INTENSIVO III ESTADUAL E FEDERAL
Disciplina: Filosofia do Direito
Prof.: André Gualtieri
Data: 20.03.10
Aula: 03
MATERIAL DE APOIO – PROFESSOR
1- Metodologia tradicional da interpretação do direito
Demolombe:
“Os textos antes de tudo. Interpretar é descobrir o sentido exato e verdadeiro da lei. Não é modificar,
inovar, mas declarar, reconhecer.”
Savigny:
“A interpretação é a reconstrução do pensamento inerente à lei.”
2- John Rawls: as dificuldades do juízo e o desacordo razoável
O “desacordo razoável” ocorre em virtude de um conjunto de fatores com os quais nos deparamos quando
procuramos avaliar algum assunto uns com os outros. Esses fatores são o que Rawls chama de “as dificuldades do juízo”. Elas são a fonte do desacordo razoável, pois prejudicam o correto exercício de nossas
capacidades de raciocínio e julgamento no curso normal da vida, limitando nossos juízos de racionalidade.
Rawls apresenta a seguinte lista de dificuldades do juízo:
a. A evidência – empírica ou científica – relacionada ao caso é conflitante e complexa e, por isso, difícil de
avaliar.
b. Mesmo quando concordamos inteiramente com os tipos de consideração que são relevantes, podemos
discordar a respeito de sua importância e, assim, chegar a julgamentos diferentes.
c. Numa certa medida, todos os nossos conceitos, e não só os conceitos morais e políticos, são vagos e
sujeitos a controvérsias, e essa indeterminação significa que devemos confiar em nosso julgamento e interpretação dentro de certos limites, nos quais pessoas razoáveis podem discordar.
d. Numa certa medida (não podemos dizer em que grau), nossa forma de reconhecer evidências e pesar
valores morais e políticos é moldada por toda a nossa experiência, por todo o curso de nossa vida até o
momento; e nossas experiências vão sempre diferir.
e. É freqüente haver diferentes tipos de considerações normativas de pesos diferentes em ambos os lados
de uma controvérsia, e é difícil fazer uma avaliação global.
f. Ao nos vermos forçados a escolher entre valores que prezamos, ou quando nos apegamos a muitos e é
necessário restringir cada um deles em vista das exigências dos demais, enfrentamos grandes dificuldades para estabelecer prioridades e fazer ajustes. Muitas decisões difíceis, portanto, parecem não ter uma
resposta clara.
Conclusão: muitos de nossos mais importantes julgamentos são feitos em condições nas quais não se
deve esperar que pessoas no pleno exercício de suas faculdades racionais, mesmo depois de discussão
livre, cheguem à mesma conclusão.
“É pouco realista, ou pior ainda, desperta suspeita e hostilidades mútuas, pensar que todas as nossas
diferenças derivam exclusivamente da ignorância e da perversidade, ou de rivalidades pelo poder, status
ou ganhos econômicos”.
3- Lógica do Razoável
3.1.
A LÓGICA DO RAZOÁVEL E O NEGÓCIO JURÍDICO: reflexões sobre a difícil arte de julgar.
INTENSIVO III – Filosofia do Direito – André Gualtieri – Aula 03 – 20.03.10
ADAUTO DE ALMEIDA TOMASZEWSKI
Professor de Direito Civil da Universidade Estadual de Londrina/PR; Professor de Direito Civil da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná – Campus Londrina; Professor de Direito Civil da Universidade Metropolitana de Londrina; Professor de Direito Civil da UNIPAR – Campus de Paranavaí; Professor do Curso de
Mestrado em Direito Contemporâneo e Cidadania da UNIPAR de Umuarama/PR; Mestre em Direito Civil
pela Universidade Estadual de Londrina/PR; Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC/SP.
“Eu não recearia muito as más leis se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não
deixe campo à interpretação. A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela.” ANATOLE FRANCE
Prólogo
A primeira grande consideração acerca do tema, perpassa pela discussão travada na Alemanha, entre dois
de seus grandes juristas Thibaut e Savigny. Esta discussão girava em torno da codificação ou não do Direito Civil alemão. Savigny entendia que não era conveniente codificá-lo pois isto conduziria a um engessamento e dificultaria o regramento que a dinâmica da vida em sociedade exige. Com isto, ficaria difícil
incorporar as modificações da sociedade.
