A MULHER E O CORPO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
Rita Mota
Carlos Eduardo Leal
RESUMO
Estamos assistindo a fenômenos culturais; entre eles, temos a relação da
mulher com o corpo na contemporaneidade. Enquanto a relação do homem é
feita com o objeto a, a da mulher é com o falo. Para Freud, o que interessa à
mulher é ter o falo; enquanto, para Lacan, o que ela quer é ser o falo. Na busca
imaginária de tê-lo ou sê-lo, a relação da mulher com o corpo faz com que ele
seja radicalmente tratado como o lugar do Outro, portanto palco de cortes e
recortes, tratos e retratos, numa relação intensa com os recursos que a ciência
oferece e em torno dos quais cria-se a ilusão de jovialidade e beleza cada vez
maiores e mais duradouras.
Palavras-chave: Mulher. Corpo. Gozo. Outro. Contemporaneidade.
RESUMÉ
Nous assistons aux phénomènes culturels. Parmi eux, nous avons le rapport de
la femme avec le corps dans la contemporaineté. Alors que le rapport de
l´homme se fait avec l´objet a , celui de la femme est fait avec le phalus. Pour
Freud, ce qui compte pour la femme c´est d´avoir le phalus tandis que pour
Lacan elle veut être le phalus. Dans cette quête imaginaire d'avoir le phalus ou
de l´être, le rapport de la femme avec le corps finit par le traiter comme la
place de l´Autre , lieu de coupes et recoupes , traits et portraits dans un rapport
intense avec les ressources que la science offre avec lesquelles se crée l´illusion
de la jovialité et de la beauté chaque fois plus vives et durables.
Mots clés: Femme. Corps. Jouissance. Autre. Contemporaineté.
“Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.”
Carlos Drummond de Andrade
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Quando falamos do corpo, em Psicanálise, consideramos a pulsão
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que corresponde à dimensão do simbólico , à imagem especular cujo
correspondente é o imaginário e o gozo que está para o real. O denominador
comum entre a pulsão, a imagem especular e o gozo é o falo.
Com Lacan, aprendemos que um corpo é feito tanto para gozar
quanto para ser gozado, ou seja, um corpo goza de si mesmo, como de um
objeto, uma vez que o objeto a instaura os objetos possíveis para um sujeito e é
o olhar que o Outro devolve ao sujeito que possibilita a construção de uma
imagem.
Não podemos desconsiderar os efeitos da ciência em relação ao ideal
do corpo e ao corpo ideal e nem temos como escapar às exigências sociais que
também propõem um ideal de corpo. Uma das alegações para atender às
exigências sociais é que a ciência oferece recursos suficientes para produzir
esse corpo e essa busca constitui um gozo em ir atrás das vozes e olhares cada
vez mais presentes, em dizer como um corpo deve ser, o que falta a mais para
chegar a esse corpo privilegiado nas medidas, nas fotografias, nas grandes
festas.
A questão que se articula à mulher é o corpo nessa condição do mais
de gozar, frente à qual a Psicanálise esforça-se para introduzir a ética do
desejo, pois a mulher pode se atrelar aos aparelhos, medicamentos, cirurgias
em excesso, não como recursos que estão aí para beneficiá-la, mas como uma
forma de atingir um ideal, numa perspectiva fálica.
Cálculos, imagens, técnicas e mãos são usados para atender a essa
sedução do ter e do ser. A mulher contemporânea procura, incansavelmente,
quem tem um saber a mais sobre o corpo; a Psicanálise a convida para saber a
mais sobre o inconsciente. Para Lacan, “o sujeito do inconsciente só toca na
alma por meio do corpo, introduzindo aí o pensamento: desta vez
contradizendo Aristóteles. O homem não pensa com sua alma, como o filósofo
imagina” (1993, p. 17).
O sujeito, por falar, está submetido aos efeitos de uma estrutura
discursiva. Ainda que a estrutura de linguagem seja herdada, habitá-la é
conseqüência do pagamento particular que cada um faz uma vez que “Ele
pensa porque uma estrutura, a da linguagem - como a palavra o comporta porque uma estrutura recorta seu corpo e que nada tem a ver com a anatomia”
(LACAN, 1993, p. 17).
