Professor Jayme Estas pedras Sotaque da terra sonham ser casa sei porque falo a língua do chão nascida na véspera de mim minha voz ficou cativa do mundo, pegada nas areias do Índico Junho 1986 agora, ouço em mim o sotaque da terra e choro com as pedras a demora de subirem ao sol COUTO, Mia, RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, 3° edição, Editorial Caminho, AS, Lisboa – 1999. “De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra”. COUTO, Mia. Terra Sonâmbula, p. 222. O Último Vôo do Flamingo (2000) (2000 – 25 anos da Independência de Moçambique. Prêmio Mário Antônio, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001.) O AUTOR Dados biográficos Mia Couto (Antônio Emílio Leite Couto) ( Beira,1955) é descendente de portugueses. Seus primeiros poemas são publicados no jornal de Beira, quando ele tinha catorze anos. Foi militante da FRELIMO nas lutas pela Independência. Mas não pegou em armas. Embora moçambicano, é branco, e os da Frelimo “diziam que os brancos moçambicanos podiam lutar, mas que não podiam confiar neles a ponto de dar-lhes uma arma. Os brancos, indianos e mestiços não podiam pegar em armas, podiam combater, como fiz, na área política, do ensino.” ( Entrevista de Mia Couto à revista ISTO É, 26/09/2007 ). Atuou no jornalismo. Produz uma literatura engajada, política. É formado em Biologia. O ROMANCE VISTO PELO PRÓPRIO AUTOR: ( 2000 – 25 anos da Independência de Moçambique. Prêmio (Mário Antônio, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001.) (Estamos usando, neste trabalho, a edição de 2005, da Companhia das Letras. São Paulo) “No verão de 1998, caminhando por uma praia do Sul de Moçambique, encontrei, esvoante sobre a areia, uma pena de flamingo. Os pescadores locais me haviam dito que, outrora, por ali ninhavam bandos de flamingos. Fazia tempo, porém, que eles não vinham. No entanto, os pescadores esperavam ainda a visita daqueles magros anjos do vento. Na tradição daquele lugar, os flamingos são os eternos anunciadores de esperança . Guardei em minha casa essa pena e a coloquei por cima do meu computador. Durante os dois anos em que escrevi este romance, aquela pluma me contemplou como se fosse uma fresta de céu por onde desfilavam os pássaros e suas secretas viagens. O último vôo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência — a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores. Esse compromisso para com minha terra e o meu tempo guiou não apenas este livro como os romances anteriores. Em todos eles me confrontei com os mesmos demônios e entendi inventar o mesmo território de afecto, onde seja possível refazer crenças e reparar o rasgão do luto em nossas vidas. (Palavras proferidas por Mia Couto na entrega do Prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, em 12 de junho de 2001.) N’ A terra sonâmbula, a escrita, no final, se funde com o chão da savana: “Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma a uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos os meus escritos se vão transformando em páginas de terra. N’A varanda do Frangipani, o narrador termina transfigurando-se em árvore e vai emigrando de si para esse lado de eternidade. N’O último vôo do flamingo, sentados na berma do desfiladeiro, os personagens fazem da folha em que escreviam um pássaro de papel. E lançam essa fingida ave sobre o último abismo, reinvestindo na palavra o mágico reinício de tudo. A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos que tento a ilusão de uma costura. É uma escrita que aspira ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de quando em quando, sonhar o vôo da asa rubra. É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores da miséria. Mas é aquela que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver. Lembro, a fechar, as palavras do feiticeiro Zeca Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós” Outro depoimento O livro (O Último Vôo do Flamingo) aconteceu a partir de um conjunto de vivências pessoais e de relatos que fui recolhendo. Enquanto biólogo visitei zonas de guerra ... Na véspera de uma saída eu me dirigia à sede da ONUMOZ e falava com os motoristas que tinham circulado pelas zonas rurais. Certa vez, eu os surpreendi falando entre eles assim: “então lá explodiu mais um?”