Uso da força em protestos não é ilegítimo
nem autoritário
É provável que investigação da PM traga à tona erros
cometidos na operação montada para conter protestos
em São Paulo. Mas exageros e erros não devem colocar
em xeque o direito e o dever policial de zelar pela
ordem
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Manifestantes protestaram em frente ao Palácio do Governo Piratini, no centro de Porto
Alegre, na quinta-feira (27) - Vinicius Costa/AFP
Na manhã desta sexta-feira, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando
Grella Vieira, autorizou o início de uma investigação para averiguar se houve excessos
da PM durante a última passeata do Movimento Passe Livre na capital do estado. É
provável que a investigação da Corregedoria da PM traga à tona erros cometidos na
operação para conter e dispersar os manifestantes. Na internet espalham-se imagens de
pessoas que alegam ter sido agredidas de maneira arbitrária. Notoriamente, há déficits
no treinamento dos policiais brasileiros. Uma análise não muito profunda dos
confrontos de quinta-feira mostra que não foram seguidas à risca diversas
recomendações do Código de Conduta para Agentes de Segurança Pública das Nações
Unidas, uma espécie de código internacional para ações policiais durante manifestações
públicas. Isso não significa, no entanto, que tenha sido ilegítima a ação da PM na
marcha de São Paulo. É uma questão de princípios. “No Estado de Direito, a Polícia tem
autorização para usar a força a fim de garantir a ordem e a segurança”, diz Maria Stela
Grossi Porto, socióloga e membro do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança
da Universidade de Brasília. "Mais ainda, o uso da força é monopólio dela."
A tentativa de fazer da ação da PM um exemplo de autoritarismo comparável à
repressão dos tempos de regime militar no Brasil, ou à ação das polícias de regimes
ditatoriais, é um evidente absurdo, uma vez que o país não vive um regime de exceção.
Mais razoáveis seriam comparações com embates ocorridos nos Estados Unidos e na
Europa - ou seja, em nações democráticas - em anos recentes. Londres, Madri, Nova
York, Toronto são apenas algumas das metrópoles que foram palco de choques entre a
polícia e ativistas inspirados por ideais não muito diferentes daqueles abraçados por
quem protesta em São Paulo - a rejeição ao "sistema", em algum de seus aspectos
particulares ou de maneira genérica.
Em novembro de 2011, por exemplo, durante a desmonte dos acampamentos de
manifestantes do Ocupe Wall Street, em Nova York, ao menos 300 pessoas foram
presas. Houve uma larga discussão sobre "uso abusivo da força" e dois oficiais se
tornaram emblemas desse hipotético excesso, pelo uso indiscriminado de spray de
pimenta. Eles foram submetidos a sindicâncias e punições, mas nenhum deles sofrera
uma ação criminal, como foi decidido em meados de abril deste ano. Em reportagem
sobre o caso, o jornal The New York Times ouviu um especialista em direito penal que
ressaltou a dificuldade em se processar policiais envolvidos em situações "caóticas"
como a de uma manifestação de rua. "Seria preciso provar, para além de qualquer
dúvida razoável, que o polícial usou a força em total desacordo com as suas
atribuições", disse o ex-promotor Thomas J. Curran. "Ocorre que o uso da força é parte
das suas atribuições." Quando posta em movimento, nenhuma polícia é angelical.
Uso da força — “É muito tênue o limite do que é legítimo e do que não é em situações
de multidão", diz Maria Stela Grossi Porto. "Os casos precisam ser sempre analisados
individualmente.” Os possíveis exageros e erros da quinta-feira não devem, portanto,
colocar em xeque o direito e o dever policial de zelar pela ordem durante uma passeata.
A sua presença é a única maneira de garantir a segurança dos transeuntes, do patrimônio
público e, em certas circunstâncias, até mesmo dos manifestantes — uma vez que as
marchas costumam reunir um público heterogêneo, como sem dúvida foi o caso nos
últimos dias em São Paulo. Isso não está em contradição com a necessidade - também
ela permanente - de aprimorar e "civilizar" as forças policiais.
