Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) O olhar do outro: alemães olham Porto Alegre dos séculos XVIII ao XXI Júlio César Bittencourt Francisco1 Introdução Como resultado do Projeto de Pesquisa docente do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o presente texto descreve as representações de estrangeiros e visitantes, através de crônicas e entrevista de alemães sobre a cidade de Porto Alegre. O título do trabalho ‘O olhar do outro’ refere-se justamente as impressões dos estrangeiros, imigrantes, visitantes ou forasteiros que contribuem com suas diversas visões para formação de uma imagem sobre a capital dos gaúchos. A escolha pela nacionalidade teuta, como condutora de nossa pesquisa, diz respeito a uma das mais numerosas etnias a impactar a memória da cidade, mas também àquela que confere uma das identidades mais importantes de Porto Alegre. A relevância da pesquisa para a área museológica é evidente na medida em que museus trabalham não só com um ‘olhar’, mas também com memórias, interpretações, imagens e pesquisas. Outro fator que, a nosso ver, merece destaque é o de utilizar a história da cidade para costurar o fenômeno migratório germânico para o Brasil. Ao misturar, cidade e imigração alemã, sintetizamos a gênese e a própria trajetória histórica de Porto Alegre, sua imagem e cultura. Partindo do princípio que a identidade se constrói a partir da alteridade, ou seja, da percepção ou apreensão do olhar, ou ainda do discurso do outro, cabe procurar compreender como são construídas as representações daqueles que vem de fora, sobre Porto Alegre, e como se processa esse estranhamento por via de construções sociais e também através de imagens e narrativas. Além das crônicas dos viajantes e escritores, trabalhamos com obras de autores alemães dos séculos XIX e XX, e entrevistas realizadas com estrangeiros residentes ou que visitam Porto Alegre neste terceiro milênio. A cidade e a memória como construção social Fundada por colonos açorianos, depois, habitada por brasileiros de diversas origens e regiões, a cidade recebeu muitos africanos e seus descendentes, mas também 1 Mestre em Memória Social e Documento pela UNIRIO/RJ, doutorando em História pela PUC/RS e professor Assistente da UFRGS/FABICO. 1 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) um grande número de imigrantes, principalmente portugueses, alemães, italianos e poloneses ao longo do século XIX. O período coincide com a visita à cidade dos primeiros viajantes europeus, que documentaram suas experiências em crônicas que foram levadas a uma Europa curiosa por notícias de um país novo, longínquo e exótico, até então fechado para o resto do mundo. Na visão da historiadora Sandra Pesavento (2002, p. 9) “a cidade é o objeto de múltiplos discursos e olhares, que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros”. Nesse sentido, podemos perceber o olhar dos viajantes como ‘um outro olhar’, conforme afirma Staudt, Os viajantes europeus se diferenciam na maneira de perceber a cidade e o espaço público. Uma dessas distinções poderia ser de ordem moral. Muitos dos viajantes condicionados por valores provenientes da cultura europeia, os viajantes, ao vivenciarem os usos e costumes da população da cidade, não estavam isentos de um pré-julgamento. (STAUDT, 2007, p.18) Ortiz (2000, p.22) ao observar a experiência de Benjamin em Paris diz que “a viagem é sempre um deslocamento através de espaços descontínuos” e descrevendo o viajante como um flâneur, aponta o “estranhamento como parte do próprio deslocamento”. Miriam L. Moreira Leite ressaltou a vantagem do viajante enquanto “observador alerta e privilegiado do grupo visitado” por ser alguém “de fora” e estar ali “de passagem”, sem intenção de ser aceito pelo grupo e com o objetivo de relatar o que conseguiu perceber a seus conterrâneos. Por outro lado, “o viajante traz a postura do civilizado diante do povo atrasado