Professor Jayme
Estas pedras
Sotaque da terra
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
Junho 1986
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol
COUTO, Mia, RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, 3° edição, Editorial Caminho, AS, Lisboa – 1999.
“De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento
que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se
espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão
convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus
escritos se vão transformando em páginas de terra”.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula, p. 222.
O Último Vôo do Flamingo (2000)
(2000 – 25 anos da Independência de Moçambique. Prêmio
Mário Antônio, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001.)
O AUTOR
Dados biográficos
Mia Couto (Antônio Emílio Leite Couto)
( Beira,1955) é descendente de portugueses. Seus
primeiros poemas são publicados no jornal de Beira,
quando ele tinha catorze anos. Foi militante da FRELIMO nas lutas pela
Independência. Mas não pegou em armas. Embora moçambicano, é
branco, e os da Frelimo “diziam que os brancos moçambicanos podiam
lutar, mas que não podiam confiar neles a ponto de dar-lhes uma arma. Os
brancos, indianos e mestiços não podiam pegar em armas, podiam
combater, como fiz, na área política, do ensino.” ( Entrevista de Mia Couto
à revista ISTO É, 26/09/2007 ). Atuou no jornalismo. Produz uma literatura
engajada, política. É formado em Biologia.
O ROMANCE VISTO PELO PRÓPRIO AUTOR:
( 2000 – 25 anos da Independência de Moçambique. Prêmio
(Mário Antônio, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001.)
(Estamos usando, neste trabalho, a edição de 2005, da
Companhia das Letras. São Paulo)
“No verão de 1998, caminhando por uma praia do Sul de
Moçambique, encontrei, esvoante sobre a areia, uma pena de flamingo.
Os pescadores locais me haviam dito que, outrora, por ali ninhavam
bandos de flamingos. Fazia tempo, porém, que eles não vinham.
No entanto, os pescadores esperavam ainda a visita daqueles
magros anjos do vento. Na tradição daquele lugar, os flamingos são os
eternos anunciadores de esperança .
Guardei em minha casa essa pena e a coloquei por cima do
meu computador. Durante os dois anos em que escrevi este
romance, aquela pluma me contemplou como se fosse uma fresta de
céu por onde desfilavam os pássaros e suas secretas viagens.
O último vôo do flamingo fala de uma perversa fabricação de
ausência — a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de
esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses
comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente
empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de
tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue,
contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer
a palavra dos escritores.
Esse compromisso para com minha terra e o meu tempo
guiou não apenas este livro como os romances anteriores.
Em todos eles me confrontei com os mesmos demônios e
entendi inventar o mesmo território de afecto, onde seja
possível refazer crenças e reparar o rasgão do luto em
nossas vidas. (Palavras proferidas por Mia Couto na
entrega do Prêmio Mário António, da Fundação Calouste
Gulbenkian, em 12 de junho de 2001.)
N’ A terra sonâmbula, a escrita, no final, se funde com
o chão da savana: “Movidas por um vento que nascia não do
ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada.
Então, as letras, uma a uma, se vão convertendo em grãos de
areia e, aos poucos, todos os meus escritos se vão
transformando em páginas de terra.
N’A varanda do Frangipani, o narrador termina
transfigurando-se em árvore e vai emigrando de si para esse
lado de eternidade.
N’O último vôo do flamingo, sentados na berma do
desfiladeiro, os personagens fazem da folha em que
escreviam um pássaro de papel. E lançam essa fingida ave
sobre o último abismo, reinvestindo na palavra o mágico
reinício de tudo.
A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos
que tento a ilusão de uma costura. É uma escrita que aspira
ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de
quando em quando, sonhar o vôo da asa rubra. É uma
resposta pouca perante os fazedores de guerra e
construtores da miséria. Mas é aquela que sei e posso,
aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver.
Lembro, a fechar, as palavras do feiticeiro Zeca
Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não
acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de
um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de
nós”
Outro depoimento
O livro (O Último Vôo do Flamingo) aconteceu a partir de um
conjunto de vivências pessoais e de relatos que fui recolhendo. Enquanto
biólogo visitei zonas de guerra ... Na véspera de uma saída eu me dirigia
à sede da ONUMOZ e falava com os motoristas que tinham circulado
pelas zonas rurais. Certa vez, eu os surpreendi falando entre eles assim:
“então lá explodiu mais um?”. O meu ouvido ficou alerta. Se havia uma
explosão era certamente uma mina. Daquela feita, não era. Eram
explosões que aconteciam por encomenda de feitiço na região do
Chokwé. Os homens solicitavam esse serviço aos feiticeiros para se
defenderem contra os militares que tentavam seduzir as suas esposas.
