Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais
do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história
e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
Reflexões sobre o “ofício do historiador” através dos contos de Jorge
Luís Borges
Mateus Cavalcanti Melo⃰
Em História, a arte de inventar o passado, no início do capítulo No castelo da
história só a processos e metamorfoses, sem veredicto final. Durval Muniz de
Albuquerque Junior faz um questionamento: O que os escritos de Kafka podem ensinar
a História? Não entrando nos méritos desse texto partirei desse mesmo questionamento
para os escritos de Jorge Luís Borges. Será que seus contos poderiam ensinar algo a
História, ou de certa forma, auxiliar – ou intrigar a maneira pela qual pensamos a
historiografia, ou seja, a maneira como a História é escrita? Será mesmo que alguém
que não é oriundo da área da história acadêmica pode realizar reflexões pertinentes
sobre nosso próprio “ofício”, como historiadores e historiadoras?
Essa comunicação deriva de uma futura dissertação, em andamento e ainda um
tanto prematura, realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
sob orientação do professor Dr.º Fernando Nicolazzi. No futuro escrito tentarei
averiguar como alguns contos de Jorge Luís Borges podem apresentar reflexões
pertinentes a três categorias com as quais os historiadores freqüentemente trabalham ou
costumam se questionar, sendo elas: a relação entre “ficção e “realidade”, “memória” e
“ofício do historiador”. Para essa comunicação o foco será na última delas, ou seja, o
“ofício do historiador”, em outras palavras pretendo refletir, usando um conto específico
do autor, sobre como ele, Borges, entendia a maneira como a História é escrita e como
ela atinge, ou chega, a seus leitores.
Antes de avançarmos farei uma breve exposição biográfica do autor. Quando
pensamos em “literatura argentina” possivelmente o primeiro nome que irá aparecer na
cabeça da maior parte dos leitores é Jorge Luís Borges, ao lado de Júlio Cortázar.
⃰
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS – mestrando – bolsista CAPES
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais
do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história
e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
Alguns de seus leitores foram ilustres acadêmicos, certamente conhecidos pelos aqui
presentes, como Michel Foucault e Jean Baudrillard.
Jorge Luís Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, no ano de 1899. Passou
seus primeiros anos morando nessa cidade, onde apreendeu o espanhol, sua língua
materna, e o inglês, que praticava com sua avó Fanny Haslam, além de adquirir o gosto
pela leitura na biblioteca de seu pai. Borges recorda que o primeiro romance que leu foi
Huckberry Finn, de Mark Twain, mais tarde viria a conhecer os contos fantásticos de E.
Allan Poe, Stevenson, Kipling, e de certa forma o estilo desses escritores de língua
inglesa (e de muitos outros) iria perpassar por toda sua obra1, sobretudo no que diz
respeito a escrever narrativas curtas, conhecidas como contos.
Sua primeira coletânea de contos só viria a surgir anos depois com a História
Universal da infâmia (1935), e com o livro de ensaios filosóficos e crítico literários
História da Eternidade (1936). Esses primeiros ensaios como contista o dariam certa
maturidade para seus dois livros seguintes: El jardín de senderos que se bifurcan (1941)
e Artifícios (1944), que mais tarde foram unidos em uma só obra que ganhou o nome de
Ficções (1944). A partir daqui Borges alcança sucesso e reconhecimento no mundo da
literatura, sendo traduzido para diversos idiomas (começando pelo francês e
posteriormente o inglês2). Suas demais coletâneas de contos são todas um sucesso de
crítica e público: O Aleph (1949) O informe de Brodie, (1970) O livro de areia (1975),
A memória de Shakespeare (1982), além de uma vasta obra poética.
