EDUCAÇÃO INTEGRAL NO CAMPO DA EJA (EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS) Luciana Eliza dos Santos (USP/FACEQ) * Resumo O artigo aborda a temática da educação integral como concepção pedagógica presente em propostas e experiências de Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, nos últimos anos. A questão da educação integral é relacionada a propostas de construção de currículo integrado, como perspectiva inovadora de seleção e organização de saberes, em diálogo com a realidade estudantil de jovens e adultos. Palavras-chave: Educação Integral. Educação de Jovens e Adultos (EJA). Currículo Integrado. Políticas Públicas. Conhecimento. Currículo Integrado e a Educação Integral A educação de jovens e adultos apresenta diretrizes recentes que referendam a gradativa constituição de políticas permanentes. A Lei 9.394/96 define a Educação de Jovens e Adultos como modalidade da educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio. O Parecer CNE/CEB N.º 11/2000 institui as Diretrizes Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Assim, configura-se, nas últimas décadas, o direcionamento de ações do Estado para o atendimento de demandas populares históricas por educação por meio de programas1 que buscam assegurar o direito permanente à educação e sua oferta a todos. Uma das discussões muito valorizadas neste contexto é a relação educação e trabalho. Essa ponte, que possibilita a integração da educação básica à formação profissional, tem o mérito de promover interessantes * Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Professora no Curso de Pedagogia e Letras da Faculdade Eça de Queirós. 1 Programa Brasil Alfabetizado, Escola de Fábrica, Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA); Saberes da Terra; Inclusão de Jovens (PROJOVEM). 1 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs discussões teóricas e propostas pedagógicas, como a noção de educação integral, que será mencionada no presente texto. Para melhor avaliar a questão é importante remetê-la a alguns elementos que constituem o campo da Educação de Jovens e Adultos – EJA. A ideia de permanência e direito, presente no discurso contemporâneo, tem o caráter de substituir a efemeridade e o tom assistencialista das antigas políticas brasileiras de educação de adultos, difundidas na forma de campanhas nos meios populares a partir da década de 1940, com o objetivo de sanar um crônico problema nacional: o analfabetismo. A história da escolarização de adultos remete à preocupação dos poderes públicos em suprimir uma “chaga” nacional, um mal que assolava a sociedade brasileira, sendo promovidas verdadeiras cruzadas contra o analfabetismo (BOMENY, 2000). Esse discurso, embora apresentasse um caráter assistencialista, colocou os populares dentre os interesses das elites preocupadas com a escolarização, sendo esta compreendida como fator fundamental à formação de um novo sujeito no Brasil, o cidadão. Dessa forma, o discurso liberal encabeçou os primeiros vislumbres de uma escola que levaria o povo à condição de cidadão, mas que também sustentaria a formação de um trabalhador disciplinado e, portanto, efetivaria a formação da parcela da população que serviria de base de sustentação à elite intelectual e econômica. Esse mecanismo afirma a dualidade como fator fundador da escolarização em larga abrangência no Brasil. Assim, as décadas de 1940 e 50 são marcadas por um processo de expansão da escola pública, sobretudo do ensino secundário (SPOSITO, 2002; BEISIEGEL, 1974), de modo que a educação de adultos é figurada por iniciativas que constituem os primeiros passos para a instauração de uma política, como a criação do Decreto 19.513 de 1945, que dispunha da concessão de fundos para o ensino primário de adultos analfabetos. A partir de 1947, é instituída a Campanha de Educação de Adultos 2, pelo ministério da Educação e Saúde, que viabilizou o funcionamento de uma rede de ensino supletivo. A campanha vigora oficialmente até a década de 1950, mantendo-se, todavia como modelo até 1964, quando o regime militar instaura o Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização, que incute diretrizes autoritárias ao processo educativo em sua totalidade e assume a instrumentalização da educação como mecanismo de controle dos movimentos sociais. 2 É importante lembrar que a Campanha de Educação de Adultos foi influenciada pelo educador Lourenço Filho, o que lhe confere um caráter social voltado à erradicação do analfabetismo. Para melhor compreender essa questão consultar a obra Estado e Educação Popular, de Celso de Rui Beisiegel. 