. O meu ouvido ficou alerta. Se havia uma explosão era certamente uma mina. Daquela feita, não era. Eram explosões que aconteciam por encomenda de feitiço na região do Chokwé. Os homens solicitavam esse serviço aos feiticeiros para se defenderem contra os militares que tentavam seduzir as suas esposas. Isso me fez despoletar o pretexto que desencadeia o livro ( Mia Couto –o Último vôo do flamingo – Sou um poeta que conta estórias ) ( O feitiço fazia que, em pleno ato sexual, quando no clímax, os militares explodissem e deles nada ficasse.) O romance visto pela crítica “ O último vôo do Flamingo é um romance em que pulsa uma grande força humanista: depois da guerra de Independência e dos anos de guerrilha, Moçambique vive um momento de reestruturação social e política. “O autor sabe como ninguém manejar seu discurso literário ora fantástico, ora poético, ora divertido e irônico.” (Vozes da África: Água, Rio e Mar, publicada em 28/03/2005) Enfim, a obra redimensiona o olhar sobre Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, recém-saído de três décadas de guerra civil fratricida, que matou ao menos 16 milhões de pessoas nesse período (em 2000, quando o livro foi publicado, comemoravam-se os 25 anos de independência de Moçambique) (O último vôo do flamingo – Mia Couto) ANÁLISE DO ROMANCE Na INTRODUÇÃO do romance, o narrador se apresenta: Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo parecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz. Chegaram com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias. Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos. Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sobra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas. (Assinado: O tradutor de Tizangara) ( p.9 -10) ANÁLISE DO ROMANCE O Fato Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos. Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sobra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas. MARCAS DA ORALIDADE NA NARRATIVA Diz o narrador: “Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos”. Atente para: “ ouvi confissões”. O romance é dedicado” a Joana Tembe e João Joãoquinho que me contaram estórias como quem rezava”. Em “Sou um poeta que conta estórias”, Mia Couto afirma: “Joana Tembe ... me sugeriu a idéia de um país que os deuses levavam para os céus por não estar a comportar-se. A idéia de uma nação ser suspensa da sua existência, foi-me entregue por essa idosa senhora – hoje já falecida – que olhava o mundo com olhos de criança.” O próprio Mia Couto nos diz: “O livro (O Último Vôo do Flamingo) aconteceu a partir de um conjunto de vivências pessoais e de relatos que fui recolhendo.” “Entendi como alguns dos velhos pescadores eram detentores de sabedoria vitais e aprendi a aprender dessa fonte de conhecimento. O que eles sabiam era, naquele momento, muito mais precioso do que eu podia imaginar.” A metáfora dos flamingos, tradição local, o autor a ouviu dos pescadores de “uma praia do Sul de Moçambique” A presença dos provérbios, aforismos, ditos populares –apenas citados ou desconstruídos, ou criados - é outra marca da oralidade. Cada capítulo começa com um deles. Vários outros são falados pelos personagens. Eis alguns exemplos: “Os amantes fazem-se lembrar pela lágrima. Os esquecidos fazem-se lembrar pelo sangue” (Dito de Tizangara p.11). “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” (dito de Tizangara, p.13) “contra fatos tudo são argumentos” (15) “Quando o silencio clareia, é que se escutam os escuros presságios.” (p. 16) “O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo”. (17) “Os anjos é que vêem o que não se passa.” (17). “Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios” (p.17) “Cabrito come onde está amarrado.” (p. 18) “Mas nós éramos africanos, de carne e alma” (19), “O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois.” (p.21) “Saudade de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo” (p. 33) “Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece.” (p. 35) “Uns sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver. Outros não sabem e acreditam. Esses não vêem mais que um cego Provérbio de Tizangara (p. 55) “O macaco ficou maluco de espreitar por trás de espelho”. Provérbio (p.89) “Casas juntas, ardem juntas” (p. 96) “O cão lambe as feridas? Ou é já a morte,por via da chaga, Que beija o cachorro na boca?”