UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE MESTRADO Pesquisa e Clínica em Psicanálise MARIA ELIZABETH DA COSTA ARAUJO AUTISMO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO Dissertação de Mestrado RIO DE JANEIRO, JANEIRO DE 2006 AUTISMO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO MARIA ELIZABETH DA COSTA ARAUJO “Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção de Título de Mestre em Psicanálise” “Orientador: Profa. Dra. MARCIA MELLO DE LIMA” RIO DE JANEIRO, JANEIRO DE 2006. Para Carolina e Lucas AGRADECIMENTOS Agradeço, Aos meus filhos, MARIA CAROLINA ARAUJO VARELA e LUCAS ARAUJO VARELA, cuja alegria e descontração me serviram de amparo. Aos meus pais, ALBERTO LEMOS ARAUJO e MARIA DIVA DA COSTA ARAUJO, pelo gosto pela matemática e pela criatividade. A HUMBERTO JOSÉ MARTINS, pelo carinho e por seus freqüentes questionamentos. A MARY KLEINMANN, pela competência em seu ofício. A RENATA SANTOS SOUZA, pela cumplicidade com que tem assessorado boa parte de meus afazeres, inclusive dessa dissertação. A PAULO VIDAL, pela gentileza de sua escuta e pela agudeza de suas intervenções. A GERALDO CHIOZZO DE OLIVEIRA, reumatologista, JÚLIO CESAR MATHIAS, ortopedista e VALÉRIA MATHIAS, fisioterapeuta, de cuja competência profissional dependi para levar adiante esse trabalho. Ao SERVIÇO DE PSICOLOGIA APLICADA da Universidade Federal Fluminense, pelo incentivo e acolhida nesse momento de conclusão. Aos ANALISANDOS e PACIENTES, por seus ensinamentos. Aos AMIGOS, porque a amizade é imprescindível. RESUMO Orientada pelas questões colocadas pela clínica em geral, e em particular pela clínica do autismo, a dissertação versa sobre a constituição do sujeito segundo a teoria freudiana lida por Jacques Lacan. Após expor a concepção de aparelho psíquico e do conceito de representação, é abordado o momento originário da constituição subjetiva, na qual o sujeito emerge na dependência da representação que marca o destacamento de um objeto ao qual o sujeito estará sempre atrelado. A partir dessa referência, o ponto de impasse em que o sujeito autista é aprisionado pode ser abordado nos termos de uma falha na constituição da representação, fazendo do autista objeto de um gozo com características singulares. RÉSUMÉ Orienté par les questions posées par la clinique en général, et la clinique de l'autisme en particulier, ce mémoire porte sur la constitution du sujet selon la théorie freudienne lue par Jacques Lacan. Après une exposition de la conception de l'appareil psychique et du concept de représentation, on a trait au moment originaire de la constitution subjective, dans laquelle le sujet émerge sous la dépendance de la représentation qui signale le détachement d'un objet auquel le sujet est toujours attaché. À partir de cette référence, le point d'impasse où le sujet autiste est emprisonné peut être approché en termes d'un défaut dans la constitution de la représentation, qui fait de l'autiste l'objet d'une jouissance avec des caractéristiques particulières. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 01 PRIMEIRA PARTE: FUNDAMENTOS TEÓRICOS ............................................. 09 CAPÍTULO I – A MÁQUINA DA LINGUAGEM ............................................... 10 1.1 - As transferências de energia ...................................................................... 11 1.2 - Memória e princípio do prazer .................................................................. 15 1.3 - O sistema consciente ................................................................................... 17 1.4 - A estrutura da linguagem ............................................................................ 18 CAPÍTULO II – DA REPRESENTAÇÃO AO GOZO DE ALÍNGUA .................... 21 2.1- A experiência alucinatória de satisfação ........................................................ 21 2.1.1 - O grito ................................................................................................... 23 2.1.2 - A primeira experiência de satisfação ..................................................... 25 2.2 - A Carta 52 ...................................................................................................... 27 2.2.1 - A percepção e os signos: W e Wz ........................................................ 28 2.2.2 - O inconsciente, a repetição e o significante: Ub ................................. 29 2.2.3 - O pré-consciente: Vb ............................................................................ 31 2.3 - A função intelectual do juízo como ato fundador da realidade ...................... 32 2.3.1 - O juízo de atribuição: a instauração do signo algébrico da Bejahung..... 33 2.3.2 - O juízo de existência : a realidade como mundo das representações ... 34 2.4 - O circuito pulsional ......................................................................................... 37 2.5 - O olhar do Outro na construção da realidade ................................................. 40 2.5.1 - O esquema óptico .................................................................................. 40 2.5.2 - “O desejo emerge em confronto com a imagem” .................................. 41 2.5.3 - A nomeação .......................................................................................... 43 2.5.4 - O campo da realidade ........................................................................... 43 2.6 - O gozo ............................................................................................................ 47 2.7 - O gozo de alíngua .......................................................................................... 49 2.8 - Em síntese ... ................................................................................................. 53 SEGUNDA PARTE: A CLÍNICA DO AUTISMO ........................................................... 55 CAPÍTULO III – A REPRESENTAÇÃO NO AUTISMO .............................................. 56 3.1 - A linguagem não foi feita para comunicar ......................................................... 57 3.1.1 – Os signos perceptivos .............................................................................. 59 3.1.2 – A função do juízo no autismo ................................................................ 60 3.1.3 - O episódio da água ................................................................................. 61 3.1.4 – A Holófrase ............................................................................................ 64 3.2 - A especularidade no autismo ............................................................................. 66 CAPÍTULO IV - A REALIDADE E O GOZO NO AUTISMO ..................................... 74 4.1- O caso Dick e a realidade .................................................................................... 75 4.2 - O sujeito autista e o Outro – Uma realidade não alucinada ................................ 77 4.3 - As conseqüências da não nomeação – O esquema óptico ................................... 80 4.4 - O gozo no autismo ............................................................................................... 82 4.4.1 - A lógica da estrutura moebiana no autismo ............................................... 83 4.4.2 - O gozo no campo do duplo: a máquina do abraço ..................................... 84 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 90 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ INTRODUÇÃO “Pode acontecer que um sujeito que dispõe de todos os elementos da linguagem, e que tem a possibilidade de fazer certo número de deslocamentos imaginários, que lhe permitem estruturar seu mundo, não esteja no real. Porque não está? – unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A figura no seu conjunto está perturbada. Não há meio de dar a esse conjunto o menor desenvolvimento”. 1 A clínica do autismo despertou meu interesse no início da formação em psiquiatria quando, ainda como estudante de medicina, estagiei na enfermaria de crianças psicóticas e autistas da Casa de Saúde Saint Roman. Daquela ocasião, ficou registrada a angústia que experimentei diante de crianças tão inacessíveis e, em muitos momentos, desesperadas, cuja convivência me propus a suportar dois turnos por semana. Eram cerca de vinte crianças em regime de internação. As mais graves tinham o diagnóstico de autismo. A despeito da pobreza institucional, a equipe buscava uma leitura kleiniana, o que, para mim, parecia quase tão incompreensível quanto o comportamento e a fala daquelas crianças estranhas. Assim procedi minha primeira leitura do caso Dick2, descrito por Melanie Klein, e do clássico livro de Francis Tustin3. Ao longo de uma trajetória de cerca de vinte anos de trabalho como psiquiatra e psicanalista, tive oportunidade de deparar-me, em alguns momentos - não muitos - com essas crianças diagnosticadas como autistas, que compõe uma clínica tão singular. Foi, em primeiro lugar, a insistência de um casal de pais na busca de tratamento para seu filho autista que me proporcionou a oportunidade de aprender um pouco mais sobre esse assunto e elaborar a experiência, que não deixara de ser traumática, dos tempos de faculdade. Em segundo lugar, o sujeito autista suscita, tão claramente, questões que dizem respeito à relação com o outro, à fala, à singularidade com que constrói sua realidade, que nos remetem indubitavelmente às origens do sujeito e, portanto, podem trazer esclarecimentos quanto à constituição do sujeito. Em terceiro lugar, e mais recentemente, ao voltar-me para o estudo do autismo pude perceber um incremento nas pesquisas sobre esse tema a despeito da raridade de sua prevalência. O termo autismo foi cunhado por Eugen Bleuler por subtração de eros do termo auto-erotismo inventado por Havellock Ellis e retomado por Freud. Bleuler designou como autismo o estado de alheamento e de desinvestimento no mundo, gerador de certa 1 LACAN, J. - O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54) Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1983, p.105 2 3 KLEIN, M. - Amor, Culpa e Reparação (1921-1945), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1996. TUSTIN, F. – Autismo e Psicose infantil (1972), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1975. auto-suficiência, que se expressa na analogia proposta por Freud, de um ovo que encontra em seu interior tudo que precisa. Ao autismo foi atribuído lugar de destaque entre os sintomas mais importantes da patologia descrita por Bleuler: a esquizofrenia. Em 1943, Leo Kanner, em Baltimore, descreveu, pela primeira vez, o que chamou distúrbio autístico do contato afetivo, síndrome de aparecimento muito precoce, que tinha o fechamento autístico como sintoma fundamental. Simultaneamente, Hans Asperger, em Viena, trabalhava na descrição de uma síndrome com traços bastante semelhantes, embora mais amenos, que denominou psicopatia autística, e que ficou conhecida posteriormente como Síndrome de Asperger. Kanner considerou, inicialmente, a incapacidade de estabelecer relações desde o princípio da vida, como o sintoma patognomônico do autismo. Em 1955, esse autor estabeleceu dois sintomas fundamentais no autismo: o desejo de solidão (aloneness), que se expressa na busca de um isolamento profundo; e a preocupação com a imutabilidade (sameness), evidenciada na intrusão assustadora que a modificação no meio interno ou externo conota. Com o avançar da idade costuma haver, em grau variado, a ruptura da solidão e a aceitação de algumas pessoas, embora sempre persista um nível elevado de isolamento afetivo. Ao nascer, a criança autista não apresenta indício em seu organismo, que sugira o desenvolvimento da síndrome. Desde os primeiros anos de vida, gradativamente, tornase manifesto que ela estabelece uma relação muito especial com o mundo que a cerca. As primeiras manifestações podem ser sutis e costumam passar despercebidas. Freqüentemente há relatos de que o bebê não se “aninha” quando é colocado no colo, por isso é muitas vezes incômodo e desconcertante segurá-lo. Às vezes são “bonzinhos” demais, às vezes choram demais. Eles não “conversam”, os sons que emitem não são compatíveis com o balbucio comuns nos bebês a partir do terceiro mês. O bebê autista não faz “gracinhas” visando seduzir aquele que se ocupa dele. Na medida que a criança vai crescendo, o fechamento em comportamentos ritualizados torna-se mais perceptível, e verifica-se um surpreendente desinteresse pelos acontecimentos e pessoas. O manuseio dos objetos, não caracteriza o brincar, mas a estereotipia e a perda do caráter de exterioridade desses objetos. Isso nos sugere que o autista vive imerso numa realidade onde haveria uma espécie continuidade e indiferenciação entre o eu e o mundo externo. Uma das características mais marcantes nessas crianças é a precisão com que registram as imagens tanto visuais quanto auditivas. Desta forma, são os primeiros, e às vezes os únicos, a notar a falta - ou a mudança de lugar - de um objeto no ambiente. Freqüentemente, são capazes de reproduzir literalmente falas – mesmo longas - que registraram em alguma ocasião, às vezes, única. É comum que essa percepção particular das coisas se expresse através de crises espantosas de agitação e angústia, que podem incluir a heteroagressividade, mas quase nunca excluem a autoagressividade. O autista apresenta uma linguagem muito específica. A linguagem verbal pode estar completamente abolida ou limitar-se à repetição monótona de palavras, como a repetição continuada de anúncios publicitários, seqüência de números, séries de palavras, etc. Podem ocorrer alterações das palavras por assonância, duplicação ou triplicação de letras. Utiliza verbalizações aparentemente sem sentido e, sobretudo, sem endereçamento, que não escaparam às primeiras observações de Leo Kanner. Entre as onze crianças observadas em sua primeira descrição, ainda que oito falassem e três fossem “mudas”, ele afirmou que não havia diferença fundamental entre as que falavam e as que não falavam, pois a linguagem não servia para transmitir qualquer mensagem aos outros. Um fenômeno gramatical despertou, desde o início, a atenção de Kanner: “os pronomes pessoais são repetidos exatamente como são ouvidos”, não havendo a 1991, traduziu o trabalho de Asperger para o inglês, promovendo seu merecido reconhecimento, muitas discussões têm sido levantadas, sobretudo no sentido de decidir se devem ou não ser consideradas como a mesma síndrome, e se esta deve ou não ser incluída entre as esquizofrenias. No momento, existe uma forte tendência em considerar ambas as síndromes como expressões diversas de um mesmo quadro patológico, visto que a Classificação Internacional de Doenças em sua décima edição – CID X - inclui ambas entre os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, diferenciando-as dos Transtornos Emocionais e de Comportamento da Infância. A partir da década de 60, iniciaram-se as primeiras pesquisas sobre o autismo no campo cognitivo-comportamental, o que vêm avançando e assumindo crescente expressão. Convém destacar que a idéia de excesso – traço destacado pelos psicanalistas ingleses -encontra-se também presente na teoria de Baron-Cohen, em cuja concepção o autismo corresponderia a um excesso de masculinidade. Esse excesso levaria a um defeito na interação com o semelhante, considerado por eles um defeito cognitivo. Simon Baron-Cohen, cognitivista renomado por suas pesquisas com autistas, considerou que: “Kanner, que no artigo original em que delineou esta desordem, descreveu o autismo como uma alteração puramente emocional, o que foi desde logo entusiasticamente aceito pelos autores psicanalíticos, interessados na relação mãe-bebê e no seu papel causal no autismo.” 5 Contradizendo as palavras de Baron-Cohen, Kanner concluiu o artigo de 1943 declarando que, em seu entendimento, a precocidade do aparecimento e o desenvolvimento dos quadros autísticos remetem a uma incapacidade inata, biologicamente determinada, que compromete os estágios iniciais do desenvolvimento da fala e da linguagem, ao dizer que: “devemos supor que estas crianças vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer o contato afetivo habitual com as pessoas, biologicamente prevista, exatamente como outras crianças vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais”.6 5 BARON- COHEN, S. – Autismo: uma alteração específica de “cegueira mental”, in Revista Portuguesa de Pedagogia Ano XXIV, Coimbra, 1990. p. 408. 6 KANNER, L. – Os distúrbios autísticos do contato afetivo, op.cit. Embora as palavras de Kanner mencionadas acima contradigam o entendimento de Baron-Cohen, de fato, Kanner valorizou o aspecto emocional e isto pode ter contribuído para que os psicanalistas tenham sido os primeiros a se dedicarem ao estudo das crianças autistas. A partir da década de 80, surgiram publicações de autistas de alto nível, tais como de Temple Grandin, Donna Williamn, Amelie Nothomb, também chamados savant, nas quais são fornecidos elementos esclarecedores a propósito do funcionamento psíquico autista. Através desses depoimentos, cai definitivamente por terra a concepção de que esses sujeitos seriam seres isentos de angústia e de atividade mental, tal como fora afirmado por Donald Meltzer. A idéia do autismo como um estágio normal do desenvolvimento pode também ser considerada inteiramente ultrapassada. A própria Francis Tustin, maior defensora dessa noção, as reformulou em suas últimas colocações7. O entendimento do autismo como quadro predominantemente reativo, segundo as idéias de Bruno Bettelheim8, encontra-se hoje bastante enfraquecida. Porque o autismo tem despertado tanto interesse? Sessenta anos depois da descrição de Kanner a profusão de trabalhos sobre o autismo, nas mais diversas abordagens e propostas, vem situá-lo como paradigma de uma nova concepção da doença mental, capaz de afinar-se com a mutação social que testemunhamos nos tempos atuais. Comprovando essa idéia, autores de diferentes abordagens dão ao autismo lugar de destaque. Assim, Pierre Fedida estabelece o autismo como paradigma psicopatológico. Marie-Christine Laznik acredita que a partir do estudo do autismo podemos chegar a uma nova leitura da metapsicologia. Jacques-Alain Miller também o estabeleceu como um paradigma, desta vez, paradigma do gozo do Um, que ocupa lugar de destaque nos últimos anos do ensino de Lacan. A psicanálise se caracteriza por articular que os estados psíquicos correspondem à posição na qual o sujeito se coloca frente ao mundo em que se insere. Considerando que essa posição é da ordem de uma escolha inconsciente, esse sujeito é, inquestionavelmente, responsável por ela. O sujeito requer uma constituição. As 7 TUSTIN, F. - Entrevista com E. Vidal, in Letra Freudiana. O Autismo. VIDAL, M.C. (org.), Rio de Janeiro, Livraria e Editora RevinteR Ltda, 1995, p.85. 8 Idem, ibidem. manifestações que observamos no autismo nos remetem à diversidade de uma escolha ocorrida num momento muito precoce de sua existência. A concomitância, no autismo, de três aspectos - a estranha relação com o semelhante, a excentricidade da linguagem, o enigma de sua realidade - sugere a articulação entre eles. Para estabelecer tal articulação, tomo como referência a teoria psicanalítica a partir das colocações de Freud e de Lacan a propósito da constituição do sujeito priorizando o vínculo com a linguagem. Esse estudo do momento mais primitivo da subjetividade prioriza abordar as particularidades implicadas na emergência da Vorstellung – a representação – segundo as premissas de Freud e tomando como referência o conceito de gozo postulado por Lacan, interrogar, como se dá o gozo no autismo. Duas colocações de Lacan marcam meu ponto de partida. Uma no Seminário 3: “Não esqueçam jamais que nada do que diz respeito ao comportamento do ser humano como sujeito, e ao que quer que seja no qual ele se realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser submetido às leis da fala.” 9 E outra na Conferência de Genebra sobre o Sintoma, onde refere-se aos autistas dizendo: [Os autistas], “você não pode dizer que não falam. Que você tenha dificuldade para escutá-los, para dar alcance ao que dizem, não impede que se trate, afinal, de personagens muito verbosos”.10 Desta forma, tomo como ponto de partida a assertiva de que os autistas estão inseridos nas leis da linguagem. O modo singular como se servem da palavra, de tal forma que não possamos identificar ali uma intenção de comunicação, poderia colocar em questão a própria constituição da fala, ou mesmo a inserção do sujeito na linguagem, isto é, em sua condição de ser falante. 