos que desejamos ou não manter, o vínculo, para Zygouris, é algo que pode durar ou não, é algo da vida. “Essa aceitação do vínculo fundamental, ao mesmo tempo que a procura de um fim possível para a transferência, constitui uma relação social e íntima verdadeiramente inédita em nossas sociedades.” (Zygouris, 2002). Para fugir ao medo do inesperado e à inevitabilidade de que o incrível, o obscuro, o desconhecido irrompa, profissionais da saúde mental procuram ao máximo seguir enquadres específicos e modelos de atuação pré-determinados e, para tanto, se arriscam inadvertidamente, na tentativa de impedir que a complexidade das relações humanas contamine o seu trabalho (Zygouris, 2002). Tentativa vã e, muitas vezes, inconseqüente. Isso porque o profissional, dessa forma, não estará realizando sua tarefa terapêutica no sentido de, através do manejo das situações transferenciais e vinculares, ajudar o sujeito a lidar posteriormente com as relações na sua vida de uma forma geral. Com suposta neutralidade ou não, há vida em movimento, circularidade nas relações e emergência do que já existe. A clínica da intensificação de cuidados não nos permite almejar tal posição discutida acima. A irrupção do novo a que estamos sempre subme242 tidos é tão incisiva que, à maioria dos acompanhantes, não resta esta alternativa. O processo é vivido a todo tempo conjuntamente e, para pensar a relação usuário-estagiário, há de se estar aberto para olhar para o encontro que se estabelece, para pensar a união no “entre” do que se cria e se recria nessa “trama de tempo presente” (Barbosa, 2006), que, como a dança, depois de formado o par, é impossível de ser sozinha. Quando se olha para um, já está olhando-se para o outro ou outros, e para ver de que dança se fala, não há outro jeito a não ser sentir o todo. Dança de dois, de três, ou de grupo, os envolvidos são muitos. Problema está dado quando um dos dançarinos – nesse caso, o que acompanha – acaba tomando o palco, não por seus atributos pessoais de leveza e graça, mas porque assim o possibilitou a situação. E, para tanto, não falemos apenas de impulsos instintuais reprimidos, mas do que contribui sendo próprio de cada um, do que chama Zygouris de “plano do sensível”. Há uma maneira bem particular do dançarino se movimentar na pista, que não se sabe muito bem de onde vem, mas que interfere de forma fundamental no vínculo que se cria entre os parceiros e em como serão as danças a partir de então. É nesse paradoxo de lógica e imprevisibilidade que ficamos susceptíveis às surpresas que virão pela frente, aos sentimentos que surgirão, ao amálgama que encobrirá usuário e estagiário (Santos, 2006). Este último, como o primeiro, “é posto em configurações transferenciais em que imperam os mais distintos e intensos conflitos e ansiedades”, algo que precisa ser cuidado, “pois o tratamento seguirá após esse encontro e a crise que se enfrenta” (Santos, 2006). Falamos de crise, falemos de psicose, desses sujeitos que “são” em crise, muito mais do que estão, para que ela não pareça por demais desavisada sobre as particularidades transferenciais. Lembremos também dos aspectos simbíoticos e autísticos (Bleger, 1991), os quais existem independentes da estrutura psíquica ser neurótica ou psicótica, para que assumamos que a mesma matéria que constitui uma constitui a outra. Segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “a psicose exibe claramente como o rigor de uma lógica bivalente comanda uma relação inteiramente fusional com o semelhante que fomenta o amoródio.”, podendo o sujeito apresentar tanto condutas autísticas quanto simbióticas alternadamente, bem como a coexistência desses dois tipos (Bleger, 1977). Pichon (apud Bleger, 1977) acrescenta que “a tendência a estabelecer contato com outras pessoas é tão intensa quanto a tendência ao isolamento como defesa”. Uma diferença crucial e estrutural, entretanto, é o fato de que essa experiência de ambivalência – simbiose e autismo – emerge, nos psicóticos, na sua parte desorganizada, estando eles submetidos a um controle menor quanto a uma instância de gestão, por ocuparem uma “posição menos estruturada” a partir das experiências como sujeitos que tiveram. Bleger (1977) propõe haver um lado desorganizado em todos nós, uma “parte psicótica da personalidade”, mais imatura e mais primitiva e que “permaneceu segregada do ego mais integrado e adaptado”. Essa