Romantismo no Brasil 2ª e 3ª GERAÇÕES POESIA A SEGUNDA GERAÇÃO INDIVIDUALISTA, ULTRA-ROMÂNTICA ou GERAÇÃO DO MAL DO SÉCULO Esta geração surgiu na década de 1850, quando o nacionalismo e o indianismo deixavam de fascinar a juventude e iniciava-se o longo processo de estabilidade do II Império. Por outro lado, o desenvolvimento urbano, o nascimento de uma vida acadêmica em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife e, até mesmo, uma relativa sofisticação dos estratos médios e superiores da estrutura social brasileira possibilitaram a criação de uma lírica voltada quase que exclusivamente para a confissão e o extravasamento íntimo. A nova geração foi influenciada pelo inglês Byron e pelo francês Musset, autores ultra-românticos que haviam se tornado os modelos universais de rebeldia moral, de recusa à insipidez da vida cotidiana e de busca de novas formas de sensualidade e de afeto. De sua imitação, resultou, quase sempre, o pastiche. Até sociedades satânicas, a exemplo das existentes na Europa, foram fundadas. Os adolescentes que as compunham viviam pretensas orgias e dissipações fantasiosas, que resultavam da leitura e das imaginações pervertidas. Na verdade, a pobreza do meio e a rigidez patriarcal impediam que este satanismo tivesse qualquer importância no contexto estético e ideológico brasileiro. Outro fato sempre lembrado desta geração é a dramática coincidência de quase todos os seus integrantes morrerem na faixa dos vinte e poucos anos. Versos soltos e alguns poemas parecem alimentar a suspeita de que esses jovens cultivavam idéias suicidas. No entanto, todos eles - à parte o caso mais complexo de Álvares de Azevedo - foram vitimados por doenças então incuráveis e manifestaram grande horror perante a morte. Não se sustenta, portanto, a idéia de um suicídio coletivo geracional. Álvares de Azevedo Obras: Lira dos vinte anos (poemas - 1853), Noite na taverna (contos 1855), O conde Lopo (poema - 1886), Macário (poema dramático - 1855). A obra de Álvares de Azevedo, fortemente autobiográfica, traz a marca da adolescência, mas de uma adolescência tão dilacerada e conflituosa que acaba por representar a experiência mais pungente do Romantismo brasileiro, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista poético. Incansável leitor, surpreendentemente culto, o jovem paulista viveu a contradição entre o saber livresco e os seus limites existenciais. Sua alternativa é o fingimento: "Finge um formidável conhecimento da vida", diz dele Mário de Andrade. Em muitos poemas expressa essa "pose de cinismo" que nasce, simultaneamente, da imitação dos ultra-românticos europeus e da fantasia delirante. Por sorte, no seu universo lírico, os temas se ampliam, superando o artificialismo byroniano, o que lhe assegura um lugar privilegiado na história literária do período. Quatro são os seus temas preferidos: o amor a morte o tédio o humor prosaico O AMOR É a parte menos convincente de sua lírica. A máscara satânica que tenta usar peca pela falsidade. As orgias em que submerge, os vícios que o escravizam e as dissipações que o arrastam para o lodo hoje provocam o riso do leitor. E não apenas porque o jovem escritor tenha ficado, de fato, virgem dessas vivências tresloucadas, mas porque - em seus poemas de "crimes morais e maldições" - poucos versos têm poder de persuasão e quase nada inquieta ou sobressalta. Veja-se o tom falso deste excerto: E por te amar, por teu desdém, perdi-me... Tresnoitei-me em orgias, macilento, Brindei, blasfemo, ao vício, e da minh'alma Tentei me suicidar, no esquecimento! Amor e medo No entanto, como bem observou Mário de Andrade, o autor de Lira dos vinte anos (esse Dom Juan das aparências) acaba sendo traído pela própria interioridade. O grande devasso, o amante cínico, revela inconscientemente um medo obscuro das relações amorosas. Este medo se traduz, por exemplo, através da imagem da mulher adormecida. Numa série de poemas, a preparação erótica e a vontade sexual do adolescente se frustram, pois ele não quer acordar ("profanar") o objeto de seu desejo: Ó minha amante, minha doce virgem, Eu não