Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
(ISBN: 978-85-288-0326-6)
“Higiene das Cidades”: discurso médico e remodelação das cidades mineiras
no início do século XX
Suelen Caldas de Sousa Simião*
Introdução
A influência do discurso médico esteve presente em diversas publicações dos
engenheiros especialmente entre as duas primeiras décadas do século XX com ênfase na
educação popular para conter os processos de contaminação de doenças dentro das casas e sua
disseminação pelas cidades e, nesse sentido, reforçando a ideia da importância do trabalho
conjunto médico/engenheiro. A higiene sanitária sob o ponto de vista do engenheiro sanitário,
orientado pelo médico, desempenha papel importante no combate à ploriferação de doenças e
disseminação de epidemias uma vez que promove a salubridade e evita que obras sejam
executadas a esmo e sem planejamento, o que compõe os princípios do Urbanismo.
No Brasil as preocupações iniciais quanto à urbanização surgem nas cidades de Santos,
Recife e Rio de Janeiro, e foram sistematizadas pelo engenheiro sanitário Franscisco
Saturnino Rodrigues de Brito, formado em engenharia civil pela Escola Politécnica do Rio de
Janeiro em 1886. O engenheiro também foi membro da Comission Internacionale des Ponts et
Égouts, da America Water Association e da Association Generale des Hygiénistes et
Techiniciens Municipaux, desenvolvendo, dessa maneira, diversas obras relacionadas ao
saneamento e higiene das cidades, além de presidir a comissão de Melhoramentos do rio
Tietê, em 1924.
Desde as primeiras epidemias no Brasil – de febre amarela e de cólera entre 1850 e
1860 - e também a partir do avanço dos processos de industrialização, ligada a ideia de que o
indivíduo sadio é capaz de produzir mais e melhor, contribuindo para o desenvolvimento
capitalista, que se empreendeu diversas medidas buscando conter a proliferação de epidemias
no meio urbano partindo do pressuposto que a moradia insalubre, lugar de habitação da
população pobre, era responsável pela contaminação das cidades. O controle da habitação
ligava-se a ideia não só de higienização pura e simplesmente, mas também à relação que se
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Graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
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estabelecia entre controle físico e moral, no qual se enquadram as classes pobres como classes
perigosas.
Embora a preocupação inicial tenha surgido nas cidades litorâneas acima citadas, o
estado de Minas Gerais, a partir, especialmente dos trabalhos realizados por Baeta Neves –
discípulo de Saturnino de Brito e responsável pela publicação de boa parte da sua obra também empreendeu uma série de estudos e reformas com base nas ideias de engenharia
sanitária. Nesse sentido, o presente trabalho procura traçar um paralelo, ou ainda, estabelecer
uma relação entre discurso médico e as orientações para a remodelação das cidades no interior
do estado mineiro, a partir do texto Hygiene das Cidades de Lourenço Baeta Neves, memória
apresentada à Academia Nacional de Medicina, realizada em 30 de outubro de 1912, na
cidade do Rio de Janeiro.
Pressupostos teóricos metodológicos
As discussões teóricas referentes aos estudos sobre urbanismo e cidade tem se destacado
pelo contato multidisciplinar que esse tema engloba, agrupando pesquisas que trabalham com
a dimensão política, econômica, social e cultural, que a temática suscita. Além disso, o
material de trabalho é amplo e diversificado podendo partir da análise dos escritos dos
engenheiros e executores das obras das/nas cidades, dos projetos, das leis e diretrizes para
implementação das medidas de intervenção e mesmo nos relatórios, planos e projetos dos
higienistas, uma vez que trabalham com a questão sanitária:
É, nos relatórios, planos, projetos e escritos dos profissionais higienistas que se
encontram definidos de forma contundente os pressupostos da “Questão Sanitária” em
suas várias facetas. O reconhecimento das más condições sanitárias de certas áreas da
cidade e, em particular, das péssimas condições de asseio da moradia coletiva constitui
presença constante nos relatórios de autoridades médicas desde pelo menos 1885,
quando o médico da Câmara, dirigi-se à Comissão de Justiça alertando-a da
necessidade de normas que estipulassem critérios para a demolição de cortiços
“julgados inconvenientes ou prejudiciais à saúde dos habitantes” e, ao mesmo tempo,
orientassem a manutenção da higiene dos existentes e dos que ainda fossem
construídos. (BRESCIANI, 2010: 19)
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O trecho acima assinalado, pela historiadora Stella Bresciani, trabalha com a questão
sanitária especialmente na década de 1893 a partir de Os cortiços de Santa Ifigênia:
Sanitarismo e urbanização (1893) na cidade de São Paulo, mas também nos diz sobre o
material utilizado para pesquisa relacionada ao sanitarismo e a urbanização.
