LETRAMENTO DO SURDO: IMPLICAÇÕES E
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Prof. Eder Barbosa
No Brasil, de acordo com Quadros (2003) a
aquisição do português escrito por crianças surdas
esteve, e ainda em muitos casos está, baseada no
ensino do português para crianças ouvintes que
adquirem o português falado de forma natural. A
autora comenta a utilização de várias tentativas de
alfabetização da criança surda, como a utilização de
métodos artificiais de estruturação de linguagem ou
o português sinalizado (utilização dos sinais da
Língua Brasileira de Sinais com a estrutura do
português), entre outros. O que se percebe é que
apesar dessas tentativas, os surdos seguem com
dificuldades de aquisição do português.
Nesse sentido, pode-se pensar num risco permanente
de vulnerabilidade dos surdos, pois aprender a ler e
escrever, como comenta Soares (2002), traz inúmeras
conseqüências para o indivíduo, influenciando sobre
fatores sociais, psíquicos, políticos, cognitivos,
lingüísticos e, inclusive, econômicos.
Segundo a autora, o impacto dessas mudanças
sobre o sujeito, ou seja, a apropriação da leitura
e da escrita e a incorporação das práticas
sociais que as demandam denomina-se
letramento. Ampliando o conceito, Soares (2002)
salienta que letramento não pode ser visto
apenas como um conjunto de habilidades
individuais, mas sim, como um conjunto de
práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em
que os sujeitos se envolvem no seu contexto
social.
Martins (2003) comenta que “letrar” significa inserir a
criança no mundo letrado, trabalhando com os
diferentes usos de escrita na sociedade. Essa
inserção começa muito antes da alfabetização
propriamente dita, quando a criança começa a
interagir socialmente com as práticas de letramento
no seu mundo social: os pais lêem para ela, a mãe
faz anotações, os rótulos indicam os produtos,
reconhecidos nas prateleiras dos supermercados e
na cozinha da casa. O letramento, conclui a autora,
é cultural, por isso muitas crianças já vão para a
escola
com
o
conhecimento
adquirido
incidentalmente no dia-a-dia.
Além disso, Soares (2002) argumenta que a criança
precisa saber fazer uso e envolver-se nas atividades
de leitura e escrita. Ou seja, para entrar nesse
universo do letramento, ela precisa apropriar-se do
hábito de buscar um jornal para ler, de freqüentar
revisterias, livrarias, e com esse convívio efetivo
com a leitura, apropriar-se do sistema de escrita.
Segundo a autora, para que ocorra a adaptação
adequada ao ato de ler e escrever “...é preciso
compreender, inserir- se, avaliar, apreciar a escrita e
a leitura”. O letramento compreende tanto a
apropriação das técnicas para a alfabetização
quanto esse aspecto de convívio e hábito de
utilização da leitura e da escrita.
Em relação aos estudantes surdos, de uma educação
centrada
no
ensino
da
língua
portuguesa,
particularmente em sua modalidade oral, educadores e
pesquisadores passaram a ter como alvo de reflexão os
determinantes político-pedagógicos envolvidos no
bilingüismo desse grupo.
Os trabalhos que se ocupam da discussão da educação
bilíngüe para surdos têm como pressuposto o
reconhecimento da língua brasileira de sinais – Libras
como produção histórica e cultural das comunidades
surdas brasileiras e como língua principal no currículo
escolar, seguida do aprendizado do português, língua
nacional majoritária, assegurada como segunda língua,
em sua modalidade escrita.
Essa situação encontra-se politicamente
legitimada, desde o reconhecimento oficial da
Libras no território nacional em 2002 (Lei
Federal 10.436/ 2002, regulamentada pelo
Decreto Federal 5626, em dezembro de 2005).
O QUE É O BILINGÜISMO?
Ainda que alguns pesquisadores definam o
bilíngüe como sendo aquele que possui um
domínio perfeito de duas (ou várias) línguas, a
maior parte entre eles está de acordo que esta
definição não é realista (Baetens-Beardsmore,
1986; Grosjean, 1982; Hakuta, 1986; Haugen,
1969; Romaine, 1989).
Se considerássemos como bilíngües unicamente as
pessoas que passam a ser monolíngües em cada
uma de suas línguas, nós não poderíamos classificar
um grande número de indivíduos que utilizam
regularmente duas ou várias línguas na sua vida
cotidiana sem, no entanto possuir perfeitamente o
conjunto das competências lingüísticas em cada
uma delas.
Esta constatação levou os pesquisadores a propor
novas definições ao bilingüismo, tal qual a
capacidade de produzir enunciados significativos
nas duas (ou várias) línguas, o domínio de pelo
menos uma competência lingüística (ler, escrever,
falar, escutar) em uma outra língua, o uso alternado
de várias línguas (ou dialetos) na vida diária.
