Escolas aprendem com a tecnologia Elaine Lima Imagine uma escola no dia em que recebe uma sala de informática. O espaço estrategicamente escolhido e especialmente preparado para tal é tomado por máquinas novas, de formas e tamanhos variados. Um técnico conecta umas às outras, há fios por todos os lados. Sinta o cheiro do equipamento novo. Perceba alguns olhares curiosos e outros disfarçando a aflição. Ouça o burburinho que vem do corredor. Há no ar uma pergunta, que não é banal: o que se fará com isso? No presente texto, proponho uma reflexão sobre o processo pelo qual as escolas respondem a esta pergunta. Para isso contaremos com o auxílio de conceitos presentes nas áreas de administração e educação. A escola é uma organização que aprende Ao utilizarmos o ponto de vista dos administradores, apreendemos que a escola é uma organização, ou seja, duas ou mais pessoas trabalhando juntas e de modo estruturado para alcançar um objetivo específico, ou um conjunto de objetivos [Freeman, 1995]. Organizações são sistemas complexos e vivos. Nascem, atingem sua maturidade e morrem. Desenvolvem-se, adoecem. Têm partes vitais: coração, cérebro, membros, podem, às vezes, apresentar gordurinhas. Emocionam-se, sentem prazer, amargura, cansaço, alegria. Amam, odeiam, acolhem, sentem medo, atacam, se escondem. Dialogam com outras organizações. E eis aqui um dado especial para nós, que somos educadores: as organizações aprendem. 1 O processo de aprendizagem organizacional é coletivo e não difere muito do que observamos nas pessoas, de um modo geral. Sobre a aprendizagem humana, Piaget nos diz que toda situação conflituosa “desequilibra” o organismo que precisa aprender para se adaptar: “os desequilíbrios não representam senão um papel de desencadeamento, pois que sua fecundidade se mede pela possibilidade de superá-los (...). É evidente que a fonte real do progresso deve ser procurada na reequilibração, (...) no sentido não de um retorno à forma anterior de equilíbrio, cuja insuficiência é responsável pelo conflito ao qual esta equilibração provisória chegou, mas de um melhoramento desta forma precedente” (Piaget, 1976). Essa visão pode ser aplicada às organizações. Voltando ao âmbito da escola, podemos concluir que a instalação da sala de informática é um fato desequilibrador, já que se configura como uma novidade de diversas facetas: novo espaço e novos materiais, que desafiam a aprender e a ensinar de um jeito um pouco diferente. Em conseqüência disso, é nova a forma de se organizar o trabalho e também nova a forma de comunicar-se. São novos desejos a realizarem-se, novos medos aparecem, novas negociações esperam por diálogo. Organização escolar e apropriação tecnológica Com maior ou menor grau de conflito, a escola que detém uma sala de informática estará num processo de apropriação tecnológica, cuja eficácia depende de dois fatores, como Barreto (1995/2002) menciona a seguir: “A inovação tecnológica é um conjunto de conhecimentos, com um elevado teor de novidade, relacionado a estes conhecimentos. (...) A toda tecnologia se associa uma considerável quantidade de informação. Esta informação, 2 quando assimilada pelo indivíduo, grupo ou sociedade, gera um conhecimento que permite a adoção ou a rejeição de uma determinada técnica. (...) A adoção de uma tecnologia requer, portanto, a absorção de determinado conhecimento e uma decisão de iniciar, modificar ou aperfeiçoar um produto ou serviço, seu processo de produção ou de comercialização. Quando se estabelece esta cumplicidade de intenções, um processo de absorção e um processo de decisão, podemos dizer que se efetivou uma inovação em determinada realidade”. A afirmação acima toca num tema recorrente: basta instalar computadores e aprender a operá-los para que uma escola se aproprie da tecnologia? Existe algo mais que faça diferença? Segundo o autor acima é preciso, também, querer que isso aconteça. Ou seja, a escola também precisa decidir pelo uso dos recursos que tem à mão. Há exemplos de escolas que desejam tanto ter computadores que acabam por desenvolver projetos muitas vezes com menos estrutura do que outras que, mesmo dispondo de mais e melhores máquinas, não se lançam na experiência de usá-las. Os atores Do mesmo jeito que aprende, a organização escolar deseja e decide. Por isso, é capaz de optar, ou não, por apropriar-se da tecnologia que tem por meio daqueles que a ela estão ligados diretamente – alunos, professores, funcionários, professores coordenadores, diretores, vices – e indiretamente – comunidade, Diretoria de Ensino, Núcleos Regionais de Tecnologia Educacional. Esses grupos são o que chamamos de atores. Eles têm essa denominação porque intervêm na realidade (ou se abstêm de fazê-lo, o que também é uma forma de ação) segundo interesses específicos. 