– Dito de Tizingara (p.97) “A verdade tem perna comprida e pisa por caminhos mentirosos” (p.105) “Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados”. Crença de Tizangara (p.107) “As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”. Provérbio africano. (p. 117) “A vida é um beijo doce em boca amarga”. Depoimento do feiticeiro. (p. 141) “É o cão vadio que encontra o velho osso”. Provérbio (p. 149) “Quem voa depois da morte? É a folha da árvore.” Dito de Tizangara. (p.157) “A urina de um homem sempre cai perto dele”. Provérbio (p 165) “Amor com amor se apaga.”(p. 168) “A cinza voa, mas o fogo é que tem asa”. Dito de Tizangara (p. 201) “Do que me lembro jamais eu falo. Só me dá saudade o que nunca recordo. Do que vale ter memória se o que mais vivi é o que nunca se passou? Fala de Sulplício (p.209) TEMPO NARRATIVO Diz o narrador: “Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo parecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz. Chegaram com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias.” Lembre: 1975 – Moçambique consegue sua Independência 1976 – 1992 – Moçambique vive uma longa Guerra Civil O tempo narrativo é, pois, logo após a assinatura do acordo de paz em 1992, quando soldados das Nações Unidas vão acompanhar o processo de paz e o processo de desminagem. Os capacetes azuis – como eram chamados os soldados da ONU – tinham vindo trabalhar, no pós-guerra, na desminagem do país. Os fatos são narrados como já ocorridos. No romance, o narrador vai denunciar a corrupção dos governantes em todo o processo de desminagem. Em recente entrevista à ISTO É, Mia Couto afirmou: “A desminagem é um negócio. Muitas vezes as próprias empresas produtoras de minas fazem a desminagem, e ela custa mais caro ao país do que comprar minas”. E critica: “Estranho é os países que falam em nome dos direitos humanos e que se arvoram como grandes defensores de uma certa humanidade contra o terrorismo, se recusarem a assinar os protocolos contra a fabricação de minas” (ISTO É . 26/9/2007. p.11) No romance, nas páginas 194 e 196, o “negócio” das minas é denunciado. Diz o pe. Muhando: “ Parte das minas que se retiravam regressava, depois, ao mesmo chão. Em Tizangara tudo se misturava: a guerra dos negócios e os negócios da guerra. No final da guerra restavam minas, sim. Umas tantas. Todavia não era coisa que fizesse prolongar tanto os projetos de desminagem. O dinheiro desviado desses projetos era uma fonte de receita que os senhores locais não podiam dispensar. Foi o enteado do administrador quem urdiu a idéia... Plantavam-se e desplantavamse minas. Umas mortes à mistura até calhavam para dar mais crédito ao plano. Mas era gente anônima, no interior de uma nação africana que mal sustenta seu nome no mundo. ... Terem explodido estrangeiros foi o que desmontou o esquema. A verdade das minas pedia prova de sangue. Mas sangue nacional. Nada de hemorragias transfronteiricas”. (p.196)a AMBIENTE “Eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara”. Tizangara, vila imaginária, é uma metonímia de Moçambique. “A atmosfera de Tizangara é envolta em verdade e ficção, realidade e magia, natureza e sobrenatural, o mundo dos vivos e dos mortos; e um presente que balança entre a força dos antepassados e a ausência de futuro.” REALISMO MÁGICO, ANIMISTA, FANTÁSTICO O onírico e mágico. É frágil a fronteira entre realidade e magia: “não obedece aos padrões da racionalidade européia. O povo moçambicano vê o universo mítico como um suplemento ao mundo concreto onde residem as lendas, os sacerdotes, os antepassados.O europeu não compreende o “fantástico africano” e todo esse universo lhe causa um estranhamento. b) “O poder dos antepassados, a vida dos mortos e a força da natureza voltam a ter um papel principal em mais este livro do autor moçambicano. O lado oculto e invisível tem mais força do que a realidade concreta que Massimo Risi procura”. c) Alguns exemplos Temporina (atenção ao nome da personagem) – rosto de velha (“castigo dos espíritos, porque se passaram os tempos sem que nenhum homem provasse de sua carne” (p. 62), corpo de moça que, em “flagrante de amor, juvenescia” (p.68). Temporina tem um irmão, “o moço