Isso me fez despoletar o pretexto que desencadeia o livro
( Mia Couto –o Último vôo do flamingo – Sou um poeta que conta
estórias )
( O feitiço fazia que, em pleno ato sexual, quando no clímax, os
militares explodissem e deles nada ficasse.)
O romance visto pela crítica
“ O último vôo do Flamingo é um romance em que pulsa uma
grande força humanista: depois da guerra de Independência e dos anos
de guerrilha, Moçambique vive um momento de reestruturação social e
política.
“O autor sabe como ninguém manejar seu discurso literário ora
fantástico, ora poético, ora divertido e irônico.”
(Vozes da África: Água, Rio e Mar, publicada em 28/03/2005)
Enfim, a obra redimensiona o olhar sobre Moçambique, um dos países
mais pobres do mundo, recém-saído de três décadas de guerra civil
fratricida, que matou ao menos 16 milhões de pessoas nesse período
(em 2000, quando o livro foi publicado, comemoravam-se os 25 anos de
independência de Moçambique)
(O último vôo do flamingo – Mia Couto)
ANÁLISE DO ROMANCE
Na INTRODUÇÃO do romance, o narrador se apresenta:
Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se
seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a
sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É
o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos
acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de
Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li
depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência.
Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me
condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se
passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram.
Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que
preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do
corpo da vítima.
Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo parecia
correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não
iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas
que vinham vigiar o processo de paz. Chegaram com a insolência de
qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras,
capazes de fabricar concórdias.
Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é
o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir.
Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos descontados, a
quantia de cinco falecidos.
Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta
de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sobra de
substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca
restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram?
Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas
páginas.
(Assinado: O tradutor de Tizangara) ( p.9 -10)
ANÁLISE DO ROMANCE
O Fato
Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o
que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a
explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos
descontados, a quantia de cinco falecidos.
Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta
de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sobra de
substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito,
nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz
morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao
longo destas páginas.
MARCAS DA ORALIDADE NA NARRATIVA
Diz o narrador: “Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi
confissões, li depoimentos”. Atente para: “ ouvi confissões”. O romance é
dedicado” a Joana Tembe e João Joãoquinho que me contaram estórias
como quem rezava”. Em “Sou um poeta que conta estórias”, Mia Couto
afirma: “Joana Tembe ... me sugeriu a idéia de um país que os deuses
levavam para os céus por não estar a comportar-se. A idéia de uma nação
ser suspensa da sua existência, foi-me entregue por essa idosa senhora –
hoje já falecida – que olhava o mundo com olhos de criança.”
O próprio Mia Couto nos diz: “O livro (O Último Vôo do Flamingo)
aconteceu a partir de um conjunto de vivências pessoais e de relatos que
fui recolhendo.”
“Entendi como alguns dos velhos pescadores eram detentores de
sabedoria vitais e aprendi a aprender dessa fonte de conhecimento. O que
eles sabiam era, naquele momento, muito mais precioso do que eu podia
imaginar.”
A metáfora dos flamingos, tradição local, o autor a ouviu dos
pescadores de “uma praia do Sul de Moçambique”
A presença dos provérbios, aforismos, ditos populares –apenas
citados ou desconstruídos, ou criados - é outra marca da oralidade.
Cada capítulo começa com um deles. Vários outros são falados
pelos personagens.
Eis alguns exemplos:
“Os amantes fazem-se lembrar pela lágrima. Os esquecidos
fazem-se lembrar pelo sangue” (Dito de Tizangara p.11).
“O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” (dito de
Tizangara, p.13)
“contra fatos tudo são argumentos” (15)
“Quando o silencio clareia, é que se escutam os escuros
presságios.” (p. 16)
“O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo”. (17) “Os
anjos é que vêem o que não se passa.” (17).
“Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os
lábios” (p.17)
“Cabrito come onde está amarrado.” (p. 18)
“Mas nós éramos africanos, de carne e alma” (19),
“O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois.”
(p.21)
“Saudade de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo” (p. 33)
“Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece.” (p. 35)
“Uns sabem e não acreditam.
Esses não chegam nunca a ver.
Outros não sabem e acreditam.
Esses não vêem mais que um cego Provérbio de Tizangara (p. 55)
“O macaco ficou maluco de espreitar por trás de espelho”. Provérbio (p.89)
“Casas juntas, ardem juntas” (p. 96)
“O cão lambe as feridas?