parte, dentro do pensamento lacaniano, é condicionada pelo mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai, o que, segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “acarreta uma profunda perturbação da relação do sujeito com o Outro, terceiro simbólico e suporte de nosso pertencimento ao mundo humano”. A não-discriminação entre eu e não-eu, mundo externo e mundo interno, depositário e projetado, é decorrente da ausência da lei e característica fundamental da parte psicótica da personalidade e da transferência psicótica. Ela faz com que o Outro perca seu lugar de alteridade para este sujeito, tornando-se opressor e não dando possibilidade de que se inscreva a troca. Segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “esse corpo a corpo mortal denuncia o quanto a relação topológica entre externo e interno torna-se eminentemente problemática, provocando um apagamento do lugar subjetivo, pois obriga o sujeito a uma resposta no campo do real”. Mas, se estão os sujeitos psicóticos fora-do-discurso, fora do simbólico e, portanto, fora do laço social por estrutura (Quinet, 2006), poder-se-ia pensar numa impossibilidade lógica e estrutural de fazê-los circular por esses laços, com a hipótese de que jamais entrariam em relação com um outro sujeito. Entretanto, dando os devidos descontos pelas características da transferência psicótica, estudadas por Bion (apud Bleger, 1977) – prematura, precipitada, maciça, tenaz e frágil -, a vida cotidiana e a clínica com a psicose nos mostram que esses sujeitos têm as suas tentativas particulares de laço social e de vínculo, pois, “embora fora do significado, o psicótico não está, de 243 modo algum, fora do sentido” (Juranville, 1987). E isso fica mais claro quando dividimos a dança. Passo então a fala para a parte de mim que cuida dos casos clínicos e que se mistura a todo tempo com as outras partes. Falarei de V., 25 anos, usuário do Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) desde o início deste. E, embora tudo tenha começado quando tenha começado, situarei o nosso início na supervisão em que eu mesma disse: “Ele sempre foi o paciente que a gente pediu a Deus e, por isso, sabíamos que havia algo errado”. O significante soou forte, além de se repetir, e eu e minha dupla fomos arrebatadas pela seguinte questão: “Não teriam sido vocês as estagiárias que ele pediu a Deus?”. Engolindo seco, pensei em que medida conseguimos ser Outro para esse sujeito. Isso porque descobrimos que V. estava “encenando” todo o tempo para nós uma vida extremamente equilibrada, camuflando uma série de desorganizações e conflitos. Confesso, deixamo-nos enganar. Mas, cometida tal falha, nos apoderamos da posição de depositárias que descobrimos, de algum modo, já ocuparmos (principalmente pelo seu investimento e preparo pessoal para nos receber), na tentativa de produzir a tão falada alteridade e, assim, viabilizar que ele também se situasse no lugar de outro. A partir desse momento, o comportamento de V. foi sutilmente se modificando. Ele começou a nos confiar mais suas inquietações e a nos permitir ir entrando, com muito cuidado, nos seus âmbitos mais profundos, para que pudéssemos ajudá-lo a dar sentido a suas experiências. Acho que, enfim, 244 algo estava caminhando, mesmo que a passos curtos. Mas, como em campos transferenciais estamos sempre sujeitos a shows abrilhantados e a quedas bruscas, a nossa história não acaba aí. O que venho relatar agora ainda constitui impressões muito iniciais e aparecerá mais a título de ilustrar a nossa discussão do que de propriamente oferecer uma análise precisa do caso. Uma hora da manhã. V. liga para o meu celular, o que nunca havia ocorrido anteriormente nesse horário. Isso me preocupa, não exatamente pelo caráter pouco convencional da situação em si – embora também - mas porque tal comportamento, extremamente comum em outros pacientes, fugia à maneira como ele vinha se portando conosco. Mais curioso ainda foi o motivo expresso para a ligação: entre rodeios, segundos de silêncio e frases entrecortadas, ele disse-me que estava a fim de uma menina e que não tinha coragem de contar, falar com ela. Soou, no mínimo, estranho, a ligação em plena madrugada para comunicar tal fato. Junto a isso, há as inúmeras ligações de V. para mim diariamente (estas em horário comercial), dentre as quais a maioria não tinha um motivo específico ou dizia