Em nome da segurança das relações jurídicas, Thibaut ferrenhamente defendia a codificação e em 1896 a
Alemanha foi presenteada com o Bürgerliches Gesetzbuch – BGB, o livro de leis do cidadão, que depois de
uma enorme vacatio legis, 4 anos, entrou em vigor em 1900.
A discussão sobre codificar ou não já é superada hodiernamente, mas é necessário ressaltar que os Códigos da época de 1800, caracterizados como um sistema rígido e fechado, absolutamente impermeáveis às
alterações econômicas e sociais não são mais viáveis. Por isto, tornou-se necessária uma forma diferenciada de codificação: nem fechado nem aberto demais, mas com certa mobilidade.
Esta mobilidade tem o escopo de proporcionar uma maior aplicação e interpretação das cláusulas gerais.
Aliás, são exatamente estas cláusulas que garantem a sobrevivência e a atualidade do BGB, diga-se de
passagem, um dos mais perfeitos códigos do mundo.
A despeito de não se discutir mais a questão da codificação, um ponto ainda premente é no que tange à
forma que se codificou o Direito Civil. Desta maneira, nosso legislador superou as discussões acerca da
viabilidade ou não de pequenas codificações ou a elaboração de um grande documento tornado “aberto”
por intemédio de conceitos legais indeterminados, de conceitos indeterminados pela função e por cláusulas gerais, já delineadas por renomados doutrinadores.
O Direito não tem como acompanhar o ritmo de relações que ocorrem diuturnamente na sociedade com a
mesma velocidade. Assim, não será mais admissível que o legislador possa pensar em normas que definam de forma precisa, certos pressupostos e condutas e consiga antever suas conseqüências num sistema fechado. Um sistema sem mobilidade pode até conferir mais segurança às relações jurídicas, mas pode mais facilmente trazer injustiças.
Desta forma o que mais atende o que a sociedade espera é um sistema permeável, misto. Com isto, a
utilizada técnica flexibiliza a rigidez dos institutos jurídicos e das regras de Direito positivado.
Na medida em que foram adotadas as CLÁUSULAS GERAIS, de uma forma bastante genérica, abstrata e
cujo conteúdo de não exatidão deixa o sistema de tal forma liberal, isto proporciona ao magistrado a autonomia para colmatar seu conteúdo. Um bom exemplo disto está no texto do artigo 21 do vigente Código, determinando que a requerimento do interessado, o juiz adotará as providências necessárias. Ora, o
leitor questionará: Quais providências? Não se sabe. A cada caso submetido à apreciação, caberá ao julgador identificar e buscar uma maneira de trazer a solução da maneira mais concreta.
Com relação às CLÁUSULAS GERAIS, por meio de criteriosa análise identificamos que o novo Código está
repleto delas, caracterizadas como fonte de direito e obrigações. Devemos conhecê-las e reconhecê-las
para podermos entender o funcionamento e o regramento deste Código. Assim, poderemos encontrar as
soluções que o Direito Privado reclama.
Para tanto, é necessário destacar que existe uma enorme interação entre cláusulas gerais, princípios gerais de direito, conceitos indetermindos e conceitos determinados pela função.
Os princípios gerais de direito são regras de conduta que norteam a atividade jurisdicional no momento da
interpretação da norma ou do negócio jurídico. Auxiliam o magistrado no preenchimento das lacunas e
estão inclusive explicitados na Lei de Introdução ao Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
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Os preceitos do Direito Romano, honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere, são os primórdios destes princípios.
Deste modo, cláusulas gerais são normas orientadoras sob a forma de diretrizes para o juiz. Ao mesmo
tempo que o vinculam, dão-lhe liberdade de decidir. São formulações de caráter genérico e abstrato, distintas dos conceitos legais indeterminados, pois estes já contêm a solução pré-estabelecida.
Nas cláusulas gerais, o julgador encontra campo para formular a solução que lhe parecer mais correta,
concretizando os princípios gerais de Direito e da razoabilidade.
Um marcado exemplo encontra-se no artigo 421 do atual Código, pois a solução não está na lei. Esta somente prevê o preceito, o reflexo da incidência da norma está reservado ao magistrado.