reforçada por uma série de obstáculos linguísticos, culturais e econômicos à compreensão do grupo visitado” (LEITE, 1997, p.10). Mas afinal, qual o poder do olhar do outro? E quais são as suas consequências, para o habitante do local e também para o outro? De acordo com Paul Ricoeur (2007, p. 89), a visão do outro, como fonte de infelicidade ou de perigo, pode construir o que chamou de memória manipulada, que decorre, em última análise, distorções políticas e ideológicas. O que estabelece a manipulação dessas memórias são, segundo Bourdier (2008, p. 78), “as disputas que podem ser de gênero, étnicas e de habitus, entre outras, uma vez que a memória deve ser compreendida como construção coletiva e social marcada por desencontros, pela disparidade temporal e espacial”. Os viajantes 2 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Em 1763, os castelhanos, comandados por Don Pedro Cevallos, governador de Buenos Aires, invadiram o Rio Grande do Sul e tomaram a cidade de Rio Grande. Neste ano, as populações portuguesas de Rio Grande e do norte da província migraram para a região de Viamão e Porto dos Casais, engrossando ainda mais o contingente demográfico desses pequenos aglomerados. Em 18 de janeiro de 1773, um edital rebatizou a pequena povoação, que passou a se chamar Madre de Deus de Porto Alegre. O então governador da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, José Marcelino de Figueiredo, ordenou a transferência da Câmara Municipal de Viamão para Porto Alegre por questões estratégicas. Além da visão privilegiada da navegação de quem chega pela Lagoa dos Patos, a cidade exercia um controle mais eficaz sobre as rotas das embarcações nos diversos tributários do lago Guaíba que levam ao interior. Além de centro administrativo, Porto Alegre tornou-se uma área militar. Paliçadas de madeira foram construídas em torno da cidade. Quando chegou a Porto Alegre em 1775, Johann Heinrich Böhn (1708/1783) – militar alemão contratado pelo exército português para supervisionar as tropas no Brasil, e cuja campanha vitoriosa acabou por recuperar Rio Grande dos castelhanos – alertou para a falta de estrutura na incipiente capital: Eu expus à Junta a incapacidade dos comissários que ela vinha a nomear para empregos da maior importância e as consequências prejudiciais que disso resultaria, indubitavelmente, pedindo seriamente que remediasse o caso. A resposta era que, todas as pessoas mais hábeis e existentes no continente, as mais limpas e as mais inteligentes estavam escolhidas, e que era impossível achar melhores súditos. (BOEHM apud NOAL FILHO, 2004 p.16). De todo modo, a modesta capital prosperava e em 1804, a Coroa portuguesa lá instalou a primeira alfândega do Rio Grande do Sul. O acanhado núcleo urbano foi elevado à vila em 1808, a município em 1809 e a cidade em 1822. A abertura dos portos brasileiros em 1808 abriu a possibilidade para que viajantes europeus de diversas nacionalidades percorressem áreas até então dificilmente acessíveis. O ano de 1824, apenas dois anos após a independência do Brasil, se materializa um dos primeiros projetos bem articulados pelo Governo Imperial: o estabelecimento da colônia de São Leopoldo2. 2 A Colônia São Leopoldo abrangia uma região que ia de Sapucaia do Sul até Caxias do Sul e de Taquara até Montenegro (cidades do Rio Grande do Sul). Essa área era muito maior do que é atualmente o município de São Leopoldo. O primeiro período da imigração ocorreu de 1824 a 1830, quando entraram 3 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Distante apenas algumas horas de barco de Porto Alegre, no Vale do rio Caí, os primeiros alemães foram ali assentados. De acordo com Roche (1969 p.35) “A vocação comercial foi percebida desde a fundação da colônia. Os colonos não podiam viver senão vendendo os seus produtos, o que caracterizou as origens rurais do comércio teuto-riograndense”. Alemães em Porto Alegre O Rio Grande do