A linguagem possibilita falar do corpo, ou seja, do organismo que se
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Tal como diz Lacan, essa prevalência do simbólico, ou seja, a atribuição da causa ao nível do significante
- relegando em nível de fatores secundários o gozo imaginário ou real, tem o efeito de reduzir o conceito
de pulsão ao simbólico. MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005. p. 108 (Campo Freudiano no Brasil)
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articula à imagem e da relação com esse Outro, cujo olhar carregamos
sob a forma de demanda. Os valores biológicos do corpo se alteram à medida
que o tempo passa, mas o corpo continua gozando com a condição de homem
ou mulher, entendido aqui como a posição que cada um toma na relação com
o Outro.
A operação pulsional faz marcas no corpo, revela a anatomia e a
função de cada orifício. A linguagem possibilita dizer da abstração que tudo
isso envolve e leva o sujeito à análise para escutar o que sua voz ressoa, a partir
dessa junção, organismo, imagem, olhar do outro e diferentes formas de gozo
que, imaginariamente, embaraçam o sujeito: gozo fálico, gozo do Outro, gozo
do sentido e gozo do objeto, sendo, muitas vezes, o próprio corpo esse objeto
que nem sempre funciona segundo se espera.
O CORPO DO SIMBÓLICO
O corpo do simbólico é este corpo falado pelo Outro antes mesmo
que o sujeito se inscreva no campo da linguagem. A voz do Outro nomeia o
sujeito e, com isso, este vai se alienando a esta voz que diz quem ele é, a partir
do seu corpo. O real do corpo falado está para além da percepção do
organismo, instaurando uma angústia em relação ao desejo do Outro, pois
dele chegam as mensagens dizendo o que o sujeito é.
Para compreendermos o que é o corpo do imaginário, recorremos ao
que Lacan formulou sobre o estágio do espelho:
[...] O estágio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita-se da insuficiência para a antecipação - que fabrica para o
sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias
que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até
uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e
para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que
marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento
mental (1996a, p. 100).
Há um discurso dominante, comprometido com uma ideologia que
muda de tempos em tempos que diz qual é o corpo belo? Tomando como base
medidas que não levam em conta a bagagem genética de cada um, nem
tampouco a castração que insiste e persiste, mesmo que a tecnologia possa
entrar cada vez mais no corpo e dizer dele, haverá algo que escapa. É provável
que tantos meios disponíveis para penetrar e modificar o corpo provoquem
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uma compulsão a procurar saber mais e mais, modificar mais e mais.
A mulher, de tão angustiada com a questão da beleza, vê-se reduzida
ao próprio corpo e, ainda que se fale muito sobre o mesmo e através dele, esse
falar muito, fazer muito, revela a ignorância em relação ao saber sobre o corpo
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já que o gozo é do corpo .
Assim como há um tempo próprio para cada sujeito, há um corpo
próprio para cada sujeito no seu tempo.
Há hoje uma moda para o corpo e não a serviço do corpo. Os
modelos, com estatuto de moldes estão aí, de forma imperativa, convocando o
sujeito a um narcisismo que modela as suas exigências frente ao outro e para o
outro. A relação que algumas mulheres têm hoje com o corpo para atingir a
beleza é de sofrimento, porque, para elas, é aí que todo jogo amoroso tem
feito sua aposta. Essa constatação não invalida o prazer que o trabalho com o
corpo dá a tantas outras.
A Psicanálise propõe que o desejo se estruture entre o sujeito e o
Outro, atravessando o fantasma que captura o sujeito ao espelho; este passa a
ser um algoz que determina como deve ser, o que vestir, aonde ir, o que ter.
Quando o desejo acede, o sujeito se vê livre, numa certa medida, das
armadilhas que a exigência fálica impõe para encobrir a castração. Aceder ao
desejo implica em deixar para trás a prevalência do imaginário que mortifica,
as relações especulares que mantêm o sujeito narcisicamente alienado ao
olhar do outro, gerando agressividade, competições, ameaças.