tonto”. Hortênsia, tia de Temporina que, após morta, aparece em forma de louva-a-deus. E, mesmo morta, todas as manhã, faz o prato de seu sobrinho. Estevão Jonas cujas mãos , quando tocam em mulher, aquecem até ficarem como “carvão aceso”. Houve vezes até que pegaram fogo e eu fui obrigado a parar o ato. Sulplício – pai do tradutor-narrador – que, ao dormir, pendura os próprios ossos. Feitiços (os likahos) – por exemplo o da formiga – o enfeitiçado emagrece até ficar do tamanho de formiga. Mãe do tradutor que, após morta, reaparece e dialoga com o filho. A própria forma como o tradutor é concebido e como nasce. Final “mitopoético” da narrativa ”Uma terra engolida pela Terra”. (COMPARAR COM O FINAL DE VIVA O POVO BRASILEIRO) ... ”desataram acontecer coisas que ninguém pode acreditar. Por exemplo, a semana passada um burro-macho deu parto a uma criança. E ainda mais estranho: a criança vinha calçada de botas militares. Foi um choque muitíssimo enorme. O jornalista local da rádio, o radiofonista, até que dá vergonha em termos de civilização e da democracia. Para não falar do prestígio das gloriosas forças armadas. Pág. 169 Diante desses acontecimentos, resta ao italiano Massimo Risi, entre uma perplexidade e outra, temer pela veracidade do relatório que terá de entregar a seus superiores (“na capital, a sede da missão da ONU espera por notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes”). Por isso diz o italiano ao tradutor: “Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse mundo daqui”. “Crime maior, denunciado no romance, é a imensa destruição das tradições moçambicanas”. Por isso, a revolta dos antepassados. “As palavras de meu pai, diz o narrador, me surgiam com um peso: os nossos antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem. (p. 208) ESTRUTURA NARRATIVA Veja como o narrador se posiciona diante dos fatos a serem narrados. Atente para os trechos que grifamos: “Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.” Narração em primeira pessoa. O Narrador é o tradutor que é também personagem e que, inclusive, tem pai e mãe também como personagens. A escrita como uma catarse: preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.” Subjetivação e transcendência da história – no romance, misturam-se realidade e ficção. Há uma subjetivação e transcendência da História. O autor, através das palavras do tradutor-narrador e de outros personagens, intervém criticamente na forma de narrar e comentar os fatos. Postura irreverente, humor sarcástico. A postura irreverente, o humor sarcástico e mordaz do autor se revelam já nas primeiras linhas do romance, quando, ao falar da explosão do sexto soldado da ONU, relata-a dizendo: “Nu e cru, eis o facto: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da Vila de Tizangara.”. E “uma roda de gente se engordou em redor da coisa”: as autoridades locais, as autoridades da ONU, o investigador, o tradutor-narrador, os curiosos;”. Para identificar “o todo pela parte”, chamam Ana Deusqueira, a prostituta local, “a mais competente conhecedora dos machos locais” (o homem pelo pênis), que garante não pertencer “a nenhum dos homens locais” e, “pelo tamanho daquele resto, percebia-se que o homem era do sexo maisculino” (atenção à grafia de “maisculino”). Esse tradutor é o narrador dos fatos, relatados no romance como já ocorridos. (Revista Ateliê – A Revista do Colégio Módulo, p. 48.) LINGUAGEM “Fui eu que transcrevi, em português visível... “Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram.” No relato das “sucedências” são muitas as palavras criadas ou usadas de forma metafórica. É o encantamento da linguagem”. Mia Couto é, de fato, “o escritor da crioulidade.” Veja alguns exemplos: “Uma roda de gente se engordou em redor da coisa” ... “Aquilo não era o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. (p. 15)... “cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas , instantaneavam-se ordens” (p. 15) A gentania se agitava, bazarinhando. Coitado , o gajo ficou manco central (o homem perdera o pênis) .