Leitura e literatura na primeira infância Fernanda Rohlfs Pereira Março de 2015 Como surgiu a literatura infantil? Uma literatura que se moldasse a partir dos princípios burgueses de comportamento e transmissão de valores surgiu por meio da adaptação de contos da tradição oral e influência dos escritos da Antiguidade Clássica. O primeiro repertório de literatura para infância foi as fábulas e os contos de fadas. Esses gêneros foram devidamente adaptados para “educar” as crianças nos moldes burgueses. Os textos sofreram significativas transformações para atender aos propósitos pedagógicos dessa literatura, de onde se percebe uma concepção de infância e de valores a serem transmitidos e consolidados. Três séculos já decorreram desde que os contos de fadas foram inaugurados como narrativa infantil em 1697, com a publicação, em Paris, da coleção pioneira de Charles Perrault (1628-1703), Contos da Mamãe Gansa. Até o século XV não havia uma concepção de infância conforme a que conhecemos hoje. As crianças eram tratadas como “pequenos adultos” marcados pela incompetência e falta de habilidades. Não havendo diferenciação nítida entre as fases da vida humana, crianças e adultos compartilhavam comportamentos que, hoje, consideramos restritos à idade adulta. Miniatura otoniana do século XI, que retrata a passagem bíblica “Deixai vir a mim as criancinhas” do Evangeliário de Oto e da Bible moralisée de Saint Louis: • Com o advento da Revolução Industrial, surgiu, na metade do século XVIII, as primeiras obras para consumo destinadas ao público infantil. • Reconhecimento da fase infantil e descoberta da criança como ser individualizado, que necessita de cuidados cívicos, espirituais, éticos e intelectuais específicos. • Devido ao crescente processo de industrialização e do consequente aumento do consumo, a literatura infantil assumiu, desde o começo, a condição de mercadoria. • Cabia à escola a responsabilidade de subsidiar valores e comportamentos os quais a burguesia pretendia perpetuar, sendo, portanto, a principal promotora de acesso à literatura Literatura Infantil no Brasil No Brasil, a literatura, sobretudo a classificada como infantil, teve início no final do século XIX e sofreu forte influência dos clássicos infantis europeus. No início, o que existia, era uma circulação de livros precária e irregular, representada principalmente por edições portuguesas As traduções que eram feitas no Brasil também revelavam o caráter conservador que se alinhava a propostas pedagógicas da época. As obras de Monteiro Lobato são consideradas um marco para a literatura infantil brasileira, por romperem com a perspectiva utilitarista e pedagógica. Nos anos de 70 e 80, eclode significativa ampliação de autores e obras, época que ficou conhecida como “surto de criatividade” e “boom da literatura infantil” decorrente do crescimento e interesse na produção e publicação de livros para crianças no Brasil, impulsionada por projetos de promoção e incentivo à leitura no país. Entre os vários autores que se destacaram na década de 70 por sua produção inovadora, vale mencionar: Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós, Lygia Bojunga Nunes, Rachel de Queiroz, Ruth Rocha e Ziraldo. Na década de 80, destacam-se as produções de: Marina Colasanti, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo, Tatiana Belink. A literatura passou, então, com maior visibilidade nessa época, a fortalecer a qualidade literária dos livros que se ofereciam a crianças. VAMOS REFLETIR.... É possível trabalhar leitura literária na Educação Infantil? De que forma? Alguns esclarecimentos: Não há intenção em falar de leitura como ferramenta para ser mais competente no sentido acadêmico, embora seja evidente que o contato precoce com a literatura repercute na qualidade da educação. A leitura não é fomentada para exibir bebês superdotados, e sim para garantir em igualdade de condições o direito a todo ser humano de se transformar e transformar o mundo. E de exercer as possibilidades que proporcionam o pensamento, a criatividade e a imaginação OS ALICERCES DA CASA: LER NA PRIMEIRA INFÂNCIA? Por que e para que oferecer leitura aos bebês se há tanto o que se fazer com eles? Há um consenso acerca