O corpo é habitado por desejos, mas pode ser e é objeto de gozo, um
gozo, às vezes, mortífero pelo que o sujeito se impõe para atingi-lo.
Lacan, no texto Agressividade em Psicanálise, apresenta-nos a
seguinte formulação:
Há aí uma relação específica do homem com seu próprio corpo,
que se manifesta igualmente na generalidade de uma série de
práticas sociais - desde os ritos da tatuagem, da incisão e da
circuncisão, nas sociedades primitivas, até aquilo que poderíamos
chamar de arbitrariedade procustiana da moda, na medida em que
ela desmente, nas sociedades avançadas, o respeito às formas
naturais do corpo humano, cuja ideia é tardia na cultura (1996b, p.
108).
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A conexão entre gozo e imaginário faz-se mais necessária, mais obrigatória, porque o gozo é do corpo.”
MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 81
(Campo Freudiano no Brasil)
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A submissão aos modelos de perfeição oferecidos, a cópia do que é
proposto como manequim, sem nenhuma identidade própria, evidencia a
presença da pulsão de morte, uma vez que o sujeito se agride em função das
exigências narcísicas, o que nos deixa entrever é que não há dialética da
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pulsão . O que move essas exigências é a crença numa completude que, para a
mulher, fica entre o ter e o ser o falo.
O imaginário toma uma consistência tal que a constituição da
subjetividade do sujeito fica presa a este drama da imagem: ser o que o outro
determina que deve ser, o autômato que responde ao ideal estabelecido pelo
Outro.
Que prazer especial é este, que consiste em causar desejo no outro
não só como objeto, mas também como corpo consistente a ser visto?
É a fala que funda a existência do sujeito. Algumas mulheres, durante
a história da humanidade, foram convidadas a salvar a alma, a moral e os bons
costumes. Hoje, elas são convidadas a salvar o corpo. O modelo feminino,
calcado sobre a competição, promoveu uma identificação com os homens,
assim como a procura da perfeição física impede o reconhecimento de cada
um no seu tempo, promove a identificação com um ideal congelado de
juventude que não permite mudanças e transformações inerentes à passagem
do tempo, às marcas da maturidade. Ao procurar a boa forma gestáltica, o
sujeito se perde em sua verdade.
Lacan, no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, proferido nos
anos 1959-1960, postula que: “A manifestação do belo intimida, proíbe o
desejo” (1988, p. 290).
A beleza pode ser uma conseqüência do cuidado com o corpo, mas
não um fim único que sacrifica e atormenta o sujeito nas suas interrogações
sobre o que ele é.
Há um efeito dramático sobre o sujeito, sobretudo a mulher que é o
engodo da identificação; vimos, com Lacan, no texto Estádio do espelho e
vemos que a imagem modifica o sujeito porque contribui para instaurar o que
Lacan chamou de transitivismo do desejo. Identificando-se com a imagem do
semelhante, o sujeito “adota” os objetos deste. Lacan a isso se refere no
“Estádio do Espelho”, ao dizer que “identificação com o semelhante faz
bascular todo o saber humano, intermediando o desejo do outro e
constituindo seus objetos, de forma abstrata, equivalente à concorrência deste
outro.” ( 1996, p. 101).
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Para isso, ver o ótimo comentário de Miller no capítulo sobre “A patologia do eu”. op. cit., p. 99.
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A vestimenta durante muito tempo teve a função de encobrir os furos
e revelar o que lhe pudesse dar o estatuto de objeto a. Hoje nos perguntamos:
neste tempo dos corpos sem furo presos a um ideal, portanto mortificado, qual
é a função do velamento? O que seduz e o que fascina na dimensão do
(re)velar?
Toda compulsividade em torno do corpo perfeito associa a vaidade
excessiva à feminilidade. Joan Rivière, em seu texto A feminilidade como a
máscara, trabalha exatamente esse recurso utilizado pela mulher para se
apresentar castrada e demandar o amor do homem. Se o corpo é tão
trabalhado, é porque o sujeito reconhece a falta e estabelece um convívio com
ela, ou há uma máscara que se propõe a encobrir exatamente o
reconhecimento desse impossível saber sobre o corpo como objeto de
complementação?
