1 Título: Corpo, sofrimento e verdade como falha epistemo-somática Autora: Márcia Cristina Maesso, psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, pós-doutoranda pelo Departamento de Psicologia Clínica e Cultura da UnB. Co-autora: Daniela Sheinkman Chatelard, professora titular do departamento de Psicologia Clínica e Cultura da UnB. Endereço: Quadra 104, lote 9/11/12, Edifício Villeneuve, Bloco B1, Apto 903 - Águas Claras – Brasília – DF – CEP: 71909-180 Tels: (61) 3381-4457 / (61)8238-8844 / (11)9987-6506 e-mail: [email protected] Resumo: O corpo tratado na psicanálise difere do corpo-organismo da medicina, desde Freud, até Lacan. Os conceitos de trauma e de trieb cunhados por Freud consideram o desamparo e o sofrimento humano diante da sexualidade, a construção de Lacan sobre o objeto a envolve o desejo e o gozo, ofertando-nos ferramentas que permitem conceber o corpo a partir da ética orientada pelo real. Dos diagnósticos médicos resultam tratamentos direcionados a aplacar e silenciar o sofrimento que incide no corpo, mas esse empenho nem sempre é bem sucedido. A verdade formulada em sofrimento no corpo, não se entrega a uma lesão correspondente, ou às evidências do seu agente causador e mesmo invadindo as suas entranhas, o corpo testemunha o que Lacan nomeou como falha epistemo-somática. Em tempos de ditadura científica e invenções químicas maravilhosas, cabe à psicanálise participar dessa discussão propondo outra psicopatologia e outro tratamento à questão do sofrimento corporal, considerando-o em relação ao desejo e gozo do sujeito. Palavras-chave: corpo; sofrimento; verdade; clínica psicanalítica 2 Texto Completo: O discurso funda e define a realidade, foi o que Lacan considerou em seu seminário intitulado Mais, ainda, como também que o princípio da psicanálise, tanto na acepção de momento inicial quanto na de fundamentação do campo, se situa a partir do acolhimento do efeito do significante no discurso, para fazê-lo girar (Lacan, 1972-1973/1985, pp. 45-57). O momento da criação da psicanálise, foi marcado pela escuta da fala e pela escrita dos casos, meios pelos quais Freud já considerava o que estava para se escrever a partir das formações inconscientes, embora isso lhe parecesse estranho. Tomemos o que Freud formulou nos Estudos sobre a histeria, quando estava abrindo o caminho da psicanálise: “... ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca de seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não qualquer preferência minha. A verdade é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a parte alguma no estudo da histeria, ao passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos escritores imaginativos, me permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa afecção” (Freud,1893-1895/1990, p. 172). Com a aproximação do trabalho de escrita dos casos clínicos à atividade do escritor literário, Freud constituiu um meio de colocar as enigmáticas manifestações corporais da histeria na série de significantes, na ordem da linguagem e do dizer, sem marcar o sintoma com o selo da cientificidade que o transforma em signo de uma doença. Podemos ler o desdobramento do questionamento de Freud sobre a “falta de seriedade científica” na escrita do caso clínico, no seu artigo Escritores criativos e devaneios (1908[1907]/1990), no qual ele formula que “a antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real” brincando ele próprio muito seriamente ao fazer a série que associa a palavra alemã spiel (peça, jogo) a outras palavras como lustspiel e trauerspiel significando respectivamente comédia e tragédia, mas literalmente “brincadeira 3 prazerosa” e “brincadeira lutuosa”, para dizer o quanto a criação poética aproxima-se da brincadeira infantil ao tocar o real pelo simbólico e pelo imaginário, sem esgotá-lo (pp. 149150). Com a articulação da palavra na cadeia associativa é possível deslocar-lhe o sentido e abrir passagem para novas interpretações. Lacan soube bem o que fazer com esse ensinamento de Freud, propondo a interpretação na psicanálise através do jogo com o equívoco e fora do sentido, concepção que perpassa