ORDEM PÚBLICA, SEGURANÇA PÚBLICA, DIREITOS
HUMANOS E POLÍCIA: UM QUARTETO EM
DESARMONIA
Naldson Ramos da Costa
Doutor em sociologia, professor adjunto da Universidade
Federal de Mato Grosso, coordenador do Núcleo
Interinstitucional de Estudo da Violência e Cidadania –
NIEVCi e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
INTRODUÇÃO
• pretende-se fazer uma comparação entre os
conceitos ordem pública, segurança pública,
atividade de polícia e direitos humanos,
buscando revelar que entre estes conceitos não
há uma relação harmônica, pois se conflitam
entre si e com os direitos dos cidadãos. A ordem
pública não é pacífica, muito menos harmônica, e
a segurança pública pressupõe a manutenção da
ordem que, por sua vez, requer o emprego da
força dos agentes responsáveis resultando em
muitos casos de abuso de poder, no que se refere
aos direitos humanos e individuais.
Ordem pública, o que é?
• Há certo consenso de que a ordem pública se materializa pelo
convívio social pacífico e harmônico, pautado pelo interesse público,
pela estabilidade das instituições e pela observância dos direitos
individuais e coletivos (grifos meus). Neste “consenso”, mais de
natureza jurídica, a materialização da ordem pública se estabelece
pelo convívio harmônico, desconsiderando desta forma toda e
qualquer forma de conflitos e/ou direitos individuais conflitantes.
• Com efeito, o convívio social nas democracias burguesas sempre foi
conflitante, podendo resultar inclusive em violência ou decisões
onde os direitos de muitos cidadãos são violados pela autoridade
responsável, pela preservação da estabilidade das instituições e dos
direitos individuais ou coletivos
• Para José Afonso da Silva (2009), “segurança pública é
manutenção da ordem pública interna”. Nessa perspectiva,
a “ordem pública será uma situação de pacífica convivência
social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que
tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a
curto prazo, a prática de crimes”(Idem, 2009).
• Essa concepção é conflitante, tendo em vista que “a
segurança pública consiste numa situação de preservação
ou restabelecimento dessa convivência social que permite
que todos gozem de seus direitos e exerçam atividades sem
perturbação de outrem, salvo no gozo e reivindicação de
seus próprios direitos e defesa de seus legítimos
interesses” (Idem, 2009).
O Debate Jurídico
• Lazzarini (1995) considera também que a segurança
pública é elemento e causa da ordem pública: “(...)
temos entendido ser a segurança pública um aspecto
da ordem pública, ao lado da tranquilidade e da
salubridade públicas. (...) cada um deles [aspectos] é
por si só a causa do efeito ordem pública, cada um
deles tem por objeto assegurar a ordem pública”.
• Os juristas em referência insistem em interpretar o
conceito de segurança pública com a manutenção da
ordem como se estas duas coisas fossem sinônimas e
que a garantia da convivência social fosse pacífica e
harmônica possibilitando a todos de gozarem seus
direitos sem perturbar o outro.
Manifestação de Estudantes da UFMT
• Recentemente, Cuiabá assistiu um triste episódio, em que uma
simples manifestação pública de protesto de estudantes, contra as
medidas restritivas de moradia para estudantes da UFMT, ocorrida
no dia 06/03/2013, ganhou contornos de batalha campal, com
direito à pancadaria e balas de borracha atiradas de curta distância
por policiais da Ronda Ostensiva Tática Móvel – ROTAM.
• A primeira reflexão que se deve fazer é sobre a questão do direito,
considerando que todo cidadão tem o direito de se manifestar,
inclusive publicamente, sozinho ou reunido com outras pessoas,
para festejar ou protestar, utilizando-se do espaço público.
• É preciso notar que, numa democracia e, mais precisamente, na
plenitude do Estado Democrático de Direito, é direito conferido
pela Constituição Federal brasileira, no inciso IV do art. 5º, do
cidadão manifestar-se, articulando seu pensamento, restringindo a
lei somente o anonimato.
A Segurança pública e o Papel das Polícias
• Numa sociedade marcada pelo exercício pleno da democracia, a
segurança pública se propõe a garantir a proteção dos direitos
individuais e assegurar o pleno exercício da cidadania. Neste
sentido, a segurança não pode se contrapor à liberdade de
expressão e de manifestação, sendo condição para o seu exercício e
faz parte de uma das muitas e complexas vias para efetivar a
qualidade de vida dos cidadãos e sua cidadania.