Agora vejamos o que estava se passando pela historiografia no mesmo período –
por mais que de forma superficial - em que Borges estava produzindo seus escritos. Ao
longo do século XX a História atravessa diversas reviravoltas na forma como é escrita e
pensada, muito disso já em decorrência da “crise do historicismo” oriunda dos séculos
XVIII e XIX. É durante esses séculos que questionamentos sobre a própria produção da
História ganham mais evidencia, seja por historiadores ou filósofos da História. Muitos
1
Todas as informações contidas nesse e nos parágrafos seguintes, tem como base a leitura da biografia de
Borges de Edwin Williamson, intitulada Borges: uma vida (Companhia das Letras, 2011), além dos
comentários e escritos do próprio autor sobre sua vida, como seu célebre Ensaio autobiográfico
(Companhia das Letras, 2009), diversas entrevistas e prefácios para as suas obras e de outros autores.
2
Ver Ensaio autobiográfico
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e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
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foram esses teóricos que se propuseram a pensar modelos que pudessem dar conta de
explicar a epistemologia do método histórico, tais como Marx, Nietzsche, Hegel, Croce,
Toqueville, apenas para citar alguns estudados por Hayden White em sua meta-história.
Pensadores que em geral criticavam o modelo positivista onde a História era feita de
“verdades” absolutas sobre o passado. White afirma, analisando as obras de Hegel, que
o filosofo dividiria a História em “original” e “reflexiva”, sendo essa ultima dividida em
“universal”, “pragmática” e “crítica”:
A história universal é, como ele observou, a mais poética, tomando como seu
tema todo o mundo histórico conhecido e modelando-o, em resposta a formas
ideais apreendidas, por metáfora, num mudo poético coerente. A historiografia
paradigmática, escrita sobre o impulso de servir a alguma causa, a algum fim
prático, eleva-se acima da variedade universal, visto que passa de um modo
poético para um modo oratório (...) para uma consciência dos usos que uma
visão do todo pode ser submetida. A produção de várias dessas visões
conflitantes do processo histórico inspira uma reflexão “crítica” sobre a própria
escrita histórica (...). (WHITE, 2008, p. 106)
A história passa a ter várias “visões”, ou porque não dizer “versões”, que muitas
vezes serão conflitantes entre si, o que torna todo o processo historiográfico muito mais
crítico, complexo e diversificado. Além das “versões” a historiografia ascendente do
século XX irá se deparar com as “revisões”; de fato, um mesmo acontecimento histórico
pode ser explorado inúmeras vezes por diferentes pesquisadores, na verdade é
justamente nesse ponto que surge a “beleza” do texto e pensamento histórico. Cito
Nietzsche em sua segunda consideração intempestiva: “Pelo contrário, seu valor real
[texto histórico] está em inventar engenhosas variações sobre um tema provavelmente
banal, em alçar melodia popular a um símbolo universal e mostrar que mundo de
profundeza, força e beleza existe nele” (WHITE, 2008, p. 361) A história também passa
a ter uma espécie de “função”, de tentar compreender a sociedade de forma crítica,
deixando de ser uma mera admiração de um grupo de intelectuais, pelo passado (como
Nietzsche também critica em sua formulação da “História antiquaria”).
Também é ao longo do século XX que a história irá registrar novos interesses
por certas áreas e temáticas, assim como o surgimento de novos personagens, devido
principalmente a dois paradigmas dominantes entre os intelectuais da área, o
“marxismo” por um lado, e a escola dos Annales por outro, com bem observa Lynn
Hunt na nova História Cultural:
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No final da década de 1950 e nos primeiros anos de 1960, um grupo de jovens
historiadores marxistas começou a publicar livros e artigos sobre “a história
vinda de baixo”, (...) Com essa inspiração, os historiadores das décadas de 1960
e 1970 abandonaram os mais tradicionais relatos históricos de líderes e
instituições políticas e direcionaram seus interesses para as investigações da
composição social e da vida cotidiana de operários, criados, mulheres, e grupos
étnicos e congêneres. (HUNT, 1995, p. 2)
Não custaria para renomados pesquisadores da área desenvolvessem suas
reflexões sobre as especificidades do ofício de ser historiador, ou então sobre as
peculiaridades de se escrever história ao longo do século XX, como no caso de Marc
Bloch, Michel de Certeau e Paul Veyne. Contudo, todas essas reflexões e mudanças na
historiografia contemporânea não foram compreendidas apenas por pesquisadores da
área, também foram percebidas, ou pelo menos sentidas, por outros intelectuais, como
no caso do literato Jorge Luís Borges. O conto selecionado para análise demonstra a
noção apurada que Borges possuía (mesmo não sendo historiador) sobre como a
História é escrita e realizada; noção de que a disciplina não se trata de uma verdade
absoluta sobre o passado, mas sim, constituída de interpretações, revisões, formas
narrativas, hipóteses e devaneios, de seus escritores; os historiadores.
