PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL D E JUSTIÇA D E SÃO PAULO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA REGISTRADO(A) SOB N° I imi um um um mu um um um nu m ACÓRDÃO •03310910* Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 994.07.180585-2, da Comarca de São Paulo, em que PAULO são e apelantes JUÍZO PREFEITURA EX-OFFICIO sendo MUNICIPAL apelado DE SAO MINISTÉRIO PUBLICO. ACORDAM, em Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal seguinte RECURSOS. de Justiça decisão: V. de "DERAM U.", de São Paulo, PROVIMENTO conformidade EM com proferir PARTE o voto a AOS do Relator(a), que integra este acórdão. O julgamento Desembargadores teve ANTÔNIO a CELSO participação AGUILAR dos CORTEZ (Presidente sem voto), EDUARDO BRAGA E ZÉLIA MARIA ANTUNES ALVES. São Paulo, 25 de novembro de 2010. RENATO NALINI RELATOR PODER J U D I C I Á R I O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE VOTO N° 17.263 APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO Apelante: PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO Recorrente: JUÍZO EXOFFICIO ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM E FALTA DE INTERESSE DE AGIR INADMISSIBILIDADE MINISTÉRIO PÚBLICO É ATOR LEGÍTIMO EM FEITOS A ENVOLVER A TUTELA DOS DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, DENTRE OS QUAIS A ORDEM URBANÍSTICA E O MEIO AMBIENTE - BEM POR ISSO, PRESENTE O INTERESSE DE AGIR - PRELIMINARES REJEITADAS ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DESCABIMENTO - MUNICÍPIO QUE TEM PAPEL CENTRAL NA ORDEM URBANÍSTICA - INTELIGÊNCIA DO ART. 30 DA C F / 8 8 E DE TODO O ROL DE DETERMINAÇÕES CONTIDOS NA LEI N° 10.257/01 LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO COM OS OCUPANTES IRREGULARES INOCORRÊNCIA PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS PRELIMINAR REJEITADA INÉPCIA DA INICIAL - INOCORRÊNCIA VERSA PROPRIAMENTE SOBRE O DESCUMPRIMENTO DE CLÁUSULAS DE TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA PEDIDOS QUE DECORREM LOGICAMENTE DO FUNDAMENTO DA AÇÃO - PRELIMINAR REJEITADA APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER J U D I C I Á R I O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREA DE RISCO DEVER DO MUNICÍPIO DE ALOJAMENTO DOS OCUPANTES DESCABIDA A ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE RECURSOS, NA MEDIDA EM QUE TAL NÃO RESTOU COMPROVADO NO FEITO - RECURSOS DESPROVIDOS NESTE PONTO AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREA DE RISCO DEVER DO MUNICÍPIO DE ALOJAMENTO DOS OCUPANTES ALEGADA PREVALÊNCIA DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA - INADMISSIBILIDADE CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO, NO QUAL SE ERIGE A DISCRICIONARIEDADE, QUE NÃO SE CONFUNDE COM INTERESSE DO ESTADO - RECURSOS DESPROVIDOS NESTE PONTO AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREA DE RISCO DEVER DO MUNICÍPIO DE ALOJAMENTO DOS OCUPANTES - DIREITO À MORADIA DIGNA QUE FOI ERIGIDO COMO DIREITO FUNDAMENTAL PODER PÚBLICO MUNICIPAL QUE POSSUI PAPEL CENTRAL NA GARANTIA DESTE DIREITO, QUE POSSUI APLICAÇÃO IMEDIATA, A TEOR DO ART. 5 o , § I o , DA C F / 8 8 - RECURSOS DESPROVIDOS NESTE PONTO AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREA DE RISCO DEVER DO MUNICÍPIO DE ALOJAMENTO DOS OCUPANTES - CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO DESCABIMENTO - RECURSOS PROVIDOS NESTE PONTO APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER J U D I C I Á R I O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE Recursos oficial e voluntário confere parcial provimento. aos quais se Vistos etc. A sentença da Juíza MARIA GABRIELLA PAVLÓPOULOS SACCHI julgou procedente o pedido deduzido n a Ação Civil Pública movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO contra a PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Ficou a vencida condenada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa 1 . Ao recurso oficial, somou-se apelo do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, a aduzir, preliminarmente, a ilegitimidade passiva e ativa do MINISTÉRIO PÚBLICO, a inépcia da petição inicial, a