sua obra de diversos modos. Do escrito lacaniano A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (Lacan, 1957/1998), detacamos que não se encontra a significação do que o sujeito formula através do seu sintoma, substituindo-o pelo significado, mas é na “substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação” (p. 519). A psicanálise se aproxima da literatura, “os caminhos são sempre e renovadamente abertos” (Allouch, 1994) numa sequência consecutiva de significantes que definem o campo psicanalítico como um texto caracterizado por ser aberto indefinidamente nas entrelinhas, ao reportar-se à práxis e ao real que a experiência clínica suscita. Freud fundou um campo de investigação e tratamento realizando uma leitura sobre o sintoma histérico manifesto no corpo em relação à sexualidade e ao trauma. Com isso posicionou o sintoma na ordem significante, distinguindo-o da leitura proposta no interior do discurso médico, no qual o sintoma transformado em signo contava com a presença do significado no sistema simbólico constituído pela linguagem científica, correlacionando-o à lesão ou disfunção orgânica. A revolução freudiana concerne à instauração de um discurso que permite o deslocamento do sintoma: O sintoma histérico, na psicanálise é um significante, que representa o sujeito para outro significante, o do trauma. O discurso psicanalítico se fundamenta na ética orientada pelo real e não pelo ideal científico, fundando e definindo o corpo a partir da linguagem que o retira do centro de um gozo ilimitado, gozo que nunca houve, embora almeja-se reencontrá-lo, gozo que pode ser equiparado ao que Freud considerou a partir do conceito de Das Ding, “A Coisa” situada como o que está antes de qualquer simbolização (Lacan, 1959-1960/1997). Se há interdição do gozo no corpo 4 pela linguagem que faz a função de matar “A Coisa”, há também impossibilidade de tudo dizer, há “inter-dicção” ou seja, entre os modos de dizer, entre os ditos, há uma forma de gozo que escapa à captura pelo simbólico posto na linguagem. Que seja com o corpo que se goza a psicanálise não nega nem exclui, por situar-se em referência a um discurso que difere fundamentalmente da ordem do discurso científico em diversos aspectos, dos quais destaca-se o tratamento das questões do corpo. Do corpo concebido pela ciência médica, exclui-se a dimensão do gozo, do que o corpo diz-fazendo-menção ao gozo suposto e perdido, por meio de fenômenos somáticos (Lacan, 1966/2001). Lacan (p. 32) situou os fenômenos corporais que são considerados e nomeados pela medicina como psicossomáticos, a partir de uma falha “epistemo-somática”. Ao Criar esse termo “epistemo-somática” e colocá-lo articulado a uma falha, Lacan alude ao fracasso do progresso científico em relação ao saber sobre o corpo, na medida em que exclui a dimensão do gozo dessa relação. A falha epistemo-somática refere-se ao alcance impossível do conhecimento absoluto, almejado pelo ideal científico, acerca dos enigmas apresentados pelo corpo. Ideal a ser atingido através de “uma língua bem feita” que permita a realização de uma “leitura exaustiva sem obscuridade ou resíduo”, na qual “todas as manifestações patológicas falariam uma linguagem clara e ordenada” capaz de transformar todos os sintomas em signos (Foucault, 1998, p. 104). A falha epistemo-somática refere-se também à recusa de saber sobre o que o sujeito por meio do corpo vem pedir à medicina, que é a restituição do gozo. A clínica médica busca o saber e a verdade sobre a doença, de modo que a verdade “toma corpo” ao ser construída por meio da observação, catalogação, classificação, descrição do fenômeno patológico e sua repetição, ou seja, ações que permitem reunir elementos para formar um quadro que funcione como referência, como “chave de linguagem”, para reconhecer e nomear os sintomas da doença apresentados pelos corpos dos pacientes. As técnicas elaboradas para conhecer o fenômeno patológico foram aprimoradas no decurso da história da medicina, concretizando cada vez mais a possibilidade de torná-lo visível pela verificação na anatomia de cadáveres e com o avanço tecnológico, a partir de exames de imagens (Foucault, 1998). 