• A Constituição Brasileira no seu art. 144 diz que "a segurança é um
dever do Estado, direito do cidadão e responsabilidade de todos".
Assim, a quem compete colocar em prática esse dever do Estado e
direito do cidadão? Todas as polícias descritas nos incisos
relacionados ao artigo 144, mas cabe papel de destaque as Polícias
Militares, por serem elas as responsáveis pelo policiamento
preventivo, ostensivo e repressivo.
• Para D’Urso (2001), a ordem pública é caracterizada por um
estado de serenidade, de apaziguamento e de
tranquilidade pública, em consonância com as leis, os
preceitos e os costumes que regulam a convivência em
sociedade, a preservação deste direito do cidadão, só será
amplo se o conceito de segurança pública for aplicado.
• Neste sentido, a segurança pública não pode ser tratada
apenas como medidas de vigilância e repressiva, mas como
um sistema integrado e otimizado envolvendo instrumento
de prevenção, defesa dos direitos e justiça social. Dentre
estes direitos cabe destacar o direito de manifestação
pacífica, ainda que para isto seja preciso interromper
temporariamente outro direito de ir e vir.
O uso progressivo da força
• Todas as polícias devem fazer o uso progressivo da força, a qual
consiste na seleção adequada a cada abordagem que se fizer. Ela se
manifesta pela presença do policial; pela advertência em relação ao
fato ou transgressão da norma (lei); não havendo
respeito/obediência por parte do infrator em relação à autoridade
policial, o mesmo pode iniciar um processo de negociação e
gerenciamento de crise; não obtendo êxito nesta negociação e
havendo eminência de tumulto poderá pedir reforço mantendo
ainda pela ordem: o uso diálogo e negociação, uso de sprays, gás
lacrimogêneo, bombas de efeito moral; técnicas de imobilização
para colocar algemas, cassetetes e, no último caso, tiros com balas
de borracha; por fim arma fogo letal se sua vida está ameaçada, ou
para preserva a vida de algum cidadão.
Seleção adequada da força
• Qualquer uso desmedido, ou a não seleção adequada da força, ao invés de
resolver o problema pode tumultuar ainda mais a situação. Boa parte dos
problemas relacionados com o abuso da autoridade policial, também
conhecida como brutalidade e violência policial, dizem respeito a ausência
de reflexão substantiva sobre o emprego qualificado e comedido da força.
A Polícia e suas atividades de controle social pressupõem o uso comedido
da força durante todas as atividades de abordagem policial, a qual deve se
pautar sempre pela legalidade e legitimidade do uso da força.
• O despreparo da Polícia brasileira tem a ver com nosso passado histórico
que é extremamente marcado pelo autoritarismo nas relações entre
Estado (e seus agentes) a sociedade com seus conflitos e desigualdades
sociais. Ainda hoje, mesmo depois da conquista do Estado de Direito em
1988, nossas policias atuam no controle da criminalidade vendo o crime e
os movimentos sociais como inimigos do Estado e, portanto, da Polícia.
Polícia é para defender a cidadania e não apenas a lei e a ordem marcada
pelo direito positivista.
Administração de Conflito e Justiça Penal
• Evidentemente que uma polícia bem preparada é garantia de
segurança. No Brasil, prepara-se o policial para resguardar a ordem
social e enfrentar bandidos, mas não se prepara para dialogar e
resolver conflitos de natureza social ou até mesmo individual.
Resguardar a ordem pública! Que ordem? Estudantes não fazem
parte da ordem pública. O que se entende por desordem?
Manifestação popular ou até mesmo comemoração são vistas como
perturbadora da ordem pública.
• O conflito e as manifestações de estudantes, de jovens, de
trabalhadores e até de pessoas que não oferecem qualquer risco
para a sociedade, ou para a Polícia, são vistos como “inimigos da
sociedade” e como se não fizesse parte da ordem social e não fosse
merecedor da segurança pública para se manifestar.
Manifestação de Estudantes UFMT
• Especificamente sobre a manifestação dos estudantes da
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, reivindicando
ampliação de vagas para moradia, que resultou no fechamento da
Av. Fernando Corrêa da Costa, por mais de trinta minutos,
desencadeando em um conflito que foi “solucionado” com o
emprego do uso da força, incluindo disparos de balas e borracha
contra os manifestantes. Sabe-se que é inquestionável e inalienável
o direito de manifestação em espaço público por parte dos
movimentos sociais em torno de pautas construídas socialmente e
politicamente.