ausência de interesse de agir e a generalidade da ordem contida n a sentença. No mérito, sustenta a prevalência da discricionariedade administrativa e a inexistência de recursos disponíveis para a execução de obras para solucionar o problema habitacional do Município. Alega ser inexistente o dever de alojamento. Afirma ser impossível a imposição de multa diária e a condenação ao pagamento de honorários advocatícios ao Ministério Público. Pugna pelo acolhimento das preliminares suscitadas, com conseqüente declaração de nulidade da sentença, ou pelo provimento, no mérito, do apelo, para vê-la reformada nos pontos combatidos 2 . O Município embargou de declaração 3 , o que restou rejeitado 4 . 1 Sentença às fls. 823/827 dos autos. Razões de apelo às fls. 832/859 dos autos. 3 Embargos declaratórios às fls. 862/863 dos autos. 4 Decisão à fl. 864 e verso dos autos. 2 ^ ••. \ APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE Contra-razões no sentido da preservação da sentença . No mesmo sentido foi o parecer da Procuradoria Geral de Justiça 6 . Distribuídos aos 12 de abril de 2007 ao Exmo. Des. LUIZ GANZERLA, com assento n a 1 1 a Câmara de Direito Público 7 , foram os autos remetidos a esta Câmara Reservada ao Meio Ambiente, por Acórdão, aos 01 de março de 20IO 8 . É u m a síntese do necessário. 5 Trata-se de Ação Civil Pública movida pelo parquet com a finalidade de ver determinado à Municipalidade de São Paulo a remoção dos moradores de áreas com iminente risco de deslizamentos, localizadas na Favela Vila Nova Galvão, com conseqüente alojamento das famílias deslocadas, e a determinação de monitoramento das áreas por profissionais especializados. Sobreveio sentença, favorável ao pedido inicial. Com ela não concorda o Município, que apela. Razão parcial lhe assiste. Preliminarmente, é inadmissível sustentar a ilegitimidade passiva do Município. Nesse sentido, a doutrina é cristalina em asseverar que "o pressuposto da disciplina do art. 2o do Estatuto da Cidade [que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, g.n.] é a existência, para o Poder Público, dos deveres de ordenar e controlar o emprego (uso, parcelamento, ocupação e edificação) do solo (incisos VI, XIII, XIV e XV) e de proteger o patrimônio coletivo (inciso XII). O Município, nesses termos, tem papel central n a 5 Contrarrazões às fls. 887/888 dos autos. Parecer às fls. 897/913 dos autos. 7 Fl. 895 dos autos. 8 Acórdão às fls. 922/927 dos autos. 6 APELAÇÃO ClVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO -VOTO N° 17.263 \ Vv) PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE política urbana, cuja ênfase "não pode ser um amontado de intervenções sem rumo. Ela tem uma direção global nítida: 'ordenar o pleno desenvolvimento das Junções sociais da cidade e da propriedade urbana' (art. 2o, caput), de modo a garantir o 'direito a cidades sustentáveis' 9 (incisos I, V, VIII eX)" . A questão ê singela e as implicações jurídicas evidentes, n a medida em que o Município o principal responsável pela ocupação do solo urbano. Os ocupantes não dispõem dessa autonomia de vontade para a prática de ilicitude, com o direito a não serem molestados pela Administração. O que caracteriza o Estado de Direito é justamente a possibilidade de atuação conforme a lei. Assim, de rigor a responsabilização da Municipalidade, no feito, pela flagrante omissão em fiscalizar a área. O Município, desde 1988, é ente federativo e tudo aquilo que lhe pertine é atribuição que a Constituição lhe reserva. O eloqüente rol dos incisos apostos ao artigo 30 da Carta Federal contém o início de sua responsabilidade no presente processo. Há jurisprudência consolidada nos tribunais superiores a respeito da responsabilidade da Municipalidade. Veja-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REGULARIZAÇÃO DO SOLO URBANO. LOTEAMENTO. ART. 40 DA LEI N. 6.766/79. MUNICÍPIO. LEGITIMIDADE PASSIVA. Nos termos da Constituição Federal, em seu artigo 30, inciso VIII, compete aos Municípios "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento 9 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In. DALLARI, Adilson de Abreu e FERRAZ, Sérgio (orgs.