da importância da primeira infância e, especificamente, do período entre zero e três anos como a etapa de maiores possibilidades quanto a maturação e à aprendizagem. Pesquisas científicas comprovam que a maleabilidade ou a plasticidade do cérebro infantil é praticamente ilimitada e que durante a etapa intrauterina e os 3 primeiros anos de vida se registram um crescimento neurônico acelerado. O cérebro do bebê tem um número muitíssimo maior de neurônios que o adulto e está habilitado a estabelecer inúmeras conexões , em razão das experiências que o meio lhe oferece. Os neurônios estimulados com maior frequência continuam funcionando e os que não o são perdem sua sinapse. No início muitos desses circuitos disponíveis não são usados. O cérebro se desenvolve a partir da interação entre o capital genético e as experiências propiciadas aos infantes, sendo a qualidade dos estímulos decisiva no desenvolvimento de suas capacidades presentes e futuras. A variedade, o desafio e a qualidade dos estímulos alteram o cérebro tanto quanto os processos socioemocionais. No âmbito da linguagem já se demonstrou que a criança depende quase que completamente da influência de seu meio. Os modelos apresentados pelos adultos próximos serão decisivos . Oferecer ambientes estimulantes para o desenvolvimento de habilidades de linguagem podem reduzir de modo considerável os problemas de repetência e evasão escolar. O bebê ingressa na língua materna pelas vias: sonora, emotiva, poética. Embora ainda não caminhe, nosso leitor já conta com um bagagem básica para encarar a aventura interpretativa que constitui a essência de toda leitura. Por intermédio do triângulo amoroso entre adulto, livro e leitor, a criança descobre que existe um outro mundo e que as ilustrações não são a realidade e sim sua representação. O jogo vai muito longe, pois não se limita a descrever cada página em separado, e “ensina” ao bebê que as imagens se encadeiam para construir histórias. Graças à companhia dos adultos, as histórias vão se tornando mais complexas e os simples livros de banho ou os de capa dura que mostravam imagens similares ao do contexto infantil - a família, a hora de comer de tomar banho – dão lugar aos que exploram mundos da mente. O texto verbal e a ilustração tecem um diálogo que lhe permite conversar com seu pai a respeito de sensações conhecidas e de coisas guardadas em sua mente, que a linguagem dos livros ajuda a nomear. Não faz mal ler para as crianças histórias que assustam. Não faz mal ler palavras desconhecidas. Não faz mal ler palavras que consideramos inadequadas para crianças. Embora pareça paradoxal, é na escuta atenta da narração oral que a criança se encontra com as leis da escritura e interioriza uma forma diferente de organização dos feitos. Precisamos considerar a literatura infantil como ARTE 1 • Considerar a escolha do livro Em sua maioria os professores recusam o trabalho com temas que considerem delicados, polêmicos, perigosos, ousados, ao promoverem uma verdadeira assepsia temática e, por fim, proíbem a discussão dos enigmas da existência humana e da complexidade das relações sociais. Simplificam os conflitos infantis e subestimam a capacidade da criança lidar com a realidade. As escolhas sobre o que ler para as crianças devem ser ancoradas na concepção de que as crianças são inteligentes, competentes e possuem grande curiosidade e interesse em conhecer. 2 • Observar às imagens e o projeto gráfico dos livros Propiciar contato com livros que utilizam técnicas variadas: desenho, colagem, pintura, recortes etc. A escolha dos textos literários, em grande medida, revela o que as professoras pensam sobre as crianças, a infância, a aprendizagem e o processo educativo. Precisamos garantir variedade de: O momento da leitura deve ser sistematizado e diário. -Gêneros literários - Autores - Projetos gráficos - Temáticas - Tipos de roda de leitura - De locais para a leitura Durante os anos em que a criança adquire aos poucos a capacidade para decodificar e assumir plena competência leitora, não conta com ferramentas suficientes para ler os livros que seu desejo de conhecimento ou seu coração exigem. É preciso continuar lendo bons livros, sem abandonar as crianças na