® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Garantia Legal e Contratual, uma questão superada pela “Teoria da Vida Útil”. Walter da Silva Maizman* INTRODUÇÃO Intrincada questão repousa sobre a garantia dos produtos e serviços nas relações consumeristas, pois prescreve o Código de Defesa do Consumidor que a garantia legal será de 30 (trinta) dias para os produtos não duráveis e 90 (noventa) dias para os duráveis. Ocorre, que ainda existe a garantia contratual, que por mera liberalidade do fornecedor, poderá este, estendê-la de acordo com sua conveniência. A priori, insta salientar que a garantia legal é geral e irrestrita, visto que vem de um mandamento legal, já a contratual, por ser mera liberalidade do fornecedor, poderá ser restrita e condicionada a certas condições, condições estas, que, por óbvio, devem respeitar o princípio da boa-fé nas relações contratuais (art.51 IV, do CDC e art.422, do C.C.). Mas o ponto fulcral deste ensaio se encontra na “teoria da vida útil” do produto, pois, de acordo com essa teoria, a garantia legal poderá se estender por vários anos verificandose as peculiaridades de cada produto. Ora, adquirindo-se um televisor com o prazo de garantia de 1 (um) ano, justo não seria, tampouco razoável, que no segundo ano de uso diante de um defeito, o qual o consumidor não deu causa, fique o fabricante isento de responsabilidade sobre o produto. Se não houve “mau uso” ou “uso inadequado” do produto, por óbvio que o defeito já existia, tratando-se aqui, sem sombra de dúvida, de um vício oculto que já habitava o produto desde o seu nascimento. Por vício oculto entende-se que é o que se manifesta somente com o uso, com a experimentação do produto, e que se evidenciará algum tempo após a entrega. A questão é que, diferentemente dos vícios redibitórios, do Código Civil que aponta um prazo máximo para o vício se manifestar, 180 (cento e oitenta) dias para bens móveis e 1 (um) ano para bens imóveis, consoante a inteligência do art. 445, §1º, do C.C., verbis: “§1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, em se tratando de bens móveis; e de 1 (um) ano, para os imóveis.” (grifo nosso) Já nos vícios do produto, do Código consumerista, o legislador, coerentemente, inovou ao deixar aberto este prazo, conforme comando inserto no art. 26, § 3º, do CDC, verbis: “§3º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito” Frise-se, prazo algum foi mencionado, porém, parte da doutrina entende tratar-se de uma lacuna legislativa, alegando por corolário, que deve ser aplicado por analogia o prazo restrito do Código Civil. Com a devida venia, este entendimento não se sustenta, pois, se ainda admitirmos tratar-se de uma lacuna, aplicar a analogia em desfavor do consumidor é ir de encontro com a Constituição Federal, ora, o consumidor é um sujeito de direitos e garantias fundamentais, pois foi figura no art. 5º, inciso XXXII, da CF, in fine: “O estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, e ainda, nos princípios gerais da ordem econômica, art.170, inciso V, da Lei Maior, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça, observados os seguintes princípios: (...) V – defesa do consumidor; (...)” Com efeito, entendemos tratar-se de uma omissão proposital e com um único objetivo, qual seja, dar mais segurança ao consumidor. Cuida-se, portanto, de mais uma “cláusula geral” inserida neste novo sistema, que nos ensinamentos de Nelson Néri Júnior, significa: “cláusula geral é uma cláusula com um grau máximo de indeterminabilidade, possibilitando ao julgador um maior poder de interpretação e decisão, diante do caso concreto, abalizado, é claro, pelas teses juntada nos autos” Comunga deste pensamento, dentre outros, Claudia Lima Marques, Antonio Herman V. Benjamin e o Professor Leonardo Roscoe Bessa que oportunamente comentou em sua obra “Vícios dos Produtos: paralelo entre o CDC e o Código Civil", verbis: “Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito”. O dispositivo possibilita que a garantia legal se estenda, conforme o caso, a três, quatro ou cinco anos. Isto é possível porque não há, de propósito, disposição, indicando o prazo máximo para o aparecimento do vício oculto, a exemplo da disciplina do CC/2002 (§1º, art.445). O critério para a delimitação do prazo máximo de aparecimento do vício oculto passa a ser o da vida útil do bem”. Trata-se de um dos maiores avanços concedidos pelo Código de Defesa do Consumidor em relação ao Código Civil, mas o que, infelizmente, nem sempre é percebido pela doutrina, o que causa, obviamente, uma disparidade de entendimentos jurisprudenciais. Não se quer dizer com isto que a doutrina e a jurisprudência são estáticas, pelo contrário, esperamos, e trabalhamos, para que esta visão clássica, liberal e individualista do século XIX seja esquecida dando ensejo