Dentre outras várias hipóteses, destaca-se ainda o contido no artigo 187, pois o fim econômico ou social
exige do magistrado uma atividade ímpar, de forma a compor o conteúdo da norma com a realidade social em que está inserido e principalmente no tempo em que está inserido.
Com relação aos conceitos legais indeterrminados, podemos entendê-los como palavras ou expressões
indicadas por lei, de conteúdo e extensão bastante vagos, genéricos e imprecisos. Portanto, lacunosa é a
sua conceituação, a exemplo da função social do contrato. No dizer de Nelson Nery Jr., como estão sempre relacionados à hipótese de fato posta para o deslinde da questão, fazem com que o juiz, naquele silogismo, ao subsumir o fato à norma, diga se esta é ou não aplicável. Uma vez amoldado o fato ao conceito
legal indeterminado, a solução já está pré-estabelecida na própria norma, de sorte que ao juiz restará
apenas aplicá-la a partir daí, sem nenhuma função criadora. A resolução do contrato, no artigo 478 do
vigente Código é um bom exemplo.
Com base nestas pequenas implicações, foi possível inferir que o pensamento de Luis Recaséns Siches
tem campo ainda mais fértil a partir do atual Código, especialmente no que tange ao negócio jurídico,
com seus requisitos e patologias.
Desta forma, para uma melhor colocação do tema proposto, impende trazer à colação dois exemplos sobre o fracasso da lógica formal e a necessidade do “razoável” na interpretação do Direito. Para isto, Radbruch1 relata um caso no qual, em uma estação ferroviária da Polônia, havia um cartaz proibindo a entrada de pessoas acompanhadas de cachorros. Sucede-se, entretanto, que certa vez chegou àquele recinto,
um homem acompanhado de um urso. Ato contínuo, o empregado que vigiava a porta lhe impediu o acesso. O indivíduo protestou, afirmando que o regulamento transcrito no cartaz proibia somente cachorros, mas não outra classe de animais. Surgiu então um conflito em torno da interpretação daquele regulamento.
Não resta a menor dúvida que se aplicarmos estritamente os instrumentos da lógica tradicional, teremos
que reconhecer que à pessoa acompanhada de um urso era dado o direito de adentrar ao recinto.
Também o leigo, e não somente o jurista, haverá de concordar como era descabida esta interpretação,
dada a finalidade para qual a norma foi elaborada, qual seja, a segurança dos visitantes e transeuntes
daquele ambiente.
Disto resulta que somente a lógica tradicional, não contendo caracteres valorativos não é suficiente. Requer-se portanto, razões diferentes do racional de tipo matemático, porque a razão não se exaure no
campo tradicionalmente conhecido como racional, uma vez que existem outros campos, diferentes, como
o razoável, o logos do humano.
À vista daquela proibição contida no cartaz já mencionado, podemos afirmar com segurança que a razão
de sua elaboração está intimamente ligada à idéia de que, ainda que em alguns casos tratem-se de cães
dóceis, estes podem tornar-se perigosos conforme a situação. Demais disto, ainda existe certamente a
preocupação com o barulho, sujeira, zoonoses e mais uma série de fatores conexos.
Neste diapasão, maior risco correriam as pessoas se lá adentrassem ursos, o que resulta dizer que a validade das normas jurídicas positivas estão necessariamente condicionadas pelo contexto “situacional” em
que se produziram e para o qual se produziram.
Noções preliminares acerca da Lógica do Razoável
Com o advento da lei francesa 16, de 24 de agosto de 1790, que impunha ao juiz o dever de motivar a
sentença, surgiu o interesse pela interpretação jurídica.
A Revolução Francesa, marcada pela vitória da burguesia, trouxe uma nova tendência que tomou conta do
pensamento jurídico, qual seja, a preservação dos direitos individuais, limitados apenas pela norma, expressão dos ideais coletivos.
1
GUSTAV RADBRUCH, Grundzüge der Rechtsphilosophie, 1914, apud Luis Recaséns Siches, Experiencia Jurídica, naturaleza de
la cosa y lógica “razonable”, p.645.
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Se de um vértice verificou-se um extremado apego ao texto legal, no que se referia à interpretação e aplicação do Direito, de outro, foi imposta ao Judiciário a proibição de participar na criação jurídica, por ser
atividade exclusiva do Legislativo, como órgão representante da vontade popular.