ele estar se sentindo sozinho, bem como o seu comportamento sempre muito observador sobre minhas roupas, cabelo, vida pessoal, seus olhares fixos para mim, entre outras coisas. Enfim, o que se visa aqui não é confirmar se a “menina” para a qual ele endereçava seus sentimentos era, de fato, eu, mas colocar na pista a hipótese, esta mais embasada em percepções sutis do cotidiano do acompanhamento do que em declarações propriamente ditas. Entretanto, ainda assim, tal suposição não indica exatamente um caso de amor transferencial, mas, pelo menos, uma depositação mais maciça. Interessante notar que a intensificação de comportamentos mais erotizados de V. em relação a mim começou a surgir quando passamos a caminhar no sentido de produzir continência; provavelmente, o “ver-se contido” tenha sido complicado por demais para esse sujeito. Lembramos novamente de Freud, quando em seu texto “Observações sobre o amor transferencial” (1914/1915), falou sobre as ocasiões nas quais se está tentando levar o paciente a “admitir ou recordar algum fragmento particularmente aflitivo e pesadamente reprimido da história da sua vida”, e, nesse sentido, remeto nossas reflexões, mais uma vez, à importância da delicadeza nas nossas intervenções. No que se refere a V., vê-se que, a partir de um dado momento, ele estava entrando em contato com conteúdos novos e que talvez isto estivesse sendo muito penoso, levando-o a fazer uso da transferência como arma forte de resistência. Dando-se conta de que “as deformações do material patogênico não podem, por si próprias, oferecer qualquer proteção contra sua revelação” (1914/1915), a utilização de tal “artimanha” mudaria o foco do tratamento e desviaria seu interesse sobre o trabalho, concluindo Freud que, de fato, “a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência” (1914/1915). Perguntamo-nos então: “O que fazer com isso tudo?”. Diria, a priori, que a palavra-chave é suportar, palavra com a qual nos defrontamos tantas vezes quando ousamos escorregar. Píchon (2000), em “Teoria do Vínculo”, nos auxilia bastante nessa empreitada ao falar sobre a teoria dos três D (depositante, depositário e depositado). Segundo ele, a comunicação entre o usuário e o acompanhante se produz na medida em que o primeiro adjudica um papel ao segundo e este o assume, sendo tal fenômeno fundamental para que a clínica aconteça. Isso é especialmente importante quando lembramos a ambigüidade que constitui tais sujeitos em sua relação conosco, em um misto de repulsa e endereçamento, introspecção e alienação. Acrescentamos à posição de Pichon a de Ferenczi (apud Zygouris, 2002) que, analogamente, fala sobre a importância de o estagiário participar da dança sugerida pelo usuário, enquanto parceiro “desapreensivo, com pouca ansiedade e capaz de aceitar em depósito qualquer coisa que o paciente queira colocar nele”, “deve se colocar de um modo particular (...) disposto a controlar e cuidar daquilo que foi depositado nele” (Pichon, 2000). Entretanto, não fiquemos nessa posição unilateral. O próprio Pichon acrescenta: “Para que se estabeleça uma boa comunicação entre dois sujeitos, ambos devem assumir o papel que o outro lhe adjudica”, o acompanhante sempre se questionando sobre estar ou não na posição devida de depositário, sobre as afetações que estão permeando a relação. Isso só será possível se não nos limitarmos à questão sobre “o que faço para produzir efeito no outro”, colocando à mostra, ao menos para si, a pergunta “quem sou eu?”, pois, é a partir disso, que se produz efeito no outro. Nós somos a 245 matéria-prima da nossa clínica. Assim, sabendose necessário dialogar com a experiência psíquica do sujeito, dando lugar à sua significação e estando atento aos olhares e dizeres, aportamo-nos no que há de arte e no que há de técnica dentro da clínica; no que há de novo e no que há de repetido. Não podemos negar que o manejo das relações vinculares representa grande dificuldade, mas também excelente instrumento. Segundo Freud (1916/1917), seria impossível ceder às exigências do paciente, decorrentes da transferência, mas, ao mesmo tempo, “seria absurdo se as rejeitássemos de modo indelicado e, o que seria pior, indignados com elas”. Dessa forma, seria tão desastroso para a clínica que os anseios do paciente fossem satisfeitos, quanto que fossem suprimidos; o estagiário deve se lembrar que está lidando com um vínculo