A feminilidade poderia então ser assumida e carregada como uma
máscara, ao mesmo tempo para dissimular a existência da
masculinidade e evitar as represálias que ela temia, caso viesse a ser
descoberto o que estava em sua posse exatamente como um ladrão
que vira seus bolsos e exige que o examinemos para provar que ele
não tem os objetos roubados. (RIVIÈRE, 1999, p. 31).
A BELEZA É FUNDAMENTAL?
Muitos foram os ganhos e os dissabores que se teve com a trajetória da
história da beleza. O que inquieta é o sofrimento que transforma a submissão
da mulher em uma submissão ao corpo perfeito, para vir a ter meios de ser
mulher para um homem, ou, para outra mulher.
Esse ideal tem uma consistência imaginária e, muitas vezes, uma
mulher faz semblante para outra na busca desse ideal. Muitas vezes deseja-se
ter o cabelo de uma, o corpo da outra e, subjetivamente, o olhar de alguma.
Lacan formula no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise:
O limite de que se trata, essencial a ser situado para que dele
apareça, por reflexão, um certo fenômeno, que numa primeira
aproximação chamei de fenômeno do belo, é o que comecei a
definir como o limite da segunda morte. (1988, p. 315).
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As mulheres estão hoje assujeitadas ao discurso capitalista, à
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propaganda, às determinações em torno do consumo dos objetos
produzidos pela ciência para corresponder ao ideal de beleza e juventude
ainda que em detrimento da saúde. O discurso capitalista promove um
apagamento do sujeito do desejo. Há um imperialismo do objeto sobre o
sujeito no mundo globalizado.
Esse conjunto de reflexões nos provoca uma pergunta: como a mulher
se articula em sua lógica da não-toda para ter ou ser o falo? Aprendemos com
Lacan que:
o falo é um significante, um significante cuja função, na economia
intra-subjetiva da análise, levanta, quem sabe, o véu daquela que
ele mantinha envolto em mistérios. Pois ele é o significante
destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na
medida em que o significante os condiciona por sua presença de
significante (1996c, p. 697).
A maquiagem assumiu a função de máscara, assim como a tintura
para os cabelos e hoje elas dispõem das lâmpadas para bronzeamento
artificial. A maquiagem e as curvas eram signos de feminilidade, confirmando
o pensamento de Joan Rivière: “Eu penso que o fato de que a feminilidade
possa ser levada como uma máscara nos permite avançar nesta direção na
análise do desenvolvimento da mulher” (RIVIÈRE, 1999, p. 32).
O corpo está aí, para ser mascarado, velando ou revelando suas faltas,
mas não para ser a própria máscara, ou ser a moeda libra de carne com a qual
se paga um outro gozo.
Encontramos em Lacan referências que são indicativas de respostas
para a questão da mascarada:
O fato de a feminilidade encontrar seu refúgio nessa máscara, em
virtude da Verdrãngung inerente à marca fálica do desejo, tem a
curiosa consequência de fazer com que, no ser humano, a própria
ostentação viril pareça feminina (1996c, p. 702).
O problema, quando se trata de uma mulher, é que ela responde sem
que a interpretemos, fala sem que lhe peçamos - não a estamos recriminando!
Mas, para o que nos interessa, sem dúvida, é um inconveniente.
Sublinharemos o pedido que imaginariamente vem do lado masculino, o seja
bela e cale-se. Não precisa saber falar basta ser bela.
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O cale-se, hoje, para algumas mulheres, não é mais ao homem para
que ele a ame, mas para o imperativo que rege o corpo a serviço deste gozo
que invade a sua carne, os seus órgãos, os seus valores, o seu tempo. Quem é o
Outro de toda esta ideologia?
Em Televisão, Lacan diz que as mulheres são conciliadoras uma vez
que não há limites para as concessões que fazem.