a um direito mais social, mais harmônico e leal, um direito pós-moderno, e é neste sentido que a investigação acadêmica atinge seu máximo denominador comum. Admitir a inexistência da responsabilidade do fabricante se o produto foi usado corretamente dentro dos limites de sua vida útil, porém, fora do prazo da garantia, é admitir que inexiste o dever de qualidade nos produtos, dever este, que decorre de um dos princípios fundamentais do direito do consumidor, a saber, o princípio da confiança. O princípio das normas sobre vício é o da proteção da confiança que o produto ou serviço desperta legitimamente no consumidor, a confiança está na qualidade do produto aos “fins que razoavelmente deles se esperam”, segundo a inteligência do art. 20, §2º, do CDC. Neste sentido, é uma teoria típica do novo direito do consumidor, não devendo ser aplicada no direito comercial ou no direito civil comum, pois se trata de uma responsabilidade legal inerente deste novo sistema. A imposição deste novo dever legal tem seus limites definidos no CDC, pois o dever de qualidade liga-se ao princípio da confiança, confiança esta depositada pelo consumidor no resultado da atividade produtora do fornecedor, “como duas facetas da mesma realidade” na feliz expressão de Claudia Lima Marques. O fornecedor só não será responsabilizado se ficar provado que o produto não tinha vícios no momento da entrega, que ocorreu mau uso ou caso fortuito posterior, lembrando que o ônus da prova aqui é do fornecedor, pois, não é demasiado alertar que nas relações de consumo ocorre a inversão do ônus probatório, conforme o disposto no art. 6º, VIII, do CDC. Mas então a garantia do produto seria ad eternum nas relações de consumo? Não, temos que ponderar aqui que todo produto tem uma certa durabilidade, pois, ao comprarmos um veículo esperamos que o motor deste tenha uma durabilidade razoável, como uma geladeira ou um televisor, de 5 (cinco) a 8 (oito) anos nestes casos, esta é, em apertada síntese, a “teoria da vida útil” do produto. Excepcional voto da Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Íris Helena Medeiros Nogueira, que em 2004 proferiu: “Tratando-se de bens de consumo de longa duração, cabe ao juiz decidir, diante do caso concreto e presumindo a regular vida útil do bem, cuidando de impedir que a regra se perpetue”. Nestes casos, a garantia legal por defeitos do produto com vício oculto tem um limite temporal, qual seja, o da vida útil do produto, a ser verificado em cada caso pelo julgador, e não aquele estipulado pelo fornecedor, tampouco o do Código Civil aplicado analogicamente. Não é razoável que se compre um computador para durar 1 (um) ano ou um carro esperando que o motor e o câmbio dure apenas 2 (anos), excepcionando, é claro, se a causa do defeito for o “mau uso” ou “caso fortuito posterior”. Aparecendo o vício no fim da vida útil do produto, a garantia ainda existe, mas começa a esmorecer, porque se aproxima o fim natural de sua utilização, o produto já atingiu a sua durabilidade normal, o uso e o desgaste por determinado tempo decretam o fim da vida útil do bem, nas palavras de Marques “é a “morte” prevista dos bens de consumo”. Aliás, esta foi uma das conclusões do V Encontro Nacional do Ministério Público do Consumidor, realizado em Natal/RN entre os dias 17 e 19 de agosto de 2005: “Conclusão 33 - O prazo máximo para ficar evidenciado o vício oculto do produto e iniciar a contagem do prazo decadencial (art. 26, § 3o, do CDC) deve observar o critério da vida útil, o que exige análise das circunstâncias do caso concreto;” Se o mercado brasileiro ainda apresenta falhas, sem dúvida, tornou-se mais leal e transparente. A melhoria das relações entre fornecedores e consumidores é um importante e necessário passo para o desenvolvimento da nossa economia, do nosso sentimento de justiça e confiança em nosso País. Por fim, após 16 anos da promulgação desta nova lei principiológica, faço minhas as palavras da inspiradora Claudia Lima Marques: “o CDC alcançou a adolescência, época de natural crise e da descoberta de seu verdadeiro potencial modificador”, espero também, que este, modesto, ensaio possa ajudar a consolidar as conquistas visando um mercado mais justo e leal para os consumidores e a solidificar a aplicação desta bela lei, visando sua ratio maior, que é a defesa do consumidor. -------------------------------------------------------------------------------* Advogado, Especialista em Direito Ambiental – Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior do Ministério Público, membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MT, Professor da UNIC – Universidade de Cuiabá e AMEC – Associação Matogrossense de Ensino e Cultura. Disponível em: < http://www.casajuridica.com.br/?f=conteudo/ver_artigo&cod_artigo=106 >. Acesso em: 02 jul. 2007