2 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs Nesse mesmo período, a partir da década de 1960, o educador Paulo Freire desenvolve concepções inaugurais e paradigmáticas acerca do estudante adulto, que passa a ser compreendido como sujeito social, produtor de trabalho e cultura, sendo a educação um meio fundamental a sua conscientização e emancipação social. É ponto pacifico entre os educadores de EJA até os dias de hoje, que a contribuição de Paulo Freire é elementar ao desenvolvimento teórico-metodológico desta modalidade educacional. Atualmente, a Educação de Jovens e Adultos se designa em grande medida a uma larga parcela da população marcada pelo abandono da vida escolar. O Brasil apresenta um significativo decréscimo na taxa de analfabetismo ao longo das últimas décadas, entretanto, nota-se que a problemática reside na continuidade da vida escolar entre os adultos, caracterizada pela baixa escolarização, conforme indicadores de 2009 do IBGE3: 3 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE - Diretoria de Pesquisas - Coordenação de Trabalho e Rendimento - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Síntese de Indicadores, 2009. 3 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs O Brasil agrega uma soma de 36,9% de pessoas com 25 anos ou mais que possuem ensino fundamental incompleto ou equivalente, no ano de 2009. A descontinuidade da escolaridade está associada tanto a necessidade de produção de renda e inserção no mundo do trabalho quanto ao fracasso escolar, fator cada vez mais presente na escolarização básica brasileira, marcada pela reprodução inadequada de modelos pedagógicos e produtora de um significativo contingente de jovens que procuram a EJA. Sendo assim, é crescente a formação de um discurso preocupado com as características do estudante de EJA, que assumem peculiaridades cada vez mais variadas e complexas de acordo com o meio social. Nos últimos anos, um dos caminhos para se equacionar essa problemática é a aproximação das discussões teórico-metodológicas constitutivas da Educação de Jovens e Adultos ao universo do trabalho, o que converge em aproximações de abordagens teóricas e práticas pedagógicas à realidade social desses estudantes, que de algum modo já estão inseridos no mundo do trabalho. Assim, diante desta exposição, nota-se que a EJA nasce como uma demanda social, presente nos meios populares, que foi gradativamente institucionalizada como mecanismo de transformação ou controle social. É fundamental aos educadores contemporâneos a compreensão dos avanços qualitativos associados ao reconhecimento desta modalidade de ensino na constituição de políticas públicas de educação. A incorporação do espaço de discussão referente à integração da educação básica à formação profissional - presente tanto em ambientes acadêmicos quanto em movimento de trabalhadores - às ações de gestão pública de educação escolar constitui um desses avanços. Para tanto, é interessante apreender algumas iniciativas contemporâneas que visam à constituição de políticas públicas, como o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. Este programa, lançado em 2007, é caracterizado por uma parceria da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica - SETEC e Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD e tem como base de ação a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, que em 2005, algumas de suas instituições já realizavam a experiência de integração da educação profissional à formação básica de jovens e adultos. 4 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs Assim, o programa, ao ter “como horizonte a universalização da educação básica, aliada à formação para o mundo do trabalho, com acolhimento específico a jovens e adultos com trajetórias escolares descontínuas” (PROEJA, 2007, p. 12) apresenta importantes fatores a serem discutidos acerca da ponte educação e trabalho, como as noções de currículo integrado e trabalho como princípio educativo. A abordagem teórica e as propostas de práticas pedagógicas sugeridas pelo PROEJA, de certa forma, colocam em debate uma discussão já difusa no Brasil, acrescentando um fator importante que é a incorporação de renovados debates e tendências teóricas que tratam da educação profissional ao campo político e à gestão pública. Nesse sentido, em consonância à paulatina construção da integração da educação ao trabalho presente em programas como o PROEJA, há uma importante produção teórica que antecede e estabelece discussões sobre as experiências, refletindo