(p. 15). “E logo-logo a multidão se irresponsabilizou.” “E desfalavam”. “Se emborem, pá!” (p. 16) Em vários momentos, o narrador usa o verbo “desconseguia” Um dos bonés de soldado das Nações Unidas pendurado num galho, “balançava na vontade das brisas.”, plenamente só no meio das aragens” (p. 16) Meu destino se haveria de labirintoar. O administrador “enrugava a voz” (p. 18) A vila se formigava em roda vivente”(p. 23) O Administrador “peito mais arredondado que o pombo em arrasto de asa ... emperuado.”(p. 23) O representante do governo central “metafisicou hipótese”(p. 26) “Eu seguia as ordens, acachorrado com ele... “eu languçava a cena de longe.” “Eu e o italiano nos compadreávamos, adjuntando nossos ouvidos” (p. 39) “Primeiro, inacreditei “Viajara mais lembranças que quilômetros.”... “Vinha quase sem mim, parecia um desqualquerficado.” (p. 52) “os ngnomos tinham barulhado toda a noite, num pãodemônio..tão pertíssimo? (p. 74) No distrito “só se ouvem estórias, contadeirices, o povo zunzunando sobre as explosões” (p. 95) “triste dicências” ( 167 ) , Calabouço-a ..Estou a ponto de panicar”(p. 168) O gravador é “máquina que fotografa as vozes” (p. 185) Veja as denominações que o narrador usa para o pênis e os testículos: sexo avultado e avulso, coisa (p. 15) apêndice órfão (p. 16), caso do sexo decepado” (p. 18), “aquilo” (p. 20), “coisa desfalecida” (p. 20), sexo masculino, ainda para mais jazendo em paz” (p. 25) , anônimo sexo” (p. 26), “dito apêndice” (p. 26), um órgão ou organismo?” (p. 26) órgão díspar e ímpar” (p. 26) , parte (p. 27) restos (p. 29) polêmico achado (p. 29), “órgão desfigurado”, verme flácido, hífen carnal (p. 29), daquele resto (p. 32) sexo masculino (p. 32) órgão de macho (p. 92) sexo voador (p. 92), pendurico (p. 92), trombiricalho (p. 93) partes (p. 93) badalões (p. 123) mbolos (p. 123), aquilos (p. 123), “minhas dependências” (p. 151) “pila” (p. 151, 154) “pichotas” (p. 154),tomates ( = testículos ) (p. 155) O homem que perdeu o pênis ficou ‘manco central” (p. 15) é um homem despilado (p.151) Ao longo deste trabalho, outros exemplos da criatividade do autor serão evidenciados. Colocaremos sempre em destaque as palavras criadas ou usadas de forma original. SUBJETIVAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA DA HISTÓRIA Há uma subjetivação e transcendência da História. A partir de fatos históricos que ocorreram na década de 1990, a narrativa, unindo realidade e ficção, verdade e magia, transcende os fatos em si, se projeta numa dimensão atemporal, em que passado, presente e futuro se fundem na definição e busca de uma identidade moçambicana. O autor, através das palavras do tradutor-narrador e de outros personagens, intervém criticamente na forma de narrar e comentar os fatos. A POLIFONIA NARRATIVA E CRÍTICA EM O ÚLTIMO VÔO DO FLAMINGO A leitura atenta do romance evidencia uma série de aspectos relevantes que merecem uma análise mais acurada: a oralidade, que está na raiz mesma da obra; o realismo fantástico, mágico, animista, definido como algo essencial à cultura africana, não como simples estilo literário; a linguagem, expressão da força inventiva do autor, na criação de palavras, na ressignificação de palavras já existentes, nas originais metáforas, nas transgressões das normas gramaticais; o humor irreverente, crítico, mordaz, caricatural, que se manifesta na linguagem e nos próprios fatos narrados. A POLIFONIA NARRATIVA O narrador se coloca apenas como alguém que apenas “transcreve” as “falas” de “vozes”, diz ele, que “não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo”. Define-se aí o caráter polifônico da narrativa. São várias vozes que “falam” sobre os mesmos fatos. Podemos classificar essas vozes: A voz estrangeira – a voz do italiano Massimo Risi, enviado pela ONU para buscar a explicação das explosões de seus soldados. É a “voz de fora”. As autoridades lhe dão um Tradutor, que o acompanha em todo o processo de investigação. Massimo se confronta com um mundo mágico que ele não consegue compreender. Os depoimentos e falas que ouve o confundem ainda mais. E ele termina dizendo ao tradutor: “Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse mundo daqui”. Aceitara a missão, objetivando alcançar uma promoção. Mas confessa que “na capital, a sede da missão da ONU espera por notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes”. Entre essas “estórias delirantes”, está a de seu envolvimento com Temporina, a velha, “talvez a mais idosa que ele jamais vira”, que, “em flagrante de amor juvenescia”, mas “corpo de moça polpuda e convidativa”. Temporina era uma “enfeitiçada.”