Sul recebeu entre as primeiras levas de imigrantes alemães3, não só camponeses sem terra, depauperados pela situação econômica local, mas também alguns homens de letras e intelectuais, além de artistas, artesões e militares mercenários. Alguns haviam participado das guerras napoleônicas, enquanto outros foram atraídos para a formação de batalhões Imperiais brasileiros para lutar na guerra cisplatina4 sob a promessa de que, após as batalhas, fossem agraciados com terras onde se estabeleceriam como proprietários. Nem todos os imigrantes eram de origem rural. Alguns, profissionalmente capacitados na Alemanha e habituados à vida citadina, optaram, tão logo quanto possível, por se estabelecer nas cidades e por exercer diversas profissões (ROCHE, 1969; GANS, 2004). Ao longo da primeira metade do século XIX a imigração alemã continua através de uma política Imperial de povoamento do Sul do Brasil, até a Revolução Farroupilha, (1835-1845) quando há um refluxo dos desembarques no Rio Grande do Sul por conta da situação política. A participação dos colonos alemães neste conflito é descrito no livro de Hilda Agnes Flores (2008) que informa que “entre os colonos alemães o maior número se posicionou ao lado dos farroupilhas, com quem comungaram os ideais do liberalismo europeu”, porém afirma que muitas lideranças “foram mortas ou deportadas entre 1836-37 enfraquecendo a atuação farroupilha em São Leopoldo”. Porto Alegre sofreu invasão e sítio dos rebeldes, e experimentou uma drástica redução em suas atividades econômicas. Desta forma descreveu a cidade o imigrante na colônia 4.856 pessoas, sendo que os primeiros 39 imigrantes alemães chegaram à Colônia de São Leopoldo em 25 de Julho de 1824. Sobre esta empreitada participaram ativamente D.Pedro I através da Imperatriz D. Leopoldina e o Major alemão George Anton Schaeffer que, a partir do escritório montado em Hamburgo, agenciou a vinda de militares mercenários além de milhares de imigrantes alemães. 3 No caso dos imigrantes europeus de origem germânica, aportados no Brasil, a categoria “alemã” é globalizante, pois reúne grupos diferentes de imigrantes, simplificados por características semelhantes (WEBER, 2006). 4 Assim, foi criado dois Batalhões de Caçadores o 27º e o 28º que atuariam no Rio Grande do Sul na Guerra Cisplatina 1825-28, ao final da qual seriam desmobilizados radicando-se e reforçando a colônia alemã de São Leopoldo. 4 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) alemão Johann Karl Dreher, em 1840: “A cidade de Porto Alegre, cercada por um cinturão de valos de proteção (trincheiras) que, de trechos em trechos, eram protegidas por canhões de defesa, apresentavam antes um aspecto de destruído do que de alegre” (WEIMER, apud NOAL FILHO, 2004, p. 80). Ainda segundo a pesquisadora (FLORES, 2008, p.87) “no início da revolta, muitos colonos buscaram proteção dentro dos muros de Porto Alegre, mas com o deslocamento da guerra para campanha5 houve um enorme progresso da colônia como maior produtora regional, entre 1842-1845, quando a guerra dizimava rebanhos em outras regiões do Rio Grande”. Com o fim da revolta, Porto Alegre se expandiu rapidamente para além dos muros e, em pouco tempo, converteu-se no polo da região mais desenvolvida da Província, como destaca Paul Singer. O papel de Porto Alegre dentro dessa rede urbana sofreu profundas mutações, pois, até aproximadamente 1860, a Capital desempenhava função econômica secundária no Estado, o qual tinha então em Pelotas e Rio Grande — centros diretamente ligados à produção e à comercialização do charque — seus polos mais expressivos. A partir dessa época, no entanto, a capital assumiu, paulatinamente, a condição de centro mais importante devido à sua condição de porto fluvial, o que fazia com que se centralizasse o processo de comercialização da produção das áreas coloniais. (SINGER, 1977, p. 125) A segunda metade do século XIX trouxe a cidade milhares