acerca das possibilidades de efetivação de uma Educação de Jovens e Adultos preocupada com a formação humana e social desses estudantes. Assim, como expressa o documento base do PROEJA: (...) o que realmente se pretende é a formação humana, no seu sentido lato, com acesso ao universo de saberes e conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos historicamente pela humanidade, integrada a uma formação profissional que permita compreender o mundo, compreender-se no mundo e nele atuar na busca de melhoria das próprias condições de vida e da construção de uma sociedade socialmente justa. A perspectiva precisa ser, portanto, de formação na vida e para a vida e não apenas de qualificação do mercado ou para ele. (PROEJA, 2007, p. 13) Há algumas referências que são essenciais ao entendimento dessa questão, como Marise Ramos (2005), Gaudêncio Frigotto (2005); Maria Ciavatta (2005), entre outros estudiosos que contemplam a compreensão do processo educativo, no campo da educação de adultos, direcionado à formação integral desses sujeitos sociais. Trata-se da compreensão do termo educação integral como diferencial de grande pertinência à formação de adultos e que engloba tanto a formação básica quanto a profissional. Dessa forma, há dois pontos a serem aqui discutidos: a noção de educação integral, que remete à concepção de formação humana que preza pelo desenvolvimento integral de capacidades e conhecimentos intelectuais, técnicos, científicos e culturais. Outro ponto é a questão do currículo integrado que tem por objetivo viabilizar a realização de uma educação integral, sendo por tanto integrados conceitos, conteúdos e concepção pedagógica em uma centralidade institucionalizada ela cultura escolar. Sendo assim, 5 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs Marise Ramos organiza alguns pontos que enriquecem a noção de integração, devendo esta ser compreendida: como concepção de formação humana; como forma de relacionar ensino básico e educação profissional; e como relação entre parte e totalidade na proposta curricular. Para desenvolver a reflexão acerca de ambas as noções são necessárias algumas referências traçadas por Marise Ramos (2005): uma formação integral, nas discussões contemporâneas, visa à inserção de adultos no mundo do trabalho e na sociedade por meio de uma educação que tem como base a apropriação da cultura, da ciência e do trabalho. A educação deve propiciar caminhos e escolhas para a produção da vida. Assim, a autora demonstra outros dois aspectos essenciais a essa concepção educacional: a ideia de escola unitária, ou seja, uma educação escolar cuja base é a garantia da partilha do conhecimento acumulado pela humanidade a todos, o que, nessa perspectiva nega a função e o sentido de uma escola dual. Outro ponto é a educação politécnica que tem por objetivo semear o acesso à cultura, à ciência e ao trabalho por meio de uma educação básica e profissional. Essa perspectiva educacional atente, portanto, aos imperantes sociais e culturais que constituem a formação de um ser humano integral, autônomo e produtor de trabalho e cultura. Da mesma forma que não atende aos imperantes de um mercado de trabalho que busca a larga produção escolar de indivíduos que atendam às suas necessidades de produção. Essa perspectiva educacional busca tornar o estudante conhecedor e transformador do mundo, com todas as suas complexidades naturais, socais e culturais, e não uma peça que exerça um papel fragmentário na sociedade. Como observa Marise Ramos4, no mundo que o ser humano enxerga e com o qual interage não há dissociação entre ciência, trabalho, natureza e as transformações que ele incide sobre a natureza, produzindo cultura e determinando a sociedade, devem ser compreendidas pela educação escolar de forma integrada. Não há fragmentação na realidade na qual estão inseridos os sujeitos sociais, de modo que uma educação fragmentária visa apenas à formação parcial e sujeita às divisões sociais. Assim, é importante sublinhar que a noção de integração remete tanto a questões teóricas acerca da formação integral do homem quanto a fatores metodológicos que permeiam a prática pedagógica no campo da EJA. Uma discussão subsidia a outra, de 4 “Os desafios para a construção do Currículo Integrado”: palestra realizada por Marise Ramos, em Osasco, no dia 24 de setembro de 2010. 