Isso engloba as pessoas que tem uma
competência de escrever em uma outra língua,
as pessoas que falam duas línguas com um nível
de competência diferente em cada uma delas ( e
que não sabem nem ler nem escrever em uma
ou outra), bem como, fenômeno assaz raro, as
pessoas que possuem um domínio perfeito de
duas (ou várias) línguas.
O BILINGÜISMO: UM FATO NATURAL
O bilingüismo se manifesta em todos os países
do mundo, em todas as classes da sociedade,
em todos os grupos de idade. Foi estimado que
a metade da população mundial é bilíngüe. O
bilingüismo é devido a numerosos fatores tal
qual a migração política, econômica e religiosa,
a federação política de diferentes regiões
lingüísticas, a educação etc.
É importante notar aqui que não há relação
direta entre um bilingüismo de estado e um
bilingüismo individual: certos estados que são
oficialmente bilíngües ou multilíngües agrupam,
de fato, pouquíssimos bilíngües (o Canadá, a
Bélgica, por exemplo) enquanto que estados
oficialmente monolíngües (a Tanzânia, o Quênia,
etc.) tem uma população bi- ou multilíngüe.
São os países ocidentais com sua política de
monolíngüismo que vêem no bilingüismo uma
exceção. Na verdade, o bilingüismo é um fato
natural, que se desenvolve quando há contato
entre línguas e necessidade no indivíduo de
comunicar em várias línguas. Basta passar uns
dias em um país da África ou da Ásia para se dar
conta da extensão do bilingüismo no mundo.
A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA DO BILÍNGÜE
Nós escrevemos anteriormente que é raro
encontrar um bilíngüe que possua o domínio
equivalente e/ou perfeito de suas duas línguas.
Observaremos quase sempre um desequilíbrio
entre as duas línguas, e isso porque o bilíngüe se
serve delas para domínios e atividades
diferentes (tal língua é utilizada unicamente no
trabalho; outra em casa; tal língua é escrita;
outra não o é, etc.).
Este “desequilíbrio”, visto em uma perspectiva
“monolíngüe” (ver a tese freqüentemente
enunciada de que o bilíngüe é a soma de dois
monolíngües incompletos), desaparece si
abordamos
o
bilingüismo,
não
pelo
intermediário do domínio que possui o bilíngüe
de suas duas línguas, mas pela competência
comunicativa que ele tem face à suas
necessidades cotidianas.
Na verdade, o bilíngüe estável, a saber, aquele
que não está mais em período de aprendizagem
de uma das duas línguas, apresenta a mesma
competência comunicativa que o monolíngüe e
se comunica tão bem com o mundo circundante
quanto este último (mas de maneira diferente, é
claro).
O potencial comunicativo não deve ser avaliado
por meio de uma única língua, no entanto, pois
o bilíngüe é um todo. A coexistência e a
interação das duas línguas criaram nele um
conjunto lingüístico que é dificilmente
decomponível em dois monolíngüismos.
A única comparação possível deve se fazer no
nível da competência comunicativa: o
bilíngüe, se servindo de uma, de outra ou das
duas línguas simultaneamente (segundo o
interlocutor, a situação, o sujeito etc.) ele
chega a se comunicar tão eficazmente quanto
o monolíngüe, em um nível socioeconômico
igual? Esta questão, a única de valor em nossa
opinião, foi raramente posta.
Vários pesquisadores preferiram comparar
monolíngües e bilíngües sobre a forma
lingüística e não cessaram de sublinhar os
déficits lingüísticos que achavam nos bilíngües.
Ora, o bilíngüe, assim como o monolíngüe, é um
ser comunicante e, como tal, deve desenvolver
uma competência comunicativa igual àquela do
monolíngüe.
Esta competência se serve de uma língua, de
outra ou das duas ao mesmo tempo (sob a
forma de “fala bilíngüe”) segundo a situação, o
sujeito, o interlocutor, e ela só pode, então, ser
avaliada quando estudamos a comunicação do
bilíngüe no seu conjunto, e não mais através de
uma única língua.
Nunca chegaria ao espírito do amador de
atletismo comparar ao mesmo tempo o
corredor de 110 metros com barreira ao
saltador de altura e ao sprinter. E, no entanto, o
primeiro combina em parte as competências do
saltador e do sprinter, mas ele o faz de tal
maneira que elas se tornam um todo
indissociável, formando assim uma nova
competência.
E não é apenas como atleta performante que ele
pode ser comparado ao sprinter ou ao saltador.
Esta analogia reflete muito bem a situação do
bilíngüe face ao monolíngüe. O bilíngüe não é
dois monolíngües, mas um todo que tem sua
própria competência lingüística e que deve
então ser analisado como tal.
Se uma comparação deve ser feita entre
monolíngüe e bilíngüe, que ela se faça então ao
nível de sua competência comunicativa e não
mais ao nível de uma ou de outra língua.
A FALA NÃO É COISA PARA SURDO?
