IGUALDADE E DESIGUALDADE NO CONTEXTO ESCOLAR: AS NOVAS
POLÍTICAS SOCIAIS E O DIREITO À EDUCAÇÃO1
Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt
RESUMO: Este texto tem como objetivo provocar uma reflexão sobre os processos de
exclusão/inclusão na escola diante dos elementos de contexto inseridos pelas políticas
sociais. Neste processo se destaca a implementação do Programa Bolsa Família que
trouxe para dentro da escola a necessidade de tratar abertamente as questões
relacionadas com a realização do direito à educação, tais como: o direito à diferença, o
direito à igualdade de oportunidades, o direito de acesso e permanência na escola, o
direito à educação de qualidade. Para ter acesso a todos estes direitos é preciso
reconhecer que vivemos em uma sociedade desigual e, por sua natureza capitalista,
injusta. O programa Bolsa Família é uma política compensatória que tem por objetivo
garantir um direito essencial para que o processo de aprendizagem se concretize: a
nutrição do corpo que aprende. Esta proposta surge das preocupações levantadas entre o
próprio grupo de gestores escolares que revelaram entender muito pouco sobre esta
temática.
SOBRE DIREITO, ESCOLA E BOLSA FAMÍLIA
Pensar sobre a solução para a questão relativa ao problema da exclusão escolar
remete imediatamente a uma reflexão sobre seu inverso, isto é, a inclusão de todos os
alunos e alunas no ambiente escolar. Esta questão social tem se tornado um dos mais
importantes desafios das últimas décadas. No Brasil, paulatinamente, através de
diferentes políticas educacionais, os espaços escolares formais incorporam o papel de
agregar todas as crianças, adolescentes e adultos que, no exercício de sua cidadania,
gozam do direito à educação.
No entanto, este desafio tem provocado muita tensão entre todos os segmentos
escolares. Verifica-se que as condições de infraestrutura física, pedagógica e de
formação dos profissionais da educação não correspondem à demanda requerida. Os
motivos são de diferentes ordens, porém, é bastante evidente o descompasso do ciclo de
implementação das políticas governamentais e o cumprimento do direito de todos à
educação. A legislação que garante o direito nem sempre é acompanhada de uma
política pública que a coloque em ação. Sem a política pública para concretizar o direito
garantido na lei, esta se torna “letra morta”.
1
Texto produzido para a 3ª Edição do curso de especialização em gestão escolar “Escola de Gestores”.
Sala ambiente: Fundamentos do Direito à Educação.
Colocar em prática uma política envolve desde o diagnóstico que suporta a
elaboração das mesmas (planos, programas, projetos) até a sua concretização dentro dos
sistemas de ensino e nas próprias escolas. Assim, as dificuldades são de magnitudes
muito variadas, no entanto, é na escola onde tudo isto é realmente implementado. Daí o
grande desafio dos gestores escolares (diretor/a, vice-diretor/a e conselheiros/as) que
assumem a responsabilidade direta de concretizar os objetivos traçados em cada um dos
programas, planos e projetos que compõem as políticas sociais no projeto políticopedagógico da escola e daí para a sua gestão.
SOBRE POLÍTICAS PUBLICAS SOCIAIS
O que se percebe é que há uma grande dificuldade de traduzir vários conceitos
que alicerçam as diversas normas que orientam os processos de tradução e
implementação das políticas. Por exemplo, tem havido muita resistência e critica diante
da escola “inclusiva” do modo como as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação Especial (MEC-SEESP, 1998) propõem. Dentro do documento se prevê que a
escola regular deve propor no projeto político-pedagógico, no currículo, na
metodologia, na avaliação e nas estratégias de ensino, ações que favoreçam a inclusão
social e práticas educativas diferenciadas que atendam a todos os alunos e alunas. Na
verdade a escola desejada “inclusiva” é aquela que valoriza a diversidade ciente que a
homogeneidade não reflete a nossa sociedade.
Interpretando este texto é muito simples deduzir que esta tarefa é muito difícil
diante da variedade de necessidades que podem surgir e, na realidade revela que esta
“escola ideal” não está pronta para acolher, em muitos casos, nem mesmo as crianças
sem necessidades especiais. Mesmo assim, o que se tem observado é que este processo,
que envolve questões relativas ao direito à educação, não tem volta e as crianças estão
sendo acolhidas nas escolas e os resultados poderão ser verificados em poucos anos.