6 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs modo que é importante compreender a gênese da ideia de formação integral para que se torne possível e pertinente uma prática integradora, em termos metodológicos e curriculares. Para abranger a integração como concepção de formação humana é necessário partir de alguns questionamentos acerca da própria noção de educação integral, reportando-se a sua historicidade. A que momento histórico se pode remontar a discussão sobre educação integral? Seria essa uma perspectiva educacional que atende somente às demandas de formação de adultos trabalhadores e qualificação profissional contemporâneas? Ao se notar a pertinência desses direcionamentos pedagógicos à formação de estudantes de EJA, pode-se presumir que se trata de uma discussão atual; todavia, as noções de educação integral, integração curricular, escola unitária têm raiz em momentos passados e essenciais à constituição da noção classe trabalhadora na história da humanidade. É consenso que a EJA atente a uma parcela da sociedade que vive ou busca viver do trabalho, sendo, portanto, favorável a constituição de uma educação básica de Educação de Jovens e Adultos que tome por referência a importância do trabalho para a formação desses sujeitos. O trabalho é pressuposto da vida em sociedade. A produção de cultura está vinculada ao exercício do trabalho. Como observa Celso Ferretti5 o trabalho é um processo de humanização do homem e de interferência desse ser humano na natureza. O trabalho é um elemento de humanização, é o que transforma o humano de natureza selvagem em ser social. Portanto, é um trabalho que faz do homem um ser que cria, que transforma e que age de forma articulada sobre a realidade e a compreende com base em sua integralidade. Esta é uma concepção ontológica de trabalho. Certamente, essa compreensão se opõe à tão presente visão de trabalho que fragmenta, submete e desumaniza o homem, sendo o trabalho, portanto, contraditório. Assim, Celso Ferretti aponta, em Aula Inaugural do PROEJA-FIC, realizada em 2009: Qual é a perspectiva quando a gente trabalha com educação e trabalho? Conceber uma educação que, considerando os limites postos pela forma como o trabalho se organiza nas sociedades capitalistas hoje, aponte na direção de uma sociedade melhor e de uma possível ruptura com uma forma de trabalho, que muitas vezes nos aliena e nos empobrece ao invés de nos humanizar. Essa é uma concepção que é ponto de partida, a concepção ontológica de trabalho 5 Aula Inaugural do PROEJA-FIC, realizada em 2009. 7 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs que é a constituição do ser social e dos sujeitos sociais, porque o enfrentamento da natureza não se fazia ou não se fez historicamente apenas pela ação de um, mas pela ação articulada, mais ou menos, de muitos, e essa ação articulada é que imprimiu a necessidade e portando criou a vida social. O que vivemos hoje é parte, é a expressão de alguma forma de todo esse processo. A concepção ontológica de trabalho vincula-se, dessa forma, a uma lógica de produção material que vise o desenvolvimento harmonioso da sociedade, sendo contemplado um coletivo social constituído por uma ação articulada. A lógica de produção capitalista, por sua vez, embora seja também uma construção social, visa à divisão social do trabalho, estabelecendo uma relação dicotômica entre aquele que pensa e aquele que executa. A formação de adultos trabalhadores estaria condicionada às demandas de execução da produção capitalista. A escola, nesse contexto, também é instituída sob uma via dupla de formação dirigida àqueles que projetam de um lado e àqueles que executam de outro. Uma proposta de educação integral e politécnica visa à superação justamente dessa matriz dicotômica. A origem desse pensamento, como mencionado anteriormente, está associada a outro momento histórico; vincula-se às raízes dos movimentos de trabalhadores, constituídos na Europa ao longo do século XIX e XX, em resposta às transformações sociais e econômicas ocorridas a partir do século XVIII, com as revoluções burguesas, com a revolução industrial e com a gradativa construção das sociedades modernas. Em um ambiente de extrema exploração do trabalho humano, diante da descoberta de suas potencialidades com base na lógica do capitalismo, o trabalho foi pouco a pouco deixando de ser artesanal para ser industrial, bem como fragmentário e desumanizador. A criação da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) 6, já no século XIX, como espaço que reuniu vários grupos políticos de esquerda que viabilizou a organização da classe operária diante dos avanços no mundo do trabalho, é um marco essencial à compreensão do conceito de trabalho e das transformações que sofreu ao longo da história. Um dos principais pontos de discussão e luta da AIT foi a jornada de oito horas de trabalho. Além de outros aspectos referentes às necessidades dos trabalhadores em relação ao trabalho, o que passava por um lento processo de busca 6 Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), às vezes chamada de Primeira Internacional, foi uma organização que procurou unir vários grupos políticos de esquerda e sindicatos baseados na classe operária. A organização foi criada em 1864 em Genebra. Uma decisão importante naquele evento foi a adoção da jornada de trabalho de oito horas como um dos objetivos fundamentais da associação. 