. As relações sexuais que ele tem com Temporina quase sempre se passam em clima de encantamento. Massimo não tem consciência de que elas ocorreram. Apenas tem evidências de que aconteceram: sente-se “despertar suado e sujo”, o hospedeiro lhe diz: “eu ouvi tudo”, vestes deixadas por Temporina em seu quarto etc. As vozes locais – “versões dos fatos ou sonhos ou lembranças essenciais”, comprometimentos, crenças e saberes, vôos sobre tempo dos acontecimentos e o tempo da memória”. I – As vozes do presente narrativo, as vozes dos vivos, que: a) ora se apresentam comprometidas com “a mão exploradora de fora”, daí a corrupção e a busca do enriquecimento pessoal – é o caso do administrador Estêvão Jonas. Revolucionário antes da Independência, tornara-se o Administrador corrupto de Tizangara. Dele diz o narrador: “o hoje comeu o ontem”, “sua vida esqueceu-se da palavra”. É a voz das elites moçambicanas, “a mão conivente de dentro”. b) ora se mostram com uma visão crítica contra essa “mão exploradora de fora” e contra “a mão conivente de dentro”. São as vozes do Pai (Sulplício) e da Mãe (sem nome no romance) do Tradutor, de Zeca Andorinho, que simbolizam as raízes locais. Têm uma visão crítica da realidade política de Tizangara. Denunciam a presença das forças externas, o “desgoverno” e a corrupção das elites locais. Têm uma atuação destacada no final da história. c) A voz religiosa – pe. Muhando – que critica não só a realidade, mas também o próprio Deus, quando Ele se “descomporta”, por exemplo quando uma criança morre. Ele denuncia o processo de desminagem, o que veremos adiante. d) A voz mágica – Hortênsia – Temporina. Hortênsia era a última neta dos fundadores da vila. É tia de Temporina. Está morta, mas aparece sempre como um louva-a-deus. Hortênsia e Temporina encarnam a visão mágica da cultura africana. Temporina diz ao italiano: em Tizangara não há dois mundos: o dos vivos e o dos mortos. Os vivos e os mortos partilham da mesma casa. e) A voz humana – Ana Deusqueira, a prostituta local. Ana Deusqueira, a “a mais competente conhecedora dos machos locais...” a má-vidista, mulher de “pronto pagamento”, voz carnal, incendiadora como bebida de afugentar razão”, tem um enorme saber das relações humanas e sociais. e.1) Os saberes de Ana Ana diz que há ex-ministro, ex-enfermeira, mas “Uma puta nunca é ex... A putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca.” Quem conhece a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede. Mais ninguém... Este mundo tem mais dentes que bocas. É mais fácil morder que beijar/” ... por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade. “O capim, não parece, mas dá flor. Só não vê quem está longe. “Estes poderosos de Tizangara têm medo de suas próprias pequenidades. Estão cercados, em seu desejo de serem ricos... São perseguidos pelos pobres de dentro, desrespeitados pelos ricos de fora. Tenho pena deles, coitados, sempre moleques”. e.2) As revelações de Ana Sobre os soldados estrangeiros que explodiram, diz ela: “Não é que pisam em mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos... Nós temos poderes, o senhor sabe. Ou já esqueceu as forças da terra?... E fala do soldado zambiano que chegou ao bar, “arrotando presença. ...Não gostamos, sabe, esses ares de dono. Só fingimos simpatias... Nessa bebida, eu vi, alguém juntou uns pós tratados, feitiços desses, nossos... Obra dos homens, ciumeiras deles que não querem ver mexidas as mulheres da terra. ... Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino dele. Lhe acompanhei sem pena.”. “Agora, vou só lhe contar como sucedeu naquela noite com o zambiano..., esse soldado me visitou sem nenhumas maneiras. O homem nem perdeu tempo com beijo. Você sabe como é a minha gente. Me subiu assim, sem preparo, mais salivoso que cachorro. E ali se serviu, todo por cima de mim, completamente nu, exceto a boina na cabeça..., ia gemendo, arfalhubo. Suspiros e gemidos iam crescendo..., eu já aliviada por ver a coisa a terminar. Foi nesse instante: o tipo rebentou-se, todo estampifado. Me assustei, quase de morrer... Eu já tinha ouvido falar disso, dos estrangeiros explodirem quando montam nas meninas. Porém, nunca tinha acontecido