Ou é já a morte,por via da chaga,
Que beija o cachorro na boca?”– Dito de Tizingara (p.97)
“A verdade tem perna comprida e pisa por caminhos mentirosos” (p.105)
“Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados”. Crença de
Tizangara (p.107)
“As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”. Provérbio
africano. (p. 117)
“A vida é um beijo doce em boca amarga”. Depoimento do feiticeiro. (p. 141)
“É o cão vadio que encontra o velho osso”. Provérbio (p. 149)
“Quem voa depois da morte? É a folha da árvore.” Dito de Tizangara. (p.157)
“A urina de um homem sempre cai perto dele”. Provérbio (p 165)
“Amor com amor se apaga.”(p. 168)
“A cinza voa, mas o fogo é que tem asa”. Dito de Tizangara (p. 201)
“Do que me lembro jamais eu falo.
Só me dá saudade o que nunca recordo.
Do que vale ter memória
se o que mais vivi
é o que nunca se passou? Fala de Sulplício (p.209)
TEMPO NARRATIVO
Diz o narrador:
“Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo parecia
correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as
violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados
das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz.
Chegaram com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados,
acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar
concórdias.”
Lembre:
1975 – Moçambique consegue sua Independência
1976 – 1992 – Moçambique vive uma longa Guerra Civil
O tempo narrativo é, pois, logo após a assinatura do acordo de
paz em 1992, quando soldados das Nações Unidas vão
acompanhar o processo de paz e o processo de desminagem. Os
capacetes azuis – como eram chamados os soldados da ONU –
tinham vindo trabalhar, no pós-guerra, na desminagem do país. Os
fatos são narrados como já ocorridos.
No romance, o narrador vai denunciar a corrupção dos
governantes em todo o processo de desminagem. Em recente
entrevista à ISTO É, Mia Couto afirmou: “A desminagem é um
negócio. Muitas vezes as próprias empresas produtoras de minas
fazem a desminagem, e ela custa mais caro ao país do que
comprar minas”. E critica: “Estranho é os países que falam em
nome dos direitos humanos e que se arvoram como grandes
defensores de uma certa humanidade contra o terrorismo, se
recusarem a assinar os protocolos contra a fabricação de minas”
(ISTO É . 26/9/2007. p.11)
No romance, nas páginas 194 e 196, o “negócio” das minas é
denunciado. Diz o pe. Muhando: “ Parte das minas que se
retiravam regressava, depois, ao mesmo chão. Em Tizangara tudo
se misturava: a guerra dos negócios e os negócios da guerra. No
final da guerra restavam minas, sim. Umas tantas. Todavia não era
coisa que fizesse prolongar tanto os projetos de desminagem. O
dinheiro desviado desses projetos era uma fonte de receita que os
senhores locais não podiam dispensar. Foi o enteado do
administrador quem urdiu a idéia... Plantavam-se e desplantavamse minas. Umas mortes à mistura até calhavam para dar mais
crédito ao plano. Mas era gente anônima, no interior de uma nação
africana que mal sustenta seu nome no mundo. ... Terem explodido
estrangeiros foi o que desmontou o esquema. A verdade das minas
pedia prova de sangue. Mas sangue nacional. Nada de
hemorragias transfronteiricas”. (p.196)a
AMBIENTE
“Eu era tradutor ao serviço da administração de
Tizangara”.
Tizangara, vila imaginária, é uma metonímia de
Moçambique.
“A atmosfera de Tizangara é envolta em verdade e
ficção, realidade e magia, natureza e sobrenatural, o
mundo dos vivos e dos mortos; e um presente que balança
entre a força dos antepassados e a ausência de futuro.”
REALISMO MÁGICO, ANIMISTA, FANTÁSTICO
O onírico e mágico. É frágil a fronteira entre realidade e
magia: “não obedece aos padrões da racionalidade européia. O
povo moçambicano vê o universo mítico como um suplemento ao
mundo concreto onde residem as lendas, os sacerdotes, os
antepassados.O europeu não compreende o “fantástico africano”
e todo esse universo lhe causa um estranhamento.
b) “O poder dos antepassados, a vida dos mortos e a força da
natureza voltam a ter um papel principal em mais este livro do
autor moçambicano. O lado oculto e invisível tem mais força do
que a realidade concreta que Massimo Risi procura”.
c) Alguns exemplos
Temporina (atenção ao nome da personagem) – rosto de velha
(“castigo dos espíritos, porque se passaram os tempos sem que
nenhum homem provasse de sua carne” (p. 62), corpo de moça que,
em “flagrante de amor, juvenescia” (p.68). Temporina tem um irmão,
“o moço tonto”.