Partimos nessa pesquisa dos princípios relacionados ao que se chamou de “Nova”
História Política, inspirada em autores como René Remond, Rosanvallon, Jacques Julliard,
Rafael Sega, Angela de Castro Gomes, etc., que passou a incorporar também uma reflexão
sobre os mecanismos culturais de poder, isto é, como são estabelecidas as relações evocativas
entre governantes e governados. Essa “renovação” da história política, que foi empreendida,
sobretudo, em fins dos anos 1960, redefiniu seus objetos, metodologias permitindo novos
diálogos em faces interdisciplinares.
Ademais, tomando-se as origens plurais desse campo disciplinar, a discussão sobre o
urbanismo também tem se destacado a partir do contato entre os saberes ligados à saúde e à
construção, conferindo papel significativo às aproximações entre medicina, engenharia e
arquitetura nas definições do próprio urbano (CERASOLI, 2008). Aproximação que pode ser
atestada, por exemplo, a partir das constantes metáforas relacionando corpo humano e corpo
urbano, como quando se dizem que os jardins representam o pulmão da cidade, responsáveis
pela purificação do ar.
A dimensão crítica e a finalidade prática relativa ao urbano podem ser atestadas pelos
escritos de Choay, historiadora de teorias e formas urbanas e arquitetônicas, assim como sua
amplitude de conteúdo relaciona-se ao que abrange as transformações do território, escolhas
técnicas, problemas, métodos, sujeitos envolvidos, etc, como assinala Bernardo Sechi.
(CERASOLI, 2008).
Discussão e resultados
Em Cidade Febril, Sidney Chalhoub, (CHALHOUB, 1996) traz um importante
panorama sobre os cortiços do Rio de Janeiro no século XIX, cortiços que foram destruídos
não só para impedir a contaminação da cidade pelas epidemias de febre amarela, mas
buscando também afastar o que se chamou de “classes perigosas” dos centros da cidade. A
discussão sobre “classes perigosas” também podem ser atestadas no importante livro de Stella
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Bresciani, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, (BRESCIANI, 2004), que
trata da multidão, causadora de medo fascínio no século XIX.
Apoiadas em teorias que se buscavam científicas diversos estudos indicavam que eram
no local de habitação da maioria da população pobre, os selvagens, que estavam o foco de
contaminação para toda a população urbana. É nessa época que surge a corrente de teoria da
“degeneração urbana”, confirmando a “Ideia Sanitária”, que “desenvolvida por Chadwick,
inspirou poetas, moralistas, artistas, filantropos e administradores na década de quarenta.”
(BRECSIANI, 2004: 28-29).