comigo, nunca... Aquele vivente se tinha espatifurado sem vestígio”. II – As vozes dos antepassados que criticam “a mão conivente de dentro”, as elites moçambicanas. Reação dos antepassados contra “os de dentro”. A voz dos Antepassados se manifesta através: a) De Estêvão Jonas, o Administrador de Tizangara, que, em um de seus relatórios, narra o diálogo que teve com os heróis do passado: “– Que estão fazendo, meus heróis? – Você não pediu que expulsássemos os opressores? – Sim, pedi. – Pois então estamos expulsando a si. – A mim!? – A si e aos outros que abusam do Poder.” (p. 168 ) b) do Pai do Tradutor e Zeca Andorinho. c) O “Crime maior, denunciado no romance, é a destruição das tradições moçambicanas”. Por isso, a revolta dos antepassados. “As palavras de meu pai, diz o tradutor, me surgiam com um peso: os nossos antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem.” d) O final mitopoético: “o desaparecimento total do país.” – Isso é obra dos antepassados... ... – os antepassados não estavam satisfeitos com os andamentos do país. Esse era o triste julgamento dos mortos sobre o estado dos vivos. Já acontecera com outras terras de África. Entregara-se o destino dessas nações a ambiciosos que governaram como hienas, pensando apenas em engordar rápido. Contra esses desgovernantes se tinha experimentado o inatentável: ossinhos mágicos, sangue de cabrito, fumos de presságio. Beijaram-se as pedras, rezou-se aos santos. Tudo fora em vão: não havia melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito nos outros homens. Vendo que solução não havia, os deuses decidiram transportar aqueles países para esses céus que ficam no fundo da terra...cada país ficaria em suspenso, à espera de um tempo favorável para regressar ao seu próprio chão. Aqueles territórios poderiam então ser nações, onde se espeta uma sonhada bandeira. Até lá era o vazio do nada,... (p. 216-217) Abre-se um imenso buraco e, nele, desaparece toda a nação. “os deuses quiseram enterrar os demônios que engordavam na nossa terra. Mas eram tantos que tiveram que cavar fundo, mais fundo que o próprio mundo.”. III - A voz solidária: A solidariedade da esperança dos sobreviventes: a voz de fora, a voz estrangeira se irmana à voz local do tradutor. Massimo e o Tradutor, à margem do abismo, vêem chegar uma canoa e nela partir o Pai do tradutor, como o último vôo do flamingo. E o italiano exclama: Esperar por outro barco – e, após uma pausa, se corrigiu: – Esperar por outro vôo do flamingo. Há-de vir um outro. Com esmero, o italiano faz um pássaro da folha do relatório que acabara de escrever. Lança-o sobre o abismo. Diz o narrador: Massimo sorria, em rito de infância. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão nascido na mesma terra. Há-de vir um outro – repetiu. ... a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último vôo do flamingo”. Na tradição local, os Flamingos eram “os eternos anun-ciadores de esperança”. (p. 220) O tradutor e o italiano, como únicos sobreviventes, se irmanam. Mas não têm a força da ação. Apenas esperam um outro vôo de flamingo, anunciando um novo tempo. A CRÍTICA POLÍTICA I) “A mão exploradora de fora e a mão conivente de dentro” a) Não é a paz que lhe interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime desse mundo... O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história... A aposta dos poderosos (os de fora e os de dentro) era uma só: provar que só colonizados podíamos ser governados. (Fala de Suplício, pai do Tra-dutor). b) Uma das hienas lhe respondeu assim: – É que nós roubamos e reroubamos. Roubamos o Estado, roubamos o país até sobrarem só os ossos. – Depois de roermos tudo, regurgitamos e voltamos a comer – disse outra hiena. (Metáfora de Zeca Andorinho, quando fala da mão exploradora de fora e da mão conivente de dentro.”). II) o processo de desminagem “Parte das minas que se retiravam regressava, depois, ao mesmo chão. Em Tizangara tudo se misturava: a guerra dos negócios e os negócios da guerra. No final da guerra restavam minas, sim. Umas tantas. Todavia não era coisa que fizesse prolongar tanto os projetos de desminagem. O dinheiro desviado desses projetos era uma fonte de receita que os senhores locais não podiam dispensar. Foi o enteado do administrador quem urdiu a