Hortênsia, tia de Temporina que, após morta, aparece em forma de
louva-a-deus. E, mesmo morta, todas as manhã, faz o prato de seu
sobrinho.
Estevão Jonas cujas mãos , quando tocam em mulher, aquecem
até ficarem como “carvão aceso”. Houve vezes até que pegaram
fogo e eu fui obrigado a parar o ato.
Sulplício – pai do tradutor-narrador – que, ao dormir, pendura os
próprios ossos.
Feitiços (os likahos) – por exemplo o da formiga – o enfeitiçado
emagrece até ficar do tamanho de formiga.
Mãe do tradutor que, após morta, reaparece e dialoga com o filho.
A própria forma como o tradutor é concebido e como nasce.
Final “mitopoético” da narrativa ”Uma terra engolida pela Terra”.
(COMPARAR COM O FINAL DE VIVA O POVO BRASILEIRO)
... ”desataram acontecer coisas que ninguém pode acreditar. Por
exemplo, a semana passada um burro-macho deu parto a uma
criança.
E ainda mais estranho: a criança vinha calçada de botas militares.
Foi um choque muitíssimo enorme. O jornalista local da rádio, o
radiofonista, até que dá vergonha em termos de civilização e da
democracia. Para não falar do prestígio das gloriosas forças
armadas.
Pág. 169
Diante desses acontecimentos, resta ao italiano Massimo Risi,
entre uma perplexidade e outra, temer pela veracidade do relatório
que terá de entregar a seus superiores (“na capital, a sede da
missão da ONU espera por notícias concretas, explicações
plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de
estórias delirantes”).
Por isso diz o italiano ao tradutor: “Eu posso falar e entender.
Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse mundo
daqui”.
“Crime maior, denunciado no romance, é a imensa
destruição das tradições moçambicanas”. Por isso, a revolta
dos antepassados. “As palavras de meu pai, diz o narrador, me
surgiam com um peso: os nossos antepassados nos olham como
filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem.
(p. 208)
ESTRUTURA NARRATIVA
Veja como o narrador se posiciona diante dos fatos a serem narrados.
Atente para os trechos que grifamos:
“Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se
seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a
sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o
preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos
acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de
Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li
depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência.
Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me
condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se
passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram.
Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso
livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da
vítima.”
Narração em primeira pessoa. O Narrador é o tradutor que é
também personagem e que, inclusive, tem pai e mãe também
como personagens. A escrita como uma catarse: preciso livrar-me
destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.”
Subjetivação e transcendência da história – no romance,
misturam-se realidade e ficção. Há uma subjetivação e
transcendência da História.
O autor, através das palavras do tradutor-narrador e de outros
personagens, intervém criticamente na forma de narrar e comentar
os fatos.
Postura irreverente, humor sarcástico.
A postura irreverente, o humor sarcástico e mordaz do autor se revelam
já nas primeiras linhas do romance, quando, ao falar da explosão do sexto
soldado da ONU, relata-a dizendo: “Nu e cru, eis o facto: apareceu um pênis
decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da Vila de Tizangara.”. E
“uma roda de gente se engordou em redor da coisa”: as autoridades locais,
as autoridades da ONU, o investigador, o tradutor-narrador, os curiosos;”.
Para identificar “o todo pela parte”, chamam Ana Deusqueira, a prostituta
local, “a mais competente conhecedora dos machos locais” (o homem pelo
pênis), que garante não pertencer “a nenhum dos homens locais” e, “pelo
tamanho daquele resto, percebia-se que o homem era do sexo maisculino”
(atenção à grafia de “maisculino”).
Esse tradutor é o narrador dos fatos, relatados no romance como já
ocorridos.
(Revista Ateliê – A Revista do Colégio Módulo, p. 48.)
LINGUAGEM
“Fui eu que transcrevi, em português visível... “Mas o que se passou
só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram.”
No relato das “sucedências” são muitas as palavras criadas ou
usadas de forma metafórica. É o encantamento da linguagem”. Mia
Couto é, de fato, “o escritor da crioulidade.”
Veja alguns exemplos:
“Uma roda de gente se engordou em redor da coisa” ... “Aquilo não
era o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. (p. 15)...
“cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas , instantaneavam-se
ordens” (p. 15) A gentania se agitava, bazarinhando. Coitado , o
gajo ficou manco central (o homem perdera o pênis) .(p. 15). “E
logo-logo a multidão se irresponsabilizou.” “E desfalavam”. “Se
emborem, pá!” (p. 16) Em vários momentos, o narrador usa o verbo
“desconseguia”
Um dos bonés de soldado das Nações Unidas pendurado num
galho, “balançava na vontade das brisas.”, plenamente só no meio
das aragens” (p. 16)
Meu destino se haveria de labirintoar.