• Ao se analisar brevemente tal episódio, não se vê pelas imagens e
fotos veiculadas pelos meios de comunicação excessos de ambas as
partes (estudantes e policiais). Na verdade, havia um cordão de
policiais tentando isolar a manifestação e estudantes gritando
palavras de ordem direcionadas principalmente para a Reitoria.
• Contudo, após a chegada da ROTAM, o tumulto se generalizou a
partir do disparo de espingardas com balas de borracha em que os
estudantes encontram-se a curta distância do agressor. Estes
acontecimentos ferem o Estado Democrático de Direito e os
direitos humanos dos estudantes, tendo em vista o resultado da
operação. No confronto alunos foram dispersos a "balas de
borracha" e muitos saíram machucados, mão quebrada por tiros de
curta distância que causaram fraturas e ferimentos no pescoço,
peito e barriga.
• A ROTAM foi pensada para atuar em acontecimentos (fatos) onde
haveria risco a vida de pessoas ou algum patrimônio público e/ou
particular. Não é um agrupamento de policiais preparados para
negociarem/gerenciarem interesses conflitantes, muito menos
promover a segurança pública.
• Havia dois direitos em oposição: o direito de manifestação legítima e o
direito de ir e vir dos motoristas. Neste caso, como aconteceu no início,
trata-se de desviar o trânsito e negociar com as lideranças um tempo
duração da manifestação e, se possível, garantir a liberação de uma das
faixas de rolamento para a circulação de veículos fluírem ainda que
lentamente. Ocorre que este diálogo falhou ou não estabeleceu.
• Tratar os movimentos sociais e suas manifestações à bala é característico
de um paradigma de controle social ultrapassado, mas que ainda insiste
em permanecer nas práticas de controle social. Muitos policiais, e até
pessoas da sociedade, insistem em fazer valer a sua autoridade pelo uso
da força. Assim, se esquece que a maior e mais poderosa arma do homem
no estado de direito é a palavra; é a busca de um consenso dentro do
dissenso.
É possível evitar os equívocos e abuso aos direitos
humanos cometidos por policiais?
• Para Lima (2011), o país acostumou-se a um pêndulo de forças que
antagonizar direitos humanos e o clamor popular por mais
segurança e justiça, muitas vezes saciado em ações policiais que
envolvem violência e mortes. Cabe notar que esse é um falso
antagonismo e que precisa ser superado. Não há nenhuma
incongruência entre a defesa de direitos e o sentimento legítimo da
população que demanda viver em paz e segura.
• É preciso ampliar o debate sobre qual polícia queremos e qual o
modelo de segurança pública é compatível com a democracia
brasileira, pois sem isso, há um grande risco de aceitarmos imagens
de pessoas sendo reprimidas violentamente e feridas, ou até
mortas nas ruas como algo natural e necessário para se resguardar
a ordem e a segurança pública.
Questões Emergenciais
• Para superar o paradigma repressivo, faz-se necessário continuar
preparando melhor os polícias e denunciando toda e qualquer forma de
abuso policial. As Academias de formação têm que incorporar durante
todo o tempo o paradigma do Estado Democrático de Direito e de uma
concepção de Polícia Cidadã, respeitadora e promotora dos direitos
humanos numa sociedade marcada por desigualdades sociais, culturais e
por conflitualidades (algumas litigiosas).
• Lidar com conflito significa ter tolerância e saber usar adequadamente, de
acordo o fato encontrado, a utilização de técnicas de negociação e a
utilização progressiva da força, preservando, por sua vez, o direito de
manifestação e a integridade física dos cidadãos. Nesse sentido, a
tolerância é fundamental enquanto que a intolerância é geradora de
tantas violências, incluindo a policial. Por fim, faz-se necessário que toda
ação policial abusiva seja denunciada e investigada, de forma transparente
e também que seja punida para que não se impere a impunidade.
• Manifestação
de
estudantes
da
UFMT
• Referências Bibliográficas
•
• COSTA, Naldson Ramos. Manifestação de Estudantes da
UFMT e a Ação Policial. Cuiabá, 06 Março, 2013.
•
• D’URSO – Flávio Borges. A manifestação pública,
pancadaria e crimes. Apud. JUS- NAVEGAVDI, textos
selecionados. jus.com.br/revista/texto/ 07/2001.
•
• LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo.
Revista dos Tribunais: São Paulo, 1995.
•
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