3 Por ser uma instituição social, a Escola traz dentro de si um jogo de forças quase sempre implícito, mas que determinará seus rumos. Isso é especialmente interessante de se verificar no que se refere ao Plano de Escola que, no Estado de São Paulo, é chamado de Plano de Gestão. Há escolas onde todos os atores discutem igualitariamente o que se quer daquela organização nos próximos quatro anos, gerando um projeto que depois será assumido coletivamente; já em outras escolas, é atribuído a um grupo de professores e gestores a decisão solitária sobre assunto que interessa a todos. Um olhar sobre o processo de apropriação de três escolas estaduais Visando analisar esse processo, na prática, realizou-se, em 2002, uma pesquisa envolvendo três escolas estaduais da Zona Norte da Capital (Lima, 2002). Os dados levantados foram analisados sob três diferentes ângulos: - Histórico de cada uma das escolas; - Posicionamento de atores diretamente envolvidos no processo (no caso, alunos, professores, professores coordenadores, diretores e vice-diretores); - Questões emergentes. Descreveu-se, por fim, o processo de apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC –, tal como pôde ser observado nos três casos. No que se refere ao histórico, verificou-se que se tratava de escolas que haviam recebido do Estado suas salas de informática no mesmo ano (1998), porém o nível de apropriação diferia de para outra. A primeira nunca havia se apropriado da tecnologia; a segunda havia experimentado um episódio isolado de uso e a terceira usava sua sala de forma intensa e qualificada demandando, na época, uma ampliação de seus recursos. 4 Quanto ao posicionamento dos atores, comprovou-se que existia uma diferença de postura entre alunos que desejavam o uso da tecnologia, professores, que sentiam um certo medo em usá-la e gestores (diretores, vices e professores coordenadores), que olhavam para a sala de informática vislumbrando as questões administrativas que permeavam seu uso. Por fim, chegou-se às questões que emergiam na organização escolar a partir da inserção da sala de informática. Elas foram entendidas como manifestações do conflito gerado pela implantação da sala de informática e pontes para a aprendizagem educacional. Classificadas, deram origem a seis grupos: A. Questões físicas: referentes ao ambiente (sala de informática), a respeito do espaço, acomodações e objetivos de uso, manutenção e segurança dos equipamentos, e dos materiais e acessórios que complementam o trabalho com a tecnologia. B. Questões financeiras: administração das verbas que o mantenedor – no caso o Governo – envia para a escola, bem como critérios e prioridades que a escola precisará eleger para utilização das verbas. Engloba também a geração de iniciativas de sustentabilidade, dentro dos limites colocados pelo Estado, como iniciativas próprias e parcerias. C. Questões referentes à organização do uso: a forma como a escola articula os espaços, o tempo e os recursos, o que demanda uma estratégia de trabalho que será mais eficiente quanto mais pessoas estiverem de acordo com essas escolhas e informadas a respeito delas. 5 D. Questões referentes ao desenvolvimento de pessoas: a qualificação de todos os setores para o uso da tecnologia, no aspecto técnico ou, no caso dos educadores, pedagógico. E. Questões pedagógicas e de gestão do conhecimento na escola: engloba a conscientização quanto a objetivos educacionais: conteúdos explícitos ou implícitos, a opção quanto à pedagogia adotada e a integração do equipamento como coadjuvante da pedagogia. F. Questões políticas: referem-se ao rompimento da visão tradicional de poder na sala de aula e da escola e às questões que dizem respeito à relação dos atores com o espaço e o patrimônio público, que automaticamente levarão a vivências voltadas à ampliação da noção de cidadania. O que se retrata acima são os pontos a partir dos quais se estabeleceram os principais conflitos nas três escolas. Verificou-se, por fim, que a forma como cada escola respondeu a elas é que determinou o seu grau de apropriação tecnológica. Descrição do processo Assim chegou-se à representação a seguir: 6 Ela resume a idéia que se desenvolveu nos parágrafos precedentes: apropriação da tecnologia pelas escolas é um processo de aprendizagem organizacional caracterizado pela solução que seus atores dão a conflitos múltiplos. O conhecimento tecnológico deve caminhar paralelamente à decisão do coletivo em utilizar os recursos à disposição. Podemos utilizar como exemplo a escola que obteve maior freqüência e qualificação no uso da tecnologia. Trata-se de um coletivo que historicamente decidirá usar a tecnologia, como se observa no depoimento de um de seus alunos: “Meu primo estudou aqui, também, mas bem antes. Ele falou que na época dele eram dois micros 486, ainda, bem antigos. E era só ele e um colega dele, porque o resto nem queria saber da informática. Aí no outro ano, já tinha um micro a mais, já tinha mais gente, aí foi crescendo, foi evoluindo cada vez mais”. (Aluno) A chegada da sala foi uma realização que não deixou de se fazer acompanhar por conflitos: onde montar a sala de forma a garantir a segurança do patrimônio, como iniciar um trabalho pedagógico com equipamento mais moderno, como organizar o uso para garantir o envolvimento do maior número possível de alunos, que tipo de 7 projeto desenvolver e em que séries, como dispor de verbas para manutenção e material de consumo, como formar professores para o uso? As decisões referentes a essas