O administrador “enrugava a voz” (p. 18)
A vila se formigava em roda vivente”(p. 23)
O Administrador “peito mais arredondado que o pombo em arrasto de asa
... emperuado.”(p. 23)
O representante do governo central “metafisicou hipótese”(p. 26)
“Eu seguia as ordens, acachorrado com ele... “eu languçava a cena de
longe.” “Eu e o italiano nos compadreávamos, adjuntando nossos ouvidos”
(p. 39)
“Primeiro, inacreditei
“Viajara mais lembranças que quilômetros.”... “Vinha quase sem mim,
parecia um desqualquerficado.” (p. 52)
“os ngnomos tinham barulhado toda a noite, num pãodemônio..tão
pertíssimo? (p. 74)
No distrito “só se ouvem estórias, contadeirices, o povo zunzunando sobre
as explosões” (p. 95)
“triste dicências” ( 167 ) , Calabouço-a ..Estou a ponto de panicar”(p. 168)
O gravador é “máquina que fotografa as vozes” (p. 185)
Veja as denominações que o narrador usa para o pênis e os testículos:
sexo avultado e avulso, coisa (p. 15) apêndice órfão (p. 16), caso do sexo
decepado” (p. 18), “aquilo” (p. 20), “coisa desfalecida” (p. 20), sexo
masculino, ainda para mais jazendo em paz” (p. 25) , anônimo sexo” (p.
26), “dito apêndice” (p. 26), um órgão ou organismo?” (p. 26) órgão díspar
e ímpar” (p. 26) , parte (p. 27) restos (p. 29) polêmico achado (p. 29),
“órgão desfigurado”, verme flácido, hífen carnal (p. 29), daquele resto (p.
32) sexo masculino (p. 32) órgão de macho (p. 92) sexo voador (p. 92),
pendurico (p. 92), trombiricalho (p. 93) partes (p. 93) badalões (p. 123)
mbolos (p. 123), aquilos (p. 123), “minhas dependências” (p. 151) “pila” (p.
151, 154) “pichotas” (p. 154),tomates ( = testículos ) (p. 155)
O homem que perdeu o pênis ficou ‘manco central” (p. 15) é um homem
despilado (p.151)
Ao longo deste trabalho, outros exemplos da criatividade do autor serão
evidenciados. Colocaremos sempre em destaque as palavras criadas ou
usadas de forma original.
SUBJETIVAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA DA HISTÓRIA
Há uma subjetivação e transcendência da História. A partir de
fatos históricos que ocorreram na década de 1990, a narrativa,
unindo realidade e ficção, verdade e magia, transcende os fatos
em si, se projeta numa dimensão atemporal, em que passado,
presente e futuro se fundem na definição e busca de uma
identidade moçambicana. O autor, através das palavras do
tradutor-narrador e de outros personagens, intervém criticamente
na forma de narrar e comentar os fatos.
A POLIFONIA NARRATIVA E CRÍTICA EM O ÚLTIMO VÔO DO
FLAMINGO
A leitura atenta do romance evidencia uma série de aspectos
relevantes que merecem uma análise mais acurada: a oralidade,
que está na raiz mesma da obra; o realismo fantástico, mágico,
animista, definido como algo essencial à cultura africana, não como
simples estilo literário; a linguagem, expressão da força inventiva do
autor, na criação de palavras, na ressignificação de palavras já
existentes, nas originais metáforas, nas transgressões das normas
gramaticais; o humor irreverente, crítico, mordaz, caricatural, que se
manifesta na linguagem e nos próprios fatos narrados.
A POLIFONIA NARRATIVA
O narrador se coloca apenas como alguém que apenas
“transcreve” as “falas” de “vozes”, diz ele, que “não escuto
senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não
da memória, mas do fundo do corpo”. Define-se aí o caráter
polifônico da narrativa. São várias vozes que “falam” sobre os
mesmos fatos.
Podemos classificar essas vozes:
A voz estrangeira – a voz do italiano Massimo Risi, enviado pela
ONU para buscar a explicação das explosões de seus soldados. É a
“voz de fora”. As autoridades lhe dão um Tradutor, que o
acompanha em todo o processo de investigação. Massimo se
confronta com um mundo mágico que ele não consegue
compreender. Os depoimentos e falas que ouve o confundem ainda
mais. E ele termina dizendo ao tradutor: “Eu posso falar e entender.
Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse mundo
daqui”. Aceitara a missão, objetivando alcançar uma promoção. Mas
confessa que “na capital, a sede da missão da ONU espera por
notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele
esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes”.