idéia... Plantavam-se e desplan-tavam-se minas. Umas mortes à mistura até calhavam para dar mais crédito ao plano. Mas era gente anônima, no interior de uma nação africana que mal sustenta seu nome no mundo. ...Terem explodido estrangeiros foi o que desmontou o esquema. A verdade das minas pedia prova de sangue. Mas sangue nacional. Nada de hemorragias transfronteiriças.” (Fala de Pe. Muhando) III) Racismo O padre Muhando já falara contra esse preconceito. O pensamento do sacerdote ia direito no assunto: mulatos, não somos todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria reconhecer amulatado. Porque o ser negro – ter aquela raça – nos tinha sido passado como nossa única riqueza. E alguns de nós fabricavam sua identidade nesse ilusório espelho”. IV) Moçambique e a ajuda do capital internacional Estêvão Jonas, em um de seus relatórios, fala da mudança de orientação. Na “era antigamente”, “tínhamos orientações superiores: não podíamos mostrar a Nação a mendigar, o País com os ossos de fora. Na véspera de cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza. Porém, com os donativos da comunidade internacional... a situação era muito contrária. Era preciso mostrar a população com a sua fome, com suas doenças contaminosas... a nossa miséria está render bem. Para viver num país de pedintes, é preciso arregaçar as feridas, colocar à mostra ossos salientes dos meninos.”. “Essa é actual palavra de ordem: juntar os destroços, facilitar a visão do desastre. Estrangeiro de fora ou da capital deve poder apreciar toda aquela coitadeza sem despender grandes suores.” V) “O hoje comeu o ontem” “Não tínhamos entendido a guerra, não entendíamos a paz. ...“Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros... Na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial... Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embe-bedavam sem respeito. ...Os novos ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos.” ...Eu já não tinha crença para converter minha terra num lugar bem assombrado... A terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências que chamamos ternura...” (Palavras do tradutor-narrador) Nada é nosso nos dias de agora. Chega um desses estrangeiros, nacional ou de fora, e nos arranca tudo de vez. Até o chão nos arrancam... Não confianço em ninguém.” (Fala de Zeca Andorinho.) VI) Aspectos humanos universais A presença dos provérbios, aforismos, ditos populares apenas citados ou desconstruídos, ou criados – é outra marca da oralidade. Cada capítulo começa com um deles. Vários outros são falados pelos personagens. Muitos desses provérbios e aforismos nos transmitem verdades humanas universais. É o tema local sendo universalizado. Eis alguns exemplos: “Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios”. “O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois”. “As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”. “A urina de um homem sempre cai perto dele”. “Amor com amor se apaga”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quer seja pela linguagem, quer seja pela presença da oralidade, quer seja pelo realismo mágico, quer pelas vozes que falam através do tradutor-narrador, quer ainda pelo posicionamento crítico, o sentido maior do romance é a busca de definir a identidade moçambicana. É uma identidade plural, formada ao longo de todo o processo histórico, por isso as várias vozes que falam no romance; as vozes do presente narrativo e as vozes dos antepassados. É importante perceber o sentido simbólico do personagem-narrador: ele é o TRADUTOR, aquele que, em última análise, “traduz” para nós, leitores, a essência mesma da cultura moçambicana e a certeza de que, como diz Zeca Andorinho: “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.” (Perceba a força expressiva dos advérbios “agora”, “ainda” e “só”.) Observe a esperança que está implícita nos advérbios “agora” e “ainda” e a convicção de que a identidade moçambicana, a solução dos problemas sócio-econômicos-políticos, em síntese, “esse sol” de um novo tempo “só pode nascer” dos próprios moçambicanos, comprometidos com suas raízes, não com a “mão exploradora de fora”. REFERÊNCIA: COUTO, Mia. O último vôo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (Revista Ateliê – A Revista do Colégio Módulo, p. 49-56.)