A este particular, impende trazer à colação, as lúcidas palavras de Demolombe2:
“Os textos antes de tudo. Interpretar é descobrir o sentido exato e verdadeiro da lei. Não é modificar,
inovar, mas declarar, reconhecer”.
Decorrente deste pensamento, surge a concepção mecânica da função jurisdicional, de sorte que a sentença era considerada um ato meramente mecânico; um simples exercício de lógica dedutiva, destituída
de qualquer elemento valorativo e alheia à realidade dos fatos.
Nesta esteira, a decisão proferida ou prolatada pelo julgador, seria então assemelhada à construção de
um mero silogismo, em que a lei seria a premissa maior; a premissa menor, o caso concreto apresentado
à apreciação; e, a conclusão, o “decisum”.
Das transformações verificadas no seio da sociedade, motivadas sobretudo pela Revolução Industrial e
que alteraram sensivelmente as relações, surgiram ferrenhas críticas contra essa concepção, reclamando
uma melhor adequação da lei à existência concreta, fazendo surgir novas posturas interpretativas.
Multiplicaram-se então as escolas e os métodos de interpretação, de sorte que em 1926 Recaséns Siches3, professor da Universidade Nacional Autônoma do México, freqüentou um curso na Universidade de
Viena, onde o professor era Fritz Schreir, discípulo de Kelsen e Husserl. Neste curso, foi-lhe apresentada
uma análise de todos os métodos de interpretação de que se tinha conhecimento. O objetivo básico era
encontrar os critérios de eleição dos referidos métodos, mas o que restou foi uma decepção, pois não havia nenhuma razão justificada, em termos gerais, para preferir-se um método em detrimento dos outros.
É pertinente, a esta altura, ressaltar que Luís Recaséns Siches nasceu na Espanha em 1903, onde fez os
seus estudos universitários no período compreendido entre 1918 a 1925. Não destoando daqueles jovens
acadêmicos que pretendem alçar vôos maiores, avançou além do programa curricular, começando a desvendar, sozinho, os primeiros horizontes do pensamento jurídico, apaixonando-se pela Filosofia do Direito.
Nos seus estudos de pós-graduação, foi discípulo de renomados mestres, como Giorgio Del Vechio, em
Roma, Rudolf Stanmmler, Rudolf Smend e Hermann Heller em Berlim, Hans Kelsen, Felix Kaufmann e
Fritz Schrgirer em Viena, que inegavelmente eram os maiores expoentes do pensamento jurídico da época. Inegavelmente ainda hoje, direta ou indiretamente, continuam orientando as linhas mestras da Filosofia do Direito.
Durante o tempo em que foi professor da “Graduate Faculty” da “New School for Social Research”, em
Nova York, no período de 1949 a 1954, e da escola de Direito da “New York University”, entre 1953 e
1954, bem como de outras universidades norte-americanas, influenciado diretamente com o pensamento
jurídico anglo-saxão, desenvolveu algumas idéias sobre a interpretação do Direito, a dupla dimensão circunstancial de todo Direito positivo, a lógica do humano e o caráter criador da função judicial.
Alguns anos antes, Benjamin Cardoso4, ao analisar suas experiências jurídicas, já procurava saber quais
eram os métodos que se empregava na interpretação do Direito positivo vigente. Basicamente concluiu
que primeiro se buscava a solução mais justa e depois se preocupava encontrar, dentre os métodos de
interpretação, o que melhor serviria para justificar esta decisão.
Para superar este dilema, Recaséns Siches, então retornando às cátedras da Universidade Nacional Autônoma do México, apresentou suas idéias em livro, defendendo o emprego de um só método, o da LÓGICA DO RAZOÁVEL, definida como uma razão impregnada de pontos de vista estimativos, de critérios de
valorização, de pautas axiológicas, que além de tudo traz consigo os ensinamentos colhidos da experiência própria e também do próximo através da história5.
Segundo a intenção de emprego deste método, como único, poderia o intérprete deixar de lado, de uma
vez por todas, a referência à pluralidade de diferentes formas de interpretação, fosse literal, subjetivoobjetivo, consuetudinário, histórico, analógico, por eqüidade, etc...