Não tenho como provar, por meio de fontes biográficas que Borges foi um leitor
das correntes históricas ao longo do século XX, contudo torna-se evidente pela forma
como escreve alguns de seus contos que possuía uma noção de certa “consciência
histórica”, essa que por sua vez, acompanhava em grande medida o pensamento
historiográfico de sua época.
No conto A loteria da Babilônia, parte do livro ficções (1944) temos um relato
de um cidadão da Babilônia fictícia de Borges, que está em processo de ser exilado.
Durante o conto temos a suposição de que todas as operações da vida humana dos
babilônicos, ou seja, todos os acontecimentos/eventos teriam sua origem em sorteios e
combinações de sorteios realizados pela loteria local. No passado (do conto) essa
tradição de sorteios teria se iniciado com pequenas apostas onde ossos e pedras eram
ofertados por um número X de apostadores, e após certo sorteio, um número Y (menor
que X) eram recompensados em moedas de prata. O processo atrai muitos adeptos já
que “o babilônico é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida,
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a esperança, o terror, o pânico, mas não lhe ocorre investigar suas leis labirínticas, nem
as esferas giratórias que o revelam” (BORGES, 1970, p. 51) mas, tal processo, resultava
em fracasso pois gerava prejuízo a quem comandava os sorteios. Então, houve uma
época em que foram atribuídas “multas” e “sanções” para jogadores “perdedores”.
Assim como, nos sorteios, havia a presença de cédulas premiadas também havia as
infaustas. Com o desenrolar do processo histórico dentro do conto (que nos leva a
entender que foi durante séculos) essas multas passam a ser o cárcere, a mutilação, a
submissão, o exílio, ou a condenação a morte – que poderia se dar no exato momento do
sorteio, ou “agendada” para daqui a um século. De fato, a ascensão social de um
indivíduo, ou a queda em infortúnios e amarguras de um outro, poderiam muito bem ser
o resultado, benéfico ou terrível, da combinação entre uma série de sorteios.
No fundo, em minha interpretação, acredito que a Loteria na Babilônia seja um
conto sobre o acaso temática que muito interessava Borges, podendo ser encontrada por
outros escritos seus, ou então, é um conto sobre a existência, ou não, de uma divindade.
Contudo, as “reais” intenções de um autor não limitam as diversas interpretações que
podemos fazer em seus escritos, como bem nos lembra o professor José Carlos Reis em
seu História & Teoria:
O autor entrega ao leitor as suas elucubrações com a esperança de que a cada
leitura, modificadas, as suas idéias renasçam, ganhem um novo sopro de vida.
O texto só se torna uma obra quando chega ao leitor, que o recria. A escrita é só
um esboço para a leitura. O texto é cheio de vazios, descontinuidades. O leitor é
co-autor. (REIS, 2006. p. 12)
pois afinal, se existe uma característica essencial nos contos de Borges é que esses são
abertos, múltiplos e fluidos. Nunca são fechados, ou puramente conclusivos. Sempre
desafiam os leitores a novas interpretações, representações e possibilidades.