Num ato de rua, ditam os protocolos, a polícia deve seguir três passos: esclarecimento,
contenção e repressão. Num primeiro momento, há que se coletar informações sobre o
movimento e negociar locais e itinerários com os manifestantes. Isso foi feito na quintafeira em São Paulo, e um dos motivos da situação ter fugido ao controle foi a tentativa
de alguns líderes da passeata de mudar o trajeto combinado e furar ou contornar o
bloqueio policial. A fase de contenção é preparada para quando a manifestação pode
evoluir a um tumulto. Nessa situação, a tropa de choque se posiciona de maneira
ostensiva para tentar dissuadir os manifestantes. Entre esse momento e os primeiros atos
de repressão, uma série de medidas dissuasórias deve ser empregada.
Segundo José Inácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), reclamações sobre o uso abusivo da força policial
durante manifestações são comuns no mundo todo. “É importante que fique claro
apenas uma questão: a primeira abordagem policial tem de ser sempre pacífica, a
tentativa de ganhar os manifestantes pela conversa, pela negociação.” Um histórico de
manifestações anteriores não deve justificar ações açodadas. “A polícia não pode dar
início a uma ação repressiva com base em algo anterior. Assim como tem o direito de
usar a força, o policial é profissional e deve ser treinado para não agir no impulso.”
(des)preparo — “O policial precisa ser mais bem treinado, precisa de educação
continuada e de socialização. Infelizmente, isso ainda não atinge aquele policial que está
na linha de frente”, diz Maria Stela. Uma medida relativamente simples de
aprimoramento, testada em outros países e ainda de maneira incipiente no Brasil, é a
criação de relatórios diários. Em linhas gerais, isso significa que o policial, após um dia
de trabalho, deve relatar por escrito o que aconteceu e como atuou em cada ocorrência.
“Esse é um caminho eficiente, usado em países estrangeiros, para que o policial reflita
sobre seus atos e tenha um retorno sobre se agiu, ou não, corretamente.”
Recomendações da Anistia Internacional
Facilite manifestações públicas pacíficas
É direito legítimo das pessoas se manifestarem publicamente. A função da polícia é
facilitar e não coibir a marcha. Em casos de manifestações não violentas, mesmo
aquelas que não respeitem às leis, a polícia deve evitar o uso da força. Se inevitável para
assegurar a segurança, deve-se usar o mínimo de força necessária.
Proteja manifestações pacíficas
Violações menores da lei, como pequenos danos à propriedade, devem ser investigadas
e, eventualmente, responsabilizadas. Elas não devem, entretanto, levar à dispersão da
manifestação. A decisão de se dispersar a marcha deve ser tomada com base em
princípios de necessidade e proporcionalidade — apenas quando não há outra maneira
de se proteger o público de uma onda de violência eminente. Em locais onde minorias
tentam transformar uma manifestação pacífica em violenta, os policiais devem proteger
os manifestantes pacíficos.
Reduza situações de tensão e violência
A comunicação com a organização do movimento deve criar um vínculo de
compreensão mútua e prevenir a violência. Em locais nos quais casos de violência são
muito prováveis, a comunicação se torna ainda mais importante. Quando a decisão de
dispersar a multidão é tomada, essa ordem deve ser claramente comunicada e deve-se
dar tempo suficiente para as pessoas se dispersarem.
Use a força policial apenas para manter a lei
A força não deve ser usada para punir participantes que não cumpriram ordens ou contra
aqueles que simplesmente participam da manifestação. Prisões devem ser feitas de
acordo com os procedimentos previstos em lei, e não devem ser usadas como
mecanismo para evitar a participação na marcha ou como punição.
Minimize os danos, preserve e respeite a vida e proteja aqueles não envolvidos
Armas de fogo não devem ser usadas para dispersar uma multidão. Cassetetes e armas
de baixo impacto não devem ser usadas contra pessoas que não são agressivas ou que
não apresentam ameaça. Quando o uso dessas armas for necessário, os policiais não
devem causar sérios ferimentos e evitar lesionar partes vitais do corpo. Produtos
químicos irritantes, como gás lacrimogênio, não devem ser usados em ambientes
fechados ou de uma maneira que possa causar danos permanentes.
Seja responsável com a população e o judiciário
Qualquer uso de força durante uma manifestação deve ser motivo de análise e, quando
apropriado, de sanções disciplinares e criminais. Reclamações contra a polícia devem
ser investigadas de maneira imparcial.
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