Este tempo de amadurecimento social ou retrocesso social provocado pela
implementação de políticas é fator importante já que os resultados não são evidenciáveis
em curto prazo, em alguns casos haverá mudanças sutis que somente serão passiveis de
verificação de uma geração a outra.
É o caso das políticas sociais cujo objetivo é diminuir as desigualdades sociais
como o Programa Bolsa Família. Esta é uma política que vêm buscando junto com
outras a redução da pobreza e da desigualdade, ao mesmo tempo, em que gera
desenvolvimento social e econômico.
As políticas sociais públicas se caracterizam por conter entre seus objetivos a
concretização de direitos ou de provocar mudanças nas estruturas sociais. Estas se
constituem por programas e projetos governamentais, consubstanciando as políticas
governamentais ou as políticas de Estado. As políticas governamentais são as ações que
seguem o direcionamento do governo vigente. As políticas de Estado são aquelas que
transcendem os governos.
BOLSA FAMÍLIA
O Programa Bolsa Família é uma política classificada como de transferência de
renda condicional, ao mesmo tempo, em que é compensatória e distributiva atuando de
forma focalizada. O programa está sustentado sobre um tripé de ações que são sua
característica mais importante: a) transferência de renda; b) acesso à escola; c) acesso ao
sistema básico de saúde.
A condição para as famílias se tornarem elegíveis é possuir uma renda mensal
per capita abaixo de R$ 60,00, ao mesmo tempo, as que possuem filhos devem garantir
a freqüência mínima de 85% à escola e em termos de saúde elas têm que comparecer
nos postos de saúde, quando grávidas, manter a carteira de vacinação, com as crianças
na idade e participar de orientações nutricionais e de saúde. Como está resumido no
quadro 1.
Hoje as famílias beneficiadas já podem ser identificadas, já se sabe que a
maioria dos chefes destas famílias são mulheres (94%), se declaram pardas ou negras
(64%) e está numa faixa etária compreendida entre 15 e 49 anos (85%).
Pelo
levantamento do IBGE (2010), 38% dos domicílios são compostos por famílias
monoparentais, sendo 27% dos titulares mães solteiras, índice que se torna ainda maior
na área urbana. É significante também o número de idosos chefes de família e a
proporção de filhos adultos, muitas vezes com cônjuge e prole, que coabitam com o pai
e a mãe. Freqüentemente, essas famílias ampliadas têm como únicas fontes de renda a
aposentadoria dos idosos e o Bolsa Família (PNAD, 2010).
Fonte: Kerstenetzky (pg. 55, 2009).
Outra característica desta população atendida pelo programa é a escolaridade
apesar de 81% saberem ler e escrever, somente 56% estudaram até o ensino
fundamental. Isto faz com que estas famílias possuam um baixo capital cultural. Este
dado esclarece porque este grupo revela pouco interesse ou pouco sentido na
escolarização, dado muito relatado nas escolas.
No campo da saúde 39% das famílias têm pelo menos uma pessoa com alguma
doença crônica e/ou problemas mentais e diferentes experiências de sofrimento
psíquico, com dependência de medicamentos de uso controlado. Este fator está sempre
acompanhado com a falta ou a pouca qualidade do saneamento básico, na maioria das
regiões apenas 43% têm acesso à rede de esgotos, enquanto no Norte os “privilegiados”
são apenas 5%, resultando numa série de doenças correlatas.
Por outro lado, todos os membros da família maiores de 16 anos, somente
metade deles teve trabalho remunerado no mês anterior à pesquisa e apenas 21% com
carteira assinada. A exclusão do mercado atinge principalmente as mulheres. Entre elas,
só 37% estavam trabalhando, enquanto para os homens esse percentual é de 67%. A
renda média mensal das famílias, incluindo aquela transferida pelo programa e demais
benefícios sociais, é R$ 431,54. No mês anterior à pesquisa, 46% das famílias tiveram
renda mensal total inferior ao salário mínimo, atualmente em R$ 415,00.
Esta população sofre diretamente com a insegurança alimentar grave o moderada
em 55% das famílias, ou seja, relatam ter passado restrições alimentares ou acesso a
alimentos de baixa qualidade. Destacam-se as famílias das áreas rurais que são as que
ficam sujeitas à fome em especial as que carecem de acesso a terra.