inédito e que deve seguir “um caminho para o qual não há modelo na vida real” (1914/1915). Ele precisa ter cuidado para não se afastar do vínculo que foi estabelecido, nem repeli-lo ou torná-lo desagradável para o usuário, mas também deve recusar retribuição. Pensaremos agora, mais especificamente, sobre V., sobre o acompanhar a sua solidão, ao mesmo tempo em que movimentávamos sua imobilidade (Barbosa, 2006). Em primeiro lugar, é preciso ter claro que não devemos “julgar se uma conduta é boa ou má (...), [observando] simplesmente qual é a finalidade da comunicação, conscientes de que aquilo que o paciente está fazendo é a única coisa que ele pode fazer nesse momento e nessa situação particular” (Pichon, 2000). Isso é 246 importante inclusive para que a resistência não se torne do estagiário! Em relação a V., era muito pouco provável que ele declarasse qualquer coisa palpável, caso a nossa hipótese sobre o amor transferencial esteja correta. Isso porque, durante o acompanhamento, percebemos que as situações com V. mantinhamse muito no campo do não-dito, do enigmático, e muitas informações que tínhamos sobre o caso eram provindas da sua família ou de suposições nossas. Justamente por isso, não seria fácil - e nem deveríamos - exercer corte ou colocar limites, mas sim produzir, dia após dia, através de pequenas intervenções, a citada continência, já que os limites, por serem externos, não costumam ser suficientes para surtir efeito em pacientes psicóticos, por estes, geralmente, estarem totalmente fora do registro simbólico e da experiência psíquica que permite a normatização. Junto a isso, é importante pensar que efeito teria isso para o sujeito a partir da maneira como seria feito, pois uma grande questão dos pacientes é como serão alguém no mundo, de que maneira poderão existir, e uma intervenção inadequada pode prejudicar o sujeito com relação ao sentido que atribui a si mesmo: “Ela rejeita meu amor porque sou pobre, ou porque sou negro, ou porque uso drogas, etc?’. Devemos tentar fazê-lo entender que o que ele endereça está sendo aceito, embora não correspondido, mas isso não se deve à falta de atributos pessoais. Iniciamos a nossa intervenção com V. dialogando sobre o telefonema da madrugada, no sentido de ir fazendo-o entender que não somos uma ex- tensão dele mesmo. Nesse sentido, discorremos sobre a possibilidade de certos assuntos esperarem até a próxima visita ou até um horário mais viável, sem, com isso, invalidar a sua importância; falamos também sobre o fato de termos outras atividades e vida pessoal, e, por isso, não estarmos sempre aptas a atender os telefonemas. Apresentado dessa forma, talvez tenhamos a impressão de termos sido rudes ou firmes em demasia, mas vale ressaltar que essas atitudes foram tomadas com bastante cuidado e sutileza. O “a partir daí”, receio informar que não haverá como dar muitas informações, assim como os dançarinos se abstém de explicar as milhares de pequeninas movimentações que formam um passo de dança. Primeiro, porque o caso está em andamento e os acontecimentos citados são muito recentes, não havendo, de fato, grandes considerações a serem feitas sobre atitudes tomadas. Segundo, porque, como já havia dito, este sujeito, como muitos outros, não pede exatamente como ferramenta intervenções enérgicas; quase tudo é construído na base da delicadeza, de intervenções mínimas. Dessa forma, pensar e agir através do vínculo constitui um desafio constante, pois não se trata de descobrir como ocorre a depositação e não se preocupar mais com isso; “ora estamos colocados aqui, ora ali” (Metzger, 2006); a luta é incessante, o show tem que continuar. Ao final dessa discussão, mas certamente não ao fim da dança, algumas considerações podem ser feitas, talvez muito mais poéticas do que teóricas. Confesso que, se sei um pouco sobre V. hoje através do que ele tem me mostrado, sei muito mais do que sabia antes sobre mim mesma. Os pacientes, a todo tempo, fazem com que nos “olhemos no espelho”, e o que vemos nada mais é do que o reflexo do que já existe em nós. A riqueza do encontro está justamente nas criações e recriações que surgem a partir dele, “aquilo que lhes dará forma, contorno e a possibilidade de movimento emocional, físico e psíquico” (Santos, 2006). O vínculo este estará sempre a “desdobrar-se nos movimentos que produzimos e nos detemos a pensar, interpretar, compreender, encarnar” (Santos, 