2
In LÍDIA REIS DE ALMEIDA PRADO, Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do Direito, apud BEATRIZ
DI GIORGI; CELSO FERNANDES CAMPILONGO e FLÁVIO PIOVESAN, Direito, Cidadania e Justiça. São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 1995, p. 62.
3
LUIS RECASÉNS SICHES, Tratado General de Filosofia del Derecho, México, Ed. Porrua, 1959, p. 630-631.
4
Apud BEATRIZ DI GIORGI; CELSO FERNANDES CAMPILONGO e FLÁVIO PIOVESAN, op. cit. p. 64.
5
O texto original encontrado na obra Tratado General de Filosofia del Derecho, à página 642, é do seguinte teor: “La lógica de lo
humano o de lo razonable es una razón impregnada de puntos de vista estimativos, de critérios de valorización, de pautas axiológicas, que además leva a sus espaldas como allecionamiento las ensinanzas recebidas de la experiencia, de la experiencia propia o de
la experiencia del próximo através de la história”.
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Recaséns Siches defendia então que, assim como a Ciência Jurídica, a Filosofia do Direito não tinha condições de escolher um método ou uma tábua de prioridades entre os vários métodos de interpretação.
Decorre daí, que a única regra que se poderia formular, com universal validade, era a de que o juiz sempre deveria interpretar a lei de modo e segundo o método que o levasse à solução mais justa dentre todas
as possíveis.
Defendia ele que esta atitude não se consubstanciaria em desrespeito à lei, porque segundo seu pensamento, ao legislador cabe emitir mandamentos, proibições, permissões, mas não lhe compete o pronunciamento sobre matéria estranha à legislação e referente apenas à função jurisdicional. Quando o legislador
ordena um método de interpretação, quando invade o campo hermenêutico, esses ensaios científicos colocam-se no mesmo plano das opiniões de qualquer teórico e não têm força de mando.
É bem verdade que Alessandro Gropalli6 defende posição contrária, por entender que “as normas de interpretação da lei, mais do que simples critérios dirigidos ao prudente arbítrio dos magistrados, representam verdadeiras normas jurídicas, que, por isso, vinculam a sua atividade lógica e vontade, indicandolhes os meios de adotar e os fins a conseguir”
Para Siches, ao contrário do que ocorre com a lógica da inferência, de caráter neutro e explicativo, a lógica do razoável procura entender os sentidos e nexos entre as significações dos problemas humanos, e
portanto, dos políticos e jurídicos, assim como realiza operações de valoração e estabelece finalidades ou
propósitos7.
Destarte, não interessaria ao juiz e mesmo ao legislador, a realidade pura, mas sim, decidir sobre o que
fazer diante de certos aspectos de determinadas realidades, de sorte que este método seria o correto para a função jurisdicional.
Segundo o mesmo autor, o legislador opera com valorações sobre situações reais ou hipotéticas, em termos gerais e abstratos, de forma que o essencial em sua obra não reside no texto da lei, mas nos juízos
de valor adotados como inspiradores da regra de Direito.
No que tange à atividade do magistrado, especialmente a sentença, é essa também fruto de estimativa,
pois o juiz para chegar à intuição sobre a justiça do caso concreto, não separa sua opinião sobre os fatos
das dimensões jurídicas desses mesmos fatos. Pois “a intuição é um complexo integral e unitário, que
engloba os dois aspectos: ‘fatos’ e ‘Direito’.”8
A este particular, o referido autor formula as seguintes observações: primeiramente entende que a intuição do juiz acha-se embasada na lógica do razoável e que, quando se fala que o juiz procura uma justificativa para o que pressentiu intuitivamente, isto não significa que deva recorrer àquelas pseudomotivações lógico-dedutivas, de que se serviram os juristas no século XIX, bastando oferecer uma justificação objetivamente válida, com embasamento na lógica do humano.9
Isto faz com que a função do juiz, embora mantendo-se dentro da observância do Direito formalmente
válido, seja sempre criadora, por alimentar-se de um amplo complexo de valorações particulares sobre o
caso concreto.
Não se trata, contudo, de Direito Alternativo, muito menos do uso alternativo do Direito, porquanto aqui,
trata-se de que o julgador se valha, ao intuir a solução mais justa aplicável ao caso concreto, dos métodos tradicionais de interpretação para justificar a sua tomada de decisão.