8 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs pela humanização do mesmo, houve também uma série de discussões no espaço das reuniões da AIT acerca da importância da educação tanto para a formação humana quanto para a sua relação com o trabalho. Foi nesse contexto que se discutiram as primeiras propostas de educação integral, entre trabalhadores e intelectuais anarquistas e marxistas7, relevando o papel da educação na sustentação de estruturas de exploração na sociedade capitalista ou na sua transformação. Educadores como o francês Paul Robin 8 criaram importantes legados com base em riquíssimas experiências acerca dessa proposta, que objetivou essencialmente, a superação da dualidade na formação humana. Karl Marx intelectual da Primeira Internacional, elaborou também uma série de reflexões acerca da noção de politecnia, formação que estaria direcionada não ao aprendizado e à execução de vários ofícios, mas à apreensão dos fundamentos científicos que fundamentavam o trabalho. Marx defendia uma educação geral apoiada num tripé: a educação mental, intelectual, a aquisição dos conhecimentos científicos nas diferentes áreas. Justamente por ser oriunda de um campo de oposição à exploração do trabalho, essa perspectiva visava também formação da autonomia e da articulação do trabalhador diante de sua posição na sociedade. O movimento de trabalhadores apresenta, em sua gênese, interesses e objetivos muito centrados na questão educacional, como fator fundamental a emancipação humana de laços de opressão e exploração intelectual, física, econômica, política e cultural. Essas questões apresentam, portanto, um longo percurso histórico, e ainda estão presentes como um importante anseio do homem em relação do mundo do trabalho. Hoje, o mundo do trabalho passou por uma série de transformações, mas ainda apresenta fortes mecanismos de fragmentação e desumanização, seja em suas realizações formais, seja nas informais. O domínio das discussões que permeiam a constituição de políticas públicas para a Educação de Jovens e Adultos e sua vinculação com a Educação Profissional, nos últimos tempos, tem importância, conforme discutido no presente texto, pelo fato de se 7 Embora houvessem oposições e divergências políticas em ambas as abordagens, os princípios fundamentais da educação integral são semelhantes. A grande diferença entre anarquistas e marxistas consiste no método de transformação da sociedade. 8 Professor francês (1837-1912), um dos dirigentes da Aliança da Democracia Socialista, membro do Conselho Geral (1870-1871), delegado ao Congresso de Basieia (1869) e à Conferência de Londres (1871) da Internacional dos Trabalhadores. Paul Robin foi um importante idealizador da educação integral, a partir de suas experiências como diretor do Orfanato de Cempuis, na França, durante o período de 1880-1894. 9 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs abrir espaço para um tratamento do campo da educação de adultos e trabalhadores a partir de uma expectativa mais transformadora da realidade social brasileira. Entretanto, no que diz respeito à construção da política, é necessário se considerar que as mudanças estruturais na educação brasileira em Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional ainda estão em curso. Dessa forma, se de um lado se detecta uma produção teórica positiva no que se refere à integração da EJA à Educação Profissional, de outro se nota ações consistentes, porém ainda iniciais para a realização dessas propostas no campo das políticas públicas. Tal questão pode ser compreendida com base em uma análise das mudanças ocorridas nesse campo no que concerne à legislação. A integração da Educação Profissional à educação básica tem como orientação, atualmente, dispositivos legais como o decreto 5.154/2004, que abre a possibilidade de integração do ensino médio ao técnico, na forma concomitante ou subsequente, bem como a constituição de