As mulheres estão fazendo concessões aos homens, ou às outras
mulheres, ou aos ideais impostos pela mídia? Querer ser o falo é conseqüência
de uma demanda de amor ao homem, ou de uma demanda de
reconhecimento narcísico?
Se todo esse esforço para ser amada é dirigido ao homem, fica
implícito que ele ama a beleza e não a mulher e a conquista de uma mulher tão
bela equivale à conquista do falo. Qualquer comprometimento nessa beleza
provoca metonímia, no sentido de trocar uma bela pela outra bela. O homem
vai fazendo série, assim como a mulher vai se submetendo a essa série4.
Em todo esse contexto, temos que pensar o que é da ordem da
feminilidade e o que é da ordem do masoquismo. O que se faz preservando a
condição de ser causa de desejo para um homem, podemos colocar do lado
da feminilidade e o que se faz atendendo ao imperativo do Outro,
representado pela mídia, fica do lado do masoquismo, pois o sujeito padece
de toda sorte de mal-estar em nome de satisfazer a demanda do Outro. O
esforço para ser bela ou se fazer bela sempre teve e terá lugar no mundo da
mulher. A pergunta que insiste e persiste é qual é o gozo a mais no sacrifício
para o Outro?
Cada um espera que o melhor de si apareça revelado no seu corpo. É
o que percebemos na década de 80, quando as executivas tinham que
trabalhar como os homens trabalhavam até então, competir no mercado
financeiro com eles, totalmente glamourosas na aparência e na performance
sexual.
Historicamente, as mulheres conviveram com a roupa como o
envelope do corpo e hoje o corpo é o próprio envelope, ou invólucro formal
do sintoma. Para isso basta, como diz Miller, que a histérica encarne o sintoma
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puro .
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Para isso, ver o comentário que Miller faz sobre a clivagem do lado da mulher e o desdobramento do
lado do homem, “na qual Lacan encontra a raiz do que é vulgarmente chamado de infidelidade
masculina”. MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005. p. 141 (Campo Freudiano no Brasil)
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“[...] encarnar el sintoma puro es algo que está ai alcance de Ia histérica; basta para ei-lo que se presente
com uma parálisis sin causa orgânica.” MILLER, J-A. Los signos dei goce. Argentina: Paidós, 1998. p.
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Mais do que isso, a obediência a qualquer custo a este significante
mestre, que está ligado ao gozo a mais, determina: faça mais, seja mais, lute
mais.
Assim é a mulher por trás de seu véu: é a ausência do pênis que faz
dela o falo, objeto do desejo. Evoquem essa ausência de maneira
mais precisa, fazendo-a usar um mimoso postiço debaixo do
(tra)vestido de baile a fantasia, e vocês, ou sobretudo ela, verão que
tenho razão: o efeito é 100% garantido, como o ouvimos de
homens sem rodeios (LACAN, 1996d, p. 840).
O corpo hoje é um objeto a serviço dos anseios sociais e virtuais
pautados numa ideologia narcísica que visa ao controle do incontrolável: as
pulsões.
Para Freud, a mulher é aquela que se volta para o homem e espera
dele alguma coisa, metaforizada pelo pênis e que se liga a ele, sendo mulher de
um homem, inclusive para ter filhos com ele. Com isso, podemos dizer que a
mulher, para Lacan, é aquela que se oferece para ser o que falta ao homem,
para lhe causar desejo e nesta condição gozar e ser gozada. Não sabemos se o
corpo hoje é visto como o que se tem ou o que se é, ou o que se deve ser, pois o
gozo tem seus limites e o legado de Lacan é o que há a mais e a menos na forma
de o sujeito gozar, seja homem ou mulher, portanto, o desejo da mulher
possivelmente pode ser sustentado na sua condição de sintoma do homem,
mascarando a falta dele, fazendo desse lugar a sua principal causa.
Não deixemos morrer a condição feminina que, com sutileza e
delicadeza, dá vida aos corpos, uma vez que o amor e o desejo são férteis.