de imigrantes alemães, muito deles contratados como militares pelo Império do Brasil na campanha contra Rosas, como é o caso de Joseph Hörmeyer, (1824/1873), Carlos Von Koseritz (1830/1890), Carlos Jansen (1829/1889) e Herrmann Wendroth6, (s/d-1860), que faziam parte do grupo de jovens soldados alemães, de bom nível intelectual e que ficaram conhecidos como os brummers (resmungões em alemão, ou criadores de casos – tradução livre). Em 1858 o médico alemão Robert Avé-Lallemant (1812/1884) em visita ao Rio Grande do Sul escreveu o seguinte sobre Porto Alegre; (...) a reminiscência nórdica não se restringe apenas ao alto da cidade de Porto Alegre, de onde se pode contemplar a grande distância. Desce também a parte comercial. Ali em toda a parte se vê gente de raça loura perambulando. A cada momento se vê um alemão transitando, a cada momento se vê um nome alemão sobre as portas das casas e se houve falar rude da língua do Holstein e do dialeto pomerânio até o bávaro renano. Deve haver em Porto Alegre uns três 5 A região da campanha, no Rio Grande do Sul, compreende a parte sudoeste do estado, junto às fronteiras onde é predominante o ecossistema do Pampa, formado por grandes pradarias e elevações suaves denominadas de coxilhas. 6 Wendroth realizou uma verdadeira crônica pictórica da cidade e da Província. Infelizmente por falta de espaço neste artigo deixamos de apresentar suas brilhantes telas sobre Porto Alegre. 5 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) mil alemães ao passo que toda cidade não tem mais de 20.000 habitantes (AVÉ-LALLEMANT apud NOAL FILHO, 2004, p.110). O embaixador e naturalista suíço Joahann Jakob Von Tschudi (1818/1889), em visita à cidade no ano de 1861, assim a descreve: (...) na verdade a cidade não tem como muitas vezes é descrito, um caráter predominantemente alemão, mas pelo menos o elemento germânico está fortemente representado nos letreiros alemães sobre as abóbadas comerciais, oficinas, bares e padarias etc. são tão frequente como as de brasileiros (TSCHUDI apud NOAL FILHO, 2004, p.119).·. Magda Gans (2004, p.13) informa que o “núcleo de alemães que se desenvolveu em Porto Alegre não fazia parte de um projeto articulado do Governo Imperial brasileiro, ele parece ter-se desenvolvido em discreta espontaneidade”. De acordo com as pesquisas de Gans (2004), na segunda metade do século XIX, uma razoável comunidade alemã7 em Porto Alegre já estava estabelecida com comércio, serviços e pequenas indústrias e formavam a classe média da cidade juntamente com os descendentes de portugueses. Além disso, conseguiram se organizar com eficácia, estabelecendo igrejas, jornais, clubes, associações de auxílio mútuo, e mais para o fim do século elegendo deputados na Corte8, onde lutavam pelos interesses da colônia. Tais informações ficam evidente no relato de Amand Goegg, (1820/1897) ativista político alemão, em visita a Porto Alegre no início da década de 1880. Entretanto, quem mais contribuiu na Província do Rio Grande, durante trinta anos, para o seu desenvolvimento cultural e sua tendência política liberal, como também para sua influência preponderante no Império e, especialmente, para a valorização da cultura alemã, é Karl Von Koseritz, de Dessau, culturalmente talentoso e de alta formação científica. Ele escreve no diário mais influente em língua portuguesa, ou seja, brasileira, A Gazeta de Porto Alegre, e no Deutsch Zeitung, que sai duas vezes por semana e exerce grande influência sobre os deputados e homens de Estado. (GOEGG, A. apud NOAL FILHO, 2004 p.174). Roche (1969, p.155) nos diz que na virada do século XIX para o XX “as grandes firmas fundadas por alemães, comerciantes rurais, prosperaram em Rio Grande e Porto Alegre (...) eles estreitaram laços com a Alemanha”. Este é o caso das empresas Bromberg e Cia, (Instituto Delfos PUC/RS) fundada por imigrante alemão que se instalou em Porto Alegre em 1863 com empresa importadora e expandiu seus negócios 7 Segundo a autora a comunidade teuta da capital era formada primordialmente por imigrantes vindos diretamente da Alemanha e, em menor número, descendentes de alemães reimigrados das colônias no interior do Estado. 