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). 3 a ed. São Paulo: Malheiros Editoresf 2010, pp. 53-54. \ APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA AO MEIO AMBIENTE e controle do uso, do parcelamento ocupação do solo urbano." e da Cumpre, pois, ao Município regularizar o parcelamento, as edificações, o uso e a ocupação do solo, sendo pacífico nesta Corte o entendimento segundo o qual esta competência é vinculada. Dessarte, "se o Município omite-se no dever de controlar loteamentos e parcelamentos de terras, o Poder Judiciário pode compeli-lo ao 10 cumprimento de tal dever" . O caso em questão, ademais, não comporta litisconsórcio necessário dos ocupantes irregulares. Há jurisprudência neste E. TJSP nesse sentido: "Não é o caso de litisconsórcio necessário (caput do artigo 47 do Código de Processo Civil) com os moradores na área. O pedido não é reivindicatório, nem possessório, relativamente aos terrenos por eles ocupados, mas de obrigação de fazer, com preceito e cominação dirigidos tão-só à Municipalidade."11 Nem se diga haver ilegitimidade ativa do Ministério Público. O Parquet foi o autor da Ação Civil Pública Ambiental em que o Município restou vencido. A titularidade da propositura dessa ação tem fundamento constitucional. Foi o pacto republicano que atribuiu ao Ministério Público a função institucional de ajuizar ação coletiva com vistas à tutela de interesses metaindividuais. Mesmo a temática afeita ao direito urbanístico, por seu conteúdo nitidamente vinculado aos 10 Superior Tribunal de Justiça. REsp 292.846/SP, Rei. Min. Humberto Gomes deBarros, DJ 15.04.2002 11 Apelação Cível n° 249.316-5/7-00. 7 a Câmara de Direito Público. Rei. Des. Barreto Fonseca. DJ: 28.02.2005, v.u. \ APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE direitos sociais - e a moradia digna é u m direito social - é merecedora de atenção deste órgão. Frise-se, ademais, que a Lei Federal n° 10.257/01 - o Estatuto da Cidade - foi claro em incluir o direito à cidade como elemento de u m a ordem urbanística passível de tutela judicial coletiva, através do instrumento do qual lançou mão o parquet. Da mesma forma, reveste-se de legítimo interesse de agir. Viu-se obrigado a acionar o Estado-juiz para compelir a Administração local a fazer aquilo que é seu dever de ofício. O instrumento de que se valeu o Parquet está previsto no ordenamento como a via adequada à obtenção do bem da vida de interesse de toda a comunidade. Nem se fale em inépcia da inicial. O autor ponderou, como causa de pedir n a Ação Civil Pública, a ocupação desordenada das áreas de risco enquanto decorrência do descaso da Municipalidade. Não versa propriamente sobre o descumprimento de cláusulas de Termo de Ajustamento de Conduta. Desse fundamento, decorrem logicamente os pedidos descritos n a inicial: condenação à obrigação de fazer, consistente em remover os moradores das áreas sujeitas a alto risco, com alojamento das famílias em abrigos temporários e posterior recolocação em habitação condigna. E a sentença, ao acolher este pedido, não delineou seus comandos de maneira genérica. Rejeita-se, portanto, a matéria preliminar. No mérito, à exceção da descabida condenação ao pagamento de honorários advocatícios, melhor sorte não assiste ao Município. Em primeiro lugar, o conceito de interesse público, cristalizado no argumento da discricionariedade esposado pelo Município, merece comportar leitura menos vinculada a antigos standards jurídicos, comuns a'; APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE manuais de cientificidade duvidosa. Não pode ser confundido com o "interesse da administração pública", a permitir que o Poder Público manipule seu conteúdo semântico conforme seu exclusivo interesse. De acordo com Gustavo Binenbojm, "o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível O instrumento desse raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade ". Pretende-se, com isso, afastar a aplicação indiscriminada da atualíssima regra principiológica que orienta a preferência pelo interesse público, n a medida em que este "por ser um conceito