Entre essas “estórias delirantes”, está a de seu envolvimento com
Temporina, a velha, “talvez a mais idosa que ele jamais vira”, que,
“em flagrante de amor juvenescia”, mas “corpo de moça polpuda
e convidativa”. Temporina era uma “enfeitiçada.”. As relações
sexuais que ele tem com Temporina quase sempre se passam em
clima de encantamento. Massimo não tem consciência de que
elas ocorreram. Apenas tem evidências de que aconteceram:
sente-se “despertar suado e sujo”, o hospedeiro lhe diz: “eu ouvi
tudo”, vestes deixadas por Temporina em seu quarto etc.
As vozes locais – “versões dos fatos ou sonhos ou lembranças essenciais”,
comprometimentos, crenças e saberes, vôos sobre tempo dos
acontecimentos e o tempo da memória”.
I – As vozes do presente narrativo, as vozes dos vivos, que:
a) ora se apresentam comprometidas com “a mão exploradora de fora”, daí
a corrupção e a busca do enriquecimento pessoal – é o caso do
administrador Estêvão Jonas. Revolucionário antes da Independência,
tornara-se o Administrador corrupto de Tizangara. Dele diz o narrador: “o
hoje comeu o ontem”, “sua vida esqueceu-se da palavra”. É a voz das
elites moçambicanas, “a mão conivente de dentro”.
b) ora se mostram com uma visão crítica contra essa “mão exploradora de
fora” e contra “a mão conivente de dentro”. São as vozes do Pai
(Sulplício) e da Mãe (sem nome no romance) do Tradutor, de Zeca
Andorinho, que simbolizam as raízes locais. Têm uma visão crítica da
realidade política de Tizangara. Denunciam a presença das forças
externas, o “desgoverno” e a corrupção das elites locais. Têm uma
atuação destacada no final da história.
c) A voz religiosa – pe. Muhando – que critica não só a realidade,
mas também o próprio Deus, quando Ele se “descomporta”, por
exemplo quando uma criança morre. Ele denuncia o processo de
desminagem, o que veremos adiante.
d) A voz mágica – Hortênsia – Temporina. Hortênsia era a última
neta dos fundadores da vila. É tia de Temporina. Está morta, mas
aparece sempre como um louva-a-deus. Hortênsia e Temporina
encarnam a visão mágica da cultura africana. Temporina diz ao
italiano: em Tizangara não há dois mundos: o dos vivos e o dos
mortos. Os vivos e os mortos partilham da mesma casa.
e) A voz humana – Ana Deusqueira, a prostituta local.
Ana Deusqueira, a “a mais competente conhecedora dos machos
locais...” a má-vidista, mulher de “pronto pagamento”, voz carnal,
incendiadora como bebida de afugentar razão”, tem um enorme saber
das relações humanas e sociais.
e.1) Os saberes de Ana
Ana diz que há ex-ministro, ex-enfermeira, mas “Uma puta nunca é
ex... A putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca.”
Quem conhece a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede. Mais
ninguém... Este mundo tem mais dentes que bocas. É mais fácil morder
que beijar/” ... por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos?
Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder,
matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns
poucos aprenderam a lição da humanidade. “O capim, não parece, mas
dá flor. Só não vê quem está longe.
“Estes poderosos de Tizangara têm medo de suas próprias
pequenidades. Estão cercados, em seu desejo de serem ricos... São
perseguidos pelos pobres de dentro, desrespeitados pelos ricos de fora.
Tenho pena deles, coitados, sempre moleques”.
e.2) As revelações de Ana
Sobre os soldados estrangeiros que explodiram, diz ela: “Não é que pisam em
mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos... Nós temos poderes, o
senhor sabe. Ou já esqueceu as forças da terra?... E fala do soldado zambiano
que chegou ao bar, “arrotando presença. ...Não gostamos, sabe, esses ares de
dono. Só fingimos simpatias... Nessa bebida, eu vi, alguém juntou uns pós
tratados, feitiços desses, nossos... Obra dos homens, ciumeiras deles que não
querem ver mexidas as mulheres da terra. ... Quando esse zambiano me pegou na
mão eu já sabia o destino dele. Lhe acompanhei sem pena.”. “Agora, vou só lhe
contar como sucedeu naquela noite com o zambiano..., esse soldado me visitou
sem nenhumas maneiras. O homem nem perdeu tempo com beijo. Você sabe
como é a minha gente. Me subiu assim, sem preparo, mais salivoso que cachorro.