8 Antes de 1881, a legislação brasileira não dava direito de voto aos não católicos, contingente significativo entre os imigrantes alemães. Com a Lei Saraiva, criou-se a possibilidade mais concreta de se eleger uma bancada teuta para atuar na Assembleia Provincial. 6 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) para o resto do país e Argentina, abrindo inclusive um escritório de compras em Hamburgo. Wilhelm Vallentin, cronista alemão em visita a Porto Alegre na primeira década do século XX confirma a presença e participação teuta na vida econômica da cidade com o seguinte relato: “Porto Alegre ocupa lugar de destaque no comércio e na indústria; justamente o elemento germânico, foi o quê, nesta área, assumiu a vanguarda inquestionavelmente”. (NOAL FILHO, vl. 2, 2004 p.105). Da mesma forma, porém, um tanto quanto exagerado, relata Karl Grube, ator e pianista alemão em visita a capital em 1910: “Porto Alegre é uma cidade de comercio progressista com aproximadamente 150 mil habitantes, aproximadamente. Uma boa parte de todos os moradores, se não mais, são de descendência alemã” (NOAL FILHO, vl.2, 2004 p.144) Com o advento da I Guerra Mundial, (1914-1918) muitas empresas importadoras teuto-brasileiras, que concentravam seus negócios com a Alemanha declinaram ao ponto de desaparecer, principalmente diante de uma Alemanha incapacitada de produzir bens de consumo e de capital para exportação, mas também pela ação de parte da população luso-brasileira, conforme o relato de Alfred Funke, professor e teólogo alemão em visita a capital em 1917; “também a Sociedade Germânia foi ateado fogo pela população enfurecida [...] a Bromberg e Cia foi igualmente incendiada e muito mais chamuscada [...] apesar do Presidente do Estado ter mandado afixar; Respeite a propriedade dos alemães!” (NOAL FILHO, vl.2, 2004 p.200). Heinrich Timple, alemão e padre católico, em visita a capital em 1921 diz o seguinte: “o elemento alemão está presente por cerca de 10 por cento da população, portanto, bastante presente, mesmo após a guerra [...] casas comerciais de alemãs foram depredadas ou incendiadas, determinando considerável azedume à vida dos pacatos comercantes.” (NOAL FILHO, vl.2, 2004 p.175) Entre os brasileiros cresce a desconfiança para com os alemães9 e seus descendentes, principalmente depois que o governo central se colocou ao lado dos aliados na Segunda Grande Guerra (1939-1945). Soma-se a isso uma política nacionalista implementada pelo Estado Novo de Vargas (1937 – 1946) que proibia o ensino e transmissões radiofônicas em idiomas estrangeiros no Brasil. Mesmo assim 9 Na virada do século XX em Porto Alegre, imigrantes e descendentes de alemães, neste trabalho categorizados como ‘teutos ou alemães’ mesmo estando integrados a vida nacional e sem isolamento geográfico, ainda mantinham, em larga escala, casamentos endogamicos, o que favoreceu um sentimento de separação cultural entre teutos e luso-brasileiros. Segundo Gans (2004, p. 117) isso se dava por existir ligação bastante atualizada da capital com a Alemanha e com a cultura alemã. 7 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Maria Kahle, cronista alemã em visita a Porto Alegre em 1936 escreveu o seguinte relato em seu livro publicado na Alemanha no ano seguinte “o empenho cultural dos alemães; em 1932 a grande Sociedade Ginástica Alemã festejou seus 40 anos de existência, em 1931 o jornal Deutsche Volksblatt completou seus 60 anos [...] a Comunidade Evangélica Alemã comemorou seus 75 anos [...].” (NOAL FILHO, vl.2, 2004 p.227) Diante de uma Alemanha beligerante, num cenário de sistemáticos afundamentos de naus brasileiras ao longo da costa, no início dos anos de 1940, a opinião pública nacional se volta de vez contra tudo que é alemão. A Lei 4.166 de 1942, em seu artigo 11 § 1º determina que “os bens das sociedades culturais e recreativas formadas por alemães, japoneses e italianos, poderão ser utilizados no interesse público, com autorização do Ministério da Justiça”. A execução da lei representou um duro golpe na capacidade associativa teuta de Porto Alegre. Considerações Finais Porto Alegre nasce geograficamente isolada do centro político e administrativo do país. A cidade cresce depois que todas as outras capitais importantes do Brasil já estarem consolidadas, algumas com mais de duzentos anos de história, soma-se ainda os dez anos de estagnação econômica por conta da Revolução Farroupilha no século XIX. A capital recebe, durante o século XIX, cerca de 350 mil estrangeiros imigrantes. (GERDAU, 2001, p.129) As mais importantes contribuições alemãs para Porto Alegre foram o comércio e os serviços num primeiro momento, e a indústria posteriormente. O sucesso desses empreendimentos serviu para consolidar a importância da cidade no contexto regional e destacar a capital no cenário nacional, tornando a imigração alemã sinônimo de ascensão social no Rio Grande do Sul. Além disso, a cidade, nos séculos, XIX e XX atraiu uma elite de origem europeia, especialmente alemã, ainda que rapidamente tenha se integrado a populações de origens diversas. No decorrer do século XX as diferenças entre Porto Alegre e outras grandes cidades brasileiras foram se escasseando no contexto da integração nacional, da globalização, da especulação imobiliária e do poder do capital, representado pela expansão do capitalismo, que, entre nós, também gerou desigualdades e pobreza. A própria comunidade teuta foi se tornando mais integrada a sociedade local como um todo, inclusive as uniões com pessoas de origens diversas foram se tornando comum ente os teuto-brasileiros. 8 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Em 2013, movido pela curiosidade em estabelecer o que mais poderia chamar atenção de um visitante alemão, diante do impacto da chegada a Porto Alegre, que poderia ser considerada a ‘mais alemã das cidades brasileiras’ indagamos a uma estudante, que chegou a capital em 2011, para realizar um curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, quais eram suas primeiras impressões sobre a cidade; e eis aqui a sua resposta: “cidade de muitos edifícios altos e feios, até nos arredores do mercado público há prédios abandonados, desrespeito pelo pedestre, trânsito agressivo, custo de vida alto, muitos moradores de rua” (Entrevista em 21/05/2013 com Martina, Alemã de 37 anos natural de Kiel sobre Porto Alegre) Invertendo a perspectiva do olhar, Porto Alegre, como uma ‘cidade alemã’, nada tem de alemã, conforme a opinião da entrevistada. A cidade se parece com qualquer outra capital brasileira que, sem planejamento urbano, entregue a especulação imobiliária, suja, trânsito caótico e com muitos moradores de rua, foi muito mais influenciada pela situação política e social do pais, do que pela presença alemã, presença esta que procuramos demonstrar ao longo deste trabalho, tanto na atuação comunitária, quanto nas instituições, empresas, associações e jornais de origem teuta na cidade. Diante disso podemos concluir apoiando as assertivas de Roche (1969) e Gans (2008) nas seguintes questões: A ascensão social dos imigrantes teutos foi relativamente lenta e difícil no interior. Em Porto Alegre os alemães possuidores de capital ou representantes de marcas alemãs fundaram grandes casas de importação e (com o suporte da colônia através de redes de apoio: remigração do interior e fluxo imigratório constante) foram bem sucedidos sendo a sua ascensão social rápida e contínua, evoluindo do comércio para indústria. Os caixeiros viajantes do interior investiram seus lucros em indústrias estabelecidas na capital, principalmente em