De acordo com a pesquisa realizada pelo Ibase (2008), o programa melhorou a
estabilidade no acesso aos alimentos: a garantia de uma renda regular adicional traz
maior segurança para as famílias e estimula o planejamento de gastos e modificações no
padrão de consumo alimentar. Para 74% delas, a quantidade de alimentos aumentou a
partir do programa, enquanto 70% relataram mais variedade. Entraram na dieta frutas,
verduras, legumes, alimentos industrializados e outros considerados “supérfluos”, além
da carne, muito valorizada e de difícil acesso.
As dificuldades do programa são de várias ordens. A primeira é a critica que se
faz sobre a escolha dos beneficiários. Neste quesito vale a pena lembrar que o programa
funciona em regime de colaboração com os municípios, ou seja, são os gestores
municipais que realizam a seleção, inclusive por eles conhecerem a população local.
Mesmo assim, não é raro verificar que há uma margem de erro significativo tanto na
escolha de certas famílias que estão tão á margem da sociedade que não conseguem nem
mesmo acessar o programa, como, no outro extremo, o grupo de famílias cujo nível de
renda é oscilante ou sazonal. De todo modo, um grande contingente que vive ao redor
da linha da pobreza está sendo atendida.
A segunda crítica está na baixa articulação entre o sistema de saúde e o sistema
educacional. Ambos, embora protagonistas nas condicionantes dos programas não
desempenham papel ativo na apertura da porta de saída da miséria. Para muitos o
próprio caráter assistencial da política impede que os beneficiários queiram se deslocar
desta faixa. No entanto, em termos de saúde tem-se verificado uma significativa
melhora nos índices de mortalidade infantil e das próprias mães.
No que tange a educação as criticas estão em diversas direções. Primeiro se
verifica que a escola sente-se, em alguns casos, chocada com a chegada dessa população
aparentemente “desinteressada” com a aprendizagem. Não é raro verificar que a eles são
atribuídos os episódios de violência, depredação e descaso com a escola. O segundo é o
desconhecimento do papel da escola na vida desta população muito vulnerável ao
fracasso escolar que bate de frente com o esforço das escolas por melhorar os índices de
qualidade, de não repetência e de baixo abandono escolar.
O terceiro é o grande desafio do gestor escolar que é ator importante dentro de
uma política para a qual ele foi incumbido sem ter sido dotado de esclarecimentos sobre
o seu papel no processo de busca de equidade social e desenvolvimento econômicosocial. Muito provavelmente, não terá mecanismos pedagógicos para inserir os alunos
que “naturalmente” serão excluídos, sem mesmo ser objeto de reflexão.
Finalmente, este processo tem provocado tensão, também, na sala de aula com e
entre os alunos, visto que os alunos beneficiários não se sentem orgulhosos com este
fato que, em muitos casos, é motivo de vergonha e de exclusão. Daí, novamente, o
papel dos professores e gestores que além das suas tarefas acabam tendo que assumir
(ou não) o papel de mediadores e incentivadores para que o programa seja uma porta
real de saída e não um estado de conformação, para que a estada na escola se transforme
num momento de realização do direito de todos à educação.
No estudo realizado por Kassouf e Glewwe (2008) sobre o impacto do programa
e o total de matriculas do ensino fundamental, taxas de abandono e aprovação
apontaram que este é o maior programa do mundo que oferece incentivos às famílias
para matricular seus filhos na escola e que o fato de condicionar a transferência de renda
faz grande diferença em relação a programas semelhantes implementados em outros
países da América Latina. Verificou-se, também, que houve um aumento na matricula
em todos os sistemas educacionais, no entanto, não se pode declarar se foi o Bolsa
Família isolado ou se a implementação de outras políticas como o Fundef e Fundeb, não
colaboraram para este aumento.
Contudo, a implementação desta política é uma forma de enfrentar a pobreza e a
desigualdade, mesmo sabendo que existe uma dívida social que não será fácil de cobrir,
por outro lado, a combinação que o programa fez aliando o direito à educação e a saúde
torna este programa de real importância para o desenvolvimento do país, no entanto, ele
se esvai na medida em que é traduzido como um simples projeto assistencialista e
quando os atores chamados para representar este papel esquecem ou não reconhecem
que as portas de saída da pobreza passam pela escola e mais, o resultado pode vir
somente nas próximas gerações, quando este grupo adquira algum capital cultural,
quando? Hoje é só o início!
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