Assim, não estou defendendo a idéia de que Borges foi um historiador ou
escreveu como tal, pois de fato, não o foi; ou que foi leitor dos autores dos annales ou
da historiografia contemporânea a sua época (pois não há como saber, tirando o seu
interesse pela obra de Croce); contudo me parece que o autor possuía certa “leitura de
mundo”, além de uma opinião formada sobre como a história é produzida, e sobre as
circunstâncias que a formam, ou mesmo uma “consciência histórica”. A parte que mais
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais
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me interessa no conto relatado é a reflexão e comentário que o protagonista realiza
sobre os historiadores da Babilônia, segue o trecho:
Nossos historiadores, que são os mais perspicazes do globo, inventaram um
método para corrigir o acaso. Consta que as operações desse método são (em
geral) fidedignas; embora, naturalmente, não sejam divulgadas sem alguma
dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a História
da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser
obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro
sem alguma divergência entre cada um dos exemplares. Os escribas prestam
juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a
mentira indireta. (BORGES, 1970, p. 56)
Ora, se o mundo fictício da babilônia borgeana é orientado e guiado pelos
acontecimentos ao acaso, cabe a uma série de intelectuais ordenar esses
eventos/acontecimentos em narrativas; esses são os historiadores, que segundo nosso
protagonista, “são os mais perspicazes do globo”. Os historiadores, assim, inventam
métodos para “corrigir” o acaso, que vai de encontro, de certa forma, as mudanças que a
historiografia do século XX perpassa. O que é um texto histórico, se não, colocar ordem
- na forma de uma narrativa - as indagações que conseguimos analisando as fontes,
muitas vezes caóticas e sincopadas? Cabe ao texto do historiador “combinar a
discursividade do “compreender” e a estranheza “daquilo que acontece” (DE
CERTEAU, 2011, p. 43) Ainda sobre o caráter do texto histórico De Certeau
complementa:
Espelho do fazer que hoje define uma sociedade, o discurso histórico é ao
mesmo tempo sua representação e seu reverso. Ele não é o todo - como se o
saber fornecesse a realidade ou a fizesse aceder ao seu grau mais elevado! Esse
lance maior do conhecimento está ultrapassado. (...) Não substitui a práxis
social, mas é sua testemunha frágil e sua crítica necessária. (DE CERTEAU,
2011, p. 43)
Michel de Certeau ressalva que o texto histórico é a “representação” e não “o
todo” do saber sobre algo, na verdade esse nível nem sequer pode ser atingido. Contudo
o texto histórico é a “testemunha frágil e a crítica necessária da prática social”. Cabe aos
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais
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e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
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historiadores, portanto refletirem sobre a sociedade, sua cultura, sua política, sua
religiosidade e seus acontecimentos de maneira intensa, ou ao menos com métodos que
sejam “fidedignos, embora naturalmente não sejam divulgados sem alguma dose de
engano” [citação conto]. Isso remonta ao que já foi explanado anteriormente sobre as
diversas “versões” que hoje compreendem o método histórico. Surgem então gerações
de historiadores(as) que muita mais que afirmar certezas absolutas sobre suas pesquisas
admitem a produção de um texto histórico com seus erros, suas “doses de engano”; mas
que por fim, pretende-se no mínimo fidedigno, nos termos que Borges emprega, ou no
mínimo “confiável”, para De Certeau;
A história, como escritura desdobrada tem então a tripla tarefa de; convocar o
passado, que já não está no discurso do presente, mostrar as competências do
historiador, domínio das fontes, e convencer o leitor: “Visto desse ângulo, a
estrutura desdobrada do discurso funciona como uma máquina que obtém da
fonte uma verossimilhança para o relato e uma convalidação do saber; produz,
pois, a confiabilidade”. (DE CERTEAU apud CHARTIER. 2007. p.27)
Em suma, o texto histórico busca convencer o leitor de que a tese exposta é confiável.
