GRUPO DE ESTUDOS: TRANSFERÊNCIA:- HISTÓRIAS DE (DES)AMOR SUELI SOUZA DOS SANTOS 3º Encontro - 31 de agosto 2015 No começo era o amor (Cap.I) No primeiro capítulo do Livro 8, Lacan (1960-1961) inicia com algumas afirmações, no mínimo, provocadoras. Ele vai dizer que a intersubjetividade não define a transferência por si só. Porque não temos aí constituída uma dupla, ou duas subjetividades. Partindo desse entendimento, dissimetria não seria a melhor definição de um processo transferencial, haja vista que se pode dizer que há uma disparidade. Afirma também que a análise não é uma situação, ou melhor, dizendo, se for uma situação é totalmente falsa. E por que não é uma situação? Porque a ideia de situação implica algo de ordenado, disposto, situado, enquanto a própria experiência não aceita uma ordenação Antes de mais nada a análise é uma experiência pela qual só a conhecemos na media em que por ela tenhamos passado. Então essa experiência implica em referências, princípios que possibilitem uma retificação do que nomeamos teoricamente como transferência. Nesse sentido, o termo transferência tem algo de “impar”, de único, de estranho (odd), que em Francês tem o sentido de chocante, “bévue” que quer dizer disparate devido a ignorância ou distração, incerteza e que no seminário 24 a palavra “une-bévue” evoca o inconsciente. Ou seja, aquilo que é único, o raro, o equívoco como próprio da transferência. Lacan provoca: No começo era... o que poderia ser remetido ao verbo, ou a ação (em alemão) ou a práxis, aqui no sentido do início do mundo humano, evocando a gênese. Podemos pensar que esses três enunciados são incompatíveis. Do ponto de vista da psicanálise a experiência analítica o que importa é o seu valor de enunciação, ou seja, o que emerge como ex-nihilo próprio a toda a criação. No começo da experiência analítica, lembra Lacan, foi o amor. Com isso ele remete a o começo não da criação mas da formação. Ponto de encontro entre um homem e uma mulher, Joseph Breuer e Anna O. descrito no Estudo Sobre a Histeria (FREUD, 1893-1895), nomeado por Anna como talking-cure. Aqui se evidencia que a clareza da enunciação, revela o contradito ou o equívoco ou o confuso, que tão bem exemplifica o encontro entre um homem e uma mulher. Ou seja, o que é dito possibilita um interdiscurso, um outro querer dizer, que as palavras tem uma opacidade, ao que Anna O. deixa claro quando pede que não a interrompa pois está, ao falar em seus sentidos obscuros, deixando vir à tona outro dizer, limpando os sentidos do dito. As palavras curam (“talking cure”) A psicanálise é marcada, desde seu início por uma ética. Esse ethos que a constitui, ou seja, suas características morais, sociais e afetivas que definem o comportamento, se refere ao espírito motivador das ideias e costumes. Esse ethos é formado a partir de um vazio impenetrável que subsiste em torno do ex-nihilo, que em latim, quer dizer nada. Podemos pensar, um nada que possa ser nomeado como a ‘coisa’ inaugural. Um começo que não se sabe. Lacan nessa afirmação parte da Schwärmerei de Platão, ou seja um devaneio, uma fantasia, podendo estar ligada a uma superstição do ponto de uma visão religiosa. Recordará o seminário da ética, com relação a origem, ao ponto de partida do ‘ethos’ humano, o nada que está no núcleo do ser. Nesse sentido rechaça o Bem Supremo platônico como ocupando esse lugar nuclear. Não há bem que não proceda do bom, ou seja, a busca do Bem Fazer não é a busca da ação. Sobre desejo e o gozo- a partir do Mal estar na civilização, Freud aponta a falácia do ‘amar o próximo’, considerando que atrás das satisfações morais há um gozo do sujeito em relação a si mesmo. A questão é: como preservar o desejo em ato, tendo em conta o que falamos sobre a boa ação, como preservar a relação do desejo ao ato na medida em que no ato, o desejo encontra seu colapso e não sua realização. Resgata a reflexão de Sade enquanto uma referência ética, posto que é no gozo sadiano que podemos reconhecer onde se situa o ‘Além do princípio do prazer’ de Freud. A beleza é o que busca como ponto de encontro sobre os motivos e motivações do Bem, na medida em que constitui a última barreira antes do acesso à coisa última, mortal, formulada por Freud na pulsão de morte. Essa derivação de tema nos aponta para a origem do que se articulou sobre a ideia de imortalidade que é a questão do próprio falante, sob uma forma invertida. Lacan se ressalta em Sócrates seu método, que estará por traz de tudo que se dirá sobre a transferência. Isso se mostrará nos diálogos do Banquete. Sócrates diz que nada sabe, a não ser sobre o amor, reconhece onde está o amante e onde está o amado. É nesse ponto que a psicanálise nos aponta a história de amor entre Breuer e Anna O. Um amor da paciente que pode ser pensado também do lado do médico. Lacan aponta para a solução burguesa buscada por Breuer que escapa dessa situação e que, num fervor conjugal, viaja com a esposa e a engravida. Segundo Lacan: ‘tudo está aí, o pequeno Eros cuja malicia com inesperada surpresa, golpeou a Breuer e o obrigou a uma fuga. A diferença de Breuer, e qualquer que seja sua causa, a conduta adotada por Freud faz dele o senhor do temível deus. Ele escolhe, como Sócrates, servi-lo para servir-se dele. Aí, nesse servir-se dele, de Eros- ainda era preciso sublinhá-lo- começam para nós os problemas. Pois servir-se dele para quê?