5 Mesmo com tantos e sofisticados recursos não é possível encontrar o gozo no corpo do paciente depois de vasculhá-lho, esquadrinhá-lo e invadir suas entranhas com tecnologia. A verdade formulada em sofrimento no corpo, não se entrega a uma lesão correspondente, ou às evidências do seu agente causador, testemunhando a falha epistemo-somática. A carne se torna corpo por meio da linguagem que inter-dita o gozo de Das Ding e com o impedimento do acesso ao gozo também engendra o sujeito do desejo que se articula na linguagem na busca de sua breve satisfação, que é tudo o quanto pode conseguir em relação a um significante qualquer ligado ao “objeto a” (objeto perdido desde sempre) que sustenta a causa do desejo na constituição da fantasia ($ ˂˃ a), pela qual pode apenas contornar o objeto desejado, sem jamais atingí-lo. Entretanto, a barreira posta pelo muro da linguagem não é suficiente para aplacar e silenciar o sofrimento decorrente da impossibilidade de completar-se junto ao objeto a causador de desejo. É importante considerar que o “sofrimento é sempre também espera do reencontro com o objeto a” como esperança de algo ou alguém que possa assegurar o gozo do corpo (Clavreul, 1983, p. 156). Lacan (1966/2001) abrange a questão do sofrimento e da demanda de restituição do gozo formulada ao Outro, posto no lugar do médico, a partir dos fenômenos somáticos. Ele adverte aos médicos sobre a demanda formulada em função do atravessamento do discurso científico, posicionando o médico como intermediário entre o paciente e o produto da ciência. Na medida em que ocorre a divulgação ao público dos esforços da Ciência na busca de resposta à demanda pela restituição da saúde e bem-estar, com o apoio das maravilhosas invenções dos tempos atuais, das substâncias químicas e dos objetos tecnológicos, a demanda que o paciente formula ao médico, se dirige a requerer o benefício das tais invenções. Escutamos com Lacan que a dimensão do gozo excluída da relação da medicina com o corpo, retorna sob a forma de gozo dos produtos e drogas que a Ciência em função da organização industrial vem oferecer. O dicurso da Ciência que sustenta a clínica médica, não acolhe a fantasia ($ ˂˃ a), a paixão e o sofrimento (pathos), ou o desejo do paciente, todos são apagados e transformados 6 pelo diagnóstico em fenômenos patológicos, tampouco a subjetividade do médico é considerada pelo imperativo de uma deontologia que visa garantir a razão. As lágrimas turbam a visão e o olhar é o órgão dos sentidos que permite ao médico assegurar o valor científico, objetivo de seu trabalho. (...). Ele sabe que seu amor faz com que perca o sangue frio, seu olhar frio, a distância que deve conservar em relação aos seus doentes (Clavreul, 1983, p. 102). Fazer diagnóstico não é prerrogativa ou mesmo exclusividade da medicina. Quando Freud escrevia os casos clínicos como “contos”, usando “fórmulas psicológicas”, estava realizando um trabalho diagnóstico no sentido amplo do termo. O estudo semântico do termo diagnóstico feito por Saurí (2001) indica que há um significado amplo do vocábulo como ato de conhecer, separar, discernir, entre outros, bem como situa que na antiguidade o termo era utilizado de modo extenso, para além da medicina, pelos dramaturgos e filósofos. O discurso científico moderno restringiu e fixou a significação do termo diagnóstico, situando-o como uma etapa do ato médico que consiste em identificar a doença por meio de sinais ou sintomas, portanto é preciso considerar que houve colonização do termo diagnóstico pelo campo médico no que diz respeito à definição do método e da finalidade. Diagnosticar é interpretar, nomear e vimos com Freud e Lacan que na psicanálise interpreta-se a partir do jogo do equívoco e da articulação do sujeito de um a outro significante. O diagnóstico referido ao discurso médico cria uma realidade articulada ao prognóstico como saber preditivo, produzindo distanciamento do sujeito em relação à responsabilidade sobre seu sintoma que, ao ser traduzido como doença, é delegado aos cuidados médicos. O diagnóstico médico consiste em um