itinerários formativos, ou seja, a educação profissional deve ser organizada mediante um conjunto de etapas relacionadas a uma determinada área e à certificação inicial e continuada. O decreto 5.154/2004 revoga o 2.208/97, que instituía uma relação dicotômica entre ambas as modalidades de ensino. Pode-se sugerir, todavia, que essa mudança legal bebe em referências progressistas que apontam par uma formação que atenda às demandas dos trabalhadores, propiciando uma formação científica, cultural e técnica, portanto em convergência com a perspectiva de educação integral e politécnica, mas que deveria se vincular a um conjunto maior de mudanças estruturais no campo da Educação Profissional articulada à formação básica. Qualificação Social e Profissional A noção de qualificação social e profissional, nos últimos tempos, permeia uma série de transformações presentes no mundo do trabalho. As novas tecnologias de informação e comunicação, a flexibilização e precarização do trabalho são realidades marcadas pela reestruturação produtiva do capitalismo no mundo globalizado. Esse processo acarreta a redefinição das qualificações e identidades profissionais condizentes às demandas e exigências do mercado de trabalho. As questões da qualificação social e profissional, educação profissional e certificação profissional representam um importante meio de inserção de trabalhadores 10 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs nesse contexto econômico, em diálogo com as características de produção. Todavia, é necessário dimensionar a funcionalidade e a finalidade dessas etapas formativas e preparatórias para o mundo do trabalho com base em princípios que valorizem a formação do trabalhador e não sua adequação alienada às regras vigentes no mercado de trabalho. Conforme discutido nesse texto, tomar a noção de qualificação sobre o viés da formação integral do trabalhador requer uma atitude reflexiva acerca da própria constituição das relações de trabalho no mundo contemporâneo no que se refere aos princípios de uma formação integral. Dessa forma, a proposição de uma experiência de Educação de Jovens e Adultos que possua como marco as discussões relativas à educação integral e trabalho como princípio educativo, presente em programas que apontam a formação de uma política permanente de EJA integrada à formação profissional, estão direcionadas à inserção do trabalhador nesse contexto econômico, com base em princípios que visam à superação da fragmentação e precarização do trabalho. A noção de qualificação que defende a emancipação social, política e econômica do trabalhador tem como fundamento o reconhecimento social e profissional dos seus saberes, bem como a elaboração de itinerários ou percursos formativos que devem se vincular a diferentes escalas de necessidades e domínios dos trabalhadores. Assim, o processo de reconhecimento social e profissional dos saberes dos trabalhadores tem relação com sua inserção em um itinerário formativo e vinculação com o mundo do trabalho. Esse reconhecimento afirma a noção de qualificação [...] como unidade integrada de conhecimentos científicos e técnicos que possibilitem ao trabalhador atuar em processos produtivos complexos, com suas variações tecnológicas e procedimentais, associados a uma formação política que permita uma inserção profissional não subordinada e alienada na divisão social do trabalho. (RAMOS, 2005, p. 56) Ao se propor a construção de um itinerário formativo, pressupõe-se a formação de adultos e trabalhadores mediante o acúmulo e aprimoramento de saberes em conformidade à estruturação escolar da educação profissional e à forma como se organizam os sistemas de educação profissional e a forma de acesso à profissão. Como afirma Marise Ramos: A lógica de organização dos itinerários formativos tem dois fundamentos. O primeiro é a previsão de que as qualificações obtidas por meio de cursos, etapas ou módulos correspondentes a ocupações de uma família ocupacional ou área profissional possam redundar 11 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs numa titulação de nível superior a essas qualificações. O segundo considera que tais cursos, etapas ou módulos, nos seus respectivos níveis, correspondam a ocupações existentes no mercado de trabalho. Com isto, as experiências formativas dos trabalhadores teriam um potencial de aproveitamento, tanto para o trabalhador quanto para o empregador, em duas direções: a) verticalmente, porque um conjunto de qualificações de níveis menores pode levar a titulações de níveis superiores; b) horizontalmente, porque