(p.17). A pergunta nos aponta para a transferência. Servir-se dela para quê? Não seria para o bem do analisante mas para Eros. Ou seja, diz Lacan: Sabemos que o domínio de Eros vai infinitamente mais longe que qualquer campo que possa ser coberto pelo Bem... e é nisso que os problemas que a transferência nos coloca só fazem aqui começar. Essa aliás, é uma coisa perpetuamente presente em meu espírito e no de vocês, na mediada em que é linguagem corrente, discurso comum sobre análise. Dizendo de outra forma, a respeito da transferência, não se deve de nenhuma maneira, nem preconcebida, nem permanente, colocar como primeiro termo como o fim de uma ação o bem, pretenso ou não, de seu paciente, mas precisamente o seu Eros. (p.17) Então, seguindo a Freud, o que o faz descobrir a pulsão de morte, o conduz as duas mortes. A morte que faz do ser mesmo um rodeio, que nos acompanha desde a origem, e a outra morte, a morte dos corpos, unido por Eros. Lacan tira a transferência da intersubjetividade. Não se trata de dois sujeitos, uma dupla intersubjetiva. Aliás o analista deve manter-se atento para não cair nesse terreno, ou em jogos de sedução. O mais danoso que se possa fazer é o jogo de entendimento ou acolhimento ou consolo. Retomando a posição ética de Sócrates, ele fala da beleza dos corpos, no entanto mostra que a feiúra não é obstáculo para o amor. Diz Lacan que a análise é a única prática onde o encanto é um inconveniente. Se entende que é na análise que se requer, desde o inicio, um alto grau de sublimação libidinal. Para Freud a posição do amor na sociedade é uma posição precária, clandestina. Em psicanálise a posição do amor é um paradoxo, a relação analítica supõe um isolamento do outro para que emerja justamente o que lhe falta, desde a posição de estar amando. O psicanalista não está aí para seu bem, mas para ele ame. Cenário e personagens (Cap. II) Neste capítulo, Lacan inicia falando sobre Alcibíades como representante da ordem disruptora de qualquer lei estabelecida não por ele mesmo. A forma com que irrompe no Banquete e expõe a Sócrates, aponta para sua práxis de grandes espetáculos, sobre um fundo de insurreição, subversão das leis da cidade, de desprezo pelas formas, pelas tradições, pelas leis e pela própria religião, com uma disposição para a traição permanente. Seguindo essa forma de estar no mundo social, fala abertamente de suas tentativas de sedução em relação a Sócrates que não sede a seus encontros e convites de entrega corporal. As questões que se colocam aqui são sobre a veracidade do texto. Lacan se interroga se é ou não ficção se ocorreu ou não esse simpósio, qual seu verdadeiro caráter, o quanto é uma espécie de relato de sessões psicanalíticas. Ele diz: À medida que progride o diálogo e que se sucedem as contribuições dos diferentes participantes desse simpósio, acontece alguma coisa que é o espoucar sucessivo de cada um desses flashes pelo seu sucessor, e depois, no fim, o que nos é narrado como um fato brutos até mesmo embaraçoso- a irrupção da vida ali dentro, a presença de Alcibíades. E cabe a nós compreender o sentido que há em seu discurso. (p.33) Lacan vai apontar a questão da memória e da tradição oral por onde a história, os valores e costumes sociais são passados e mantidos na tradição, como os fatos relatados em diferentes tempos históricos vão construindo o tecido linguageiro que reproduzirá uma versão sobre determinado fato relatado. Diz: [...] tudo isso, evidentemente, não resolve de modo algum a questão da veracidade histórica, mas tem, no entanto, uma grande verossimilhança. Se é um mentira, é uma bela mentira- e como é, por outro lado, manifestamente uma obra de amor, e talvez cheguemos a ver despontar a noção de que, afinal, só os mentirosos podem responder dignamente ao amor. (p.35-36) Sobre o amor grego, quando o mencionamos, estamos falando do amor homossexual. Introduz aqui como vai se construindo o laço social, as relações inter-humanas. Lembra que: Se a sociedade acarreta por seu efeito de censura, uma forma de desagregação que se chama de neurose, é num sentido contrário de elaboração, de construção, de sublimação- digamos o termo- que se pode conceber a perversão quanto ela é produto da cultura. E o circulo se fecha, a perversão trazendo os elementos que trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a criação de novos elementos de cultura. (p.38) Com relação ao amor grego, o que diferencia do amor homossexual atual é apenas a qualidade. A homossexualidade, no entanto afirma, não deixa de ser o que é, uma perversão. No entanto, os gregos não se furtavam a frequentar e render consideração as mulheres, mesmo Sócrates. Tomando o discurso de Sócrates sobre o amor, Lacan concluí que o amor é dar o que não se tem e concluí: “O amor grego nos permite retirar, na relação do amor, os dois parceiros do neutro”(p.41). A relação que se estabelece entre o desejo e o que ele estabelece é sempre referido a atribuição de outro desejo, jamais satisfeito, assim Lacan concluíra que da conjunção do desejo com eu objeto, enquanto inatingível ou inadequado, deve surgir o significante que chamamos amor. Finalmente afirma Lacan: Para quem não apreendeu esta articulação e o que ela implica como condições no simbólico, no imaginário e no real, é impossível captar aquilo que de que se trata nesse efeito, tão estranho por seu automatismo, que se chama a transferência, impossível comparar a transferência e o amor, e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada um, reciprocamente, de ilusão ou de verdade.