Além disso, a introdução no cenário brasileiro, especialmente a partir dos anos 1870, de
teorias de pensamentos que definiriam em grande medida as noções de nação, de indivíduo e
de povo, que se concretizaram por longo tempo, como exemplo, o positivismo, o darwinismo
e o evolucionismo, trariam influências e serviriam de argumento às intervenções sanitaristas,
(SCHWARCZ, 1993) como assinala Bresciani: “na década de 1880, o darwinismo social
proporcionou a cobertura biológica para a teoria da degeneração urbana hereditária,
reforçando a posição privilegiada do imigrante, para as tarefas especializadas e de
responsabilidade.” (BRESCIANI, 2004: p.31)1
As teorias raciais, desenvolvem-se e “ganham corpo” (e adeptos), portanto, nesse
período, o que também é explicitado na Cidade Febril de Chalhoub, em capítulo dedicado à
“Raça, ambiente e aclimatação” (CHALHOUB, 1996: 78-96), no qual o autor versa também
sobre o determinismo climático. Posto isso, passemos agora à análise do texto de Baeta
Neves, que parece estar em consonância ao que foi acima discutido.
Lourenço Baeta Neves autor da memória apresentada à Academia Nacional de
Medicina em 1912 sobre a importância da remodelação das cidades mineira a partir do
trabalho conjunto de médico/engenheiro, no texto Hygiene das Cidades procura traçar
considerações importantes sobre a remodelação das cidades mineiras, após levantamento
1
Essas teorias traziam visões por vezes anteriores ao século XIX, inauguradas a partir das grandes
viagens. Ao lado da teoria do “bom selvagem” idealizada por Rousseau, outras formas de pensamento, de
vertentes negativas, desenvolviam-se, como é o caso do tipo de visão mais pessimista e detrativa da América, de
Buffon, que caracterizava o continente americano como símbolo da carência, ou De Pauw, com sua teoria da
“degeneração americana”, perspectivas que revelariam grande influência nas teorias raciais que se
desenvolveriam ao longo dos séculos. ( ver mais em SCHWARCZ, 1993)
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técnico da situação precária das cidades do interior, assim como a partir da comparação com
as obras realizadas pelo engenheiro Saturnino Brito em outras cidades do Brasil.
O trabalho do urbanista, como assinala Carmem Portinho em texto publicado na Revista
da Diretoria de Engenharia, (PORTINHO, 1934) tange não somente a esfera da execução das
obras, mas faz parte de uma ampla pesquisa que deve englobar mesmo em sua formação a
pré-existência de faces multidisciplinares, incorporando saberes gerais de sociologia e
psicologia, além de minuciosa investigação histórica e geográfica que devem ser levadas em
consideração para a execução do plano de remodelação. A esse respeito a autora cita o caso
do engenheiro Aarão Reis em época de escolha da nova capital mineira apresentando estudo
de cinco localidades levando em consideração localidade, condições climáticas, análise
geográfica da região, etc. O estudo realizado por Aarão Reis foi apresentado em 1893,
demonstrando dessa maneira como as preocupações quanto a importância do trabalho do
urbanista já estavam colocadas.
Logo na apresentação do texto, Baeta Neves, apresenta considerações sobre a
peculiaridade das cidades mineiras, por sua natureza e aspectos físicos, tendo assim as normas
gerais para saneamento que apresentarem uma adaptação mais ampla para que pudessem ser
aplicadas em todas as cidades pobres do interior, sempre levando em consideração o trabalho
conjunto médico/engenheiro. Afirma o engenheiro:
Tratarei, pois, da higiene das pequenas cidades sob o ponto de vista do engenheiro
sanitário, orientado pelo médico, no campo comum das duas profissões, procurando,
tanto quanto for possível, dar a esta exposição modesta um cunho prático, segundo as
normas gerais do grande mestre Saturnino Rodrigues de Brito, o disciplinador do
trabalho sanitário no Brasil, que tanto tem feito pela causa santa da saúde pública.
(NEVES, 1912: 22-23.)2
Posto isso salienta o atraso nas questões relativas ao sanitarismo, muito maior no
interior das cidades mineiras, não limitados apenas por condições econômicas, mas sobretudo,
“pela má aplicação do dinheiro público, por falta de auxílio técnico competente ou pela
incapacidade administrativa dos encarregados de cuidar das cidades” (NEVES, 1912: 24-25).