A imagem (Aqui nos referimos “ao resultado das
representações sociais que os sujeitos constroem
no contato com os objetos, com as pessoas e com
as situações vivenciadas no mundo” [SILVA &
PEREIRA, 2008]), que o professor cria em torno da
surdez será refletida em sua prática cotidiana, por
isso, é muito importante que ele esteja
devidamente informado sobre o que é a surdez
para que ele possa entendê-la e abstraí-la tal como
ela é e atuar de maneira efetiva no processo de
ensino-aprendizagem do aluno surdo.
O fato de o professor não estar devidamente
preparado para receber o aluno surdo é
realidade, e acontece com a maioria dos
professores de escola regular. Assim, quando
o professor recebe esse aluno, muitas vezes
exibe idéias preconcebidas ou concepções
equivocadas a respeito da surdez, muitas
vezes atribuindo ao aluno imagens
depreciativas. (SILVA & PEREIRA, 2008)
Os surdos não são mudos e o fato de poder oralizar
não significa negar a sua identidade surda, mas,
uma possibilidade a mais de comunicar com os
ouvintes, o que julgamos extremamente necessário,
em uma sociedade como a nossa, onde eles são tão
pouco ouvidos. No entanto, a oralização foi
preconcebida como um meio de normatização do
sujeito surdo, sugerindo que ele deva seguir o
padrão sócio-comunicativo imposto pelo meio para
fazer parte de uma sociedade.
A oralização está dividida da seguinte forma:
treinamento auditivo, desenvolvimento da fala e
leitura labial. O oralismo não conseguiu suprir as
necessidades do surdo. Na verdade essa afirmativa
levanta a tese de que o surdo não era beneficiado
em nenhuma situação, visto que nós como ouvintes
criamos subsídios para que o surdo se adaptasse a
nós, e não ao contrário. A oralidade só deixou de
ser levada em consideração, devido às inúmeras
falhas advindas da metodologia utilizada para a
realização da prática comunicativa.
Muitas vezes os alunos surdos apresentam
dificuldades na aprendizagem, as quais os
professores associam de imediato à surdez. “Todos
sabem na verdade que querer corrigir e mesmo
‘anular’ o déficit auditivo não é obrigatoriamente
suficiente para fazer de uma criança surda uma
criança ouvinte chegando naturalmente as
aprendizagens” (EL MESTIRI et al., 2006:5. Trad.
minha). Então, o professor deve estar atento a estes
fatores que podem vir a contribuir para o fracasso
do aluno surdo em suas aulas.
Na verdade, quando o ato de aprender se apresenta
como problemático, é preciso uma avaliação muito
mais abrangente e minuciosa. O professor não pode
se esquecer de que o aluno é um ser social com
cultura, linguagem e valores específicos aos quais
ele deve estar sempre atento, inclusive para evitar
que seus próprios valores não o impeçam de
auxiliar a criança em seu processo de aprender. A
criança é um todo e, quando apresenta dificuldades
de aprendizagem, precisa ser avaliada em seus
vários
aspectos
(ASSUNÇÃO
JOSÉ
&
COELHO,1996:24).
Outro ponto importante é a abordagem
metodológica que será empregada no processo de
estimulação e produção da fala. É neste contexto
que surge o Cued Speech. O Cued Speech foi criado,
nos Estados Unidos, pelo Dr. Orin Cornett em 1966
e é um código manual constituído de cinco posições
da mão para codificar as vogais e de oito
configurações dos dedos para codificar as
consoantes. No Brasil o Cued Speech chega com a
nomenclatura
de
Português
Falado
Complementado – PFC.
É preciso ter bem claro que o PFC não é uma
língua, mas uma técnica de codificação dos
fonemas da Língua Portuguesa, que permite a
toda pessoa surda ou ouvinte, se expressar em
português oral, na certeza de que a pessoa
surda perceberá cada fonema pronunciado
apesar de seu déficit auditivo.
A língua oral será trabalhada segundo os princípios
da aprendizagem de uma segunda língua – L2. O
aspecto mais flagrante na aquisição de uma língua
oral como L2 pela pessoa surda é que ela deve
adquirir propriedades no nível fonológico e
prosódico que seu aparato sensorial auditivo está
impedido (ou parcialmente impedido) de apreender
(SALLES, 2004). Porém, a pessoa surda pode ter
acesso à representação visual dessas propriedades
através do Cued Speech, que pode ser um grande
aliado no Ensino do Português L2.
O PFC dá uma imagem visual de cada um dos
sons que o ouvinte percebe pela audição. A
fonologia
do
Português
é
percebida
visualmente. Assim a pessoa surda, pode
descobrir o sistema fonológico do Português de
modo natural, no dia-a-dia. Pouco a pouco, a
pessoa surda vai adquirir uma consciência
fonológica precisa, ao mesmo tempo que
perceberá cada um dos fonemas da língua
falada.
QUADROS, R.M. Educação de surdos: efeitos de modalidade e práticas pedagógicas.
2004. Disponível em: <http://www.ronice.ced.ufsc.br/publicacoes/edu_surdos.pdf>
Acesso em 14/10/2006.
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Letramento do surdo: implicações e práticas pedagógicas