2006). A arte nos ensina que se dança para si mesmo e para a música, mas com o outro. É nesse momento que as pernas precisam ficar firmes para que se possa dançar no ritmo instalado. Não demore demais para não sair do compasso, não se apresse demais para não acabar no chão! Assim como a dança, a intensificação de cuidados sempre nos trará ambigüidade nos sentimentos, a depender do contexto. Termino, por isso, com perguntas do Drummond (1991), que nos farão contradição, que nos permitirão a complexidade e que nos trarão, possivelmente, nada mais do que respostas-perguntas. “Que metro serve para medir-nos? Que forma é nossa e que conteúdo? Contemos algo? Somos contidos? Dão-nos um nome? 247 Estamos vivos? A que aspiramos? Que possuímos? Que relembramos? Onde jazemos? (...)” Referências ANDRADE, C. D. Claro enigma. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1991. BARBOSA, A. C. Acompanhante-acompanhado: história de dois. In: R. G. Santos. Textos, texturas e tessituras: no acompanhamento terapêutico.: Hucitec, 2006. BLEGER, J. O grupo como instituição e o grupo nas instituições. In: R. Kaës, et al. A instituição e as instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991. _________. Estudo da dependência-independência em sua relação com o processo de projeção-introjeção. In: Simbiose e ambigüidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. _________. Estudo da parte psicótica da personalidade. In: Simbiose e ambigüidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.XII, 2 ed, 1914. _________. Conferência XXVII. 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A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, a assistência em saúde mental no Brasil tem sido alvo de importantes transformações. Alguns setores da sociedade civil lutam por um novo modelo de atenção que priorize a dignidade, autonomia e a reinserção na família, no trabalho e na comunidade dos usuários dos serviços de saúde mental. Com a promulgação da Lei Federal 10.216, os *Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC ** Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC direitos dos portadores de transtorno mental foram reconhecidos legalmente. Na experiência de acompanhamento de pacientes no Programa de Intensificação de Cuidados (PIC) a psicóticos, cuja atuação está em conformidade com as novas diretrizes políticas de atenção à saúde mental, constatamos uma falta de sensibilidade por parte de certos órgãos públicos em incorporar à sua cultura institucional os paradigmas da Reforma Psiquiátrica. Diante disso, pode-se perceber que tais instituições, ao operacionalizarem as políticas públicas relacionadas a esta parcela da população, tendem a interpretar as leis sem ter em perspectiva tais paradigmas, já que as mesmas são passíveis de julgamento subjetivo. Tendo em vista o redirecionamento da atenção aos portadores de transtorno mental, a partir de uma concepção ampliada de clínica que impõe aos profissionais de saúde uma prática profissional comprometida com os aspectos psicossociais destes sujeitos, faz-se urgente um debate em torno da mediação das práticas burocráticas por partes dos mesmos, já que, ao modo tradicional de fazer 251 clínica, os diálogos com as instituições públicas e os trâmites burocráticos que as caracterizam e que se apresentam eventualmente para os nossos pacientes são compreendidos como “extraclínicos”. No acompanhamento a psicóticos no referido programa, uma situação específica envolvendo o requerimento de um benefício assistencial – o Benefício de Prestação Continuada, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) – revelouse como uma questão de pouca visibilidade e extrema relevância, devido à prática inconstitucional de exigência, por parte de determinados órgãos públicos, da declaração de que os requerentes são totalmente incapazes para o exercício dos atos da vida civil, o que acarreta a banalização da interdição judicial. Esse procedimento, indicado apenas para casos em que haja prejuízo grave da capacidade de discernimento para a prática destes atos, ao ser imposto como condição para o recebimento do benefício, traz como conseqüência a amputação desnecessária da cidadania de inúmeros portadores de sofrimento mental. O direito a esta renda mínima, que poderia significar um avanço na conquista da autonomia por parte destes sujeitos, torna-se assim uma “armadilha da pobreza”. Com base na interpretação tendenciosa de um critério expresso na LOAS, que restringe a concessão do benefício à comprovação de “incapacidade para a vida independente e para o trabalho”, criou-se uma cultura no interior do INSS de encaminhamento dos requerentes ao Ministério Público Estadual para darem entrada no processo 252 de interdição. O Ministério Público, por sua vez, acata estes pedidos e os encaminha ao Judiciário, que finaliza o processo, desabilitando a cidadania do sujeito. Diante de recursos tão escassos de sobrevivência, o psicótico facilmente abre mão da sua cidadania em troca de um benefício financeiro, o que se justifica pelo fato de que a discussão da cidadania e dos direitos humanos se apresenta para tais sujeitos de maneira muito sofisticada, contrapondo-se à concretude das dificuldades financeiras do cotidiano. Tendo em vista uma clínica psicossocial das psicoses que opera no registro do respeito à autonomia e à dignidade do portador de transtorno mental, faz-se urgente atentar para as dinâmicas institucionais que vão de encontro a estes princípios e que impedem a evolução clínica dos nossos pacientes. Assim, o profissional de psicologia comprometido com o modelo assistencial defendido pela Reforma Psiquiátrica deve assumir um posicionamento político ativo, manejando junto ao paciente as situações críticas emergentes da sua relação com as instituições, assumindo um papel questionador dos paradigmas que norteiam as ações dos atores institucionais e atuando em consonância com a defesa dos direitos dos portadores de transtorno mental previstos nas legislações. Tendo essa perspectiva em vista, o PIC, unido à Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA, ao Conselho Regional de Psicologia e ao Conselho Regional de Serviço Social, promoveu um seminário com o tema “Direitos dos Portadores de Transtorno Mental: atualizações legais”, realizado no dia 9 de Março de 2007 no auditório da OABBA, contando com a participação de representantes das instâncias envolvidas com a problemática da banalização das interdições judiciais no Brasil: Ministério Público Estadual, INSS, Defensoria Pública e Associação Psiquiátrica da Bahia. O debate, além de lançar luz sobre o incremento da Interdição Judicial e oferecer os devidos esclarecimentos acerca dos reais critérios para a concessão do Benefício de Prestação Continuada aos portadores de transtorno mental, teve como principal intuito o comprometimento de cada um dos envolvidos na interface desta temática, em ações efetivas que visem à transformação da cultura e das práticas institucionais. 253 O PIC em letra e número O Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos teve início em janeiro de 2004 e, desde então, já atendeu cerca de 40 pacientes e recebeu e preparou, entre estagiários e extensionistas, 71 de Psicologia, 41 de Terapia Ocupacional e 3 de Medicina, sendo que muitos em regime semestral; outros, anual e alguns, inclusive, permanecendo por três semestres consecutivos. “Acompanhamento Terapêutico - uma tecnologia na atenção psicossocial”. O PIC tem inspirado a realização de alguns trabalhos de conclusão de cursos de graduação e pós-graduação: O PIC também esteve presente, como programa assistencial ou discutindo alguns dos seus aspectos relevantes, através de apresentações orais e pôsteres, em importantes eventos tais como: • Monografia de conclusão de curso de Terapia Ocupacional de Larissa Figueiredo Santos, na época ainda estagiária do programa, que teve como tema “Redes sociais em saúde mental: uma experiência com o Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos”. • Monografia de conclusão de curso de Terapia Ocupacional de Fernanda Abreu Rodrigues, na • Congresso Norte Nordeste de Psicologia (Salépoca ainda estagiária do programa, que teve vador, 2005) como tema “Programa de Intensificação de Cuidados – um caminho para a qualidade de vida”, • Congresso Latinoamericano de Extensão Universitária (Rio de Janeiro, 2005) • Monografia da terapeuta ocupacional Noêmia de Aragão Casais para conclusão do curso • Oficina sobre Atenção Domiciliar no Enconde Especialização em Saúde Mental do Depto de tro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte, Neuropsiquiatria da UFBA, que teve como tema 2006) 254 ■ Curso de Extensão “Elementos Teóricos para • Congresso Internacional de Direitos Humanos e uma Clínica