te profanei, e dormes pura No sono do mistério, qual na vida, Podes sonhar ainda na ventura. OBSERVAÇÃO ! De acordo com Mário de Andrade, algumas das dificuldades de Álvares de Azevedo com o amor nascem da velha dicotomia entre o sexo e o sentimento. A impossibilidade de unir alma e carne - segundo a tradição cultural então vigente - exaspera-o. Não existe mulher que possa corresponder às duas exigências. Há aquelas para o amor e há outras para os instintos. As primeiras, donzelas virginais, são - no dizer do crítico - "inatingíveis". As segundas, anjos caídos que cedem a pureza de seus corpos, são "desprezíveis". E assim o poeta permanece dilacerado: à sua timidez soma-se a ausência de uma mulher capaz de satisfazê-lo física e espiritualmente. A MORTE Quando trata da morte - o aspecto mais conhecido de sua obra - podese perceber com clareza as qualidades expressivas do artista. Ela é um tema constante. O poeta a antevê, a profetiza para si próprio, não pode esquecê-la. De certa maneira, fez uma opção por ela diferentemente de outros companheiros de geração que se desesperam ao perceber o fim - quis morrer aos vinte anos, entregarse à "leviana prostituta", como se vê neste fragmento de Hinos do Profeta: A morte, leviana prostituta, Não distingue os amantes!.... Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta Onde não fecundou-se uma semente, Convosco dormirei... Mesmo assim, há desespero e angústia nessa entrega. Ele lembra as coisas que vai perder, os afetos, o futuro. Lamenta-se por isso. Por outro lado, a morte é a possibilidade de resolução de sua crise, de suas dores. Se eu morresse amanhã cristaliza esta ambigüidade amarga: Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n'alva Acorda a natureza mais louçã*! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã*... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã!" Louçã: graciosa, encantadora Afã: vontade, ânsia O TÉDIO Na segunda parte de Lira dos vinte anos, as fantasias eróticas, a avidez pelo amor, os artifícios byronianos e mesmo a obsessão pela morte, cedem lugar a uma espécie de cansaço existencial, o tédio. O tédio, ou "mal du siècle", para os românticos europeus, era uma espécie de cinismo e enfado de quem tudo viveu, tudo experimentou: sexo, bebidas, ópio, transgressões. Mais tarde, Baudelaire diria que lera todos os livros, amara todas as mulheres mas que sua carne permanecia triste. Esta é a definição mais perfeita do mal do século. Já no caso de Álvares de Azevedo, o tédio resultava da falta de vivências a que a cidade de São Paulo o condenava. Era uma cidadezinha provinciana, medíocre, de insípida vida noturna, sem horizontes para um rapaz sonhador. Noites na Taverna Se fôssemos cobrar verossimilhança dos contos que compõem o livro Noite na taverna, certamente riríamos desses sete rapazes que bebem, fumam, gritam, e - enquanto a fumaça se mistura com os eflúvios da cerveja e do conhaque - narram histórias de suas vidas orgíacas e criminosas. Há algo de falsidade (e mesmo de bobagem pueril) nas cenas de necrofilia, incesto, canibalismo, assassinato e violação de todos os códigos morais que eles vão contando, falsamente horrorizados com o seu próprio desregramento. No entanto, apesar de sua total improbabilidade, esses relatos cínicos ainda hoje exercem uma sedução nos leitores, especialmente os mais jovens, mostrando que não se deve cobrar dos contos realismo e sim aquilo que eles representam simbolicamente. Tendências góticas? O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral predominam o informe, o inquietante. Compõem o cenário o castelo mal-assombrado, o cemitério, as ruínas, a bruma, entre as imagens dos mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a sedução da morte e do aniquilamento. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e pela profanação. Ora, nos relatos curtos de Álvares de Azevedo predominam a concepção noturna da existência, a atração pela morte, o amoralismo com que se trai e se mata, além de compulsões incestuosas e necrófilas. Ou seja, elementos do gótico. O resultado é a criação de um mundo de sombras, onde indivíduos - torturados por impulsos proibidos - praticam ações que revelam o lado sujo e perverso de suas almas. A TERCEIRA GERAÇÃO: CONDOREIRA O fim da década de 60 assinalou o início de uma crise que atingiu a classe dominante, composta por senhores rurais e grupos de exportadores. As primeiras indústrias, o encarecimento do escravo como mão-de-obra e a utilização de imigrantes nas fazendas de café de São Paulo indicavam mudanças na ordem econômica. Por esta época, começaram a se manifestar as primeiras fraturas na até então sólida visão das elites dirigentes. O nacionalismo ufanista começou a ser questionado. Estudantes de Direito, intelectuais da classe média urbana, escritores, jornalistas e militares se davam conta da existência de uma considerável distância entre os interesses escravocratas e monarquistas dos proprietários de terras e os interesses do resto da população. Foi então que a literatura assumiu uma função crítica. Antônio de Castro Alves superou o extremado individualismo dos poetas anteriores, dando ao Romantismo um sentido social e revolucionário que o aproxima do Realismo. O padrão poético já não é Chateaubriand ou Byron, mas sim o francês Vitor Hugo, burguês progressista, cantor da liberdade e do futuro. CASTRO ALVES Obras: Espumas Flutuantes (1870); A cachoeira de Paulo Afonso (1876); Os escravos (1883); Gonzaga ou A Revolução de Minas (drama - 1875). Sua obra se abre em duas direções: Poesia social - causas liberais e humanitárias. Poesia lírica - natureza e amor sensual. POESIA SOCIAL Castro Alves é um caso típico do intelectual convertido em homem de ação. Não apenas realizou uma poesia humanitária, como participou ativamente de toda a propaganda abolicionista e republicana. Esse engajamento político muitas vezes prejudica a sua literatura - que se torna mais denúncia do que arte embora tal problema seja secundário diante da generosidade social do poeta. O jovem baiano tinha consciência de sua posição e de sua situação de letrado, e do papel que poderia exercer dentro da sociedade. Compreendia o significado da educação num país constituído por analfabetos, e foi o primeiro dos grandes românticos a valorizar a imprensa, o livro e a instrução, conforme diz no poema O livro e a América: Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma É germe - que faz a palma, É chuva - que faz o mar. Castro Alves cantou todas as causas libertárias - a poesia como arma de combate a serviço da justiça e da igualdade - mas o que ficou na memória popular são os seus poemas abolicionistas. A base econômica da sociedade agrária brasileira, na década de 1860, ainda era o escravo, porém as pressões internacionais, somadas às críticas das classes urbanas nacionais e à perspicácia de certos proprietários - que viam a escravidão como anti-econômica possibilitaram o surgimento das primeiras vozes contestadoras. Castro Alves será a encarnação mais retumbante desse protesto. O CONDOREIRISMO Os seus poemas sociais são conhecidos também como condoreiros. "A praça, a praça é do povo, assim como o céu é do condor" escreve num de seus primeiros trabalhos. É uma metáfora exuberante: o condor voa altaneiro e livre por sobre os Andes. Ele quer inebriar os jovens liberais com a força bombástica de um discurso metrificado. Quer comover e convencer. Por isso, nem sempre se contenta em dizer o essencial. Acaba caindo na retórica, provocada pelo excesso verbal, por antíteses e hipérboles em demasia e por várias imagens de mau gosto. É possível, no entanto, compreender que o tom oratório dessas composições tinham uma finalidade pedagógica: feitas para serem declamadas em público, elas deviam se parecer a um discurso que conscientizasse as massas. Daí sua redundância e sua ênfase emocional. Mesmo assim, em vários textos condoreiros, o poeta atingiu uma eloquência pura, vibrátil, "de poderosa sugestão visual e impressão auditiva". O NAVIO NEGREIRO, cujo título geral é Tragédia no mar, começa com uma longa e belíssima descrição do oceano, até que o poeta, postado nas alturas, avista um barco que parece navegar alegremente. Então