Recaséns Siches explica ainda que a estimativa jurídica informa ao intérprete sobre quais são os valores
cujo cumprimento deve ou não ser perseguido pelo Direito, tais como justiça, dignidade da pessoa humana, liberdades fundamentais do homem, segurança, ordem, bem-estar geral e paz. Mas há outros que
podem ser englobados no conceito do que tradicionalmente se denomina prudência: sensatez, equilíbrio,
possibilidade de prever as conseqüências da aplicação da norma e de sopesar entre vários interesses contrapostos, legitimidade dos meios empregados para atingir fins justos, etc.
No intuito de concluir, Siches salientou que a Lógica do Razoável está sempre impregnada por valorações,
ou seja, critérios axiológicos. Esta característica valorativa é totalmente estranha à lógica formal ou qualquer teoria da inferência, constituindo um dos aspectos que, definitivamente, distingue a lógica do razoável da lógica matemática.
Para o citado autor, a lógica formal não esgota a totalidade do “logos”, da razão, é apenas um setor dela.
Existem outros setores que pertencem igualmente à lógica, que possuem natureza completamente diver6
ALESSANDRO GROPALLI, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 1978, p. 230. apud J. B. HERKENHOFF, Como aplicar o Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 61.
7
RECASÉNS SICHES, Nueva filosofia de la interpretación del Derecho, Editorial Porrua, AS, México, 1973 p. 281.
8
RECASÉNS SICHES, op. cit. p. 243.
9
Op. cit. p. 247.
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sa da lógica do racional, que é a lógica dos problemas humanos de conduta prática, a “lógica do razoável”.
Resta claro, então, que Luís Recaséns Siches é o catalisador, na ciência jurídica latino-americana, das
novas teorias em matéria de hermenêutica do Direito. Ao se referir ao festejado autor, Luis Fernando Coelho10 assim se expressou: “estas teorias que se afastam da silogística e da concepção subsuntiva da decisão judicial, fundamentam-se na prudência, na eqüidade e no sentimento do justo, ubicados no equilíbrio
da dimensão humana, que o autor denomina o razonable, em oposição ao racional. As decisões jurídicas,
antes de serem racionais, segundo a perspectiva lógico-subsuntiva, são razoáveis. A este novo pensamento, vinculado à dimensão humana, é que se denomina o logos do razoável.”
A lógica do razoável está exposta em três obras principais: “Tratado Geral de Filosofia do Direito”, “Nova
Filosofia da Interpretação do Direito” e “Experiência Jurídica, Natureza das Coisas e Lógica do Razoável, já
mencionadas em título original nas citações anteriores.
Fica patente que a preocupação inicial de Luís Recaséns Siches é a localização do homem dentro do universo. Em função disto, resulta que “o homem não é natureza física e biológica, mas tem natureza biológica e psicológica; vive na natureza e com a natureza que o circunda. Acha-se pois condicionado por leis
físicas, biológicas e psíquicas, mas elas não exaurem a sua natureza toda, pois o homem possui algo de
que o mundo físico carece; o comportamento humano é consciente e tem um sentido, uma significação
que não existe no setor extra-humano, e por isso, esse comportamento é diferente de uma estrela ou
pedaço de natureza.” 11
Segundo o renomado autor, o homem é livre arbítrio e age dentro do campo limitado pela circunstância
do meio em que vive. O reino do humano é sempre campo da ação, onde o sujeito decide dentro de uma
certa margem de liberdade.