Psicossocial das Psicoses”, realizado Saúde Mental (Buenos Aires, 2006) nos períodos de setembro a dezembro de 2005 e março a junho de 2007, na UFBa, que contou com 50 alunos na primeira turma e 40 na segun• V Congresso Norte-Nordeste de Psicologia da. (Maceió, 2007), em que foram apresentados os seguintes trabalhos: ■ Curso de Extensão “A ética e a técnica do Acompanhamento Terapêutico”, realizado em dois pe■ “Transbordamento psicótico: desafios e possibi- ríodos, novembro e dezembro de 2006, com 30 lidades de intervenção” alunos em cada turma, que contou com o Prof. ■ “A formação de díades no trato com a loucura: Kleber Barretto, prof. doutor da Unip, como miacompanhando os acompanhantes” nistrante. ■ “Intensificação de cuidados a pacientes psicó- ■ Disciplina optativa: “Atenção Psicossocial em ticos: uma clínica ampliada” Saude Mental.” Departamento de Psicologia UFBA, ■ “Interdição judicial de pacientes psicóticos: a 2007.2. amputação da cidadania” ■ “Psicose, maternidade e papéis sociais” ■ “Dança e xadrez: o papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de Felipe” ■ “A abordagem da crise na psicose” ■ “O vínculo e a transferência na clínica psicossocial das psicoses” ■ II Fórum Internacional de Saúde Mental e D. H. no Rio de Janeiro (maio,2008). Também foram realizados cursos no formato de atividades de extensão, visando oferecer aos estagiários e ao público externo uma complementação dos aprofundamentos teóricos específicos vinculados ao nosso universo de trabalho teórico: Encontro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte, 2006) 255 Relação de estagiários/extensionistas treinados pelo PIC Psicologia Àdem Ramos Adriana Bitencourt Aline Freire de Carvalho Frey Allan Jeffrey Vidal Maia Allann da Cunha Carneiro Amanda Muniz Caetité Amon Requião de Castro Ana Luisa Marques Fagundes Ana Margarete Freitas Ana Paula Miranda da Hora Ana Paula Silva Pereira Andréa Pato Antônio Marcos Santana Barreira Carla Silva Fiaes Carolina Brandão Vieira Lima Caroline Barbosa Tanajura Charlene Gomes de Souza Clotildes Silva Sousa Cristiane Batista da Silva Daphne Soares Emanuelle Teixeira Érica Almeida Coelho Fernanda Rebouças Fernanda Vidal Fernando Luiz Failla Filipe Soares Rodrigues Flavia Bomfim Hasselman Flora Albuquerque Matos 256 Gabriela Pena Cal Gabriela Souza de O. Sampaio Gelly Costa Gisele Lopes Isadora de Andrade Pinheiro Ivana Maciel Cangussu Jaqueline Vitoriano Jamili Calixto João Batista Pereira Neto Júlia Mignac dos Santos Juliana de Andrade Passos Kátia Cordélia Cunha Carneiro Lara Hardman Larisa Andrade e Castro Leila Reis Leal Leíza Nazareth Lívia Gomes de Vasconcelos Lorena de Almeida Oliveira Luane Neves Lucineide Santiago de Souza Lygia Silva Pedreira de Freitas Maria Anunciação Brites Guimarães França Maria Clara Guimarães Mariana de Castro Brandão Cardoso Mariana Ferreira Santos Carteado Marianna Luiza Alves Soares Marilia de Azevedo Alves Brito Marines Oliveira Milena Gonçalves Sobral Milena Silva Lisboa Mônica Machado de Matos Naiara Oliveira Nara Cortês Andrade Polyana P. Mendonça Sandra Assis Brasil Sheila Silva Lima Tatiana Medeiros Thiago Lima Mello Vanessa Nobre Vilas Bôas Vera Christiane Rittel Wellington Carlos Terapia Ocupacional Adriana Balaguer (Supervisora substituta) Adelly Rosa Orselli Moraes Sodré Adriana Bitencourt Alanda Ribeiro Dos Santos Andrade Ana Claudia Silva Braga Ana Cristina Oliveira Nogueira Ana Patrícia Oliveira Souza Ana Paula Silva Pereira Carol Silva Andrade Clarissa Brito Barbosa Daniela Maria Ribeiro Astolpho Dayane Boa Ventura Lima Eitha Milena Teixeira Araújo Ester Bonfim Góes Fernanda Abreu Rodrigues Nascimento Fernanda Gonçalves de Moura Flávia Conceição Borges Matos Gisele Duarte Lordelo Hélvia Vieira Aguiar Itatiara Nascimento Jamile Oliveira Menezes Kátia Luzia de Camargo Jesus Larissa Figueiredo Santos Leni Lima Silva Lívia Maria dos Santos Cerqueira Luciana Principe de Oliveira Galheigo Luiana Lima Fernandes Luíza Viana Ferreira Mabel Dias Jansen Silva Magnovanda Martins D. Oliveira Manuela Gagliano Ferreira Maria Eduarda Nunes Correia Lima Naama Correia Lima Pires Patricia Barreto da Silva Rocha Patricia Freitas Lima Sharlene Bawes Silvânio Silva Souza Tâmara Silva Cedraz Thalita de Figueiredo Taboada Thyena Oneida Carneiro Rios Yandra Magalhães C. Marques Medicina Diego Espinheira da Costa Bomfim Allana Silva Lucas Nascimento 257 Apoio: