Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
(ISBN: 978-85-288-0326-6)
Vida e morte do bandeirante: construção do objeto de pesquisa e estratégias de
análise
Franco Della Valle
“Será
que
fomos
nós,
historiadores
contemporâneos, que inventamos Vida e
morte do bandeirante, ou fomos inventados
por ela?” (SOUZA: 2002, 1203).
José de Alcântara Machado d´Oliveira (1875 – 1941) foi um jurista, político,
professor e historiador de um livro só: Vida e morte do bandeirante. Publicado em 1929, este
livro reflete um momento em que apareceram diversas obras sobre o passado colonial
paulista, especialmente o fenômeno das bandeiras, tais como os livros de Afonso Taunay
(História geral das bandeiras paulistas) e Alfredo Ellis Junior (Raça de gigantes). Esse
momento de intensa publicação sobre o passado paulista se deve, dentre outros fatores, à
iniciativa de Washington Luiz: enquanto prefeito da cidade de São Paulo e governador do
Estado, publicou as transcrições e compilações de documentos antigos, notadamente as Atas
da câmara e os Inventários e testamentos. Com isso, divulgou documentos logo utilizados por
intelectuais como base para livros sobre o passado regional.
Historiadores convergem na percepção de que diversos autores que publicaram obras
neste período cristalizaram juízos positivos sobre os bandeirantes paulistas (ABUD: 1985;
FERREIRA: 2002; BLAJ: 2000). De acordo com Ilana Blaj, estava em jogo nessas
representações positivas “a preocupação de justificar o poder de São Paulo no contexto da
riqueza cafeicultora no âmbito da República Velha, o que pressupunha um relacionamento
com os outros Estados e a luta pela hegemonia nacional” (BLAJ: 2000, 240). Buscava-se,
então, a criação de um símbolo associado à população paulista, com qualidades especiais que
pudessem diferenciá-la do restante do Brasil, com o intuito de ressaltar e justificar a
importância de São Paulo sobre os demais Estados. E as qualidades do símbolo (o
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH – USP.
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
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bandeirante) seriam ligadas aos habitantes de São Paulo daquele início do século XX:
herdeiros de valorosos antepassados. A recompensa pelas suas virtudes se expressaria num
Estado rico, industrializado, mais desenvolvido que os demais Estados do país, modelo a ser
seguido.
Nesse viés, algumas análises enquadram Alcântara Machado como colaborador da
construção do símbolo bandeirante paulista, pois sua narrativa confere características
especiais (positivas) aos bandeirantes e, ao mesmo tempo, ao povo paulista dos anos 20.
Falar em construção da paulistanidade, tomada aqui como a simbolização da
exceção da história e do povo paulista, toca num ponto sensível, nem sempre explicitado: a
isenção do “historiador”. Ser político em São Paulo, ter laços e trânsito fácil com a elite
intelectual regional, pertencer à oligarquia, enfim, tudo isso entra na fatura da análise do Vida
e morte do bandeirante, em conjunto com passagens, no texto, representativas de atribuições
de qualidades positivas aos bandeirantes. Todavia, a abordagem metodológica proposta neste
trabalho acrescenta outras questões: deve-se relativizar a obra? Em que medida? Dizer que a
representação dos bandeirantes feita por Alcântara Machado relaciona-se com um movimento
de apologia a um símbolo paulista, utilizado com finalidades políticas, é o mesmo que
condenar seu livro? Ou melhor, que julgar seu autor?
Considerando que Vida e morte do bandeirante também foi objeto de críticas
positivas, por se afastar da narrativa das bandeiras em forma laudatória e aproximar-se da
descrição do cotidiano das pessoas “comuns”, pode-se inverter o sentido das perguntas, para
saber se esse afastamento é algo positivo e em que medida funciona como absolvição dos
pecados eventualmente cometidos pelo seu autor. Tais perguntas perdem importância quando
se conclui que as respostas redundariam numa simplificação de pares opostos sim ou não, ou
mesmo numa lista de prescrições de como se deve ou não ler uma obra. Todavia, as questões
aqui postas apontam para algo importante, qual seja, a possibilidade de problematizar as
próprias leituras feitas sobre a obra. Seria um esforço de se ensaiar aquilo que Bourdieu
denomina de “crítica sociológica da razão sociológica”:
ela deve trabalhar para reconstruir a gênese social não somente das categorias de
pensamento que conscientemente ou inconscientemente aplica, tais como esses pares
opostos que com frequência orientam a construção científica do mundo social, mas
também dos conceitos que ela utiliza e que muitas vezes são apenas noções do senso
comum introduzidas sem exame no discurso erudito...” (BOURDIEU, 2011: 289).
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Esse exercício permite apreender o que está em jogo nas leituras feitas da obra do
autor, e quais são as finalidades nelas embutidas. Permite, por exemplo, verificar que na
construção de determinada leitura haja uma disputa acadêmica, política e até mesmo o
julgamento do próprio autor e suas atitudes.
A pesquisa que desenvolvo volta-se ao autor (Alcântara Machado) e às leituras feitas
sobre seu livro Vida e morte do bandeirante. Em grande parte, essas leituras relatam seu
pertencimento à elite intelectual de São Paulo, suas funções políticas, sua filiação ao Partido
Republicano Paulista e seu orgulho de linhagem, expressado na exaltação da antiguidade de
sua família. Além disso, as leituras identificam os rendimentos obtidos com a inclusão do
autor neste grupo, ou seja, eventuais condicionantes que informam o modo de sua narrativa, o
assunto escolhido (os bandeirantes), que podem ser resumidas como a defesa dos interesses
políticos de São Paulo perante no Brasil na década de 1920. No mais, são pinçados na obra
exemplos que funcionam como apologia ou auxílio à cristalização do símbolo bandeirante.
Embora tais dados e associações sejam necessárias e úteis, possivelmente o rendimento da
pesquisa poderá ser maior ao se colocar Alcântara Machado num momento preciso: vários
autores estavam, como ele, publicando obras sobre as bandeiras e o passado colonial de São
Paulo. A partir daí, analisar como cada um desses autores, em concorrência, procura validar
sua própria obra.
No caso de Afonso Taunay e sua História geral das bandeiras paulistas (com início
de publicação em 1924), o destaque dado por esse autor é a farta fonte documental que
alicerça a sua obra (inclusive com a descoberta de documentos). Alfredo Ellis Junior, outro
exemplo de concorrente, define a importância de seu livro Raça de gigantes (1926) pela
aplicação de análises raciais, a fim de buscar a constituição física e psicológica do paulista. Já
no caso de Alcântara Machado, privilegia-se o cotidiano de pessoas ditas comuns. Tal
“qualidade” é expressa pelo seu próprio autor no corpo do livro, bem como pela crítica
contemporânea de sua primeira publicação.
Colocar o autor neste momento preciso significa a necessidade de se levar em conta,
também, o fato de que antes dele outros já haviam publicado obras sobre o mesmo assunto.
Considerados os exemplos acima citados (Taunay e Ellis Junior), Alcântara Machado chegava
tarde na corrida para escrever o passado de São Paulo. Assim, o orgulho de estirpe, declaração
de lealdade e amor a São Paulo expressado por ele adquirem outra conotação além de vazio
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auto-elogio ou defesa dos interesses políticos dos paulistas. Na ausência de um campo
intelectual autônomo naquele momento (MICELI, 2001: 17), são com esses e outros trunfos
que os autores chamarão a atenção para suas obras.
Sobre as coerções que pesaram sobre Alcântara Machado quando escreveu Vida e
morte do bandeirante, a noção de figuração, de Norbert Elias (CHARTIER: 2000, 13) é
reveladora. Isso porque permite identificar os limites impostos a um autor que desempenha a
figuração político e jurista de renome, com intensa atividade em São Paulo, quando escreve
sobre os antepassados paulistas. Isso fica ainda mais claro quando há intenção de crítica, ou
seja, até que ponto o autor pode criticar aqueles erigidos como antepassados de uma
população que o elege como representante político e que aprecia suas aulas na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco.
Desta forma e com essas ferramentas metodológicas, a pesquisa pretende agregar
mais um ângulo de visão à análise corrente, que considera as propriedades extraídas do grupo
no qual Alcântara Machado está inserido (elite intelectual, político etc) e seus reflexos na
obra. Pretende-se, portanto, analisar o autor e sua obra em concorrência (política, intelectual)
com seus pares nesse meio, tirando-se disso consequências e explicações.
Em relação às leituras feitas sobre Vida e morte do bandeirante, o cuidado inicial é
aquele citado por Lygia Sigaud quando analisou as leituras sobre Ensaio sobre o dom de
Marcel Mauss: “... cuidado de identificar quem estava dizendo exatamente o que sobre o texto
e como o fazia.” (SIGAUD: 1999, 90). Com isso, pode-se analisar e compreender os efeitos
trazidos pelas leituras que identificam rupturas ou continuidades historiográficas na linhagem
de autores que escreveram sobre o passado colonial paulista. Noutras palavras, permite
identificar o que está em jogo na tensão entre filiação ou afastamento do comentador e o texto
analisado, tais como demarcações geracionais, acadêmicas ou mesmo a prescrição dos
cânones legítimos a serem seguidos pelos membros da comunidade dos historiadores.
O enquadramento de Alcântara Machado na função de autor, nos termos propostos
por Foucault (FOUCAULT: 1992) ajuda compreender a tensão, explicitada nas leituras, entre
a atividade política do autor e sua narrativa. Isso porque a figura do autor, erigida em
categoria analítica, acaba por influenciar na interpretação e nos julgamentos feitos sobre a
obra. Para tanto, é necessário analisar as funções políticas desempenhadas pelo autor antes e
depois da publicação de seu livro, bem como em que termos tais funções refletem na obra.
Retoma-se, assim, o quanto mencionado acima, ou seja, indagar em que termos é
apreendida a atividade do escritor que também é político militante. Ou melhor, em que termos
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de “isenção” sua prática historiográfica é levada em conta. E mais: quando identificadas nas
leituras da obra sugestões de práticas sobre o ofício de historiador, busca-se compreender em
que medida essas práticas se incompatibilizam com o desempenho de atividade política.
A constituição do corpus documental foi feita da seguinte forma: adotou-se uma
categoria ampla de leitores de Vida e morte do bandeirante, para fins de análise de recepção e
críticas. No momento da publicação e anos posteriores, procurei pesquisar artigos e resenhas
em jornais que fizessem apreciação da obra. O cuidado primordial, neste caso, é atentar-se
para o fato de que esses artigos normalmente são assinados por pessoas do círculo de
sociabilidades do próprio autor e que poderiam compartilhar, de certo modo, da mesma visão
sobre o passado colonial paulista. Além disso, são escritos de polígrafos que, tal como o
autor, escreviam sobre diversos assuntos na imprensa.
Como as primeiras resenhas compraram a visão de novidade, propalada pelo autor
no início do livro, foi interessante coletar os anúncios publicados em jornais. Pretende-se
verificar em que termos é posto o quesito novidade, a fim de valorizar o produto. Noutras
palavras, foi necessário ressaltar e compreender como se deu o apelo ao mercado consumidor
da obra.
A partir do surgimento da Universidade e da Faculdade de História, nos anos 30, a
abordagem metodológica escolhida propõe problematizar como a produção universitária
apreendeu Vida e morte do bandeirante. Como análises específicas sobre Alcântara Machado
são raras, foi necessário recorrer à produção que versa sobre o regionalismo paulista e a
construção da paulistanidade, com a finalidade de analisar como o autor e seu livro são
representados no contexto específico desta produção. Essa análise permite apreender, em
muitos casos, as prescrições dos cânones do ofício de historiador e o que se reprova nas obras
dos intelectuais pré-universidade. Todavia, se o recorte – muitas vezes sugerido pelo próprio
material – ganha importância com a oposição pré e pós universidade, a pesquisa não se
encerra nele. Isso porque dentro da própria produção universitária há conflitos de gerações e
de visões sobre a prática do ofício de historiador. É na reapropriação ou ressignificação desses
antigos polígrafos (dentre eles Alcântara Machado) que se pode apreender a validação das
práticas tidas como pertinentes à produção da história. O esforço de análise nesse sentido
possibilita a verificação de como, nas leituras, a tão propalada novidade da obra vai se
esfumaçando quando se analisa a tensão entre o historiador e o político que deseja defender o
Estado cujo passado analisou.
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Considerando que as críticas sobre a obra ressaltam o papel político desempenhado
por Alcântara Machado e sua relação com São Paulo, pareceu-me necessário coletar dados
sobre o exercício dessa função. Tendo em vista que São Paulo foi derrotado na Revolução
Constitucionalista de 1932, foi interessante analisar como um político oriundo desse Estado
esforça-se em afastar críticas relativas à sua adesão ao governo de Getulio Vargas e reafirmar
sua lealdade ao povo paulista que o elegeu. Assim, propagandas políticas, discursos, artigos
de jornais e falas na tribuna da Assembleia Constituinte de 1934 são materiais que
possibilitam apreender os termos utilizados pelo autor para conferir veracidade à sua lealdade
a São Paulo.
Outro aspecto sugerido por esse material é que a antiguidade de estirpe e amor a São
Paulo são resgatados não apenas como defesa política mas também como abonadores à escrita
da história paulista. Já as inversões operadas nas leituras acerca de Vida e morte do
bandeirante, no sentido de se considerar essa identificação com São Paulo desabonadora da
obra, refere-se, mutatis mutandi, à inversão perfeita mencionada por Bourdieu:
Os casos de inversão perfeita, como aquele em que o título de nobreza de um pode se
tornar marca de infâmia para o outro, estão lá para lembrar que o campo universitário
é, como todo campo, o lugar de uma luta para determinar as condições e os critérios
de pertencimento e de hierarquia legítimos, isto é, as propriedades pertinentes,
eficientes e próprias a produzir – funcionando como capital – os benefícios
específicos assegurados pelo campo. (BOURDIEU: 2011, 32).
A partir da intenção da pesquisa e das ferramentas metodológicas acima
explicitadas, cabe dizer que não se pretende validar ou não as leituras feitas sobre Vida e
morte do bandeirante, muito menos salvar o autor de supostos mal entendidos ou imerecido
esquecimento. A intenção da pesquisa é analisar quais as possibilidades que o autor tinha em
seu horizonte para publicar a obra, bem como quais foram as ferramentas utilizadas pelas
leituras feitas de seu livro. No extremo, pretende-se fazer uma leitura das leituras, com intuito
de analisar o que estava em jogo quando propostas e quais os procedimentos eficazes para se
construir uma determinada categoria de autor.
Embora a pergunta de Laura de Mello e Souza que abre esta comunicação seja de
difícil resposta, a pesquisa desenvolvida tem como finalidade dar um passo para a
compreensão das representações feitas de Alcântara Machado e seu livro.
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(ISBN: 978-85-288-0326-6)
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MICELI, Sergio. Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos Anatolianos).
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quinto, jornadas nos sertões bahianos – os inventários da selva – primórdios da
mineração – o cyclo do ouro de lavagem – as esmeraldas e a prata), São Paulo: Typ.
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