fábricas de fiação, curtumes, fundições, usinas metalúrgicas, fabricas de sabão, vidros e manufaturas de calçados entre outras. A comunidade teuta de Porto Alegre contraria duas situações padrão apontada pela historiografia. A primeira é a presunção de que somente o isolamento é capaz de preservar características culturais de uma comunidade. A segunda é que a assimilação se dá, forçosamente, por contato prolongado com a sociedade hospedeira. Em Porto Alegre o convívio com luso-brasileiros é antigo e nunca houve isolamento, porém o 9 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) fechamento cultural foi, de certo modo, forte e se deu através da prática religiosa, dos jornais em língua alemã e das associações étnicas, pelo menos até metade do século XX. A visão tradicional de grupo étnico dá ênfase a aspectos e traços culturais, mas na visão de Frederick Barth, trata-se de uma construção e desconstrução contínua de limites étnicos daquilo que ele chamou de ‘fronteira’ em relação a outros grupos. Não devemos confundir, no entanto, etnicidade alemã, que é termo mais limitado com cultura alemã, que é conceito mais abrangente. No caso dos descendentes de alemães em Porto Alegre no início do século XXI, ainda observamos a existência de parte da população etnicamente considerada teuto-brasileira. Assim, o conceito de etnicidade é essencialmente uma forma de interação entre grupos culturais, operando dentro de um contexto cultural comum. Referências bibliográficas BOURDIER, Pierre A Produção da crença. 3. ed. Porto Alegre: Zouk, 2008. BARTH, Frederick Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998. CONFORTO, Marília & VELHO, Michel. Ruas, praças, porto e casas. Breves considerações sobre o espaço urbano porto-alegrense no relato dos viajantes do século XIX Revista Travessias número 2 Cascavel, 2008. DEMELO, Bruno Cesar Euphrasio. A cidade de Porto Alegre entre 1820 e 1890 As transformações físicas da Capital a partir das impressões dos viajantes estrangeiros Dissertação de Mestrado PROPUR/UFRGS, Porto Alegre, 2010. DOBERSTEIN, Arnoldo. Porto Alegre 1900 – 1920. Estatuária e ideologia. Porto Alegre: SMC, 1992. GANS, Magda Roswita. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUH/RS, 2004. GRUPO GERDAU A Chama Empreendedora: a história e a cultura do Grupo Gerdau Porto Alegre, 2001. HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: Descrição da Província do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional Ed.Eduni-Sul, Porto Alegre, 1986. LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997. MARONEZE, Luiz Antonio Gloger. Espaços de sociabilidade e memória: fragmentos da “vida pública” porto-alegrense entre os anos 1890 e 1930. Porto Alegre: Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – PUCRS, 1994. NOAL FILHO, Valter Antonio & FRANCO, Sergio Costa. Os viajantes olham Porto Alegre. Porto Alegre: Anaterra, 2004. 2 vls. ORTIZ, R. Walter Benjamin e Paris: individualidade e trabalho intelectual, Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, v.12 nº 1 p.11-28 maio, 2000. 10 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002. POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V.5 n.10 p.200-212, 1992. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969, 2v. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento Campinas, SP Unicamp, 2007. SINGER, Paul Porto Alegre. In _______ Desenvolvimento econômico e evolução urbana. Rio de Janeiro, Cia. Editora Nacional, 1977. STAUDT, Sheila Katiane. A Porto Alegre do século XIX sob o olhar dos viajantes Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas dossiê: a cidade na crônica PPGLET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007. WEBER, Regina. Imigração e identidade étnica: temáticas historiográficas e conceituações. In: Dimensões: Revista de História da UFES. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo. n. 18, 2006 p. 236-250. 11