questões foram tomadas da forma mais compartilhada possível. Embora nem todos os professores se interessassem pelos novos recursos, foi dado espaço àqueles que desejavam conhecer melhor seu funcionamento e integrá-los à sua rotina pedagógica. Alunos foram envolvidos no processo e, depois de um tempo, estruturou-se um grupo de monitores que, na época da pesquisa, davam apoio aos professores durante as aulas e ensinavam aos mais novos a operação básica dos computadores. O fato de se obter sucesso na maioria das questões não gerou uma situação instável. No momento da pesquisa os alunos questionavam os encaminhamentos da diretoria no que se refere à manutenção dos computadores, já que eles queriam ser os responsáveis por esse trabalho: “A gente mexe no micro, (...); a gente acha desnecessário o técnico, só se for uma coisa muito aprofundada, entende? O que é difícil acontecer nesses micros, aqui. Alguma coisa que for assim, tipo muito complexa, taria (sic) chamando um técnico, pagando pelo serviço.” (Aluna) O professor coordenador apontava, também, outro desafio a ser vencido: “O que a gente precisava, realmente, era mais uma sala de informática, porque tem horas que choca. (...) Tem muita gente. E aí dá briga: briga de professor, briga de aluno. Porque as pessoas querem e às vezes não dá. (...) E aí choca, aí tem que segurar os professores para que eles não entrem em atrito também por causa da sala. Então, se você vier aqui a qualquer hora do dia essa sala está sempre ocupada, sempre, sempre, à noite, direto!” 8 Esse movimento de questionar, contrapor, sugerir, adotar novos procedimentos, mudar é infinito. Como dito, a alternância entre equilíbrio e desequilíbrio, numa organização, gera aprendizagem e desenvolvimento. É o que a mantém viva. Educando a escola: o papel do gestor No momento em que se propõe a inovação tecnológica à escola, o gestor tem em mãos a oportunidade de exercer um papel educativo excepcional. A partir da visão dos processos mais gerais do contexto escolar, ele poderá utilizar-se do conflito estabelecido para potencializar esse momento de aprendizagem coletiva. Ou seja, pode ser um agente de promoção da aprendizagem organizacional. Isso poderá garantir não só que haja efetiva apropriação da inovação proposta, mas, além disso, proporcionará um ganho extra: maior qualidade na dinâmica de toda a organização escolar. A diretora da escola mencionada anteriormente mostrou-se ciente desse papel, como no depoimento a seguir: “Eu falei, diretor de escola tem que ser um facilitador, ele tem que estar aqui para isso. Ele tem que abrir espaços, tem que facilitar mesmo. Oportunizar a que todos os projetos viáveis ocorram, aconteçam. Aplicação correta das verbas naquilo que é necessário, presença, estímulo, incentivo, mesmo, a tudo que eles estão fazendo. Você tem que estar vendo, estar motivando e tem que estar também atento às condições para que eles possam ter acesso”. (Diretora) Essa visão é compartilhada com o Professor Coordenador que, referindo-se à sua função, afirma: 9 “Ele [professor coordenador] é o cara que fecha os elos (...) E quando você fecha um projeto, para trazer todo o grupo. Certamente isso diz respeito também aos vices, supervisores, assistentes técnico-pedagógicos. A todo gestor escolar, enfim.” Resgatando o papel educativo do gestor escolar A partir do que abordamos anteriormente é importante que nos perguntemos como o gestor pode potencializar o processo de aprendizagem organizacional relacionado à apropriação da tecnologia pela escola. Algumas pistas nos levam a ver que o primeiro passo é o gestor perceber-se efetivamente como educador nesse processo. Sabemos que na história da educação foi se construindo uma separação entre a atividade administrativa e a pedagógica e talvez a inovação tecnológica possa se constituir em uma oportunidade para se reverter essa realidade. Como em todo processo educativo, aqui também é possível estabelecer objetivos, estratégias, formas de avaliação, e algumas transformações no ambiente escolar para que haja uma maior aprendizagem. No início pediu-se que o leitor imaginasse uma situação. Pense nela novamente e se pergunte: quem é que produz o burburinho no corredor? De quem é a voz que pergunta o que deve ser feito com a tecnologia? Quem pode chegar e dar sua colaboração? Essa escola talvez se pareça um pouco com aquela da qual você faz parte. Bibliografia 10 Almeida, M. E., Informática e formação de professores. Série Estudos, volume 1. Brasília: Ministério da Educação, SEED, 2000a. ______. Contextualizando a formação de professores: praticar a teoria, refletir a prática. 2000b. Tese (Doutorado em Educação e Currículo). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. Barreto, A. A transferência de informação, o desenvolvimento tecnológico e a produção do conhecimento. Texto publicado em web-site em 11 fev. 2000. Disponível em: <http://www.alternex.com.br/~aldoibc/inform/informa.htm>. Acesso em 15 ago. 2002. Dowbor, L. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. ______. Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação. 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