E ali se serviu, todo por cima de mim, completamente nu, exceto a boina na
cabeça..., ia gemendo, arfalhubo. Suspiros e gemidos iam crescendo..., eu já
aliviada por ver a coisa a terminar. Foi nesse instante: o tipo rebentou-se, todo
estampifado. Me assustei, quase de morrer... Eu já tinha ouvido falar disso, dos
estrangeiros explodirem quando montam nas meninas. Porém, nunca tinha
acontecido comigo, nunca... Aquele vivente se tinha espatifurado sem vestígio”.
II – As vozes dos antepassados que criticam “a mão conivente de
dentro”, as elites moçambicanas. Reação dos antepassados contra
“os de dentro”.
A voz dos Antepassados se manifesta através:
a) De Estêvão Jonas, o Administrador de Tizangara, que, em um de
seus relatórios, narra o diálogo que teve com os heróis do passado:
“– Que estão fazendo, meus heróis?
– Você não pediu que expulsássemos os opressores?
– Sim, pedi.
– Pois então estamos expulsando a si.
– A mim!?
– A si e aos outros que abusam do Poder.” (p. 168 )
b) do Pai do Tradutor e Zeca Andorinho.
c) O “Crime maior, denunciado no romance, é a destruição das tradições
moçambicanas”. Por isso, a revolta dos antepassados. “As palavras de
meu pai, diz o tradutor, me surgiam com um peso: os nossos antepassados
nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos
reconhecem.”
d) O final mitopoético: “o desaparecimento total do país.”
– Isso é obra dos antepassados...
... – os antepassados não estavam satisfeitos com os andamentos do
país. Esse era o triste julgamento dos mortos sobre o estado dos vivos.
Já acontecera com outras terras de África. Entregara-se o destino
dessas nações a ambiciosos que governaram como hienas, pensando
apenas em engordar rápido. Contra esses desgovernantes se tinha
experimentado o inatentável: ossinhos mágicos, sangue de cabrito, fumos
de presságio. Beijaram-se as pedras, rezou-se aos santos. Tudo fora em
vão: não havia melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a
terra. Faltavam homens que pusessem respeito nos outros homens.
Vendo que solução não havia, os deuses decidiram
transportar aqueles países para esses céus que ficam no
fundo da terra...cada país ficaria em suspenso, à espera de um
tempo favorável para regressar ao seu próprio chão. Aqueles
territórios poderiam então ser nações, onde se espeta uma
sonhada bandeira. Até lá era o vazio do nada,... (p. 216-217)
Abre-se um imenso buraco e, nele, desaparece toda a
nação. “os deuses quiseram enterrar os demônios que
engordavam na nossa terra. Mas eram tantos que tiveram que
cavar fundo, mais fundo que o próprio mundo.”.
III - A voz solidária: A solidariedade da esperança dos
sobreviventes: a voz de fora, a voz estrangeira se irmana à voz
local do tradutor.
Massimo e o Tradutor, à margem do abismo, vêem chegar uma
canoa e nela partir o Pai do tradutor, como o último vôo do flamingo.
E o italiano exclama: Esperar por outro barco – e, após uma pausa,
se corrigiu: – Esperar por outro vôo do flamingo. Há-de vir um outro.
Com esmero, o italiano faz um pássaro da folha do relatório que
acabara de escrever. Lança-o sobre o abismo. Diz o narrador:
Massimo sorria, em rito de infância. Pela primeira vez, senti o italiano
como um irmão nascido na mesma terra.
Há-de vir um outro – repetiu.
... a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria
sido o último vôo do flamingo”. Na tradição local, os
Flamingos eram “os eternos anun-ciadores de esperança”.
(p. 220)
O tradutor e o italiano, como únicos sobreviventes, se
irmanam. Mas não têm a força da ação. Apenas esperam
um outro vôo de flamingo, anunciando um novo tempo.
A CRÍTICA POLÍTICA
I) “A mão exploradora de fora
e a mão conivente de dentro”
a) Não é a paz que lhe interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime
desse mundo... O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões.
Essa ordem é uma doença em nossa história... A aposta dos poderosos (os de fora
e os de dentro) era uma só: provar que só colonizados podíamos ser governados.
(Fala de Suplício, pai do Tra-dutor).
b) Uma das hienas lhe respondeu assim:
– É que nós roubamos e reroubamos. Roubamos o Estado, roubamos o país até
sobrarem só os ossos.
– Depois de roermos tudo, regurgitamos e voltamos a comer – disse outra
hiena.
(Metáfora de Zeca Andorinho, quando fala da mão exploradora de fora e da mão
conivente de dentro.”).
II) o processo de desminagem
“Parte das minas que se retiravam regressava, depois, ao mesmo chão.