Para concluir, diríamos que acreditamos como essencial então a
busca de respostas para as questões sobre as aquisições como trabalho, bens,
prestígio, independência financeira e corpo perfeito, neste início do século
XXI, se elas estão compondo o universo da máscara feminina ou estão
integrando o reconhecimento do não-todo que a retira da cena reivindicadora
frente ao que o outro tem.
Talvez o que nos norteie seja a relação amorosa estabelecida com
essas aquisições, cuja compreensão e explicação também nos inquietam,
possibilitando-nos interrogar se há sempre uma identificação com o ser o falo,
ou a independência do olhar do próximo nos permite pensar numa forma de
lidar com esses atributos.
A máscara recobre o nada, o que coloca a mulher instável,
contraditória ao considerar seus atributos. Já ouvimos muito: “Quero que ele
me ame pelo que sou e não pelo meu corpo” - ainda que exista todo esse
investimento na forma e na performance perfeita. Hoje, escutamos uma
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variação dessa fala: “Quero que ele me ame pelo que sou e não pelo
que tenho.” Então, podemos dizer que o homem procura a mulher tal qual ela
se dá na sua fantasia e a mulher pode se perder, ou seja, perder-se de si como
sujeito, para realizar essa fantasia, sendo que, para ser causa de desejo, a
mulher utiliza seus disfarces, ou se permite apresentar outros traços além
daqueles que disfarçam a sua falta. Isso evidencia que há um modo feminino e
um modo histérico de relacionar-se com o homem ainda que um passe pelo
outro.
Constatamos que, na posição feminina, o gozo ultrapassa o sujeito
e, na histeria, o que há é a insatisfação do gozo do Outro; a mulher quer ser o
falo, pois o gozo está em fazer brilhar aquilo que falta ao Outro, gozando assim
da idéia de que é aquilo que satisfaz os olhos do Outro.
Encontramos, na clínica e na vida, algumas mulheres que são
atravessadas pelo desejo de sucesso profissional, mas que não deixam de
esperar o amor, ou do amor, a possibilidade do gozo fálico ou do gozo
suplementar e, às vezes, frente ao fracasso amoroso, deixam fracassar as
demais esferas da sua vida. A mulher tem hoje direitos conquistados e busca a
legitimação dos mesmos, o que nos encaminha a desdobrar a questão deixada
por Freud: o que quer a mulher? em: O que é a mulher e qual é sua função
enquanto mulher em relação ao Feminino?
A partir da teorização do Feminino tanto por Freud quanto por
Lacan e pelos autores contemporâneos, questionamos se a mulher, diante dos
recursos para fazer do corpo e com o corpo o que quiser, toma contato com os
ganhos e perdas inerentes à situação em que se encontra na
contemporaneidade, sendo que, levando em conta o circuito pulsional do
desejo e a norma fálica que rege homens e mulheres,o homem amará o que é
colocado no lugar da falta e a mulher amará o amor.
A mulher na posição feminina, reconhecendo o que lhe falta e o que
falta ao homem, tem possibilidade de ser sintoma para o homem, ou seja,
tocar o inconsciente masculino.
As condições do desejo são, para o homem e a mulher,
inconscientes; a possibilidade de um estar com o outro, no mesmo universo,
deveria ser uma arte e não uma técnica impregnada pelo consumo dos objetos
vendidos para obter a beleza imposta mais do que para manter a beleza que se
tem.
Sabemos, como psicanalistas, que é um desassossego esse
questionamento sobre o feminino, assim como sabemos que mantê-lo é uma
posição ética que consiste em não perder de vista o que é próprio do amor.
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REFERÊNCIAS
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Jorge Zahar, 1988.
______. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996 a. (Campo freudiano no
Brasil)
______. A agressividade em psicanálise. In: ______. Escritos. Rio de
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______. A significação do falo. ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996 c. p. 692-703 (Campo freudiano no Brasil)
______. Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996d. p. 807842.
MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil)
______. Los signos dei goce: los cursos psicanalíticos de Jacques-Alain
Miller. Argentina: Paidós. 1998.
RIVIERE, Joan. A feminilidade como máscara. Agente, Bahia, abr. 1999.
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