excesso de simbolização do real ao excluir a dimensão do gozo do corpo e do próprio corpo, por concebê-lo como organismo. Alguns autores já consideraram que o diagnóstico médico cria a patologia em função da oferta e da ação das substâncias químicas no organismo (cf. Birman, 2001). Como a produção de medicamentos não para, consequentemente não cessa a fabricação de novas patologias na atualidade, gerando a necessidade de descrevê-las e codificá-las nos manuais diagnósticos tais como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM e Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas 7 Relacionados à Saúde - CID. Numa metáfora que alude ao tema desse congresso, “dietética, corpo, pathos”, podemos dizer que o ato médico de diagnosticar, funciona como a boca que profere a palavra da ciência con-sumindo a dimensão do corpo, para regurgitar as substâncias que a indústria farmacológica oferece para empanturrar o organismo, já que o corpo é efeito da inter-dicção da linguagem. Cabe à psicanálise participar dessa discussão propondo a partir do discurso que sustenta, em referência ao inconsciente estruturado como a linguagem e à ética do bem-dizer, outra psicopatologia, outra consideração do pathos e outro tratamento à questão do sofrimento corporal, considerando-o em relação ao desejo e gozo do sujeito. A verdade sobre o sofrimento, tal como este é concebido na psicanálise, decorrente da impossibilidade da relação sexual, do encontro total e absoluto com o Outro, de onde restam os objetos pulsionais (seio, fezes, olhar e voz), essa verdade só pode ser dita por aquele que sofre por meio de um semi-dizer na construção de um mito singular, numa estrutura de ficção que se aproxima da criação poética. “... nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 49). A metade do que se pode dizer está na frase sustentada no significante e como Lacan formulou, no pas-de-sens, aproveitando a ambiguidade da palavra francesa pas utilizada para dizer passo e também negação, considerando que há na articulação da verdade através do significante, passo de sentido que porta ao mesmo tempo ausência dele (1969-1970/1992, pp. 5355). Por meio do pas-de-sens articula-se a verdade do sujeito, referido a sua falta-a-ser desde o deslocamento e excentricidade em relação ao gozo Da Coisa (Das Ding), condição para a instituição do desejo. A ética que envolve a práxis da psicanálise só pode ter como finalidade o bem em relação ao dizer, ou seja, o bem-dizer que é ao mesmo tempo semi-dizer ao conservar a distância do sujeito do gozo Da Coisa, na busca que se repete e se renova em função de reencontrá-la. 8 O alívio do sofrimento é demandado e respondido a partir do conhecimento positivado e concretizado nos objetos feitos para anestesiar, entretanto isso não é completamente eficaz, o real comporta o vazio irredutível à significação e o corpo denuncia a falha epistemo-somática. Referências: Allouch, J. (1994). Freud, y después Lacan. Capital Federal: Edelp. Birman, J. (2001). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação (3a. ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Clavreul, J. (1983). A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Editora Brasiliense. Foucault, M. (1998). O nascimento da clínica (5a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. Freud, S. (1893-1895/1990). Estudos sobre a histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 2 (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1908 [1907] /1990). Escritores criativos e devaneio. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 9 (J. Salomão, Trad.). (pp. 149 - 158). Rio de Janeiro: Imago. Lacan, J. (1957/1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lacan, J. (1959-1960/1997). O seminário: livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lacan, J. (1966/2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, (32), 8-14. Lacan, J. (1969-1970/1992). O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lacan, J. (1972-1973/1988). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Saurí, J. J. (2001). O que é diagnosticar em psiquiatria? São Paulo: Escuta. 9