Em Tizangara tudo se misturava: a guerra dos negócios e os negócios da
guerra. No final da guerra restavam minas, sim. Umas tantas. Todavia não
era coisa que fizesse prolongar tanto os projetos de desminagem. O
dinheiro desviado desses projetos era uma fonte de receita que os
senhores locais não podiam dispensar. Foi o enteado do administrador
quem urdiu a idéia... Plantavam-se e desplan-tavam-se minas. Umas
mortes à mistura até calhavam para dar mais crédito ao plano. Mas era
gente anônima, no interior de uma nação africana que mal sustenta seu
nome no mundo. ...Terem explodido estrangeiros foi o que desmontou o
esquema. A verdade das minas pedia prova de sangue. Mas sangue
nacional. Nada de hemorragias transfronteiriças.” (Fala de Pe. Muhando)
III) Racismo
O padre Muhando já falara contra esse preconceito. O
pensamento do sacerdote ia direito no assunto: mulatos, não
somos todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria
reconhecer amulatado. Porque o ser negro – ter aquela raça – nos
tinha sido passado como nossa única riqueza. E alguns de nós
fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho”.
IV) Moçambique e a ajuda do capital internacional
Estêvão Jonas, em um de seus relatórios, fala da mudança de
orientação. Na “era antigamente”, “tínhamos orientações superiores: não
podíamos mostrar a Nação a mendigar, o País com os ossos de fora. Na
véspera de cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a
urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza.
Porém, com os donativos da comunidade internacional... a situação era
muito contrária. Era preciso mostrar a população com a sua fome, com
suas doenças contaminosas... a nossa miséria está render bem. Para viver
num país de pedintes, é preciso arregaçar as feridas, colocar à mostra
ossos salientes dos meninos.”. “Essa é actual palavra de ordem: juntar os
destroços, facilitar a visão do desastre. Estrangeiro de fora ou da capital
deve poder apreciar toda aquela coitadeza sem despender grandes
suores.”
V) “O hoje comeu o ontem”
“Não tínhamos entendido a guerra, não entendíamos a paz. ...“Os
novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros... Na
minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial... Culpa
do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em
Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos
camponeses, se embe-bedavam sem respeito. ...Os novos ricos se
passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos
vivos, sem respeito pelos mortos.” ...Eu já não tinha crença para
converter minha terra num lugar bem assombrado... A terra é um ser:
carece de família, desse tear de entrexistências que chamamos
ternura...” (Palavras do tradutor-narrador)
Nada é nosso nos dias de agora. Chega um desses estrangeiros,
nacional ou de fora, e nos arranca tudo de vez. Até o chão nos
arrancam... Não confianço em ninguém.” (Fala de Zeca Andorinho.)
VI) Aspectos humanos universais
A presença dos provérbios, aforismos, ditos populares apenas citados
ou desconstruídos, ou criados – é outra marca da oralidade. Cada
capítulo começa com um deles. Vários outros são falados pelos
personagens. Muitos desses provérbios e aforismos nos transmitem
verdades humanas universais. É o tema local sendo universalizado. Eis
alguns exemplos:
“Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os
lábios”.
“O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois”.
“As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”.
“A urina de um homem sempre cai perto dele”.
“Amor com amor se apaga”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quer seja pela linguagem, quer seja pela presença da oralidade, quer
seja pelo realismo mágico, quer pelas vozes que falam através do
tradutor-narrador, quer ainda pelo posicionamento crítico, o sentido maior
do romance é a busca de definir a identidade moçambicana. É uma
identidade plural, formada ao longo de todo o processo histórico, por isso
as várias vozes que falam no romance; as vozes do presente narrativo e
as vozes dos antepassados.
É importante perceber o sentido simbólico do personagem-narrador:
ele é o TRADUTOR, aquele que, em última análise, “traduz” para nós,
leitores, a essência mesma da cultura moçambicana e a certeza de que,
como diz Zeca Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora
não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol
que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.” (Perceba a
força expressiva dos advérbios “agora”, “ainda” e “só”.)
Observe a esperança que está implícita nos advérbios “agora” e
“ainda” e a convicção de que a identidade moçambicana, a solução
dos problemas sócio-econômicos-políticos, em síntese, “esse sol”
de um novo tempo “só pode nascer” dos próprios moçambicanos,
comprometidos com suas raízes, não com a “mão exploradora de
fora”.
REFERÊNCIA:
COUTO, Mia. O último vôo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
(Revista Ateliê – A Revista do Colégio Módulo, p. 49-56.)
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O último vôo do flamingo – Mia Couto