9 LACAN, J. - O Seminário, livro 3, As Psicoses (1955-56) Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1985, p.100 10 LACAN, J. – “Conférence à Genève sur le symptôme”, in Le Bloc-Note de la psychanalyse, n°5, Paris, 1985, p. 17 Tomando a psicanálise como caracterizada por destacar a responsabilidade do sujeito perante sua expressão sintomática, não podemos senão considerar que há uma escolha implicada na posição autística. A escolha, segundo a psicanálise, diz respeito à posição que o sujeito assume frente ao Outro e ao gozo que lhe é próprio. Isso nos leva a interrogar quanto à posição do sujeito autista frente ao Outro e a natureza do gozo que ali comparece. É certo que quanto mais precoce a intervenção terapêutica, melhores serão os resultados. Atualmente se trabalha no sentido de conscientizar aqueles que cuidam de crianças pequenas, sobretudo os pediatras, quanto aos indícios precoces de autismo. No entanto, o diagnóstico ainda não costuma ser feito antes do terceiro ano de vida, quando o isolamento já se encontra bastante avançado. Essa dissertação corresponde à trajetória que me foi possível trilhar ao longo desses três anos de mestrado, orientada pelas questões colocadas pela clínica em geral, e em particular pela clínica do autismo. Assim, o primeiro capítulo apresenta uma breve exposição a respeito da concepção de aparelho psíquico e do conceito de representação para a psicanálise. No segundo capítulo serão abordadas algumas referências de Freud e Lacan no que diz respeito ao momento originário da constituição subjetiva. A identidade promovida pelo significante cria a realidade psíquica na qual cada sujeito se insere. O capítulo três versa sobre as consequências da falha na constituição da representação no autismo. Finalmente, o capítulo quatro trata da realidade e do gozo no autismo. A realidade que se constrói no enodamento entre Real, Simbólico e Imaginário permite que o gozo compareça como sifgnificação fálica. O autista, por estar impedido de acessar ao gozo pela via fálica fica limitado à pobreza de um gozo real. CAPÍTULO I A MÁQUINA DA LINGUAGEM A psicanálise surge, no início do século XX, como uma invenção de Freud para dar conta do que se passava no psiquismo de seus pacientes. Em seus primórdios, influenciado pela neurologia, Freud elaborou o “Projeto para uma Psicologia Científica”11 - ao qual passarei a referir-me como o Projeto –, visando uma abordagem neurofisiológica do aparelho psíquico. O resultado foi uma certa neurologia fantástica12, que não o entusiasmou a publicar. Hoje, quando Eric Kandel confirma as hipóteses freudianas ao nível do funcionamento neurobiológico13, pode-se supor que as idéias de Freud eram demasiadamente avançadas para os conhecimentos histo-fisiológicos da época. Antes de Kandel, Jacques Lacan já havia valorizado esse trabalho de publicação póstuma, ao destacar que, nele, Freud construiu, na superfície do organismo, uma verdadeira topologia da subjetividade ao desenvolver “a teoria de um aparelho neurônico em relação ao qual o organismo permanece exterior, assim como o mundo exterior”14. A abordagem de Lacan concebe que toda ação humana se desenvolve na dimensão da linguagem15, uma vez que “os processos simbólicos dominam tudo”.16 Em seu entendimento, no Projeto se verifica a estruturação do mundo da realidade em termos significantes, no interior do corpo primordial17, ao qual permanece externo. 11 FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos (1895[1950] ) in Obras Completas, Vol. I, Madrid (España), Editorial Biblioteca Nueva, 1981. 12 GARCIA-ROZA, L. A. – Sobre as afasias (1891), O Projeto de 1895, in Introdução à metapsicologia freudiana, Vol. I, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1991, p.80. 13 Pesquisador do ramo da neurociência, prêmio Nobel de medicina em 2001. Cf. se lê no Jornal O Globo de 20/06/04; O Jornal da Família, p.1-2. 14 LACAN, J. – O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise (1959-60) Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1988, p.62. 15 Idem, ibidem, p.49. 16 Idem, ibidem, p.60. 17 LACAN, J. – O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54) Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1983, p.174. Assim, é possível se verificar, antes mesmo da “Interpretação dos sonhos”18, a relevância da dimensão da linguagem para a psicanálise. Lacan destacou que: “Ele [Freud] compreendeu admiravelmente [a despeito da precariedade do estudo da lingüística na ocasião em que escreveu o Projeto] e formulou a distinção a ser feita entre a operação da linguagem como função, ou seja, no momento em que ela se articula e desempenha, com efeito, um papel essencial no pré-consciente, e a estrutura da linguagem, segundo a qual os elementos colocados em jogo no inconsciente se ordenam”.19 Nesses termos, Lacan pontua que, no Projeto, Freud propõe os elementos básicos do trilhamento significante demonstrando que a estrutura da linguagem, ou seja, a lei do significante, ordena os elementos de estão em jogo no inconsciente, enquanto a organização discursiva que ocorre no nível do pré-consciente, é comandada pela linguagem como função – que é a fala. Entre a estrutura da linguagem e a fala estabelece-se o encadeamento onde a economia psíquica se põe em exercício. Considerando que há no autismo um transtorno que afeta a instauração da representação, situarei, inicialmente, o funcionamento psíquico segundo Freud e Lacan, a fim de estabelecer o conceito de representação na teoria psicanalítica e seu lugar no psiquismo. 1.1 - As transferências de energia Freud iniciou o Projeto explicitando o propósito de elaborar uma psicologia que pudesse ser entendida como ciência ao dizer que: “A finalidade desse projeto é a de estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural; quer dizer representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, dando assim, a esses processos, um caráter concreto e inequívoco. O projeto contém duas idéias cardinais: 1) O que distingue a atividade do repouso deve conceber-se como uma quantidade (Q) submetida às leis gerais do movimento; 18 FREUD, S. – La Interpretacion de los sueños (1898-9[1900]), in Obras Completas, Vol. I, op. cit. Obra considerada inaugural da Psicanálise. 19 LACAN, J. – O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise, op. cit., p.60. 2) Como partículas materiais em questão, devem admitir-se os neurônios”. 20 Nesse trabalho, buscando dar conta do que se passava na clínica, Freud materializou, em transferências de energia numa rede de neurônios, aquilo que se verifica na trama neurótica. Inspirado nos avanços da termodinâmica da época, ele formulou os princípios fundamentais da atividade psíquica a partir do entendimento do comportamento neuronal em relação à quantidade de energia que afeta os neurônios desde o exterior, e os percorre internamente. Posteriormente, tomando a lingüística estrutural como instrumento, Lacan atribuiu essa materialidade ao significante. Observa-se, portanto, no Projeto, a indicação dos elementos fundamentais da constituição e do funcionamento do aparelho psíquico, bem como de sua organização e dinâmica inconsciente na forma de rede de neurônios, que devem ser entendidos - a partir de Lacan - como equivalentes aos significantes. A quantidade que investe e percorre o neurônio, Freud chamou de Qη. Diferenciou-a de Q, a quantidade externa que chega às terminações nervosas. Em sua intervenção no seminário sobre a “Ética” de Jacques Lacan, o sr. Kaufmann esclareceu que a letra grega η encontrava-se presente, com freqüência, nos tratados de termodinâmica da época em que Freud escreveu o Projeto. Designava a relação econômica que expressa certa possibilidade de trabalho.21 Dessa forma, Q deve ser entendida como a quantidade de energia que incide sobre a superfície do organismo, e Qη como a quantidade energética que pôde ser traduzida em tensão em direção ao trabalho psíquico. Freud propôs que o primeiro princípio que fundamenta o comportamento neuronal é o princípio de inércia, segundo o qual os neurônios procuram livrar-se da quantidade, mantendo, o máximo possível, seu estado de inércia22. A fim de melhor atender a esse princípio, os neurônios se dividem em sensíveis e motores, visando, respectivamente, 20 21 FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.211. Referência à intervenção de Kaufmann na aula de 27/04/60. Tal intervenção não consta do seminário estabelecido e publicado em português pela Jorge Zahar Editor, op. cit., apenas no cd-rom Folio Views 4.0 das Obras Completas de Freud e Lacan. 22 FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.212. cancelar e neutralizar a recepção de energia Qη. O princípio da inércia, considerado como a função primária – e utópica - dos sistemas neuronais, diria respeito à conexão direta dos neurônios sensíveis e motores possibilitando a descarga imediata dos estímulos que não puderam ser evitados através de mecanismos musculares, mantendo, assim, os neurônios, isentos de qualquer ocupação energética. A manutenção em estado de inércia requer do comportamento neuronal uma função secundária que diz respeito à fuga do estímulo Q. Isto estabelece um paradoxo pois, para executar a fuga, é necessário um acúmulo de Qη proporcional ao estímulo excitatório do qual se pretende fugir. Dessa forma, a função secundária implica numa certa transgressão do princípio de inércia. Na verdade, o princípio de inércia é, também, infringido constantemente pelos estímulos internos, dos quais não se pode exercer a função de fuga. Freud considera que os estímulos que nascem no interior do organismo só cessam através da ação específica23 que, por sua vez, também requer um certo acúmulo de Qη. A noção de ação específica será melhor abordada mais adiante. No momento, nos interessa destacar que as exigências da vida levaram o sistema neuronal a guardar um provimento de Qη, modificando a tendência à inércia, no sentido de manter o mais baixo possível as oscilações de Qη. Dito de outro modo, diante da impossibilidade de realização do princípio de inércia, este é modificado em princípio de constância. Uma vez investido por Qη, o protoplasma neuronal tem a capacidade de ser sensibilizado pelo próprio processo condutor, tornando-o diferenciado para aquele Qη. Dessa forma, num próximo investimento, Qη o percorrerá mais rapidamente, atendendo melhor ao princípio de constância. A essas modificações protoplasmáticas, Freud chamou de facilitação (Bahung)24. Em contrapartida, quando o protoplasma encontra-se indiferenciado funciona como barreiras de contato. Nesses casos, Qη o percorrerá mais lentamente. A função secundária, que requer acúmulo de Qη, é possibilitada pela existência das barreiras de contato, que atuam como represas de quantidade: resistências. 23 24 Idem, ibidem, p.213. Idem, ibidem, p.215. Freud propõe que os neurônios se diferenciam quanto à permeabilidade ao impulso: “Assim, pois, existem os neurônios permeáveis (que não oferecem resistência e nada retém), destinadas à percepção, e neurônios impermeáveis (dotados de resistência e retentores de quantidade [Qη], que são portadores de memória e, com isso, provavelmente também dos processos psíquicos em geral. Por conseguinte, daqui para frente chamarei ao primeiro sistema de neurônios “ϕ ”, e ao segundo “ψ ” ao segundo”25. Nessa perspectiva, os neurônios permeáveis, deixam passar um impulso, regredindo em seguida ao estado anterior, como se jamais tivesse sido modificado. Eles não retém Qη, deixando-a passar livremente sem oferecer resistência. Eles foram considerados como destinados à percepção. São as terminações nervosas. O neurônios impermeáveis caracterizam-se pela dificuldade com que passa a quantidade de excitação Qη. Por outro lado, Freud afirma que: “Comprovamos, com efeito, que os neurônios ϕ não terminam livremente na periferia, mas através de formações celulares, sendo essas e não aqueles neurônios que recebem o estímulo exógeno no lugar delas. Esses ‘aparelhos nervosos terminais’ – no sentido amplo do termo - poderiam perfeitamente ter a finalidade de impedir que as quantidades exógenas (Q) incidam com toda sua intensidade sobre ϕ, mas que sejam previamente atenuadas. Em tal caso, cumpririam a função de “telas para quantidade” (Q), que só deixariam passar frações de quantidades exógenas ( Q).”26 Dessa forma, a tendência do sistema neuronal de se manter isentos de Q, não apenas determina uma rápida descarga mas, através das terminações nervosas, já atua na recepção do estímulo, atenuando sua intensidade sobre , que funciona como tela, como se fosse um filtro, um amortecedor, através da qual só passam frações de Q. Tudo é feito para que a quantidade exterior Q, ao entrar em contato com o sistema ϕ seja barrada, impedindo a emergência de Qη. 25 26 Idem, ibidem, p.215. Os grifos são de Freud. Idem, ibidem, p.220. O grifo é de Freud. 1.2 – Memória e princípio do prazer Os neurônios ψ comportam-se de forma impermeável ao impulso e só adquirem maior permeabilidade e, portanto, um comportamento mais semelhante aos neurônios ϕ, através da facilitação. Uma vez que ocorre a sensibilização por uma certa quantidade, as barreiras de contato são neutralizadas pela facilitação. A facilitação constitui a base da articulação entre os neurônios ψ. Ela se dará de forma diferente entre eles, dependendo da magnitude da impressão e a freqüência com que essa impressão se repetiu. O nível de facilitação determinará a predileção por um caminho ou outro. Portanto, enquanto o sistema ϕ caracteriza-se pela permeabilidade plena, o sistema ψ, por ser impermeável, elege o caminho a ser seguido por Qη, segundo o percurso excitatório mais facilitado. Retomando a idéia dos neurônios sensíveis e motores, pode-se dizer que o sistema ψ se coloca na interposição deste círculo fechado que é a relação estímulo-descarga motora, fazendo obstáculo à descarga completa e imediata. No entanto, na busca de manter a homeostase exigida pelo princípio de constância, esse sistema opera desvios que o caracterizarão como trama. A especificidade do sistema ψ se constitui justamente nesses desvios, realizando passagens, transferências, que priorizarão, à revelia da vontade consciente, uma direção em vez de outra. Através da facilitação, o movimento do impulso trilhará o percurso de mais fácil descarga. Freud privilegiou os fenômenos de memória, salientando que todo seu interesse está voltado para a articulação do sistema ψ, destinado à memória e responsável por toda aquisição psíquica27. Dessa forma, verificamos que a memória não é apenas uma propriedade do aparelho psíquico, mas corresponde a sua essência. Freud definiu memória como a capacidade de modificação duradoura do protoplasma nervoso que consiste nas facilitações existentes entre os neurônios ψ. A impermeabilidade, que caracteriza a matriz orgânica desse sistema, justifica seu funcionamento a partir dessas modificações, verdadeiras marcas que, ao se multiplicarem, tecem a rede que o impulso percorrerá. 27 LACAN, J. – O Seminário, livro 16, De um outro ao Outro,(1968-1969), inédito, aula do dia 26/02/69. As barreiras de contato permitem o armazenamento parcial e a condução seletiva de Qη segundo a maior ou menor facilitação, fazendo com que o impulso siga preferencialmente numa direção e não em outra. Foi o que Freud chamou de trilhamento. Ao afirmar que “A memória está representada pelas facilitações entre os neurônios ψ”28, ele destacou a importância da memória como traço diferencial, responsável pela preferência por um caminho em detrimento de outro. O fundamental naquilo que se repete como memória não é tanto a identidade, mas a diferença entre os traços. Assim, a diferença comparece aqui como o próprio princípio constitutivo do aparelho psíquico. Dessa forma, a memória é constituída de mensagens que não estão diretamente vinculadas à experiência, mas que trabalha regularmente numa sucessão de sinais, circulando segundo o princípio de constância que Freud chamará em seguida de princípio do prazer. 1.3 – O sistema consciente Freud procurou, em seguida, saber segundo qual mecanismo é investido e desinvestido o sistema consciência. O sistema ψ está vinculado aos processos inconscientes. Para Freud, o sistema implicado na consciência não pode ser o mesmo do inconsciente. Considerou que a consciência não tem acesso às quantidades senão na forma de qualidades, que são as diversas sensações, que se distinguem como signos nesse aparelho especializado. Assim, as quantidades, ao atingirem a consciência, são traduzidas em signos de qualidade. Esse sistema, onde ocorrem os processos conscientes, Freud denominou sistema ω. Retomando a colocação feita anteriormente29 28 29 FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.215. Ver p.11. podemos considerar que a linguagem como função se desenvolve no sistema ω, enquanto a estrutura da linguagem corresponde ao sistema ψ. Lacan pontua que uma necessidade discursiva se impõe a Freud e o leva a postular a consciência como excluída da dinâmica dos sistemas psíquicos. A memória, ou rememoração, não produz nada que possua a natureza particular da qualidadepercepção. A função da memória, processo psíquico exclusivamente inconsciente, implica num reproduzir e recordar “desprovido de qualidade”30. O sistema nervoso se caracteriza pela capacidade de transformar as massas em movimento31, existentes no mundo externo - as quantidades externas - em qualidades, favorecendo a tendência a afastar a quantidade e respeitando o princípio do prazer. Freud situou o inconsciente entre a percepção e a consciência, colocando-as à margem do aparelho psíquico, exteriores a ele. 1.4 - A Estrutura da linguagem A memória diz respeito à “impressão” de algo ao nível do sistema nervoso. Lacan aproximou o trilhamento promovido pelas facilitações na trama neuronal ψ à lugar, que os elementos dessa estrutura são aqueles da linguagem tal como foi elaborado por Ferdinand de Saussure: significante e significado.34 Um significante se define por remeter sempre a outro significante, produzindo, nesse encadeamento, efeitos de sentido, que se organizam num significado. Essa seria uma outra maneira de dizer o que Freud havia postulado como um sistema de memória materializado no trilhamento de quantidades - no nível inconsciente - fazendo surgir, de tempos em tempos, os signos de qualidade, no nível consciente. A mecânica da linguagem, na medida que se sustenta no significante, implica que haverá, no limite da cadeia, uma letra que cai na ausência de sentido. Uma letra é um traço sem sentido que guarda relação com o significante. Há, portanto, um momento da cadeia significante em que o sentido não pode mais figurar e uma letra se destaca no lugar do sem-sentido. A letra ocupa, então, o lugar de uma falha na organização do significado Imaginário provocada pela falta de um significante. Dessa forma, a letra ocupa também o lugar de um furo no real, uma vez que o sem-sentido tem uma relação de continuidade com o sentido. A impossibilidade de haver um significante que estanque o trilhamento, impõe que a falta de sentido que isso causa aconteça sempre de “cair dentro” do sentido, ou seja, remeta a um novo sentido. O jogo significante organiza a libido em torno dessa letra que cai, fazendo dela o suporte do desejo inconsciente. A letra, portanto, é o que funciona como objeto perdido. Lacan chamou-a de objeto a, o objeto causa do desejo. Para figurar o furo no real do significante, Lacan lançou mão do instrumento topológico da banda de Moebius. Trata-se de uma estrutura tridimensional. Para construir esse instrumento toma-se uma fita e colam-se as duas pontas depois de realizar uma semi-torção. Obtém-se assim uma banda com propriedades diferentes da banda euclidiana, que tem a forma de um cilindro. A banda euclidiana tem, claramente, duas faces opostas, duas bordas e dois sentidos. Basta que se percorra com o dedo sobre a superfície de uma banda de Moebius, para notar que, diferentemente da euclidiana, é possível percorrer os dois lados da fita continuamente, sem deixar de tocá-la. Isso comprova que é uma superfície com uma única face. Recursos semelhantes mostram 34 MILLER, J-A., O monólogo da apparola (1996-97), in Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n°23, São Paulo, Editora EOLIA, Dezembro/1998, p.68-76. que tem uma única borda e um único sentido. Dessa forma, a banda de Moebius serve para conceber imaginariamente o furo no real que promove a continuidade entre sentido e sem-sentido. Figura 1.1: Esquema da montagem de uma banda de Moebius.35 Figura 1.2 – Esquema mostrando a banda de Moebius, destacando que apresenta apenas uma borda.36 35 MAGNO, M.D. – A Psicanálise, Novamente: um pensamento para o século II da era freudiana (1999), Rio de Janeiro, Novamente, 2004, p.60. 