Não no sentido de uma verdade dogmática mas sim, como uma explanação de idéias
que sejam confiáveis, plausíveis, coerentes e fidedignas tendo por base os manuseio de
forma hábil dos vestígios de passado, muitas vezes desordenados, que conhecemos por
fontes. Em verdade, esse é talvez o diferencial essencial entre os textos ficcionais e os
históricos: as fontes. Ao mesmo tempo em que as fontes são de onde nossos textos se
originam e sobre o que tentamos organizar, refletir e produzir um conhecimento, elas
também, em grande medida, são nossas limitadoras, e porque não, amarras. Cito Durval
Muniz:
Não podemos fugir do limite imposto pelo nosso arquivo. Só podemos
historicizar aquilo que deixou rastros de sua produção pelo homem, em dado
momento e espaço. Mas desaparecem as fontes privilegiadas da História, ou
aspectos de que o historiador não poderia se ocupar e tudo se torna
historicizável e fonte de historicidade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007 p.
64)
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e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
Esse é o estranho caso dos historiadores da Babilônia, que diferente de nós, não
tem como saber ao certo se a fonte que estão pesquisando, “o documento paleográfico
encontrado em um templo” teve sua origem num sorteio de ontem ou em um sorteio
secular, ou ainda, se não teve sua origem em um sorteio algum, pois, ressalva nossa
protagonista ao final do conto, que na Babilônia existem certos céticos que não crêem
na “ordem” dos sorteios. Tudo que está em Babilônia pode ser historicizado, tudo pode
virar fonte, o que pode vir a ser um grande problema para nossos fictícios historiadores,
já que “não se publica um livro sem alguma divergência entre cada um dos
exemplares”. Aqui Borges dá seu toque literário, não estando preso aos métodos da
História ou ao compromisso com as fontes, sua mente pode divagar até chegar a
situações comumente impensáveis; entretanto podemos a partir dessa breve frase refletir
sobre o número cada vez maior de livros e trabalhos ditos “revisionistas”, que abordam
os mesmos eventos que já foram explorados antes só que por um outro viés, por outro
ponto de vista, através de outros acontecimentos ainda não explorados.
A própria literatura, com a qual trabalho, nem sempre foi considerada fonte
plausível de ser historicizada. Tal como muitas outras fontes teve que conquistar seu
devido espaço e respeito no mundo acadêmico, processo que não aconteceu do dia para
a noite, por mais que hoje a literatura já goze de certo prestígio como fonte muito rica
para os debates historiográficos. Cito A. C. Ferreira sobre o assunto, em um texto de
2009:
Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes históricas não provoca
hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi assim. Mais do que isso, nas
últimas décadas os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores
como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de
significados para o entendimento do universo cultural, dos valores culturais e
das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo. (FERREIRA,
2009, p. 61)
Por ultimo voltemos mais uma vez o olhar para a última frase do trecho em que
nosso protagonista cita os historiadores: “Os escribas prestam juramento secreto de
omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta”. Por mais que
concordemos que a mentira não faz parte do metiê do historiador, creio que
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e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
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concordemos – por mais que nem todos – que o texto histórico em muito depende de
ficção literária e da criação, seleção e edição do texto, de forma que se crie uma
narrativa coerente, nem que para isso seja preciso “intercalar, omitir, alterar”. O texto
histórico já não pode mais ser apenas um levantamento e compilação de fontes sobre um
determinado acontecimento. É preciso ter algo a mais, algo de teórico, de crítico, de
reflexivo, de intrigante, ficcional e narrativo.
Há uma curta frase em um artigo de François Hartog que pode iluminar essa
temática da tessitura da narrativa, usarei esse exemplo pois nesse artigo F. Hartog está
trabalhando com fontes literárias, no caso “A Odisséia”. Esse artigo está em Regimes de
Historicidade e se chama As lágrimas de Ulisses.... O momento é quando Ulisses, ainda
disfarçado, já em Ítaca, admite ser Ulisses e começa a narrar sua história, de forma que,
por mais que emocionado, ordena e narra os eventos de forma lógica e plausível: “As
escalas sucedem-se, uma cronologia narrativa instaura-se, uma cena no presentepassado é seguida por outra, progressivamente a narrativa comprime o tempo. A ordem
da narrativa transforma-se na ordem do tempo”. (HARTOG, 2013, p. 79). Essa citação
pode muito bem nos ajudar a entender o processo pelo qual, contamos e escrevemos
História. Primeiro há uma sucessão de escalas de eventos, e os eventos serão divididos
em escalas, por exemplo, em nível de importância; depois aos poucos essas escalas irão
se tornar uma narrativa cronológica (na maior parte dos casos), de fato que surja um
início, meio e fim; depois há as seqüências das cenas, ou eventos, do presente-passado.