o poeta solicita ao albatroz ("águia do oceano") que lhe dê suas asas para se aproximar da embarcação. Ao mergulhar por sobre o navio, descobre a realidade em todo o seu horror. As cenas que se sucedem são impressionantes: a violência opressiva dos traficantes; as apóstrofes* exasperadas do poeta, tanto a Deus quanto às forças mais grandiosas da natureza; o repúdio à bandeira nacional que cobre tanta iniqüidade; e, por fim, o apelo aos heróis do Novo Mundo para que dêem um basta à espantosa tragédia: Era um sonho dantesco...O tombadilho Que das luzernas* avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros...estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar... Negras mulheres suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães. Outras, moças... mas nuas, espantadas No turbilhão de espectros arrastadas Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doidas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala E voa mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali ... Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri... No entanto o capitão manda a manobra... E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz, do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar." (...) Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar! por que não apagas Com a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (...) ...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga* Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares!" * Apóstrofe: interpelação direta a alguém * Luzernas: clarões * Bacante: mulher devassa * Impudente: sem pudor * Pendão: bandeira * Plaga: região, país POESIA LÍRICA: O AMOR SENSUAL O lirismo amoroso de Castro Alves distingue-se das concepções dominantes na poesia romântica brasileira. Ao contrário de Gonçalves Dias, não considera o amor como impossível de ser realizado. Tampouco encobre a sensualidade, como Casimiro de Abreu. Muito menos apresenta a relação física como perversão fantasiosa, a exemplo de Álvares de Azevedo. Em Castro Alves, as ligações sentimentais são apresentadas de uma maneira viril, sensual e calorosa. Mário de Andrade observou que tanto o homem quanto o artista alcançam a plena realização sexual. Disso resulta uma lírica original por explorar o erotismo sem subterfúgios e sem culpa. Ninguém como Castro Alves sabe cantar as excelências das uniões corpóreas, ninguém como ele sabe falar de homens e mulheres reais. Até mesmo sua linguagem - freqüentemente retórica ao tratar de temas condoreiros - torna-se simples e coloquial na poesia amorosa. A partir de um esplêndido domínio da metáfora, o poeta cria imagens de rara beleza e intenso sentido de plasticidade, conforme se pode observar em versos como: "Sob a chuva noturna dos cabelos..." Ou: "Minha Maria é morena / Como as tardes de verão." Ou ainda, referindo-se a uma de suas amadas: "Lírio do vale oriental, brilhante! / Estrela vésper do pastor errante!" Encantador e de singelo erotismo é o poema Adormecida, onde galhos e ramos assediam amorosamente a jovem que dorme numa rede: Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão...solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente.(...) De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras*, Iam na face trêmulos - beijá-la Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a ... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... (...) * Aura: vento brando. O POETA E A MORTE Antes de sua doença, Castro Alves já experimentara o velho tema romântico da morte na juventude e o triste lamento que esta intuição do fim nele despertava. O abismo entre os seus sonhos e a sombria realidade que impede a realização dos mesmos aparece em Mocidade e Morte, um de seus poemas fundamentais e, além de tudo, profético, conforme se pode ver nas primeiras estrofes: Oh! Eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minha alma adejar* pelo infinito, Qual branca vela n'amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... - Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea* fria. Adejar: esvoaçar Lájea: pedra do túmulo