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Todos os trechos aqui reproduzidos foram feitos com grafia atualizada.
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Por ignorarem a importância do trabalho do engenheiro – pelo seu maior custo em relação a
outros técnicos – acabam causando prejuízos também imateriais, no dizer de Baeta Neves:
O fato censurável da execução de obras sem plano, que, se não pecam muito pelos
serviços prestados, trazem injustificáveis desperdícios dos dinheiros públicos, com o
assentimento tácito ou a inconsciência da população interessada, costuma acoroçoar a
continuação do processo, que, no caso de serviços sanitários imperfeitos, pode
encontrar um protesto veemente nas epidemias que elas mais tarde venham alimentar,
causando prejuízos de vidas preciosas, sempre superiores a todos os desperdícios
materiais. Fatos dessa natureza não são muito raros no interior do Brasil, havendo
obras sanitárias, sem o protesto do povo que as paga, pela falta de análise posterior por
profissional desinteressado e estranho a ligações partidárias, e isso, se não constitui
incentivo para persistência no erro, serve, pelo menos, de justificativa inconsciente da
sua repetição, até que as consequências inevitáveis do serviço imperfeito, obriguem as
municipalidades à correção do defeito, o que nem sempre facilmente se consegue.
(NEVES, 1912: 27)
Pela má execução das obras, a dimensão que se toma as epidemias, é uma preocupação
latente de Baeta Neves. Assim como assinala Bresciani, nos casos de Londres e Paris:
As implicações econômicas da degradação física são constantemente lembradas por
esses sanitaristas que consideram os custos das medidas preventivas – melhores
condições de moradia, sistema de distribuição de água e sistema de esgotos – menores
dos que os custos da doença – interrupção do trabalho e perda de salário – para não
falar dos altos custos da contenção das sucessivas epidemias dos bairros pobres de
Londres até a década de sessenta. (BRESCIANI, 2004: 29-30)
Além disso, outro fato bastante frisado pelo autor diz respeito à destruição da natureza,
fazendo com que o elemento vital, a água, também seja prejudicada. Cita ainda casos de
países em que a prática sanitária é realizada com mais eficácia, porque leva em consideração
o trabalho conjunto do engenheiro, do bacteriologista e do médico higienista. As condições
climáticas e da própria natureza que interferem na salubridade, devem ser aproveitadas pelo
engenheiro para implementar seu projeto, ressaltando a peculiaridade das cidades do interior
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mineiro, que por suas encostas, fontes naturais e cachoeiras, que devem evitar ao máximo
serem sacrificadas pelas reformas urbanas.
Ao lado disso, a higiene domiciliar, ligada também a ideia já assinalada de controle
moral e físico da população pobre, é de fundamental importância, para o autor:
mas todo sacrifício, que a realização desses melhoramentos trouxer, não encontrará
compensação bastante no aperfeiçoamento do meio físico, e na atmosfera moral das
cidades, se as vistas dos administradores e os seus maiores carinhos se não dirigirem
para a higiene domiciliaria (NEVES, 1912: 118)
Por fim, em seu texto temos a ideia corrente à época, do ideal civilizatório para a
construção da nação. Uma nação que se construiria pautada nas teorias cientificistas e de
controle da população, e no caso, da população pobre e “perigosa”, com a frase final: “Brasil,
minha pátria! Conserva a tua liberdade, sem a escravidão das moléstias.”
Considerações Finais
Embora a produção historiográfica tenha se dedicado mais às reformas realizadas nas
cidades litorâneas, com ênfase, na capital do país à época, os escritos dos historiadores que
buscam/buscavam analisar as reformas, assim como, as influências das teorias cientificistas, e
da ideia da construção de nação, são importantes materiais para se pensar a remodelação
urbana, também no interior do país. Intuito que se pretendeu aqui ao tratar do texto Higiene
das Cidades, de Lourenço Baeta Neves.
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