Por fim, progressivamente a narrativa (ou o texto) comprime o tempo (dos eventos, da
experiência passada), do contrário, se assim não fosse, levaríamos uma década para
escrever sobre uma década, mas sabemos que não é assim, narramos décadas e séculos
em escritos de uma centena de páginas ou menos. Isso só é possível graças às escolhas,
omissões, intercalações e sobretudo, representações, que fazem parte de nossa narrativa,
de nosso ofício, de nosso escrito. Não que isso seja uma fórmula, mas já nos apresenta
um bom indicio de como preparamos, de forma consciente, nossos textos.
Hartog nos traz um exemplo de como um texto ficcional, como a Odisséia, pode
contribuir para as reflexões e debates típicos da teoria da História e da historiografia,
mostra que esse debate não está enclausurado apenas no nosso meio acadêmico. Em
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certa medida, é isso que venho tentando buscar analisando os contos (também
ficcionais) de Jorge Luís Borges. Um simples conto do autor pode levantar
questionamentos importantes acerca suas interpretações, como escritor e intelectual,
sobre memória, ficção, temporalidade, ou mesmo, sobre o “ofício” de historiar, e das
conexões dessas com os debates acadêmicos.
Retomando o início, quando Durval Muniz, pergunta-se “o que os escritos de
Kafka podem ensinar à História?”, logo em seguida já vem com uma resposta, podem
nos ensinar a valorizar os acontecimentos, até os mais banais. As personagens de Kafka
normalmente são lançadas em uma situação de ruptura drástica com sua vida cotidiana,
que em geral era banal e monótona, não sabem como entraram nessa nova situação mas
ela está acontecendo, como em A metamorfose ou em O processo, são jogados de forma
aleatória e por que não, ao acaso, tal como no conto de Borges, dentro da História.
História que é muitas vezes estranha e confusa e que cabe aos historiadores tentar
ordenar e compreender. Se a pergunta fosse, “o que os escritos de Borges podem ensinar
à História?”; certamente ainda não tenho uma resposta pronta, talvez tal resposta nem
exista. Entretanto posso ressaltar que os contos de Borges podem demonstrar o poder da
literatura ficcional como forma de interpretamos questões pertinentes a “realidade”,
preocupação dos historiadores. Podem mostrar que as reflexões sobre os processos da
historiografia não acontecem apenas entre os muros da academia, podemos refletir sobre
a história é produzida no teatro, no cinema, no passeio público, nas escolas, com aquele
professor, com pais e avós, nos museus, e no meu caso, com literatura ficcional. Como
escritor do século XX, as concepções de Jorge Luís Borges sobre a História, seu
processo de produção, e a função dos historiadores (as), não ocorre ao acaso, como em
Babilônia, são oriundas de todo um pensamento, “leitura de mundo” e por que não, uma
interpretação sobre o “ofício do historiador” de seu próprio tempo.
Referências bibliográficas:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado.
Bauru, SP: EDUSC, 2007.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. Porto Alegre: Editora Globo, 1970.
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais
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e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP,
2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6)
CHARTIER, Roger. A História ou a leitura do tempo. Barcelona: Gedisa Editorial,
2007.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. 3. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2011.
FERREIRA, Antônio Celso. A fonte fecunda. In: DE LUCA, Tânia Regina; PINSKY,
Carla Bassanezi (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência de tempo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
HUNT, Lynn (org.). A nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e
verdade. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 2. Ed. – São
Paulo: Edusp, 2008.
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