36 Idem, ibidem, p.64. Figura 1.3 – Esquema da Banda de Moebius destacando sua superfície unilátera e não orientável.37 37 Idem, ibidem, p.65. CAPÍTULO II DA REPRESENTAÇÃO AO GOZO DE ALÍNGUA Embora todo humano esteja irremediavelmente imerso na linguagem, é ainda necessário que cada sujeito dê o passo que efetiva sua captura e seu compromisso com a fala. Para a psicanálise, a instauração da representação - célula elementar da linguagem e da fala – requer o ato que enoda o sujeito, a fala e a significação. A clínica do autismo evidencia um uso singular da representação que parece desvinculada de qualquer intenção de significação. A concomitância do comprometimento da fala e da relação com o outro desde o início da vida, que o autismo evidencia, vem confirmar o vínculo originário entre fala e constituição subjetiva e remeter a uma falha estabelecida no momento inaugural da constituição do sujeito, momento em que o humano é capturado pelo simbólico. Abordarei neste capítulo as noções fundamentais da constituição subjetiva segundo a psicanálise. 2.1 - A Experiência alucinatória de satisfação Vimos que é próprio da subjetividade humana estar articulado a uma rede complexa de significantes. Como foi dito acima, embora todo humano esteja inserido na linguagem, o ser falante implica um sujeito que não se encontra diferenciado desde o nascimento. O destacamento subjetivo se dá pela operação mítica de um corte que instaura a diferença entre o eu e o mundo externo, e inaugura a relação do sujeito com o Outro. Essa operação de corte ocorre numa sucessão de acontecimentos lógicos que requer a participação do que Freud chamou Nebenmensch, conhecido pela noção de próximo assegurador: um outro falante que, de alguma forma, toma o infans aos seus cuidados. Tradicionalmente, a mãe encarna esse lugar. Lacan atribuiu a ela a função de Outro primordial na medida em que desempenha a função de transmissor da referência ao Outro da linguagem, diante do qual o infans advirá sujeito. No Projeto, são fornecidos os elementos fundamentais para o entendimento da inserção do sujeito em sua realidade psíquica, a partir do estabelecimento do que Freud chamou a primeira experiência de satisfação37. Essa experiência é apresentada nos termos de uma alteração irreversível no protoplasma das células nervosas que determinam as facilitações, responsável pela orientação dos trilhamentos. Essa foi a maneira através da qual Freud abordou, naquela ocasião, a noção de um elemento mítico, capaz de situar um gozo real, para sempre tão inacessível quanto almejado pela representação. Freud considerou que o investimento neuronal – que corresponde à elevação de Qη -, tem como conseqüência, em qualquer sistema, a propensão à descarga motora. Enquanto isso não ocorre, o aumento de Qη em ψ provoca sensação de desprazer em ω - a consciência. Sua diminuição, ao contrário, suscita a sensação de prazer. Νο sistema ψ, a primeira via a ser seguida no sentido da diminuição dos níveis de Qη é a alteração interna. Para exemplificá-la, Freud evoca o estímulo proveniente da fome do bebê, que promove uma modificação interna que se expressa no grito. O grito cumpre, portanto, originariamente uma função de descarga. No entanto, se o estímulo permanece, a descarga propiciada por essa ação interna não produz alívio suficiente, sendo necessária uma alteração no mundo externo através de uma ação específica. A especificidade dessa ação se deve ao fato dela se dar tão somente através de caminhos precisos. No exemplo da fome do lactente, a oferta do seio que alimenta, pode ser considerada como protótipo da ação específica. É importante destacar que esse exemplo evidencia que o desamparo do organismo desse pequeno homem torna-o incapaz de realizar a ação específica sem o auxílio externo, e é nessa impossibilidade real que deve situar-se a centelha do enganchamento do sujeito em seu mundo. 2.1.1 - O grito O grito deve ser considerado o primeiro movimento intencional do sujeito em direção ao Outro. Ele situa-se num ponto limite, na medida que corresponde ao esgotamento das possibilidades individuais de redução de Qη e convoca uma ação que só pode provir de um Outro. Freud conferiu ao grito, lugar de destaque na constituição do sujeito falante ao dizer que: “Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da compreensão [comunicação com o próximo], e o desamparo original do ser humano converte-se, assim, na fonte primordial de todos as motivações morais”.37 Dessa forma, a via de descarga que é o grito de apelo assume função de comunicação na medida que requer que um outro empreste a ele um sentido, traduzindo-o numa demanda. Na leitura de Lacan um grito de apelo se constitui como demanda e como desejo: “Quando a mãe responde aos gritos do bebê ela os reconhece constituindo-os como demanda, mas o que é mais importante é que os interpreta no plano do desejo da criança de estar perto dela, desejo de tomar-lhe algo, desejo de agredi-la, pouco importa. O que é certo é que por sua resposta, o Outro a dar a dimensão de desejo ao grito da necessidade, ao investir na criança, é de início resultado de uma interpretação subjetiva, função do desejo materno, de seu próprio fantasma”37. A ação específica que está em jogo na experiência de satisfação articula-se à leitura que a mãe faz do grito segundo o desejo que a atravessa. Isso faz do desejo do Outro a bússola que orienta a constituição do sujeito.37 Lacan também destacou que, ainda que tenha inicialmente função de descarga, o grito pontua a captura de algo passível de ser reconhecido posteriormente como consciência, ao sinalizar a instauração do objeto enquanto hostil: “O objeto enquanto hostil só é sinalizado no nível da consciência na medida em que a dor faz o sujeito soltar um grito. [...] O grito cumpre aí uma função de descarga e desempenha um papel de uma ponte no nível do qual algo do que ocorre de ser pego e identificado na consciência do sujeito. Esse algo permaneceria obscuro e inconsciente se o grito não lhe viesse conferir, no que diz respeito à consciência, o sinal que lhe confere seu [do objeto] valor, sua presença, sua estrutura – da mesma feita, com o desenvolvimento que lhe é conferido pelo fato de que os objetos mais importantes para o sujeito humano são os objetos falantes, lhe permitirão ver, no discurso dos outros, revelarem-se os processos que habitam efetivamente seu inconsciente”. 37 Assim, o grito corresponde ao primeiro movimento constitutivo do sujeito: o corte que, do lado do infans tem função primordial de inscrição do sujeito na linguagem ao instaurar uma relação de dependência. No entanto, Lacan ressaltou que o grito deve ser situado num nível aquém da linguagem, pois não implica em si nenhuma dicotomia, nenhuma bipartição significante37. Só depois que o desejo do Outro o interpretar, aquilo que era puro vazio, pura escansão, assumirá estatuto de palavra significativa e fará do grito, apelo. Dessa forma, Jacques-Alain Miller considera que “a resposta do Outro transforma o grito em apelo de um sujeito.”37 A clínica do autismo vem evidenciar que há possibilidade de recusa no nível do grito enquanto apelo. 2.1.2 – A primeira experiência de satisfação Freud esquematizou o que se passa na primeira experiência de satisfação afirmando que três coisas acontecem no sistema ψ: 1. Opera-se uma descarga duradoura e cessa o desprazer que o excesso de tensão (Qη) no inconsciente (ψ ) produziu no consciente (ω). 2. Gera-se o investimento que corresponde à percepção de um primeiro objeto: o semelhante que executa a ação específica capaz de fazer cessar a excitação endógena. 3. Fica registrada a descarga que se segue à ação específica, promovendo a experiência de satisfação. A experiência de satisfação gera uma facilitação entre duas imagens mnêmicas, a do objeto e da descarga (itens 2 e 3), mantendo-as associadas de tal maneira, que o investimento em uma remete facilmente ao investimento na outra. Com o reafloramento do estado de urgência, lugar onde se situará o desejo, as duas lembranças são investidas simultaneamente. Devido a esse duplo investimento, na falta do outro assegurador, a ativação desejante dos traços mnêmicos dessa experiência é capaz de produzir algo idêntico a uma percepção, ou seja, uma alucinação. Dessa forma, a primeira experiência de satisfação serve de suporte para a instalação da experiência alucinatória de satisfação. Se nos pontuarmos sobre a terminologia lacaniana, a experiência de satisfação é uma inscrição mítica de gozo que deixará traços mnêmicos dos atributos e do gozo que o outro cuidador experimenta, conforme descrito no item 2 do esquema de Freud acima colocado. Essas marcas serão investidas libidinalmente no pólo alucinatório de satisfação. Dito de outro modo, atuando no sentido da repetição da experiência de satisfação, o princípio do prazer rege os trilhamentos que se repetem em direção às representações vinculadas ao desejo e instala o lugar-tenente da representação da pulsão (Vorstellungsrepräsentanz)37. Essas representações correspondem ao reencontro alucinatório do gozo e chegam à consciência na forma de identidade de percepção. Tal identidade diz respeito a uma percepção capaz de atender ao princípio de realidade.37 Enquanto o princípio do prazer comanda a associação de uma representação à outra, o princípio de realidade elege a aglutinação de certas representações como pertencentes à realidade.37 Assim, a partir de uma marca inaugural, a regulação homeostática visa o retorno a uma identidade que servirá de apoio para a construção da realidade psíquica. A experiência de satisfação pode ser considerada a instauração de um traço real que servirá de referência a tudo que há de relevante no mundo perceptivo e, conseqüentemente, a toda realidade humana. Lacan afirmou que: “Sem algo que o alucine enquanto sistema de referência, nenhum mundo da percepção chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de maneira humana”. 37 Com isso Lacan destacou que a percepção, tal como é apresentada por Freud, não leva em conta nenhum critério de realidade, uma vez que o mundo da percepção se constrói a partir da alucinação fundamental. De certa maneira podemos dizer que, no homem, o mundo real é alucinatório. Disso se construirá o mundo externo no qual o sujeito se deslocará. Embora Freud tenha se servido da fome do bebê para abordar o estabelecimento da satisfação como uma marca inaugural, a instauração da satisfação pulsional independe de qualquer experiência real. A esse respeito, Lacan afirmou que: “Nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão. [ ... ] essa boca que se abre no registro da pulsão – não é pelo alimento que ela se satisfaz”.37 No entanto, a idéia de que a experiência de satisfação da necessidade alimentar serviria de apoio para a satisfação pulsional possibilitou a Freud instituir uma historicidade constitutiva do sujeito onde o outro, através da ação específica, assume papel fundamental na estruturação do aparelho psíquico. O vínculo com um Outro primordial (suporte da linguagem), que o outro (semelhante) encarna, é o lugar fundador do sujeito. 2.2 – A carta 52 Como foi visto na abordagem do Projeto, Freud descreveu o pensamento inconsciente como funcionamento de um aparelho de memória que consiste no deslocamento do impulso segundo as diferentes facilitações.37 Na carta 52, ele apresentou a Fliess a constituição e o funcionamento desse aparelho centrada na sucessão das Niederschriften, as inscrições, como concepção indispensável para a compreensão do funcionamento do aparelho psíquico.37 Noções como signo (Zeichen) e inscrição (Niederschrift) sugerem que o que se passa nesse aparelho é da ordem de uma escrita e que os trilhamentos neurológicos propostos no Projeto, são trilhamentos de significantes. Lacan considerou que as inscrições são o que efetivamente funcionam nos traços mnêmicos37. A carta 52 destaca-se, portanto, como momento privilegiado de “significantização” do esquema proposto no Projeto. Jacques Derrida resumiu esta passagem dizendo que ali “o traço começa tornar-se escritura”37, ou seja, o traço, ao qual Freud já havia se referido no Projeto, na carta 52 assume, mais claramente, estatuto de escrita. A rede de representações inconscientes se instaura a partir de uma sucessão de acontecimentos que marcam o assujeitamento do falante ao significante. Na carta 52, Freud descreveu o processo de estratificação onde os tempos lógicos da constituição do aparelho psíquico se distinguem segundo o esquema abaixo: W _____ Wz _____ Ub _____ Vb _____ Bew 2.2.1 – A percepção e os signos: W e Wz O circuito da apreensão psíquica inicia-se com W (Wahrnehmungen: percepções), que corresponde à pluralidade perceptiva enquanto impressões brutas do mundo exterior. Trata-se de uma posição primordial, comparável à total transparência do papel celofane do bloco mágico que não retém nenhum traço do que aconteceu. Esta etapa primitiva jamais vem à tona no sujeito como experiência registrável, permanecendo da ordem do mito, hipotética. Em seguida há o registro em Wz (Wahrnehmungzeichen: signos de percepção) que corresponde à primeira inscrição mnêmica dos signos de percepção, associados entre si por simultaneidade. Lacan dá destaque a esse aspecto ao dizer que “Temos aí a exigência original de uma primitiva instauração de simultaneidade”.37 São as representações primitivas de uma organização significante que antecede à articulação do inconsciente. Esses traços primitivos correspondem às primeiras incidências do estímulo na matriz orgânica. O momento de gestação do bebê pode nos auxiliar a compreender o que diz respeito a um tempo em que há um sujeito que ainda não nasceu, mas que já se encontra inscrito na linguagem, numa plena inserção no discurso da mãe. Esse discurso – pode-se supor – já incide sobre a matriz orgânica do bebê. Faço a ressalva de que, trata-se aqui de um exemplo que nos permite imaginar um tempo da constituição subjetiva em que o sujeito restringe-se a uma promessa, estando inteiramente submetido ao discurso do Outro, mas que já sofre as conseqüências desse discurso. 2.2.2 – O inconsciente, a repetição e o significante: Ub Quando, sobre os signos de percepção, incide uma repetição – sendo sensibilizados pela facilitação - ocorre uma transcrição que instaura o registro Ub (Unbewusstsein: inconsciente), estabelecendo a articulação entre os traços. A experiência de satisfação exemplifica o que vem a ser a articulação entre duas representações, rompendo com a simultaneidade. Nota-se ali uma abordagem privilegiada desse momento inaugural, na medida que o enlace de dois traços de memória, é sincrônico à instauração de um gozo e à vinculação inextrincável entre sujeito e Outro. Freud descreveu o inconsciente como uma rede articulada de traços mnésicos que correspondem a “lembranças conceituais”37. Lacan, fundamentado na lingüística de Ferdinand de Saussure, formulou a noção de que essas lembranças conceituais correspondem a significantes, de forma que o inconsciente consiste numa rede articulada de significantes. A estrutura do inconsciente deve, portanto, ser considerada a mesma da linguagem. Ela foi sintetizada por Lacan ao binário fundamental S1 Æ S2. Esse matema quer dizer que o importante da relação entre essas marcas, é que, no remetimento de uma a outra, há um sujeito se fazendo representar, isto é: “Um significante representa o sujeito para outro significante”37. S1 Æ S2 quer dizer, também, que um conjunto de significantes S1, como um essain37, um enxame de significantes, representa o sujeito para S2, o significante de exceção; ou que a multiplicidade do saber, representado por S2, está relacionado a S1 como unidade. Dito ainda de outro modo, S1 Æ S2 quer dizer que o sujeito surge no intervalo entre o Um e o Outro. Antes da instauração da representação de coisa, o significante comparece como simultaneidade, sem instauração do tempo, mera sucessão sem encadeamento, numa cronologia só percebida pelo Outro. Pode-se deduzir que o impedimento da passagem dos signos perceptivos para traços mnêmicos corresponde ao impedimento da inscrição dessa hiância. A repetição promove uma transcrição na medida em que implica a inscrição de uma marca diferencial entre os registros mnêmicos. A partir dessa marca diferencial, onde anteriormente só havia simultaneidade, passa a haver deslocamento metonímico e, portanto, tempo e espaço. Dessa forma, o que vem distinguir um registro da ordem do signo perceptivo de um traço mnêmico é o fato de haver, no segundo, inscrição da hiância que se traça na diferença entre os trilhamentos. Essa falta promove a captura subjetiva pelo simbólico. A instauração do inconsciente consiste no corte em que o sujeito, ao ser barrado pelo significante, se faz representar por ele. É a única via pela qual o humano avaliza sua submissão ao simbólico ao alienar-se ao significante. O deslocamento metonímico de uma representação a outra, segundo o princípio do prazer, A Vb (Vorbewusstsein: pré-consciente) é o terceiro registro, e corresponde à tradução da representação de coisa em representação de palavra, isto é, corresponde à transformação da pura alucinação ligada ao princípio do prazer em identidade de pensamento, regido pelo princípio de realidade, princípio que instaura o “eu oficial” 37. Freud destacou que o pré-consciente “está ligado à ativação alucinatória das represetações da palavra”37. Os movimentos do inconsciente, regidos pelo princípio do prazer, chegam à consciência na medida que podem ser verbalizados, quer dizer, traduzidos pelas palavras para o princípio de realidade que vigora no pré-consciente e no consciente. Freud afirmou que: “o material presente sob a forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com as novas circunstâncias – a uma retranscrição”. 37 Os traços mnêmicos são inscrições diferenciais – significantes – que se deslocam indefinidamente, só estancando mediante uma retranscrição, uma tradução no registro do pré-consciente num signo de qualidade, que corresponde à aparição de um significado no nível da consciência. Nesse processo, a liberação de desprazer que a tradução de certos traços pode provocar, promove uma falha de tradução que corresponde ao recalcamento desses traços. Segundo Freud, a representação de palavra que se constitui no pré-consciente, na consciência (Bewusstsein), vem ordenar-se de acordo com certas regras, as quais, para Lacan, são as regras do significado. Assim, o campo da consciência é dominado pelo ordenamento num significado que se presta à ilusão da comunicação. Nele, o inconsciente comparece através de suas formações – chistes, atos falhos, sintomas – que se contrapõe ao que se quer dizer conscientemente. 