jurídico indeterminado, só é aferível após juízos de ponderação entre direitos individuais e metas ou interesses coletivos feitos à luz de circunstâncias concretas", a evidenciar que é o "postulado da proporcionalidade que, na verdade, explica como se define o que é interesse público em cada caso. O problema teórico verdadeiro não é a prevalência, mas o conteúdo do que deve prevalecer"'-. Não comprova o Município que não dispõe de numerário suficiente para o cumprimento das ordens emanadas na sentença, das quais não pode se escusar com o argumento retórico da reserva do possível. Não se pode olvidar que a Norma Fundante não é u m texto composto de promessas inatingíveis. É u m a Constituição Dirigente, com um preâmbulo que delineiam e vinculam a atuação de todas as esferas da Administração Pública. E, compreendido o direito à moradia digna como direito fundamental, h á que se atender à regra de art. 5 o , § I o , 12 BINENBOJM, Gustavo. Temas de Direito Administrativo e Constitucional artigos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 09. APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE para o qual "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Dessa maneira compreendida, a controvérsia funda-se no princípio da dignidade da pessoa h u m a n a , fundamento da República Federativa do Brasil (art. I o , III, da CF/88). República que tem como propósito, entre outros, "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3, IV, da CF/88). Essa a matriz hermenêutica de todo o ordenamento jurídico. Do contrário se teria u m menoscabo em relação ao conteúdo da Carta Magna, prática que deve ser extirpada do dia-a-dia dos Tribunais Pátrios. Pois, de acordo com Lenio Luiz Streck, "Não se deve olvidar que o direito constitucional tem sido relegado a um plano secundário em nosso pais. Isto ocorre porque a nossa cultura jurídica positivista, permeada e calcada no paradigma liberal-individualista-normativista, concebe a Constituição apenas como um marco, entendendo que a dimensão dos direitos fundamentais se resume a um leque de direitos subjetivos de liberdades voltados para a defesa contra a (indevida) ingerência do Estado (g.n). Enfim, trabalha-se ainda com a concepção de que o Direito é ordenador, o que, à evidência, caminha na direção oposta de um direito promovedor-transformador do Estado Social e Democrático de Direito"13. A emergência da desordem n a s grandes metrópoles do mundo fez erigir o direito à moradia digna como u m direito humano fundamental, a merecer, inclusive, especial muito atenção do legislador 13 STRECK, Lenio Luiz. Constituição ou barbárie? A Lei como possibilidade emancipatôria a partir do Estado Democrático de Direito. Disponível em: http://www.ihi.org.br/poa/professores/Professores 02.pdf. Acesso em: 01.10.2010. \ V \ W APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA AO MEIO AMBIENTE constituinte e de organismos multilaterais internacionais, como a Organização das Nações Unidas, além de inúmeros documentos, dos quais se destacam ao menos os dois últimos planos nacionais de Direitos Humanos (PNDHs) do Brasil. Afinal, é n a cidade em que vive mais de 70% da população brasileira e mundial. É nela em que se estabelecem as formas de relação social, o trabalho e a cultura. Por isso, não é demais pontuar que as formas de reprodução das relações sociais e da própria vida n a polis é elemento constitutivo da personalidade e do comportamento dos indivíduos que a compõem. Uma cidade agressiva ao cidadão, em que se observam índices alarmantes de poluição sonora, visual e ambiental, uma cidade que desrespeita o direito fundamental à moradia digna e inúmeros outros direitos hierarquicamente análogos, u m a cidade que não preserva seu patrimônio histórico e ambiental, enfim, u m a cidade incompatível com o reconhecimento das dimensões da dignidade da pessoa h u m a n a não pode esperar a contrapartida da civilidade do citadino. É nesse contexto de injustiça que a violência urbana, a depredação do patrimônio público, a degradação e o descaso com os imóveis e o desrespeito aos equipamentos públicos proliferam. Realidade cara a