a cada qualificação corresponderia uma ocupação reconhecida nas classificações ocupacionais. (RAMOS, 2005, p. 56) Nesse sentido, o processo de reconhecimento social e profissional de saberes dos trabalhadores tem relação com suas necessidades individuais em franca convergência com o espaço coletivo no qual está inserido. A qualificação abrange, portanto, a formação social, em termos de garantia de direitos civis, sociais e profissionais, promovendo o aprimoramento das capacidades intelectuais e culturais. Tal perspectiva pode ser mais bem compreendida na forma de pirâmide que organiza as diferentes necessidades dos estudantes adultos em conformidade às possibilidades de aprofundamento teórico e prático. A pirâmide apresenta os seguintes níveis de formação: 1. Sobrevivência física Criação de condições objetivas para o atendimento de tais necessidades básicas e urgentes à sobrevivência, as políticas públicas de formação e certificação profissional devem estar integradas às políticas públicas de desenvolvimento local, regional e nacional e ao sistema público de emprego. Além disso, da disponibilidade de programas de bolsas e auxílios para o atendimento emergencial dos trabalhadores em situação de risco. 2. Reconhecimento profissional Necessidade de pertencimento a uma profissão, de uma identidade compartilhada com outros trabalhadores reconhecidos socialmente e no saber fazer profissional. Neste aspecto, o reconhecimento da qualificação do trabalhador implica em atentar para a sua trajetória de vida e trabalho, conhecer sua “dinâmica” profissional, situando-a no âmbito das transformações mais amplas na organização do trabalho e da produção. 3. Reconhecimento social Este aspecto diz respeito ao valor que a sociedade como um todo atribui ao profissional, e que varia historicamente nos diferentes espaços das diversas sociedades. 12 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs O reconhecimento social dos saberes do trabalhador supõe responder às suas necessidades de autorrespeito e autoestima, condições fundamentais para o fortalecimento da identidade profissional. 4. Reconhecimento cultural O quarto aspecto a ser considerado corresponde ao reconhecimento cultural do trabalhador, de sua relação com o conhecimento, de seus saberes, as lendas, os mitos, a literatura, a arte, a poesia, a música, e outras dimensões de seu universo cultural e do trabalho, eixo orientador da organização e desenvolvimento das metodologias de ensino-aprendizagem dirigidas a adultos trabalhadores. 5. Reconhecimento técnico e científico O quinto aspecto diz respeito aos fundamentos científicos e aos conhecimentos técnicos específicos de uma profissão, e que correspondem às necessidades do trabalhador de compreender plenamente os princípios gerais de sua atividade de trabalho e da vida social. (IIEP, 2011, s/p) Pode-se notar que tal organização das dimensões do processo de qualificação social e profissional tem relação conceitual com os princípios da educação integral, anteriormente citada nesse texto, em função de sua presença em programas como o PROEJA (2007). É importante observar que é condição, sobretudo, para a formação desse perfil de estudante, isto é, o adulto supostamente trabalhador, a consideração dos elementos presentes nas cinco dimensões acima, elementos estes que corroboram com a defesa da emancipação social, política e econômica do estudante adulto, lhe proporcionado acesso, domínio e aprimoramento de saberes na ciência, na cultura e no trabalho. Considerações Finais Após o caminho teórico desenvolvido nesse texto, é importante a proposição de alguns questionamentos acerca de programas vinculados às políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos vinculadas à Formação Profissional, nos dias atuais. A implementação de programas como o PROEJA, sobretudo no ensino fundamental (PROEJA-FIC) marcado por uma formação mais elementar, suscita uma série de apontamentos e perguntas que têm o mérito de explicitar a validade e a envergadura dessas políticas. Dessa forma, ficam alguns questionamentos que podem abrir os olhares dos professores diante de suas práticas pedagógicas em Educação de Jovens e Adultos. 13 Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número 15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs Referências bibliográficas BEISIEGEL, Celso de Ruy. Estado e educação popular. São Paulo, Ed. Pioneira, 1974. BOMENY, Helena. Os intelectuais da educação. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2000. 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