2.3 - A função intelectual do juízo como ato fundador da realidade Para explicar um funcionamento psíquico, Freud partiu de um aparelho que, regido pelo princípio do prazer, é feito, não para satisfazer à necessidade, mas para alucinar a experiência de satisfação. Dirige-se, portanto, ao engodo e ao erro. É preciso que entre em jogo um outro aparelho que se opõe ao primeiro, exercendo uma instância de realidade, retificando o que parece ser a tendência natural do psiquismo. O princípio de realidade guia o sujeito em relação a esse orthos, para que ele chegue a uma ação possível. Lacan destacou que, antes de Freud, ninguém havia colocado com tanta clareza o caráter radicalmente conflituoso da organização psíquica, onde um dos sistemas se desenvolve para ir contra a irretratável inadequação do outro.37 No entanto, a instauração do inconsciente foi também abordada por Freud sob a ótica da ação de uma tendência primitiva de destruição: a função intelectual do juízo. Esse ato consiste no corte fundador do sujeito e decide sobre a construção do mundo em que ele se fará representar. O texto “A Negação”,37 ele dá as coordenadas do que se passa nesse momento mítico, ao considerar que a função do juízo, “deve atribuir ou negar uma qualidade a uma coisa e deve conceder ou negar à uma imagem a existência na realidade”. 37 Trata-se, portanto, de uma função que se desdobra em dois tempos: juízo de atribuição e juízo de existência. Há um tempo anterior à simbolização em que as percepções limitam-se a massas moventes que se opõe à “primitiva tendência à inércia”37. Esse tempo se conclui quando, no campo perceptivo, incidem o juízo de atribuição – que atribui qualidade ao signo perceptivo - e o juízo de existência – que estabelece o princípio de realidade. 2.3.1 - Juízo de atribuição: a instauração do signo algébrico da Bejahung Através do juízo de atribuição, as qualidades consideradas boas são afirmadas como internas, sendo introduzidas e, por assim dizer “comidas”, privilegiando o aspecto da oralidade, vindo a constituir o eu-prazer originário. A inserção do sujeito na linguagem diz respeito a um processo de “incorporação” implicado no juízo de atribuição. O resto dessa operação de inscrição se recorta como fora, como qualidades más, expulsas do eu, tidas como estranhas a ele. Desta forma, o juízo é, primeiramente, uma função que afirma ou nega, onde a negação diz respeito à expulsão de um primeiro traço de representação. Essa função incide, portanto, no campo das representações, estabelecendo uma clivagem que pode ser considerada como pré-subjetiva, possibilitando a separação entre dentro e fora, e fornecendo, assim, um esboço primitivo de delimitação do campo em que o sujeito virá a ser. Nas palavras de Lacan: “O domínio próprio do eu primitivo, o Ur-Ich [eu-primordial] ou Lust-Ich [eu-prazer], se constitui pela clivagem, pela distinção do mundo exterior – o que está incluído dentro distingue-se do que é rejeitado pelos processos de exclusão, Ausstossung, e de projeção”. 37 Essa primeira bipartição corresponde à aceitação ou rejeição de um significante primordial.37 A expulsão – Ausstossung - funda o que Lacan chamou registro do Real, como o impossível de se fazer representar no significante, aquilo que está excluído da ordem simbólica. No mesmo ato, a expulsão se contrapõe à afirmação – Bejahung –, que diz respeito à inclusão do Real no significante. Daí a Bejahung ser conceituada como a primeira afirmação sobre o Real. Lacan diz que a Bejahung é a “condição primordial para que do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser”37. Indica com isso que, antes desse ato constitutivo, o sujeito no ser falante mantém-se como não revelado, inconstituído. A Bejahung é a afirmação da captura do ser vivente pelo significante através da precipitação de uma marca diferencial que o inscreve: o traço unário. Desta forma, a Bejahung é a matriz significante, a condição de possibilidade das operações simbólicas. 2.3.2 - O juízo de existência: A realidade como o mundo das representações O juízo de atribuição instaura, originariamente, o Lust-Ich, onde, segundo o princípio do prazer, as representações compatíveis com o que pode ser registrado como prazer (ou seja, como descarga da tensão) são introjetadas como boas e concorrem para uma primeira organização do eu. O que resta dessa operação é notado como externo e hostil. Essa primeira bipartição em bom e ruim servirá de base para que, num segundo tempo, esse eu-prazer seja submetido à prova de realidade - o juízo de existência - tem como função decidir sobre a realidade de uma coisa representada.37 Freud afirma que: “A outra decisão da função do juízo, a referência à existência real de um objeto imaginado (teste de realidade), é um interesse do eu real definitivo, que se desenvolve partindo do eu inicial regido pelo princípio do prazer. Já não mais se trata de que algo percebido (uma coisa) deva ou não ser acolhido no eu, mas se algo existente no eu como representação possa ser reencontrado também na percepção (realidade). [...] A antítese entre o subjetivo e o objetivo não existe desde o início. Se constitui assim que o pensamento possui a faculdade de tornar de novo presente, por reprodução na imagem, algo uma vez percebido, sem que o objeto tenha que continuar existindo fora.”37. Dessa forma, o juízo de existência instaura a oposição entre subjetivo e objetivo ao decidir sobre a existência de um objeto imaginado. No juízo de existência, o exterior é posto à prova a partir do interior. Freud sugere que a perda do objeto de satisfação é condição para que se dê a prova de realidade, ao dizer que: “A primeira e mais imediata finalidade do exame da realidade não é encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado , mas reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe.[...] A reprodução de uma percepção como imagem não é sempre sua repetição exata e fiel, pode estar modificada por omissões e alterada pela fusão de diferentes elementos. O exame da realidade deve então apurar até onde vão tais deformações. Mas descobrimos, como condição do desenvolvimento do exame da realidade, a perda de objetos que um dia trouxeram uma satisfação real” 37 O juízo de existência é o que vem conferir realidade ou não do objeto de satisfação. Como na experiência alucinatória de satisfação, essa decisão terá como base os traços do gozo do Outro e dirá sempre respeito a uma imagem do objeto, a uma ilusão. Dizer que se trata de um reencontro quer dizer que esse objeto está perdido desde sempre37. Lacan disse que “a tendência a reencontrar, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto.”37 Uma vez que é impossível o encontro com o objeto, essa orientação, regida pelo princípio do prazer, se dá na forma de rodeios, guardando uma certa distância em relação ao objeto definitivamente perdido. Trata-se de um reencontro que só se dá de forma quimérica, veiculada pela linguagem. Foi visto anteriormente que a hipótese da experiência de satisfação primordial serve a Freud de modelo da estruturação da relação do sujeito com o objeto, a partir da qual se estabelecerá o investimento alucinatório numa imagem mnêmica. No entanto, o investimento na imagem não é o bastante para atender às exigências de uma necessidade real, impondo-se um princípio retificador a fim de separar o sujeito dessa alucinação à qual se adere. Nas palavras de Ricardo de Sá: “Esse critério que opera no real, cuja eficácia permite que uma realidade se estabilize como um sistema de coisas inanimadas, consiste em produzir um prazer mais duradouro que ultrapasse o curto relampejar da alucinação. Se, na alucinação, a representação de uma coisa se apresenta como uma presença positiva do objeto e, portanto, investida no lugar da própria ausência de um objeto que tem o dom de proporcionar alguma satisfação ao aparato psíquico, a busca por uma efetividade do prazer possibilita levar a efeito uma ação que culmine num ato do sujeito capaz de conferir uma realidade ao seu desejo.”37 Em síntese, pode-se dizer que, o juízo de atribuição é o momento em que se dá a transcrição dos signos perceptivos em representação de coisa enquanto o juízo de existência consiste na tradução das representações de coisa em representação de palavra. Inicialmente, a função intelectual do juízo, segundo um critério de qualidade, instaura o eu-prazer pela introjeção de representações boas. O que resta dessa operação é reconhecido como hostil. O aparelho psíquico se satisfaz, nesse tempo, com a existência da representação. O trilhamento das representações, segundo o princípio do prazer, promove uma série de deformações que são limitadas pela prova de realidade. Ao decidir se o que foi afirmado como representação pode ou não ser reencontrado, a função do juízo barra o princípio do prazer e instaura o princípio de realidade. Trata-se da construção da realidade psíquica a partir de um ato que decidirá se outorga ou não uma fiança à representação como existente na realidade. É o momento de decisão quanto à relação que se estabelecerá com o Outro. Através do juízo de existência opera um corte na estrutura, que vigorava inicialmente sob a vigência exclusiva do princípio do prazer, o eu inicial, com suas pequenas oscilações de energia, e impõe ao sujeito uma ação de interesse do eu real definitivo, onde o princípio de realidade enoda Real, Simbólico e Imaginário. À luz da eficácia da função intelectual do juízo podemos entender quando Lacan diz que o psicótico não acredita no Outro.37 Esse “não acreditar” diz respeito à inexistência dessa fiança do Outro, onde lhe seria garantido - tal como acontece com o neurótico - um lugar, por mais enigmático que seja, na cadeia significante do Outro, lugar ao qual ele poderá identificar-se como significação fálica. Nesse momento primitivo da constituição subjetiva, está em jogo a escolha do sintoma expressa na frase de Freud: “O julgamento é o ato intelectual que decide sobre a escolha da ação motora, coloca um fim à protelação do pensamento e conduz do pensamento à ação.”37. Lacan resume o movimento constitutivo do sujeito dizendo que há primeiro uma substância, ou um sujeito da experiência que corresponde à oposição princípio do prazer/princípio de realidade. Segue dizendo que: “Há, em seguida, um processo da experiência que corresponde à oposição entre o pensamento e a percepção. O processo divide-se conforme se tratar da percepção – ligada à atividade alucinatória, ao princípio do prazer – ou do pensamento. É o que Freud chama de realidade psíquica. De um lado está o processo enquanto processo de ficção. De outro, estão os processos de pensamento, pelos quais se realiza, efetivamente a atividade tendencial, isto é, o processo apetitivo – de busca, de reconhecimento e, como Freud explicou mais tarde, de reencontro do objeto. Essa é a outra face da realidade psíquica, seu processo como inconsciente, que é também processo de apetite”. Em terceiro lugar, no nível da objetivação, “do objeto, o conhecido e o desconhecido se opõe. [...] As oposições ficção/apetite, cognoscível/não-cognoscível, dividem o que ocorre no nível do processo e no nível do objeto”.37 Assim, Lacan opõe percepção, que é da ordem da ficção - da imagem –, ao pensamento inconsciente como processo simbólico de apetite, de busca do objeto. 2.4 – O circuito pulsional Ao abordar a primeira experiência de satisfação, Freud manifesta que o sujeito se constitui na relação com um outro, na medida que, através dessa relação, se transmitem os signos do gozo do Outro. Em “A pulsão e seus destinos,”37 ele aborda esse enlace com o Outro, em termos do circuito percorrido pela pulsão. Como foi visto anteriormente, para que um traço mnêmico se torne uma representação, é preciso que ele seja investido libidinalmente. A experiência primitiva de satisfação coincide com o momento da satisfação pulsional que ocorre, não mediante o alcance do objeto, mas na medida que a pulsão completa uma certa trajetória que estabelece o enlace com o Outro através de uma imagem que representa o gozo do Outro. Essa trajetória que almeja o encontro com o objeto causador desse movimento, jamais o encontra, mas realiza um circuito que o contorna. Ao ser cingido pela pulsão, o objeto revela-se como definitivamente perdido. Assim, a pulsão move-se na direção determinada pelo objeto que a causa e que lhe impõe percorrer os tempos necessários para seu remate. Freud estabelece três tempos do circuito pulsional, que podem ser resumidos da seguinte forma: No primeiro tempo, o recém-nascido dirige-se para o objeto externo, seio ou mamadeira, e o agarra, o “suga”. No segundo tempo, reflexivo, o bebê toma uma parte de seu corpo como objeto e “se suga”. No terceiro tempo, o bebê se oferece como objeto de um outro, ao oferecer-se para ser sugado, “fazendo-se sugar”. Dessa forma, o gozo do Outro é fisgado, e o infans é capturado na relação com o Outro. Lacan chamou-o de tempo do “fazer-se”.37 Lacan considerou que no primeiro e no segundo tempos a pulsão é acéfala. No terceiro, a pulsão terá um sujeito que é o Outro. O terceiro tempo é passivo na medida que o sujeito é comido ou chupado pelo Outro. Trata-se, no entanto, de uma passividade ativa (fazer-se comer, fazer-se chupar) onde se estabelece um faz de conta, essencial para a estruturação do aparelho psíquico: a criança se oferece para ser comida pelo outro, fazendo surgir a imagem (correspondente à experiência alucinatória de satisfação) que realiza de forma fictícia o gozo interdito de incorporar o objeto. “Quando este terceiro tempo acontecer, sei que, no pólo alucinatório de satisfação primária, vai permanecer algo da representação do desejo (Wunschvorstellung), não apenas as características desse próximo capaz de socorrer que é o Outro (Nebenmensch) – mas ainda algo do gozo desse Outro”. 37 O terceiro tempo do circuito pulsional, momento em que o infans se faz objeto de um novo sujeito, marca, no pólo alucinatório de satisfação do desejo, os traços mnêmicos do gozo do Outro. Ainda que se trate da pulsão oral, esses traços não devem ser concebidos apenas como aqueles promovidos pela sucção do seio. Devemos incluir entre esses objetos o olhar e a voz. Para poder operar como Outro, esse outro – que tem na mãe seu principal representante - deve estar convenientemente posicionado na estrutura simbólica. Só assim, seu olhar poderá oferecer ao bebê uma primeira unidade perceptiva imaginária. Este investimento libidinal dos pais foi nomeado por Lacan como “falicização do bebê”, que faz do corpo desse falante que virá a ser, um pólo de atribuição. “Esta unidade, que se constitui no olhar do Outro fundador é a pré-forma (Urbild) do corpo do bebê”37. O olhar fundador do grande Outro é condição prévia para a constituição do sujeito e do eu. O gozo fálico do Outro é indispensável para a estruturação do aparelho psíquico. O terceiro tempo do circuito pulsional corresponde a essa falicização pelo olhar do Outro primordial, onde o bebê se faz comer, se faz olhar e, portanto, corresponde à emergência do gozo fálico. 2.5 – O olhar do Outro na construção da realidade 2.5.1 - O esquema óptico O experimento do buquê invertido é utilizado em óptica para exemplificar o comportamento dos raios luminosos frente a um espelho côncavo. Lacan serviu-se dele para ilustrar o entrelaçamento do mundo imaginário com o mundo real que acontece no momento inaugural da constituição do sujeito37. Figura 2.1 – Esquema do buquê invertido Em virtude das propriedades da superfície esférica, os raios luminosos que emergem de um objeto colocado no centro de curvatura de um espelho côncavo, convergirão no ponto simétrico e invertido do espelho, produzindo uma imagem real e invertida. O experimento do buquê invertido coloca dentro de uma caixa com a abertura voltada para o espelho, um buquê de flores de cabeça para baixo. Sobre a caixa, um vaso em posição normal. Um observador colocado numa posição específica, cujo campo de visão permite visualizar o ponto de convergência dos raios que se refletem do espelho, não vê o buquê enquanto objeto real, pois ele está escondido pela caixa, porém, verá sua imagem real, ali onde ela se forma, no gargalo do vaso. A projeção da imagem no espaço real, ainda que um pouco borrada, não deixa de dar uma impressão de realidade, e o olhar do observador bem posicionado vê então o vaso contendo o buquê de flores. A inversão da posição dos objetos, obviamente, não alteram as leis da física e dessa forma, se colocarmos o vaso dentro da caixa e as flores sobre ela, teremos a imagem real do vaso contendo o buquê de flores real. A imagem borrada do vaso dá às flores reais o continente que possibilita uma unidade mínima e, ao mesmo tempo, o vaso real situa o objeto imaginário. 2.5.2 - “O desejo emerge em um confronto com a imagem”37 O experimento do vaso (ou buquê) invertido torna sensível o que se passa no momento em que a realidade psíquica se constitui. As flores reais desse esquema óptico equivalem aos signos perceptivos, anteriores ao surgimento do eu, que requerem a organização imaginária do vaso para constituir um conjunto no momento em que se dá o nascimento do eu, através da clivagem entre o eu-prazer e o mundo exterior. Lacan diz que: “É o nível ao qual Freud se refere em Die Verneinung, quando fala dos julgamentos de existência – ou bem é, ou bem não é. E é aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu”. 37 Dessa forma, Lacan estabeleceu uma equivalência entre a função do julgamento, proposto por Freud no texto A Negação e a emergência de uma amarração entre o real orgânico, a imagem e o significante. Assim como, para que a imagem unificante se forme é necessária a convergência dos raios, para que o mundo externo se constitua é necessário que se produza uma série de encontros37. Essa unidade foi abordada por Lacan como S1, o enxame de signos perceptivos que convergem num significante Um, que remete necessariamente a um significante Outro. Para que isso ocorra é indispensável não apenas a existência do olho - capaz de reconhecer o conjunto formado pela combinação da imagem com o real - mas que ele esteja na posição devida. O esquema óptico ilustra que, para poder operar eficazmente como Outro, é preciso que o outro esteja devidamente posicionado na cadeia simbólica. Ele considera que: “Para que a ilusão se produza, para que se constitua diante do olho que olha, um mundo em que o imaginário pode incluir o real e, ao mesmo tempo, formá-lo, em que o real também pode incluir e, ao mesmo tempo, situar o imaginário, é preciso que uma condição seja realizada – eu o disse a vocês, o olho deve estar numa certa posição, deve estar no interior do cone”.37 A localização do olho caracteriza o lugar do sujeito no mundo da palavra37, indicando que “o motor dessa operação é o ato da palavra, um funcionamento coordenado a um sistema simbólico já estabelecido, típico e significativo. ”37 Através da instauração da relação especular, o imaginário dá consistência ao objeto do desejo, produzindo uma amarração que nomeia, viabilizando o estabelecimento do jogo de transposição imaginária onde os objetos se multiplicam e “permitem ao ser humano ser o único entre os animais a ter um número quase infinito de objetos à sua disposição”.37 Assim nota-se que “o desejo emerge em um confronto com a imagem”.37 2.5.3 – A nomeação Na carta a Jennny Aubry, Lacan destacou que - ainda que a pulsão seja sem objeto determinado - o desejo precisa ser nomeado para que haja a constituição de um sujeito. Esta transmissão, da ordem de um desejo que não seja anônimo, se daria a partir da função da mãe e do pai: “Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor da encarnação da Lei no desejo”. 