São Paulo, cidade pródiga em exemplos dos problemas supracitados e capaz de articulá-los de forma que problemas de habitação rapidamente se convertem em problemas de ordem ambiental, a merecer especial atenção do Poder Judiciário. A exclusão urbana é problema que grassa n a grande metrópole brasileira. E produz efeitos nefastos. De acordo com a urbanista brasileira Raquel Rolnik, Relatora Especial para o Direito à Moradia Digna da ONU, "este conceito que relaciona a acumulação d& APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO -VOTO N° 17.263 PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE deficiências de várias ordens à vulnerabilidade — tem sido progressivamente utilizado em políticas públicas e pode ser entendido como a negação (ou o desrespeito) dos direitos que garantem ao cidadão um padrão mínimo de vida, assim como a participação em redes de instituições sociais e profissionais (Castel, 1995; Paugam, 1996). A exclusão social é vista como uma forma de analisar como e por que indivíduos e grupos não conseguem ter acesso ou beneficiar-se das possibilidades oferecidas pelas sociedades e economias. A noção de exclusão considera tanto os direitos sociais quanto aspectos materiais, abrangendo, portanto, não só a falta de acesso a bens e serviços que significam a satisfação de necessidades básicas, mas também a ausência de acesso a segurança, justiça, cidadania e representação política (Rodgers, 14 1995)" . J á se passaram quase 10 anos da edição do Estatuto da Cidade, formulado a partir de intensa pressão social, que regulamentou os arts. 182 e 183 da CF/88 e ofereceu inúmeros mecanismos de gestão e planejamento urbano. É dever da Municipalidade se adaptar a essa nova realidade e concentrar esforços para efetivar seu conteúdo, inclusive no incentivo à necessária e desejável democracia participativa n a gestão das cidades, a envolver todos os seus moradores, através de suas entidades representativas (associações de bairro, entidades profissionais, movimentos sociais) na formulação de políticas públicas e n a construção do espaço urbano como espaço privilegiado das relações sociais. Como bem pontuou MARIA PAULA DALLARI BUCCI, "A plena realização da gestão democrática é, na verdade, a única garantia de que os instrumentos de 14 ROLNIK, Raquel. Exclusão territorial e violência. Perspectiva, vol.13 no. 4. São Paulo, out/dez 1999. In. São Paulo APELAÇÃO ClVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263 eny \ PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA A O MEIO AMBIENTE política urbana introduzidos, regulamentados ou sistematizados pelo Estatuto da Cidade (tais como o direito de preempção, o direito de construir, as operações consorciadas etc.) não serão meras ferramentas a serviço de concepções tecnocráticas, mas, ao contrário, verdadeiros instrumentos de promoção do direito à cidade para todos, sem exclusões"15. Assim, a persistir o quadro dos autos, persistirão os inúmeros problemas sociais decorrentes do histórico descaso do Estado, ao mesmo tempo omisso, n a promoção de políticas públicas de habitação, e presente, no momento em que cumpre u m a ordem de reintegração de posse. Por fim, não se revela excessivo o valor da multa cominada. Trata-se de condenação pecuniária com finalidade precípua de obter do réu o efetivo cumprimento da obrigação. Lamenta-se, apenas, que seja cominada à Administração Pública, que deveria dar o exemplo de zelo à normatividade. Frise-se que a não imposição de multa, nesse sentido, tornaria inócuo o que restou decidido, no que esta deve prevalecer. A sentença só merece reforma no ponto em que condenou o Município ao pagamento de honorários advocatícios ao Ministério Público, o que se afigura manifestamente inadmissível, conforme ponderou, inclusive, a Douta Procuradoria Geral de Justiça. No mais, merece ser preservada in totum. Por estes fundamentos, confere-se parcial provimento aos recursos. v RENATO NALINI Relator 15 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. In. DALLARI, Adilson de Abreu e FERRAZ, Sérgio. Op. Cit, p. 337. APELAÇÃO CÍVEL N° 994.07.180585-2 - SÃO PAULO - VOTO N° 17.263