metade do caminho. O fato de a criança já manejar o código elementar da leitura-escrita não é razão para “expulsá-la do paraíso” da leitura compartilhada. Leitura também é experimentação O contato sensorial faz parte da experiência leitora e é importante que ele exista, sem limites, permitindo que a criança vivencie e signifique o momento, saboreando aquilo que lhe for desejável. O objeto livro não pode ser cultuado como algo que não se possa tocar ou que se manuseia com extremo cuidado e o seu valor não pode ser considerado a ponto de cercear a liberdade da criança de manipulá-lo. A empatia entre leitor e livro talvez seja o primeiro passo para a construção de uma relação verdadeira e duradoura. O papel do mediador para experiências significativas de leitura Um mediador de leitura saberá criar momentos oportunos e atmosfera propícia para facilitar o encontro entre livros e leitores. Nesse sentido, pode-se afirmar que um mediador de leitura não lê apenas livros, ele também lê os seus leitores, o que eles desejam, o que sonham e, por meio disso, tentam descobrir quais serão os livros que conseguirão ir ao encontro dos seus anseios e perguntas dos seus leitores. Necessidade de se assegurar à criança o contato com a diversidade literária para torná-la capaz de gostar ou não de um livro e/ou de uma leitura. A literatura para a Educação Infantil não deve ser encarada como um artifício para distrair, passar o tempo, servir como mero adorno, ou simplesmente garantir o contato das crianças com o suporte livro. A relação que o professor tiver com a leitura literária influenciará potencialmente na formação leitora do infante. É necessário que o professor estabeleça critérios para a escolha dos livros que serão lidos para as crianças. Independente da atividade que o professor se propor a fazer é necessário que ele prepare a atividade previamente. Técnicas para o contador de histórias: Para começo de conversa... Saber começar uma história é muito importante. O tradicional “Era uma vez...” funciona sempre, pois existe magia na expressão, que tem o poder de nos transportar para um outro tempo, que não é o presente, nem o passado, nem o futuro, mas um tempo encantado, onde tudo pode acontecer. Criar uma forma de identificação da “Hora da leitura” de forma que todas as vezes que as crianças escutarem o barulho tal ou o movimento tal, saberão que acontecerá uma leitura literária. Da mesma forma, criar algum elemento que sinalize o término da história ou da atividade relacionada à leitura. Brandão e Rosa (2011) abordam a necessidade do momento da roda de leitura ter uma finalidade, e também a importância de que essa prática seja preparada antecipadamente, desde a leitura prévia da obra, seus desdobramentos e seu modo de finalização. Se a dinâmica envolver um momento de conversa após a leitura da história, é necessário planejar o que conversar. Os segredos da interpretação oral 1ª regra • Nunca falar no mesmo tom 2ª regra • Alternar voz forte e voz suave 3ª regra • Alternar a duração da palavra conforme o sentimento que ela expressa. Ler ou contar histórias? Ler Contar Valoriza o suporte livro Implica improviso, maior contato visual e interação com as crianças. Valoriza a linguagem literária Utiliza elementos da linguagem oral Bons livros literários não são escritos para ensinar alguma coisa. O leitor pode até aprender algo com eles, mas essa não deve ser a principal justificativa para a existência de uma obra. Por isso, professores e mediadores de leitura devem atentar à forma como alguns temas são tratados nos livros, evitando abordagens moralistas, didáticas, previsíveis, maniqueístas, paternalistas, simplistas ou estereotipadas que subestimam a inteligência dos leitores e lhes ofereçam uma visão limitada da experiência humana Bons textos apresentam vocabulário rico e fazem uso inteligente da linguagem. Interpelam, provocam, fazem pensar e não subestimam a capacidade de compreensão dos leitores. Pelo contrário: desafiam a descobrir o que se revela por trás das palavras e convidam ao assombro e ao deleite estético pelo modo como exploram temas diversos, pela forma como dizem o que dizem e pelas experiências que são capazes de provocar nos leitores. Obrigada!