37 Ao afirmar que ”só pode haver definição do nome próprio à medida que há uma relação entre a emissão nomeante e algo que em sua natureza radical é da ordem da letra”, Lacan deu relevo ao significante como caráter distintivo e principal elemento do nome próprio. Ele o situou como função da letra, pois não depende de seu caráter fonemático. O nome próprio comporta duas ordens de funções: uma enquanto traço distintivo puro – a letra -, outra enquanto garantia de um lugar simbólico no Outro, através da qual o sujeito pode apoiar-se no que um ancestral designou para ele.37 2.5.4 - O campo da realidade A instauração da Urbild, tal como é representada no esquema óptico, corresponde à organização do sujeito no enlace ao outro. Esse enlace será responsável pelo estabelecimento do campo da realidade. Em De uma questão preliminar para todo tratamento possível das psicoses, Lacan representou o campo da realidade por um quadrilátero na forma de um trapézio sustentado pelos triângulos do Simbólico e do Imaginário.37 Isso quer dizer que o sujeito se constitui ao emergir na cadeia significante articulado ao objeto perdido que é a letra. O campo da realidade é o lugar-tenente da relação entre sujeito e objeto. Figura 2.2 – Esquema R: O campo da realidade recobre o Real ao ser esgarçado pelos triângulos do Imaginário – m,i,ϕ -, e do Simbólico – M,I,P.37 Cerca de dez anos depois, Lacan acrescentou, nesse mesmo trabalho uma nota dizendo que “o esquema R expõe um plano projetivo”37, também chamado de cross-cap. Ele quer dizer com isso que, é na medida que houve a extração do objeto a, que o sujeito, então barrado pelo desejo, sustenta o enquadre do campo da realidade. Acrescentou ainda que: “Quem acompanhou nossas exposições topológicas [...] deve saber perfeitamente que na banda de Moebius, não há nada de mensurável a ser retido em sua estrutura, e que ela se reduz, como o real em questão, ao próprio corte”.37 O olho como símbolo do sujeito indica que na etapa primitiva da constituição subjetiva o sujeito é falado pelo Outro e só se constitui ao alienar-se num significante. É o que se deduz ao ler em Lacan: “Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele,e é aí que ele se apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta no seu advento, produzido agora pelo apelo, feito no outro, ao segundo significante. ”37 Logo, a nomeação do desejo depende do olhar parental. Para que o sujeito se constitua, o investimento libidinal da mãe deve ser fisgado na experiência alucinatória de satisfação, marcando o registro simbólico como borda do real. A mãe é o primeiro grande Outro primordial, na medida que é afetada pelo desejo. O esquema óptico de Lacan é metáfora do estabelecimento da relação entre simbólico imaginário e real que é apresentada por Freud na experiência de satisfação. Nesse momento se dá a captura do sujeito pelo gozo da palavra, o gozo do Um, através da junção da linguagem com a imagem – referida a uma alucinação. A partir da primeira experiência de satisfação, o jogo de transposição imaginária leva à multiplicação dos objetos que permitirá ao falante dispor de um número de objetos só limitado pelo sintoma. Pode-se dizer que o gozo promovido pelo significante possibilita a multiplicação dos objetos. Lacan considerou que, como numa máquina de calcular, a primeira experiência de satisfação circula em forma de mensagem.37 A realidade é de tal maneira triada pela experiência de satisfação (gozo do Outro) que podemos dizer que o mundo exterior é construído a partir de peças escolhidas.37 Um tempo de idas e vindas deve ser percorrido a partir da primeira identificação até que a realidade se fixe numa conclusão edípica. Essas idas e vindas darão moldura ao real humano, constituindo sua realidade. 2.6 – O gozo A experiência de satisfação descrita por Freud37 pode ser retomada, a partir da leitura de Lacan, como uma descarga onde a satisfação em questão encontra-se essencialmente ligada a uma experiência de gozo. Na instauração do inconsciente algo se cifra no significante e ocorre um gozo nesse ciframento. Essa experiência enlaça a comunicação tanto quanto a ultrapassa. Jacques-Alain Miller reorganizou a teoria do gozo na obra de Lacan subdividindo-a em seis paradigmas do gozo37. Mostrou que ao longo da teorização de Lacan se verifica uma verdadeira pulsação, um ir e vir entre significante e gozo, que ora se aproximam, ora se afastam, refletindo nesta trajetória o próprio movimento pulsional que vincula significante e gozo no ser falante. O terceiro tempo do circuito pulsional – fazer-se comer –, mencionada no item 2.4 dessa dissertação, corresponde a um gozo em que há o destacamento do objeto. Miller destacou que, no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Lacan definiu o inconsciente como uma borda que se abre e se fecha, tornando-o homogêneo a uma zona erógena.37 A cavidade contornada pela pulsão é homóloga àquela criada pela anulação significante e ocupada pelo objeto a. A inadequação inerente à impossibilidade de correspondência, entre esse objeto e a hiância que ele visa encobrir, promove o deslizamento metonímico dos objetos a. Esse aspecto foi abordado quando se falou da multiplicação dos objetos. O gozo é, portanto, nessa abordagem, distribuído sob a figura dos objetos pequenos a, que são elementos de gozo37. A propósito, Miller disse que o objeto a tem: “Ao mesmo tempo, a estrutura elementar do significante, e é substancial, enquanto que o significante é material e não substancial. Há uma matéria significante, mas há uma substância de gozo, e é aí que se mantém a diferença entre o objeto e o significante.” 37 Assim, pode-se considerar que no momento inaugural do sujeito, a experiência. de satisfação, a matéria significante destaca-se das marcas (substância) de gozo do Outro que vem configurar o objeto. Miller considerou que, com a noção de discurso, elaborada mais detalhadamente no seminário O avesso da psicanálise, Lacan deslocou o enfoque da relação primitiva e originária entre significante e gozo, passando a valorizar a repetição, como repetição de gozo. Dessa forma, Miller aproximou a definição clássica de significante proposta por Lacan – “O significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”37 –, da definição, mais afinada com este paradigma - “O significante representa o gozo para outro significante”37 -, uma vez que o significante faz faltar o gozo assim como faz faltar o sujeito. O significante faz faltar o gozo na medida que promove o gozo fálico que é o gozo fictício. O sujeito é estruturalmente irrepresentável. Paradoxalmente, ele requer a representação, pois só surge cristalizado no significante, que representa sua morte. É o que traduz a frase de Lacan: “O significante faz surgir o sujeito ao preço de cristalizá-lo”.37 Se, inicialmente consideramos a primeira experiência de satisfação como correspondendo à instauração da imaginarização do gozo, não de pode esquecer que também estabelece o gozo como ponto de inserção do sujeito no aparelho significante. Lacan, no final de seu ensinamento, priorizou a palavra em sua dimensão de corte, de gozo da disjunção, sendo tomada para além de sua função de comunicação. Miller destacou que, no final da obra de Lacan, a disjunção ou não-relação nos conduz a um Um-totalmente-só, separado do Outro, onde o Outro aparece como Outro do Um, e o Um como verdadeiro Outro do Outro37. O gozo do Um pode comparecer em três configurações: o gozo do corpo próprio; o gozo concentrado sobre a parte fálica do corpo, que se estabelece na não-relação com o Outro; e o gozo da palavra, onde a palavra é o gozo e não a comunicação com o Outro. No quarto capítulo veremos as conseqüências desse avanço na concepção do gozo para o entendimento do autismo. 2.7 - O gozo de alíngua No animal existe um saber instintual que possibilita a realização do coito sexual, através da colagem entre Imaginário e Real. Um breve exemplo dessa colagem pode ser verificado na constatação de que um animal como a pomba atinge a maturidade sexual mediante a visão de um semelhante da mesma espécie. Por tal motivo, quando se coloca um espelho diante de uma pomba se obterá o mesmo resultado evidenciando que ela não se engana quanto aos traços imaginários do objeto sexual que o real orgânico determina. Por outro lado, no ser falante, a intervenção do Simbólico estabelece a inexistência da relação sexual forçando-o na direção da construção de uma unidade promovida pelas palavras e pelo corpo, que possa estabelecer alguma equivalência com a relação sexual. Essa unidade se dá nos efeitos de sentido que emergem do remetimento de um significante a outro. O efeito de sentido resultante do binário inicial S1 – S2, que corresponde à articulação significante inconsciente37, não tem intenção de significação e, portanto, não está a serviço do diálogo, mas da realização do gozo possível para o falante.37 Em seu trabalho, persistente, de formalização, visando uma transmissão precisa e eficaz da experiência analítica, Lacan serviu-se da matemática e da lingüística nos momentos mais avançados de sua teorização. No campo da matemática, a teoria dos conjuntos é um dos exemplos. Georg Cantor, criador da teoria dos conjuntos e das hipóteses do contínuo e do transfinito, propõe a noção de conjunto como a totalidade dos elementos que existe simultaneamente, funcionando como um objeto único, uma multiplicidade consistente. No entanto, o esvaziamento da consistência faz surgir, na borda da multiplicidade consistente, algo da ordem do impossível de reunir-se, a multiplicidade inconsistente e infinita. Lacan notou a compatibilidade entre a teoria de Cantor e a multiplicidade a qual remete o conceito de inconsciente enquanto unidade que implica uma disjunção37. Lacan, num lapso37, forjou o termo lalangue pelo acoplamento do artigo definido la com o vocábulo langue37. Esse termo, traduzido como alíngua, está relacionada ao que anteriormente foi definido como línguas naturais, língua corrente, ou língua materna37 sem que possa igualar-se a essas noções, pois leva em conta a idéia de unidade disjunta trazida pela matemática. Através de alíngua se transmite a coletânea dos traços dos outros sujeitos em que cada um inscreveu seu desejo37. A inscrição descrita por Freud na experiência de satisfação é abordada em termos de alíngua. Os traços mnêmicos são representações que se registram em alíngua. Dito de outro modo, na medida que não há relação sexual, esta se dá por intermédio do sentido precipitado pelo sem-sentido que caracteriza alíngua. O fenômeno essencial de alíngua não é o sentido, mas o gozo.37 Dessa forma, alíngua não está comprometida com o significado das palavras, mas com a gramática e com a repetição37, pois retorna como um estribilho37, assim como a mensagem que surge na primeira experiência de satisfação. O motor de alíngua não é a comunicação, mas a homofonia37, o que desloca o foco da linguagem em direção à fala. No discurso inconsciente, o significante, despojado do lastro do significado, faz emergir efeitos de sentido que podem se propagar e proliferar ao infinito37. Com o conceito de alíngua, Lacan visou dar conta do paradoxo implicado na noção de unidade disjunta a qual corresponde o efeito de sentido. Ao considerar alíngua um “caule de gozo” na “árvore do gozo fálico”37, Lacan destacou a importância de alíngua nos efeitos de cristalização nas redes do gozo, os efeitos de sentido. O sentido é sexual porque faz suplência ao sexual que sempre falta37. A alíngua se sustenta no malentendido37 que mobiliza o sentido de fazendo com que se cruzem e se multipliquem.. Ela indica que todo sentido é equivocado. Pela ambigüidade de cada palavra, a alíngua possibilita a unidade promovida pelo efeito de sentido e tem, simultaneamente, função de escoamento de sentido37. Assim, a alíngua diz respeito ao que é da ordem da castração - do Real - no campo da linguagem.37 Os conceitos de alíngua e efeito de sentido possibilitam uma abordagem mais apurada do que foi descrito por Freud na experiência de satisfação. O efeito de sentido é o ponto em que se dá a amarração entre R, S e I, tal como na experiência de satisfação. Sua vantagem é abordar o vínculo inelutável com o Outro, salientando que pode ou não estar acoplado a uma intenção de dizer. Mesmo que não esteja, o efeito de sentido corresponde a uma unidade vinculada ao gozo da fala, promovida por alíngua que estabelece a relação moebiana entre sentido e sem sentido. Alíngua está vinculada tanto ao sentido proveniente da experiência de satisfação quanto ao sem-sentido, anterior a qualquer simbolização.O autista vem mostrar de modo privilegiado essa relação com a fala que não passa pela linguagem. Lacan considerou que alíngua deve ser entendida como aquilo que promove a animação significante do corpo, de forma a possibilitar um gozo distinto do corpo, o gozo fálico que ele denomina, neste contexto, gozo semiótico37, destacando que esse gozo acontece na emergência do signo lingüístico37. Lacan distinguiu um saber sobre alíngua do o savoir faire com alíngua. O saber sobre alíngua corresponde a uma construção de saber capaz de estabelecer laço social, um saber privativo da linguagem. Assim, Lacan disse que a “linguagem é uma elucubração de saber sobre alíngua”.37 O discurso inconsciente, na medida que é estruturado como uma linguagem também é uma elucubração de saber sobre alíngua37. Mas o savoir faire com alíngua diz respeito a um saber capaz de fazer emergir um gozo. Dessa forma, o inconsciente é testemunho de um savoir faire com alíngua, uma vez que é um saber que se define pela conexão significante vinculada a um gozo. Esse encadeamento significante chega à realidade na forma de um saber não sabido – um enigma - que sustenta o laço social. Lacan afirmou que: “Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar”. 37 Alíngua é o correlativo à disjunção Real37 implicada no sentido Imaginário – o semblante – através do campo Simbólico do significante. É a falta de sentido que sustenta os efeitos de sentido que possibilitam o gozo fálico. A alíngua é pura diferença que encontra no inconsciente seu saber fazer na medida que essa diferença se introduz no campo da linguagem37. Esse avanço na teorização da psicanálise permite sustentar a hipótese de uma anterioridade de alíngua ao significante mestre37, de tal forma que, o campo de alíngua, antes de por ordem nos significantes, põe a nu uma cadeia de significantes sem efeito de sentido. Haveria, portanto, um saber fazer com alíngua, mas não um saber sobre alíngua.37 2.8 - Em síntese... Ao longo desse capítulo vimos que a emergência da representação requer o que Freud chamou de a primeira experiência de satisfação. Sob o ponto de vista da pulsão, a primeira experiência de satisfação corresponde ao momento histórico do primeiro fechamento do circuito pulsional, destacando assim, aquilo que ocupará, na estrutura, o lugar de objeto. É também o momento de instauração do recalque originário, em que uma perda irreparável – a castração – se instaura. Portanto, a assunção da representação marca a coincidência de um gozo – a já mencionada experiência de satisfação –, e de uma perda – o destacamento do objeto, que se coloca como causa do investimento pulsional. Esse objeto é imediatamente velado, vestindo a imagem de um outro que nasce em espelho com o eu. Na origem, o sujeito é ao mesmo tempo um outro37. A constituição subjetiva para Freud implica um ato, um julgamento, que tem a função de afirmar ou negar a realidade da representação. A função intelectual do juízo é uma outra maneira de abordar o recalque. CAPÍTULO III ELEMENTOS DA CONSTRUÇÃO DE UM CASO DE AUTISMO A invenção freudiana do inconsciente o estabelece como um sistema de registros mnêmicos que se articulam numa rede com possibilidade infinita de combinação. Tratase de um conjunto aberto de traços, uma vez que está em permanente renovação. De tempos em tempos, esses traços se organizam num conjunto finito que é traduzido para o consciente num significado. Dito de outro modo, as representações, que são os traços mnêmicos, ao serem submetidas às regras de organização do significado, são traduzidas na consciência, na forma daquilo que o eu é capaz de reconhecer como pensamentos. Dessa forma, o campo da consciência é dominado pelo ordenamento num significado que atende às exigências da compreensão e da comunicação. A parte do inconsciente que não se submete à essa tradução, comparece nas brechas da consciência, através de suas formações – chistes, atos falhos, sintomas, sonhos -, que se contrapõem à sua coerência, fazendo a comunicação vacilar. Isso é válido para todos, pois todo humano está submetido à fala. Lacan é contundente ao dizer: “Não esqueçam jamais que nada do que diz respeito ao comportamento do ser humano como sujeito, e ao que quer que seja no qual ele se realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser submetido às leis da fala.”37 Portanto, para a psicanálise, a criança autista está inserida na fala, ou seja, sua subjetividade emerge no encadeamento significante. Ela, como todo falante, recebe seu ser da relação com o significante. No entanto, a precocidade do aparecimento de suas manifestações, a estranheza da fala, a forma como esses sujeitos se colocam no mundo, levam a supor que, no autismo, a constituição da representação encontra-se comprometida em sua origem, deixando o sujeito sem poder servir-se da proteção do simbólico. Esse trabalho aborda a hipótese, trazida pela leitura de Lacan, de que a clínica do autismo mostra as conseqüências de uma recusa radical da inserção simbólica. O que quer dizer essa recusa, num ser cuja particularidade reside justamente no seu assujeitamento ao Simbólico? O caso de um menino autista pode nos auxiliar a elaborar esta questão. 3.1 A linguagem não foi feita para comunicar André tinha nove anos de idade quando seus pais me procuraram. Apresentava uma história clássica de autismo, só tendo começado a pronunciar as primeiras palavras aos cinco anos de idade, após dois anos de tratamento. Quando iniciou o trabalho comigo, embora apresentasse um vocabulário pobre, falava com clareza várias palavras e já apresentava um esboço de comunicação com os familiares mais próximos que, em geral, o tratavam com bastante carinho. Durante os atendimentos, pronunciava palavras e frases soltas, aparentemente desconexas e sem endereçamento. A voz era, em geral, de entonação metálica. Raramente me olhava. Era muito inquieto, e passava as sessões, andando pela sala e dando pulinhos. Enquanto dava tapas na barriga com a mão direita, mordia sistematicamente o punho esquerdo que, conseqüentemente, apresentava uma mancha escura e um espessamento da pele. Algumas vezes chutava ou se jogava contra a parede. A maior parte de suas verbalizações restringiam-se a repetições de frases e expressões recortadas do universo de palavras que chegava aos seus ouvidos: “Batman e Robin”, “Quadro da estátua”, “Lata de leite”, entre outros. Não se conseguia identificar uma série em suas expressões, o que parecia indicar uma falha no remetimento de um significante a outro, como se fossem significantes estanques, cada um deles bastando-se a si mesmos. Estabeleceu-se entre nós uma interação através dessas falas. Ele fazia uma pausa e me olhava, aguardando que eu as completasse exatamente como ele o faria. Assim, ele dizia “Batman e...” para que eu completasse “Robin”, “Quadro da...” e me cabia a palavra “estátua”, “Lata de... leite”. Nada era aceito senão as palavras exatas. Uma vez ocupando esse lugar, não corresponder às expectativas tendia a levar à aflição, agitação ou ao retorno ao fechamento autístico. Seguindo a indicação de Lacan de que o analista deve colocar-se numa posição de “submissão completa, ainda que advertida” à posição subjetiva do doente37, compartilho da opinião, explicitada por Jeanne-Marie Ribeiro, de que o analista deve inicialmente se deixar regular pelas construções que a criança autista já realiza, satisfazendo assim suas necessidades de colocação de ordem no mundo, acolhendo seu comportamento repetitivo37. Ao participar dessas verbalizações que ele reproduzira inicialmente sozinho e passava, então, a reproduzi-las em duas partes - uma pronunciada por ele, e outra por mim -, eu parecia adquirir uma discreta existência para ele pois, embora assim se estabelecesse alguma interação entre nós, não se podia supor haver, na pausa que ele fazia, um apelo, um endereçamento. Um apelo implica uma falta. Nesse caso tratava-se, antes, da disponibilidade de compartilhar comigo – o que não era pouco - o trabalho de sonorização ao qual se dedicava. Essas expressões não tinham pretensão de apropriação subjetiva. Eram pedaços recortados diretamente do Outro enquanto linguagem. Nas palavras de Leo Kanner, as crianças autistas podem “estabelecer, gradualmente, compromissos estendendo tentáculos em um mundo em que desde sempre foram estrangeiras”.37 Ao “oferecer-me” o complemento de suas expressões, André parecia estender seus tentáculos em minha direção. Como podem ser situadas essas frases no que diz respeito à representação? 3.1.1 – Os signos perceptivos Vimos que na carta 52, trabalhada no item 2.2 dessa dissertação, Freud indica que a constituição do inconsciente impõe a suposição de uma inscrição prévia aos traços mnêmicos, os signos de percepção. Esses não podem ser traduzidos em representação de palavra, por não terem sido inscritos no inconsciente como representação de coisa. A instauração do inconsciente requer a retranscrição dos signos perceptivos, retranscrição essa que possibilita o estabelecimento da marca diferencial dos traços mnêmicos entre si, que Freud descreve como facilitação. A partir dessa marca, onde, anteriormente, só havia simultaneidade, passa a haver deslocamento metonímico e substituição metafórica. Portanto, inconsciente se instaura partir de uma repetição que inscreve a falta que comparece, desde então, indissociada da representação. Assim, o que distingue um registro da ordem do signo perceptivo de um traço mnêmico é o fato de haver, no segundo, inscrição da hiância. Pode-se deduzir que o impedimento da passagem dos signos perceptivos para os traços mnêmicos corresponde ao impedimento da inscrição dessa hiância. Marie-Christine Laznik considera que: “a clínica do autismo nos autoriza a dizer que este primeiro registro de inscrição pode existir mesmo que o inconsciente não chegue a se constituir” 37. As expressões verbalizadas por André - “Lata de leite”, “Batman e Robin”, etc – observadas sob essa ótica, podem ser consideradas representações primitivas da ordem dos signos perceptivos, caracterizados pela simultaneidade, como se fossem blocos maciços de palavras, sem inscrição do corte que estabelece a diferença. Isso faz a distinção entre a sucessão de palavras que André constrói e a série significante. A falta impõe, na cadeia significante, a diferença entre os significantes, e faz com que eles se estabeleçam, desde o início como dois, reduzidos por Lacan, no matema: S1 Æ S2 Lacan considera que talvez o autista “só escute rumores (um zum-zum), quer dizer, que tudo ao seu redor tagarela”37. Com essas palavras, ele parece confirmar o estatuto de pura ressonância da fala autista, compatível com a apresentação do significante em sua materialidade plena, à qual Freud se refere como massas moventes. Dessa forma, no autismo a representação vigoraria como representação primitiva dos signos de percepção, caracterizados pela simultaneidade e pela ausência da diferença. 3.1.2 – A função do juízo no autismo O autismo pode ser abordado nos termos de um defeito que remonta à não incidência da Bejahung. Vimos, anteriormente, que a Bejahung é o signo algébrico que vincula o mundo do falante à representação. A alteração na instauração da representação faz com que, no autismo, a realidade não assuma seu estatuto simbólico. Isso quer dizer que problemática autista diz respeito ao impedimento de se fazer representar pelo significante.37 A palavra não realiza a presentificação da ausência Real, ou seja, não comparece como remetimento significante, mas em sua materialidade Real, sem intenção de significação. Esse impedimento leva o significante a se expressar em sua face real. Dessa forma, o que seria juízo de atribuição pode ser expresso em termos de incorporação do Simbólico no Real. Essa incorporação se exemplifica na concretude constatável no comportamento e na fala dos sujeitos autistas. Temple Grandin, refere uma incapacidade para pensar em palavras. Diz que, em vez disso, seu pensamento se dá em imagens. Numa entrevista a Oliver Sacks, Temple Grandin conta que não sabia desenhar ou fazer projetos até observar um desenhista fazendo plantas: “Vi como fazia. Fui e comprei exatamente os mesmos instrumentos e lapiseiras que ele usava – uma Pentel HB com ponta de cinco milímetros – e comecei a fingir que era ele. O desenho saiu por si mesmo e quando acabei não pude acreditar que era eu que o tinha feito. Não precisei aprender a desenhar ou projetar, fingi que era David – apropriei-me dele, do desenho dele e tudo mais”. 37 Sacks diz que é como se ela tivesse engolido o desenhista por inteiro, como uma jibóia. A partir daí, lentamente ele se “integrou” a ela, tornando-se parte dela. 3.1.3 - O episódio da água No falante, o significante tem função de bordejar uma hiância irredutível. Segundo Laznik, nos sujeitos onde a falta não se inscreve numa representação, o que é da ordem da impossibilidade pode ser percebido no corpo, como mutilação, efetuada sem mediação, cada vez que se apresenta. Daí a imensa aflição que muitos autistas manifestam diante de mudanças aparentemente insignificantes. Kanner descrevera essa necessidade de manter determinadas situações exatamente idênticas com o nome de sameness, e considerou-o como um dos principais sintomas de autismo37. Um exemplo dramático ocorreu num dia em que, ao chegar, André encontrou trancada a porta que dá acesso da sala de espera ao banheiro e à sala de atendimento. Isso era necessário a fim de melhor isolar o som da sala de atendimento. Quando chegou, ainda não havia concluído a sessão do paciente anterior. Como a porta estava trancada, André viu-se impossibilitado de ocupar um espaço que para ele era inconcebível não estar à sua disposição. Apresentou, então, uma crise de agitação cuja intensidade impôs o corte da sessão que estava em curso, com o paciente anterior. Ao abrir a porta, André invadiu a sala de atendimento em total desespero, trazendo pela mão uma amiga da mãe que o acompanhava, da qual, naquele momento, recusava-se a se separar. Era evidente que não cabia contrariá-lo. Chorava muito. Transpirava. A expressão facial era de horror e de dor intensa. A agitação motora era incontrolável. Andava pela sala de um lado para outro, jogava-se no chão, rolava, levantava, corria, tudo sem qualquer ordenação. Dizia apenas: “a água”. Tento estabelecer algum contorno ao que me parecia a expressão radical de esfacelamento. Falo algumas palavras que valem mais como oferecimento de borda do que pelo conteúdo. Assim, digo que com freqüência tranco aquela porta e que não tinha noção da importância que pudesse ter para ele. Mesmo que soubesse, jamais me seria possível garantir que as coisas seriam exatamente como ele parecia precisar que fossem, mesmo que ele o perceba como se lhe tivessem arrancando um pedaço do corpo. Digo também que ele parecia mostrar, com seu sofrimento, que tudo virara água, ele, eu os objetos do consultório. Uma água que escorria sem contorno, sem limite, sem borda, sem possibilidade de contenção. Entendia como isso podia ser doloroso e difícil de suportar. Como afirma Eric Laurent, “o Outro só é continente se o é em relação a um vazio”37, isto é, o importante ao oferecer um continente é que ele comporta um vazio. Lacan considera que: “[Os autistas] não chegam a escutar o que você tem a dizer quando se ocupa deles”. [...] É precisamente o que faz com que não os escutemos: o fato de que eles não nos escutam. Mas afinal, há certamente algo a lhes dizer.37” O congelamento autístico não impede que os autistas falem. Impede que nos ouçam, sobretudo quando, com nossa demanda, nos ocupamos deles. Os signos da presença e do desejo do Outro - olhar, voz, certos ruídos e objetos em movimento podem provocar reação de horror, chegando às vezes a apresentar conseqüências devastadoras, levando Kanner a dizer que para os autistas as pessoas são uma “calamidade”.37 Essa observação, facilmente verificável no relato dos pais dos autistas, serve de alerta àqueles que se propõem a tratar desses sujeitos: qualquer palavra demandante que lhe é endereçada pode estar fadada ao fracasso. Isso não significa que não tenhamos algo a lhes dizer. Há que se sustentar o convite à simbolização, não através de uma demanda, mas de “extrapolações simbólicas”, tal com o Lacan se refere às intervenções de Melanie Klein no caso Dick37. Essas extrapolações, se por um lado, fazem a ambigüidade dos sistemas de linguagem, por outro permitem a transmissão de uma falta estruturante. Na medida que fui falando e suportando a incerteza da eficácia de minhas palavras, a agitação de André foi amenizando, as lágrimas cessaram e ele, molhado de suor, retirou-se da sala, dizendo apenas, num tom inexpressivo: “Vai embora”. Nesse episódio, André mostrou o sofrimento que pode emergir quando um certo acontecimento - uma porta fechada, a ausência da analista - promove uma experiência de privação em alguém que não dispõe do recurso de simbolização da falta. Por mais observadores que sejam os autistas, não é qualquer mudança no ambiente que implica numa catástrofe, mas aquela que evoca o que ocuparia o lugar de uma ausência, diante da qual o sujeito se faria representar. Sua reação mostrava que a porta fechada da sala de atendimento, naquele dia, ocupava esse lugar. Sua carência da proteção significante evidenciou a impossibilidade de se fazer representar diante do que se apresenta para ele como ausência: a porta fechada do consultório, bem como minha indisponibilidade para ele. Isso parece ter lançado André numa “monstração”37 de seu mundo despedaçado. Como uma criança autista vem suprir a falta originária da rede de representações inconscientes? André, em seu desespero, repetia sem cessar: “- A água”, enquanto o suor lhe vertia pelos poros. “A água” é significante privilegiado para indicar algo que só encontra contorno na borda que o continente lhe oferece. Teria havido ali o esboço de um enlace significante? A dramaticidade do episódio sugere, antes, o impedimento do deslizamento metonímico e a colagem da falta no significante. 3.1.4 - A holófrase No Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”, Lacan menciona que haveria “uma série de casos”37 em que a escansão entre S1 e S2 estaria abolida, havendo uma solidificação da dupla de significantes. Ele chamou de holófrase a essa apresentação atípica do significante. A holófrase consiste na aglutinação de S1 e S2, de forma a abolir o intervalo entre eles, de tal forma que o sujeito não pode comparecer dividido entre um significante e outro. Corresponde, segundo Lacan, a um “apanhar a cadeia significante primitiva em massa”.37 Angela Vorcaro inclui o autista nessa série de casos mencionados por Lacan, considerando que é através de suas manifestações holofrásicas que esses sujeitos atestam sua entrada na linguagem37. A holófrase incide no campo simbólico caracterizando-se, paradoxalmente, por não ser decomponível, ou seja, um significante não pode vir em lugar de outro. Implica, portanto, na suspensão da função do significante como tal, uma vez que se trata de uma solidificação que surge em bloco no Real, não remetendo a outro significante, mas designando a si mesmo. No Seminário “O desejo e sua interpretação”, Lacan concebe a holófrase como um monólito onde a dimensão metafórica estaria ausente.37 Interrogo, a partir disso, se a holófrase, no caso do autismo, tal como proposto por Jean-Paul Gilson e Angela Vorcaro37, pode ser considerada compatível com a proposta de Marie-Christine Lasnik de uma estagnação do ser no tempo dos signos de percepção, conforme visto no item 3.1.1. Sustentada na primeira dessas abordagens acima, podemos considerar que as frases pronunciadas por André, na etapa inicial do tratamento, correspondem a petrificações significantes na forma de holófrase onde a palavra não tem a função de mediador do Real. Ao estender seus “tentáculos”, André estabelece um lugar transferencial, permitindo-me compartilhar de sua sucessão de signos, ou significantes holofraseados, onde o simples fato de tomar a direção de um outro atravessado pela falta, já favorece embora não garanta a operação de uma escansão. Lacan afirma que há no autista “algo que se congela”37. Colette Soler considera que esse “congelamento” no qual o autista se encontra, ocorre no tempo descrito por Freud como auto-erotismo.37 Na seqüência dos atendimentos, André passou a apresentar o que parecia ser uma imitação caricata da diferença sexual: trocava o gênero dos objetos para ser corrigido. Dizia, por exemplo, “a sapato” para que eu dissesse, “o sapato”. Nesses momentos ele olhava para mim, embora fosse apenas com o intuito de que eu comparecesse como complemento. Quando ouvia no rádio uma mulher cantando, dizia: “Voz de homem.”, para que eu dissesse: “Voz de mulher.” O que viria a ser a diferença sexual comparecia como mera alternância: homem/mulher; artigo masculino/feminino; tem peru/não tem peru; etc. Presumo que essa alternância de signos proposta por André expresse em palavras a alternância própria ao auto-erotismo. O fato de estabelecer, na alternância, um jogo de oposições já indica um certo oferecimento ao significante, mesmo antes que esteja instituída uma hiância. 3.2 - A especularidade no autismo A despeito de considerar que a iniciativa, num momento inicial, se propõe a ficar predominantemente do lado da criança, não suportei uma ocasião em que André, extremamente agitado e aflito, se auto-agredia intensamente e quis impedi-lo. Aproximando-me dele, toquei em seu ombro e “pedi” que não o fizesse. Acreditei que com isso poderia oferecer-lhe outra referência corporal que não a de morder-se e bater- se. Enganei-me. Ele se voltou contra mim com a mesma fúria com que se auto-agredia, dizendo: “- Quebrar o dedo da Beth”. Acabou arrebentando meu colar de contas, que se espalhou pelo chão. Estancou, surpreso, e disse: “- Arrebentou o colar”. Consegui nesse momento interromper a sessão. André saiu tranqüilo. Nesse episódio, suponho que minha demanda tenha feito com que me apresentasse como uma imagem consistente e aterradora, o que motivou sua reação de defesa. Diante da impossibilidade de se suportar como uma imagem falicamente investida no olhar do Outro, André, que se auto-agredia, acaba por responder em espelho, agredindo o Outro. A fala “Quebrar o dedo da Beth”, responde à dificuldade de alienar-se à imagem especular investida libidinalmente pelo olhar do Outro, no entanto, a quebra real do colar o recoloca diante da especularidade. Nessa ocasião ocorreu um outro episódio que me pareceu complementar a esse. André costumava se colocar durante um tempo diante do espelho, alheio a tudo, inclusive à própria imagem, tal como o fazia diante da janela ou dos quadros da sala. Certo dia, pergunto: - Quem está vendo no espelho? Ele permanece um tempo em seu estado autístico e por fim desprende-se dele a palavra: “o espelho”. Miller explora o conceito lingüístico de função fática de Jakobson como a função de manter contato com o outro.37 Trata-se da função que serve à comunicação. A ausência da função fática na fala autista é manifesta na atemporalidade que a fragmentação de sua fala expressa. Logo no início do trabalho com André manifestou-se em mim uma grande facilidade para esquecer as palavras que ele dizia nas sessões de André, mesmo logo após o seu término. A impossibilidade de atribuir à fala de André qualquer significação parecia me impedir de registrá-las na memória. Passei a escrever, durante suas sessões algumas frases e palavras que ele dizia, pois me parecia importante lembrá-las. A escrita possibilitou uma observação do que era dito, sem a disjunção provocada pelo tempo excessivamente prolongado que havia entre uma palavra e outra, permitindo a montagem de uma série a partir de palavras aparentemente sem sentido. Do mesmo modo, a pronuncia sem intervalo, fazendo do enunciado uma verdadeira maçaroca de fonemas, ao serem registrados pela analista, lhe possibilitaram a introdução de escansões. O relato das sessões vem endossar, nesses casos, o lugar de notário que cabe ao analista. A escrita se dá na direção de notificar o recebimento da mensagem do sujeito, autenticando a construção do sujeito. Dessa forma, abre-se caminho para que o sujeito possa vir a se reconhecer nessa mensagem e implicar-se no trabalho que realiza para barrar o Outro. O registro da sessão possibilitou tomar a fala “o espelho” como resposta que situa a posição subjetiva que André ocupa. Num sentido amplo, um sujeito posicionado em i(a) vê em i’(a), a imagem na qual o eu se reconhece como sujeito dividido. Essa imagem se produz no reconhecimento de uma falta que, somente assim, se deixa contornar. Em condições favoráveis, não se costuma ver o buraco que a imagem circunda37. Ao responder “o espelho”, André sinaliza não ver essa imagem, mas o buraco que seria velado por ela. Ali onde se produziria o fascínio imaginário reside um congelamento real onde ele vê o nada: nem vaso, nem flores, somente o espelho. No entanto, dizer “o espelho” - reconhecido como resposta - aliado ao episódio do colar, que ocorreu algumas sessões antes, parece ter podido estabelecer um corte, uma possibilidade de enlace, que estava prestes a vir à luz, pois a essa “revelação” de André segue-se um período marcado por um nítido enriquecimento da fala. Surgem formações de séries, cada uma delas passando por inúmeras repetições. Enumera por exemplo o nome das histórias infantis de um livro: O gato de Botas, A galinha dos ovos de ouro, Chapeuzinho Vermelho, etc. Algumas frases referentes à história da Branca de Neve ganham destaque num dado momento: “Cala boca espelho idiota!”, “Branca de Neve deve morrer!”, “A madrasta viu a Branca de Neve no espelho”, “A madrasta quebrou o espelho”. São frases que privilegiam um determinado momento da história em que se destaca uma certa relação especular. A história da Branca de Neve ocupa aí a função de um mito na estruturação de André. No fragmento escolhido por André, pode-se notar que a madrasta inicialmente fala com o, espelho, demandando a própria imagem. Em defasagem com a demanda, surge a imagem de um outro, Branca de Neve. O insuportável da defasagem entre uma imagem e outra leva a madrasta a quebrar o espelho. Nessa etapa do tratamento, André repete de forma partida as frases selecionadas da história da Branca de Neve, intercalando-as com falas em que conjuga o verbo quebrar com os objetos da sala acabando por formar uma série: quebrar o quadro, quebrar o vaso, quebrar o porta-retrato, etc. A fala da madrasta ao espelho pode ser tomada como a imaginarização de uma abordagem do real equivalente ao olhar que André lança inicialmente ao espelho, em que não vê a imagem, mas o espelho. Na história da Branca de Neve, o ato de quebrar o espelho faz surgir inelutavelmente uma outra imagem, agora passível de ser suportada: a imagem da madrasta que quebra o espelho, a agente da ação. Na seqüência do tratamento, André parece ser capaz de estabelecer um esboço que seja de identificação com uma imagem: a da madrasta que quebra o espelho, assumindo uma posição subjetiva mais ativa. A cena da madrasta quebrando o espelho denuncia um paradoxo ao referir-se a uma identificação com uma imagem especular despedaçada. Ao falar em quebrar os objetos, André parece dar a esses objetos o estatuto do espelho, um objeto que pertence ao Outro, capaz de fornecer a imagem integradora. A ruptura do colar pôde representar o espelho quebrado. Nas sessões de André, o quebrar dá lugar ao morder, olhar, tocar, cheirar. Como contraponto, havia o ser mordido, ser olhado, ser tocado, ser cheirado. No entanto, a posição passiva estava estritamente submetida ao seu controle, caso contrário, ele se esquivava ou dizia aflito algo como: “-Beth não quer olhar”, sinalizando a insuportabilidade da iniciativa do Outro. André exemplifica, de diversas maneiras, o exercício desse jogo circular ativo/passivo. Lacan, no Seminário RSI afirma que onde há o dois, há o três37. Podemos considerar que a própria encenação repetida do dois diante de um Outro atravessado pelo desejo, força o sujeito a situar-se no terceiro tempo do circuito pulsional, o de uma atividade passiva - fazer-se morder, fazer-se olhar, fazer-se tocar, fazer-se cheirar – que não é a posição ocupada por André. No caso do sujeito colocado na posição de terceiro, a especularização possibilita que a mensagem apreendida do discurso do Outro seja subjetivada ao ser tomada na forma invertida. Essa mensagem circula no significante tanto quanto o faz circular. A realização dessa passagem à subjetivação se expressa na função do shifter. Quando isso não ocorre, o discurso persiste como reprodução direta do discurso do Outro. É o que se verifica na fala de André no início do trabalho, seus recortes diretos do discurso do Outro. Para Pierre Bruno a ausência da inversão pronominal evidencia o fracasso da subjetivação da mensagem vinda do Outro.37 Lacan considerou que: “pode acontecer que um sujeito que dispõe de todos os elementos da linguagem, e que tem a possibilidade de fazer certo número de deslocamentos imaginários, que lhe permitem estruturar seu mundo, não esteja no real. Porque não está? – unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A figura no seu conjunto está perturbada. Não há meio de dar a esse conjunto o menor desenvolvimento”.37 Dessa forma, retomando o esquema do vaso invertido, quando o olho não está bem posicionado, o que representa estar fora do cone que percebe a convergência dos raios no esquema, a imagem não se forma no devido lugar, ou seja, a linguagem não envolve o sistema imaginário. Por isso, o registro imaginário é extremamente curto, tornando a capacidade de expressão e de comunicação extremamente limitada. Após a quebra do colar, surge em André uma fala zangada, repreensiva e imperativa: “- Não pode fazer isso!” Do que se trata? Ele passou de um tempo onde o significante se apresenta em sua materialidade real, para uma relação paranóide com o Outro. Não se trata de uma organização propriamente paranóica uma vez que não chega a constituir um Outro que se caracterize como destacado de um sujeito que está a seu serviço. Não se pode dizer que houve esse destacamento. Há um esboço. Suas colocações apontam no sentido da constituição de um Outro ameaçador. Se André pode falar desse Outro é na medida em que foi suscetível a alguma barra pelo significante. Pode-se dizer que nasce aqui algo com o estatuto de inconsciente, uma suplência que favorece a socialização. Os dois tempos subsistem concomitantemente. Uma nova etapa constitutiva se instaura sem que a anterior tenha sido completamente abandonada. O mito da Branca de Neve dá lugar ao corte e recorte de partes do corpo de figuras femininas, especialmente olhos e bocas, que encontrava nas revistas do consultório. Há o deslocamento da quebra do espelho, pedaços de espelho, e da mordida do punho para pedaços de corpo. Ele mostra com isso a construção de seu mundo. O imaginário do corpo, que não podia ser cortado no simbólico - porque senão daria lugar ao sentido e à morte, como disse Lacan em “La tercera” - era cortado no real, dando espaço às representações pré-conscientes, independentes do gozo do Outro37. André começa escrever e, na medida que vai abandonando as frases da Branca de Neve, passa a repetir, nas sessões, a escrita das séries de números e de letras, seja na ordem alfabética, seja na relação dos canais de tv, onde articula números e letras: SBT -canal 11, TVE – canal 2, TVGlobo – canal 4, e assim por diante. Ao escrever essas séries de números e letras, André realiza uma demonstração a céu aberto do que seria uma série associativa de pensamentos inconscientes, comparável à elaboração dos sonhos. Trata-se de um trabalho de metonimização das representações criando uma suplência à falta inicial da rede de representações inconsciente num sujeito portador de uma falha imaginária. Portanto, em seu aparelho psíquico – ou seja, em sua memória – já havia um certo número de significantes disponíveis para serem enodados e traduzidos em representações de palavras. As séries servem de suplência à falha de organização dos pensamentos inconscientes. André passa a poder referir-se a si mesmo na primeira pessoa. Em seus desenhos aparecem olhos e, na seqüência surge sua primeira figura humana: Tia-Andréachorando-à-toa. Andréa, além de ser o feminino de seu nome, era como se chamava sua terapeuta anterior, que assumiu grande importância em sua história. O tratamento que durara vários meses havia sido encerrado subitamente, pela terapeuta, após um episódio em que André a agredira fisicamente. A mãe relatou-me ter, por um acaso, escutado Andréa contar o caso para as professoras de André referindo-se a ele como “um monstro”. Inspirada nesse relato numa de suas sessões, quando André desenhava TiaAndréa-chorando-à-toa, intervenho: Tia-Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro. A alegria de André diante dessa sugestão surpreendeu-me. Desenha, então, em TiaAndréa-chorando-à-toa, “orelhas de monstro”, “dentes de monstro”, “cabelos de monstro” e acaba rabiscando todo desenho com grande contentamento. A expressão de júbilo diante dessa imagem, bem como a proliferação das séries de desenhos, que se seguem nesse momento, sugere o encontro com uma imagem narcísica. Ele passa a desenhar figuras humanas das quais destaco o desenho de Tia-Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro na mesma folha e em oposição a André- sorrindo. Tia-Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro/André-sorrindo, diz respeito a uma relação especular onde se coloca uma condensação de jogos de oposição: André/Andréa; chorando/sorrindo; Andréa/sorrindo; André/chorando; etc. Essa relação especular consiste no deslocamento da relação da madrasta com o espelho o que, por si só, já corresponde a um enlace significante e não mais à sucessão de S1, tal como na relação Batman e Robim, Lata de leite, etc. Pode-se dizer que ele já abandonara a simultaneidade e estabelecia sua rede. Assim, a relação Tia-Andréa-chorando-à-toavirando-monstro/André-sorrindo evidencia de modo bruto a binariedade do encadeamento significante. Nessa etapa, não se pode dizer que já tenha se destacado um objeto. Há uma oscilação entre diferenciação e indiferenciação, entre estabelecimento e não estabelecimento da hiância que, se por um lado indicam uma defesa ainda bem sucedida com relação ao corte, por outro, atestam um movimento. Além dessa oscilação, chorando/sorrindo/virando são termos que também registram movimento. Portanto, embora não se possa dizer que tenha havido o destacamento do objeto, o movimento pulsional aponta inevitavelmente na direção da queda do objeto. Talvez a utilização da expressão virando-monstro possa ser tomada como marca do lugar do objeto. De qualquer forma, fica evidente que já não se sustenta um uso negativista da linguagem. Se inicialmente levantei a hipótese de que André situava-se no nível da primeira inscrição significante, a dos registros dos signos perceptivos, onde há apenas a sincronia, posteriormente, ao apoiar-se na formação de séries e em seguida na dupla imagem gráfica – André/ Andréa -, a criança comprovou a realização de uma suplência com estatuto de representação de palavra, viabilizando uma circulação cada vez mais ampla dos significantes. Considerando a folha de desenho como um fragmento de uma banda de Moebius, que só possui uma face, podemos dizer que Tia-Andréa-chorando-àtoa é o outro mesmo lado de André-sorrindo. Ou seja, com esse jogo de oposição André-sorrindo/Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro, André demonstrou estar preso ao Simbólico, isto é, apresentou algum nível de alienação à posição significante que ocupa no discurso do Outro. Aquilo que anteriormente era uma pura superfície moebiana, ao ser simbolizado diante de um outro assume uma construção mais rica na medida em que comparece numa estrutura mais complexa, o cross-cap. No entanto, o encontro jubilatório com a imagem narcísica ainda teve êxito em esquivar-se da marca da castração e, portanto, não implicou no reconhecimento da falta no Outro. CAPÍTULO IV A REALIDADE E O GOZO NO AUTISMO Kanner, ao considerar que, não havia diferença entre os autistas que falavam e os que não falavam, pois “a linguagem não servia para transmitir mensagem aos outros”37, sugeriu que a forma bizarra que caracteriza o emprego das palavras no autismo deixa às claras um uso diverso daquele que parecia a razão de ser da fala: a comunicação. Sabemos que Freud, ao elaborar a lógica dos sintomas de seus pacientes, indicara que há nas palavras uma satisfação alheia à necessidade de comunicação. Lacan chamou-a de gozo. A crença que se tem no sentido das palavras dificulta a percepção da defasagem que há entre gozo e comunicação. A criança autista não compartilha desse engano. Isso a coloca sensivelmente apartada do discurso social, o que vem comprovar que estar na linguagem não garante que se esteja no discurso. Os discursos são formados de representações e caracterizados pelo enlace que assujeita o gozo a uma significação. A problemática autista favorece a explicitação da defasagem entre comunicação e gozo na medida que diz respeito a um modo de estar na linguagem vinculado a um gozo que nada tem a ver com a significação. Ao revelar a desconexão entre sujeito e Outro, o autista explicita a estrutura de gozo que caracteriza a fala. O autismo vem evidenciar que é possível que uma fala não seja causada pela intenção de significação. Nesses casos, uma vez que se trata do falante, devemos considerar, com Jacques-Alain Miller, que o motor persiste sendo a pulsão – embora desvinculada da intenção de significação – e que, o que se produz é o gozo.37 Trata-se de um comportamento atípico da pulsão em que o gozo não emerge enlaçado pela palavra, produzindo um sentido imaginário, mas em sua pureza real. Em decorrência disso, a realidade que se produz na tensão da relação entre o sujeito e o Outro não assume a organização de um campo capaz de ser compartilhado socialmente. 4.1 - O caso Dick e a realidade Melanie Klein, em 1930 – portanto, antes da descrição de Kanner -, relatou o caso de um menino de quatro anos de idade que não manifestava envolvimento afetivo até mesmo com pessoas próximas, como a mãe ou a babá. Com relação ao outro, apresentava uma atitude que podia ser obediente ou francamente opositiva, fazendo o contrário do que se esperava dele, mas nunca incluindo afeto ou discernimento37. A indiferença de Dick, tal como foi nomeado por Klein, estendia-se à maioria dos objetos, manifestando, no entanto, interesse específico por determinados objetos como trens e estações, maçanetas e portas. Era capaz de pronunciar as palavras fluentemente, porém, com freqüência, servia-se delas de forma negativista, pronunciando-as de forma alterada. Klein considerava que ele não apresentava sinais de adaptação à realidade. “O ego parou de desenvolver a vida de fantasia e estabelecer uma relação com a realidade. Depois de um frágil começo, a formação de símbolos nessa criança foi imobilizada.”37 Ao comentar o caso Dick, Lacan destacou o que Kanner estabeleceu como um dos sintomas fundamentais do autismo - a ausência de endereçamento ao outro identificando aí a expressão da ausência de apelo ao Outro, enquanto instância simbólica. Contrapondo-se à M. Klein, quando essa autora afirma que Dick está isolado da realidade37, Lacan considerou que ele está inteiro na realidade, em estado puro, inconstituído. O problema ali se relaciona à não simbolização da realidade. Ao dizer que tudo para Dick era realidade pura e simples, Lacan aproximou o termo “realidade” à idéia de Real como um exterior não cingido pelo simbólico. Trata-se do Real como exterioridade radical, a qual Freud se referiu como “massas em movimento”37, de onde partem os estímulos externos, a Q externa mencionada no Projeto. O mundo psíquico de Dick encontra-se inteiramente situado aí, referido a um Outro Real, sem furo, e, portanto, sem forma. Klein, ao considerar Dick isolado da realidade, parece não cogitar uma realidade não simbolizada. Lacan, por sua vez, afirmou que é preciso a incidência do simbólico para que se possa acessar um mundo humano37, que é o mundo simbolizado, onde há o interesse pelos objetos enquanto distintos. Na “Resposta ao Comentário de Jean Hyppolite” ele chegou a dizer que são as articulações simbólicas que dão à percepção seu caráter de realidade37. Daí afirmar que Dick “vive num mundo não humano”, numa “relação instintiva do ser”37. Portanto, podemos notar que, se por um lado, divergindo de Klein, Lacan visou dar relevo à realidade enquanto o Real não implicado no simbólico, por outro, ele vinculou a inserção no mundo humano ao assujeitamento ao simbólico. Ao apontar nessa direção, ele colocou em relevo a existência, no falante, de um tempo anterior à simbolização, ainda que nossa “humanidade” dependa da intervenção do simbólico. A clínica do autismo vem nos trazer esclarecimentos quanto a este tempo, ao mostrar que é possível ao humano encontrar-se aprisionado a uma realidade onde o Real está impedido de ser recortado pelo Simbólico. No Seminário RSI, Lacan se indagou: “O que pode ser supor uma demonstração no Real? [...] Nada mais o supõe, senão a consistência cujo suporte, aqui, é a corda. A corda aqui é, se posso assim dizer, o fundamento do acordo [...] a corda se torna assim o sintoma daquilo em que o Simbólico consiste. O que não deixa de combinar, no final das contas, com o que nos testemunha a linguagem, com a fórmula ‘mostrar a corda’, onde se designa o gasto de uma tecelagem, já que, afinal ‘mostrar a corda’ é dizer que a trama não se camufla mais nisso cujo uso metafórico é tão permanente, não se camufla mais no que se chama estofo.”37 Demonstrar no Real é gastar o tecido imaginário até “mostrar a corda” em que o Simbólico consiste. Neste sentido, a clínica do autismo parte do que seria ponto de chegada da clínica da neurose, sendo pura demonstração no Real. Evidentemente, não é o ponto de chegada da análise de um neurótico, pois o Real onde se situa o autista não é enodado com o Imaginário e o Simbólico, o que o deixa sem a garantia de que o semsentido só possa surgir associado ao sentido. Talvez seja mais pertinente dizer que há no autismo uma “monstração” no Real37, uma vez que, ainda não houve o acordo simbólico do qual a corda – o significante - é o fundamento. Esse acordo com o Outro é encenado na experiência alucinatória de satisfação que submete o mundo perceptivo à alucinação originária. No autismo parece haver o impedimento do estabelecimento desse acordo. 4.2 - O sujeito autista e o Outro Kanner, em seu primeiro trabalho sobre o autismo, destacara que: “Tudo o que é trazido para a criança do exterior, tudo que altera seu meio externo ou interno, representa uma intrusão assustadora, [...] a alimentação é a primeira intrusão vinda do exterior para a criança”37. Ao estabelecer a alimentação como uma primeira intrusão, Kanner sugeriu acreditar que, mesmo os primeiros cuidados advindos do mundo externo, são vividos pelo bebê autista como devastadores. Essa observação, à luz da leitura psicanalítica, corrobora a hipótese de uma impossibilidade de realização da experiência primária de satisfação. Essa impossibilidade pode ser expressa em termos de uma falha pulsional em completar seu circuito. Lembrando que o circuito pulsional se conclui no destacamento do objeto e na conseqüente captura do sujeito no mundo simbólico, é válido supor que sua falência acarreta um vínculo com o mundo externo marcado pela relação com um Outro não cingido pelo simbólico, nem expresso na significação. Lacan nos mostrou que, na ausência de significância, o significante apresenta-se em sua materialidade plena - sua pureza Real. Assim, o autista se relaciona com o Outro enquanto materialidade significante. Esse processo faz com que o Outro perca sua existência simbólica e permaneça como Real. O episódio da água que ocorreu no trabalho com André também nos serve de exemplo.37 Embora desprovido da proteção do simbólico, o fato de ser um falante coloca o autista diante da tarefa de uma trabalho produção frente ao Outro que, por ser excessivamente real, requer o permanente trabalho de esvaziamento e de neutralização. Didie Anzieu, em sua participação no seminário de Lacan “A topologia e o tempo”, destacou que o Outro pode apresentar-se na forma de três modalidades de supereu: o fascinante, o aniquilante e o medusante.37 Frente ao supereu fascinante, o sujeito é olhado desde um lugar localizável para ele como o ponto em que é capturado pelo júbilo da imagem. É o que comparece no momento da constituição da imagem primordial. Uma vez que se trata de uma imagem faltosa, é possível ao sujeito desprender-se desse olhar fascinante. Está, portanto, limitado no espaço e no tempo, uma vez que, a despeito de sua paralisia jubilatória, não é impossível que o sujeito o transgrida na temporalidade e se identifique a uma outra imagem. Enquanto o que emerge no olhar fascinante é da ordem do estranho, demasiado familiar para que se produza algo verdadeiramente surpreendente, no olhar aniquilante o sujeito é olhado a partir de um lugar que ele não conhece, não sabe de onde é olhado, pois o Outro se apresenta como radicalmente invisível. “O que aniquila é que ali efetivamente o sujeito é radicalmente surpreendido e essa surpresa ocorre devido ao fato de que a especularidade, o imaginário, estoura”37. Nesse caso, no lugar do júbilo, o que se experimenta é o horror. É o que está em jogo, por exemplo, na eclosão do surto psicótico. O supereu medusante é o que está ativo quando o sujeito encontra-se petrificado sob o olhar da medusa que é seu Outro. Nesse congelamento, se perde a disposição do movimento da linguagem ou do movimento corporal e, portanto, não há tempo nem diacronia. Anzieu considera que é diante desse Outro que Dick se encontra, onde a invisibilidade do mundo expressa um ser invisível, na medida que é olhado de todos os lados. Essa instância, que não cessa de observar, coloca o autista em posição, “não de falar, mas de mostrar-se (se montrer), e essa é a dimensão monstruosa, da monstração (monstration).”37 Assim, o sujeito autista não está diante de um Outro cujo olhar é capaz de emprestar-lhe uma imagem, ainda que faltosa, estranha e familiar, na qual possa reconhecer-se. Encontra-se frente a esse olhar medusante, que seria o supereu mais feroz e arcaico, diante do qual assume uma recusa ativa. Dessa forma, o que se verifica nos sintomas autísticos, como o isolamento, o sameness, as estereotipias, não correspondem a um estado desértico, onde não se efetiva nenhum tipo de elaboração, mas indica uma recusa ativa de encontro com esse olhar medusante do Outro, onde a exclusão do Outro se faz necessária. São estratégias para esvaziar a potência do Outro intrusivo, que podem ser considerados como um trabalho no sentido de fazer com que esse Outro real permaneça imóvel, pois sem a função de cifragem do gozo pela metáfora, esse gozo mostra-se petrificante. Lacan abordou a psicose como uma resposta à iniciativa do Outro37. Fazendo referência a essa observação, Marc Strauss considerou que os autistas caracterizam-se por não deixar ao Outro nenhuma iniciativa, se fazendo os únicos organizadores do mundo37. A iniciativa do Outro, que pode ser considerada como a imposição do significante, é identificada ao gozo intrusivo do Outro, onde o significante se apresenta em sua versão de gozo mortífero. Assim, a automutilação pode ser a expressão de um movimento no sentido de descompletar esse Outro maciço no próprio corpo. Talvez possamos considerar que, ao morder-se, André realizava o trabalho possível no sentido de barrar o Outro. Ao intervir sustentada na demanda, interrompo a tarefa através da qual ele advém como sujeito e reafirmo a onipresença do Outro. Atacar-me equivale a retomar o seu trabalho frente ao Outro. Portanto, minha tentativa de impedir André de morder-se interveio, por um lado, no sentido de impedir a expressão de sua subjetividade, o que me colocou no lugar de Outro aterrador. Por outro, uma série de elementos – entre eles a ruptura do colar, o episódio anterior com tia Andréa, minha postura acolhedora - confluíram favoravelmente, e fizeram desse erro, um ato que promoveu um deslocamento em direção à simbolização. 4.3 - As conseqüências da não nomeação - O esquema óptico Vimos no item 2.5.3, a importância da nominação do desejo quando abordada a carta de Lacan a Jenny Aubry. Ao afirmar que ”só pode haver definição do nome próprio à medida que há uma relação entre a emissão nomeante e algo que em sua natureza radical é da ordem da letra”37, Lacan deu relevo ao significante enquanto letra, como caráter distintivo e principal elemento do nome próprio. Ele situou o significante como função da letra, pois não depende de seu caráter fonemático, mas de sua função de fazer borda ao Real. Charles Melman considerou que o nome próprio comporta duas ordens de funções: uma enquanto traço distintivo puro – a letra - e outra enquanto garantia de um lugar simbólico no Outro, através da qual o sujeito pode apoiar-se no que um ancestral designou para ele.37 Lacan serviu-se do esquema óptico para figurar a importância do olhar do Outro primordial na constituição do sujeito. Através desse olhar, o infans insere-se no desejo dos pais e ocupa o lugar que lhe cabe na cadeia de gerações. A ação específica, a qual Freud se referiu37, marca esse lugar. Essa especificidade é representada, no esquema do vaso invertido, pelo posicionamento do olho no lugar capaz de registrar a imagem real do vaso que confere uma unidade ao abraçar as flores, o objeto real. O registro desse olhar só pode ocorrer quando os elementos em questão encontram-se numa certa posição. Dessa forma, interrogo se a instauração do nome próprio corresponde a uma operação – exemplificada no esquema óptico - que estabelece o lugar estrutural do sujeito, através do enodamento do Real da letra (as flores), o lugar Simbólico no Outro (o olho), e o Imaginário da língua (a imagem do vaso). No autismo, o olho está posicionado de forma que a convergência dos raios não pode promover a imagem unitária, o que quer dizer que, por alguma razão, o desejo do Outro primordial não pode ser simbolizado. O investimento libidinal da mãe não se reúne ao real orgânico, permanecendo desconectado, como se o bebê estivesse impedido de receber esse investimento. Esse sujeito não pode inserir-se no desejo dos pais pela mediação significante, impossibilitando a nomeação de seu desejo. Real, Simbólico e Imaginário permanecem desarticulados de forma que o real do objeto não pode ser bordejado pelo significante nem capturado numa imagem fascinante. No lugar em que deveria surgir a imagem especular unificada, surge o “real do duplo”, que é a divisão do sujeito no real, onde o objeto não é marcado pelo estatuto fascinante do imaginário mas, pela falta de enodamento, o que se destaca é seu estatuto de objeto real. 4.4 - O gozo no autismo Na conferência de Genebra, quando Lacan disse que os autistas não nos ouvem quando nos ocupamos deles37 sugere que, para o autista, não parece haver pacto possível com o fingimento do Outro. Marc Strauss considerou que no autismo é Um ou Outro. Ou ele com o Outro na mão, ou o Outro mortífero, intolerável37. Antonio di Ciaccia, em sintonia com a leitura de Strauss, abordou essa solidão autista dizendo que, para o autista, existe o Um-sozinho, o Um-sem-o-Outro37, onde a linguagem é puro gozo que independe da identificação primária. Trata-se, portanto, de um gozo diferente daquele que é promovido pela experiência alucinatória primitiva. Rosine Lefort, por sua vez, ao considerar que no autismo “não há gozo do balbucio”37, referiu-se à ausência do gozo que se marca na identificação primitiva com S1, onde o registro de um traço diferencial remete à alteridade e inaugura uma cadeia significante com possibilidade infinita de proliferação. O gozo fálico advém da emergência da representação e da experiência alucinatória de satisfação, que estabelece a captura do sujeito nas malhas do Outro simbólico. Não ocorrendo dessa forma, é pertinente a interrogação quanto ao gozo que pode comparecer no lugar desta “falha” na constituição da Vorstellung. A articulação significante S1 – S2 vincula o gozo à significação fálica, onde o sujeito é identificável aos equívocos inerentes ao sentido presente nessa significação. A teoria de alíngua estabelece que, antes do ordenamento significante, existe uma cadeia sem efeito de sentido. Esse encadeamento sugere que há um saber fazer com alíngua anterior ao saber sobre alíngua, marcado pela relação de simultaneidade entre os significantes que caracteriza um gozo que independe do sentido veiculado pelo discurso. Tais teorizações são de crucial importância para situar o gozo autista como um gozo de alíngua. 4.4.1 - A lógica da estrutura moebiana no autismo Quando há instauração do inconsciente, o princípio do prazer rege a distribuição significante em torno do real, tal como os trilhamentos estabelecidos no Projeto. No autismo, não havendo a organização inconsciente, o que rege a distribuição significante no Real é gozo. Como tudo é real, a binariedade da estrutura simbólica comparece nesse registro. A alternância impressa nos objetos através de batidas e movimentos estereotipados, tão freqüentes na clínica, expressam uma repetição da ordem de um gozo onde o significante não remete a outro significante, mas se apresenta colado ao real na forma de signo perceptivo. Dessa forma, se reafirma o aprisionamento do autista a um gozo não veiculado pelo simbólico, mas submetido à estrutura elementar do significante, que se verifica nos movimentos binários que os autistas fazem, valendo-se de seus objetos. Lacan disse que, “se nada mais há senão a falta, o Outro se esvai e o significante é o significante da morte”37. Talvez possamos pensar o real do significante no autismo como significante da morte. O estabelecimento da relação complexa entre o sujeito e o Outro pode ser figurada na forma de um cross-cap. A escolha dessa figura deve-se ao fato dela demonstrar a articulação entre um corte, a banda de Moebius, e uma estrutura binária, a esfera. No caso do autismo, a estrutura do cross-cap não se constituiu, e o sujeito se mantém numa realidade que não se caracteriza por um campo de tensão entre Simbólico e Imaginário, uma vez que não houve o destacamento do objeto. O sujeito permanece inconstituído, como pura falta, não veiculada pelo significante, habitando uma realidade que se restringe à estrutura representada pela banda de Moebius. A realidade que se produz na tensão da relação entre o sujeito e o Outro assume uma estrutura diversa daquela representada no cross-cap. A lógica dessa estrutura é de que o Outro simbólico se esvai e o Real açambarca tudo. Dessa forma, o Simbólico se expressa na colagem significante que se verifica na holófrase e o Imaginário apresenta-se, ao mesmo tempo, pobre e terrorífico. 4.4.2 – O gozo no campo do duplo: a máquina do abraço O autista sofre uma interrupção no nível da palavra que impede o enlace entre Imaginário e Simbólico. Na conferência de Genebra, Lacan afirmou: “Como o nome indica, os autistas se escutam a si mesmos. Escutam muitas coisas. Isto desemboca normalmente na alucinação e a alucinação sempre tem um caráter mais ou menos vocal. Todos os autistas não escutam vozes, mas articulam muitas coisas e trata-se de ver precisamente de onde escutaram o que articulam.” 37 Levando em conta o lugar estruturante que Lacan, seguindo os passos de Freud, conferiu à alucinação, podemos deduzir que, ao afirmar que “os autistas não escutam vozes”, Lacan sinalizou uma falha na estruturação subjetiva justamente no ponto onde deveria comparecer a alucinação como fundamento da constituição do mundo externo.37 Nem por isso os autistas deixam de estar submetidos à ressonância da palavra e, em conseqüência, ser capazes de articular coisas. Não havendo o estabelecimento da alucinação estruturante, a relação com o objeto não passa pelo Outro. Cabe, portanto, investigar sobre as articulações que lhe chegam a partir de um Outro não barrado pelo significante. Jean-Claude Maleval considerou que, em 1998, foram destacados os dois traços fundamentais do autismo: a carência da identificação primordial – S1 -, e a defesa original apoiada num objeto37. A linguagem no humano, ao envolver o imaginário, faz com que seus objetos se multipliquem ao infinito. O impedimento da realização da identificação primária com S1 fundamenta o problema persistente de enunciação que se verifica no autismo, e leva à captura numa realidade que se caracteriza por seu imediatismo, onde se produzem articulações com objetos que chegam ao autista a partir de um Outro Real. Esses objetos não se sustentam na relação de dependência com o Outro, mas apresentam estatuto de objetos reais. Maleval destacou que, quando falta a imagem que servirá de espelho, o objeto apresenta-se como duplo e comparece por todos os lados do mundo real37. Dessa forma, o objeto responsável pelo gozo no autista, e que está no princípio de sua defesa, pode tomar formas diversas, mas caracteriza-se sempre por sua dimensão de duplo, que comparece no lugar do especular. Para remontar à etiologia do termo, convém observar que o conceito de duplo advém da noção de colossos da Grécia antiga: quando alguém que partia para longe desaparecia, a ponto de ser tomado como morto, sem que se cumprissem os ritos funerais, acreditava-se que seu “duplo” permaneceria errando eternamente entre o mundo dos vivos e dos mortos. O morto era então substituído pelo colossos, uma estátua que não tinha a pretensão de reproduzir os traços do defunto pois não era uma imagem mas um “duplo”, como o morto é um duplo do vivo. “Através do colossos, o morto remonta à luz do dia e manifesta aos olhos dos vivos sua presença. Presença insólita e ambígua que é também o signo de uma ausência. Ao se dar a ver sobre a pedra, o morto se revela ao mesmo tempo como não sendo desse mundo.”37 Uma nova forma de interpretar o estatuto do duplo no autismo é pelo registro desse Um absoluto que exclui a presença do objeto. Assim, o duplo veiculado dessa forma, lhe permite construir uma suplência do Outro, constituído de signos e não de significantes, o que leva a uma compensação da carência da identificação primordial e dos problemas de enunciação. A “máquina do abraço” criada por Temple Grandin pode ser considerada um exemplo dessa suplência do Outro, promovida por um objeto enquanto duplo. Em 1986, é publicado pela primeira vez o livro “Emergence: labeled autistic”, traduzido para o português com o título “Uma menina estranha: autobiografia de uma autista”, onde a autora, Temple Grandin, considerada uma autista de elevada capacidade intelectual, conta que encontrou apaziguamento construindo objetos que lhe proporcionassem bem-estar no contato37. A dificuldade de aceitação do toque de outras pessoas a levou a inventar, no fim de seus estudos secundários, uma máquina que pudesse provocar estímulos táteis reconfortantes, que não eram suportados quando vinham de um semelhante. Inspirada na observação da tranqüilização dos animais amedrontados e crispados, quando as paredes da armadilha se fecham docemente sobre seu corpo, a máquina de pressão, ou máquina do abraço, é descrita como um aparato forrado internamente com uma espuma macia que se ajusta ao corpo, proporcionando pressão uniforme em toda superfície corporal. O usuário detém total controle sobre a intensidade da pressão exercida pela máquina, que é acionada por um compressor de ar. Figura 4.1 Esquema da máquina do abraço ou máquina de pressão.37 As sensações que experimentava ao usar regularmente a máquina, a levou a afirmar que “os sentimentos e os pensamentos que me vinham na trapa, podiam existir fora. Os pensamentos eram fruto de meu espírito – não da trapa de contenção”. Maleval, ao abordar o lugar significante da máquina do abraço, considerou que, a partir da criação da máquina, toda a existência de Grandin passa a se estruturar por derivação metonímica da máquina do abraço, uma vez que ela tem função estabilizadora que permite a Grandin o estabelecimento do laço social: “Trata-se de uma invenção do sujeito, na qual se discerne um produto de sua enunciação e, portanto, uma certa restauração da função do S1. Apresenta, entretanto, a particularidade de só advir por intermédio de um depósito do significante unário sobre o objeto. Aí parece expressar-se uma das características do autista, sempre confrontado ao Outro real, que consiste em sua relação à linguagem não poder cessar de ser objetal. O sujeito se encontra petrificado sob a máquina reguladora, mas ela lhe permite se fazer representar no campo do Outro.”37 Maleval comparou essa máquina ao delírio, considerando que, enquanto construções desse tipo, nascem apoiadas sobre um objeto protetor, a fonte do delírio é “um fenômeno elementar, nascido do isolamento de uma letra, que pode eventualmente dar nascimento à confecção de um objeto.”37 Destacou assim, que as construções autísticas ocupam um lugar equivalente ao delírio, embora se diferenciem dele em função da posição do objeto em cada um deles. O delírio é a resposta metafórica possível ao psicótico ao deparar-se com a ausência real do significante. Isso concorre para um certo destacamento do objeto. No autismo, o objeto caracteriza-se por sua colagem ao significante. Outra diferença reside na possibilidade de apreender e se desprender do objeto segundo a vontade. No psicótico, ao contrário, a vontade é impotente contra o delírio. A construção de Temple Grandin é compatível com “um saber reificado, ordenado em seqüências rígidas de S2.”37 Segundo esse autor, Grandin progride por mobilizar metonimicamente séries de S2, ordenando a realidade de forma extensiva, sem o franqueamento da barra da metáfora. Como não é dividida pelo significante, há dificuldade de alcançar as implicações da enunciação no enunciado. A carência da metaforização faz com que nenhum retorno do recalcado encontre lugar em seus propósitos. Assim como todo falante é convocado a responder pela falta real, a escolha autista indica também uma suplência com relação ao Real. Na ausência da constituição da imagem especular do objeto faltoso surge o objeto enquanto duplo, que caracteriza o comparecimento no real do que é da ordem do simbólico e do imaginário. Dessa forma, a máquina do abraço, elaborada por Temple Grandin, possibilita que ela experimente no Real do corpo uma sensação inteiramente sob seu domínio que servirá de mediador simbólico e possibilitador de sua relação com o outro. Do mesmo modo, as imagens das histórias infantis e as imagens que André passou a criar serviram-lhe de mediador simbólico que possibilitaram que a apropriação pela palavra pudesse se dar progressivamente. CONCLUSÃO Essa dissertação reflete a trajetória que me foi possível percorrer ao longo do mestrado, orientada no sentido da elaboração de minha experiência clínica a partir do estudo do autismo. Com a riqueza de informações existentes na atualidade, a bibliografia sobre o autismo é bastante rica e, certamente, autores importantes não puderam ser mencionados. Atribuo posição privilegiada aos pensamentos de Freud e de Lacan, servindo-me dos demais, mesmo aqueles que divergem entre si, na medida que contribuem para a leitura do pensamento destes dois autores e para o esclarecimento dos acontecimentos da clínica. Verificamos nessa dissertação que os trilhamentos estabelecidos por Freud no Projeto correspondem, de acordo com a leitura de Lacan, ao encadeamento de significantes. A existência desses trilhamentos é a marca diferencial do humano e o de um objeto desde sempre perdido? Outra questão que permanece em aberto é da abordagem da representação da realidade autista através da figura topológica da banda de Moebius. O autista, ao colocar-se à margem da organização significante mostra-se comprometido numa realidade com características bizarras. O sujeito, em geral, responde à falta veiculada pelo espelho que representa para ele o olhar do Outro parental, através da imagem faltosa à qual o eu se identifica. Segundo Jean-Claude Maleval, o impedimento na construção dessa imagem faz com que o especular compareça para o autista na forma de duplo. As formas de expressão do duplo no autismo e sua função de suplência também se destacam dessa dissertação como uma questão instigante e merecem uma maior investigação. Uma vez que, “no autismo, a linguagem não foi feita para comunicar”, o ser da fala no autismo não comparece no sem-sentido veiculado na linguagem, mas naquilo que está no seu cerne: o Real, conceituado por Lacan como alíngua. A linguagem corresponde a um saber sobre alíngua.Sem poder apropriar-se desse saber, o autista, ainda assim, apresenta um gozo em que se produz um saber fazer com alíngua. Esse saber, tanto quanto o saber inconsciente, caracteriza-se por requerer um Outro ao qual possa endereçar-se. A particularidade do autismo vincula-se ao posicionamento desse Outro no limite do Real, tornando sua iniciativa prioritariamente catastrófica. Assim como as histéricas convocaram Freud a ocupar o lugar de analista, ao endereçar-se ao Outro no lugar de sujeito-suposto-saber, o autista convida o analista a participar de seu saber fazer com alíngua e, dessa forma, esvaziar a plenitude de seu Outro Real. Um analista se define como aquele que aposta no significante. No trabalho com o autista, essa aposta visa o enlace entre o sujeito e o Outro que só pode se dar nas malhas significantes do Outro simbólico que o precede, representado no casal parental. Somente nessa rede é possível situar o impossível de se fazer representar que comparece no autismo. Esse trabalho requer, talvez mais do que qualquer outro, os significantes da história familiar. Evidentemente essa dissertação resulta de uma pesquisa inicial requerendo um estudo mais aprofundado sobre a constituição da realidade no autismo, sobretudo sua articulação com a topologia, bem como sobre os efeitos de alíngua que comparecem no autismo. Questões como o funcionamento do circuito pulsional, a possibilidade de prevenção do autismo, restam em aberto. Um outro aspecto a ser investigado diz respeito ao autismo como paradigma das doenças mentais na modernidade. BIBLIOGRAFIA (1) AJURIAGUERRA, J. - Manual de Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro, Masson do Brasil, 1980. (2) ALBERTI, S. (Org.), - Autismo e Esquizofrenia na Clínica da esquize. Rio de Janeiro, Marca d’Água Livraria e Editora, 1999. (3) ALBERTI, S. e ELIA, L. - Clínica e Pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, Instituto de Psicologia da UERJ, 2000. (4) ANSERMET, F. - Clínica da Origem: a criança entre a medicina e a psicanálise, Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, nº2, 2003. (5) BARON - COHEN, S. – Autismo: uma alteração específica de “cegueira mental”, in Revista Portuguesa de Pedagogia Ano XXIV, Coimbra, 1990, p.407-430. 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