Siches observa que em todos os casos, em que os métodos de lógica tradicional se revelam incapazes de
oferecer a solução correta de um problema jurídico ou conduzem a um resultado inadmissível, a tais métodos não se deve opor um ato de arbitrariedade, mas uma razão de tipo diferente, que aliás, ORTEGA Y
GASSET12 explica que: “razão no verdadeiro sentido, é toda ação intelectual que nos põe em contato com
a realidade, por meio da qual, deparamo-nos com o transcendente.”(sem destaque no original)
Na lição de Luís Fernando Coelho13, Recaséns Siches parte das teorias de Scheller e Hartmam, de
sorte que a principal preocupação é a conciliação da objetividade dos valores jurídicos, com a historicidade dos ideais jurídicos, a qual decorre de cinco fatores:
“- a mutabilidade da realidade social;
- a diversidade de obstáculos para materializar um valor em determinada situação;
- a experiência quanto à adequação de meios para materializar um valor;
- as prioridades emergentes das necessidades sociais, em função dos acontecimentos históricos; e,
- a multiplicidade dos valores.“
Fica bastante claro que o ponto de partida para a teoria do comportamento humano e a hermenêutica de
Recaséns Siches é o seguinte fato: os homens discutem, argumentam, pesam suas razões, ponderam,
deliberam sobre os problemas de seu comportamento prático, em debates que se travam à luz de determinados critérios estimativos. Isto ocorre, pois os homens querem solução para seus problemas de existência; as soluções que os homens encontraram para o seu comportamento prático não trazem em regra,
a marca da verdade, da mentira ou da falsidade, do notoriamente errado ou certo, do absolutamente bom
ou do mau, mas que basicamente estes consideram as mais justas, convenientes, adequadas, apropriadas, sensatas, eficazes, viáveis, prudentes, embora possam ser opostas à verdade e ao bem.
A solução, então, é RAZOÁVEL, “não importando se é racional ou não, isto é secundário; a solução razoável é a solução humana, embora nem sempre racional”, como lucidamente afirma Luis Fernando Coelho14.
Aliás, prossegue afirmando que “a lógica do racional não é a lógica toda, somente uma parte dela, pois
existe outra, a do logos do razoável”. Impende ressaltar aqui a justeza da medida derivada desta “intuição” do julgador em cada caso concreto submetido à sua apreciação..
Isto se explica na medida em que o que se sucede é que as leis não se aplicam sozinhas, por si mesmas,
decorrente de um mecanismo intrínseco que elas tivessem, pois nem remotamente existe tal mecanismo.
As leis têm seu âmbito de império, dentro do qual figura um aspecto material, relativo ao conteúdo, ou
10
LUIS FERNANDO COELHO, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 211.
LUIS FERNANDO COELHO, op. cit. p. 211.
12
ORTEGA Y GASSET, apud Recaséns Siches, op. cit. p. 133/134.
13
Op. cit. p. 212.
14
Op. cit. p. 214.
11
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seja, cada norma jurídico-positiva se refere a uns determinados tipos de situações, de assuntos, de fatos
ou de negócios jurídicos, sobre os quais trata de produzir especiais efeitos; efeitos que o legislador, portanto, autor da norma, considerou justo, adequado e pertinente. Deve haver alguém que declare qual é a
norma aplicável ao caso concreto, como é aplicável esta norma e com qual alcance. Este alguém é o juiz,
na sua função interpretativa e agora privilegiado com as cláusulas gerais, com os conceitos legais indeterminados e conceitos legais indeterminados pela função.
Desta forma e além disto, na sua atividade jurisdicional, o julgador, indagando-se qual a norma aplicável,
não se deve guiar somente por critérios formais, mas também, materiais. Portanto, para saber se uma
determinada norma jurídica é aplicável ou não a certo caso concreto e em que medida, deve antecipar
mentalmente os efeitos que esta aplicação haverá de produzir, como magistralmente defende Recaséns
Siches.
Isto significa dizer que tal atividade conduz à interpretação da lei, precisamente do modo que leve a uma
conclusão mais justa para resolver o problema no caso em análise. Ao fazer isto, não significa dizer que o
julgador se distancie de seu dever de obediência ao ordenamento jurídico positivo, mas dá a este mister
um mais perfeito cumprimento, dado que o legislador, em seu labor, o faz, de regra, com a melhor maneira possível de atender as exigências da justiça e os anseios dos jurisdicionados.
Destarte, se o juiz ou julgador trata de interpretar tais regramentos de modo que o resultado traga ao
caso apresentado o maior grau de justiça, não faz nada além do que se propôs o legislador. Servindo ao
mesmo fim, interpretar, reconstruir intuitivamente na sua imaginação, qual é a autêntica vontade do legislador e se os métodos aplicáveis produzem ou não uma solução justa.
Diante de tal argumentação, atribui-se crédito a tal teoria, não somente porque é da lavra de renomado
autor, mas também porque o Direito não é algo estático, estanque, de sorte que o seu funcionamento não
pode consistir apenas numa operação de lógica dedutiva.
É evidente que as atuais normas jurídicas, reformadoras de velhas instituições, bem como criadoras de
outras, não podem e não devem ser entendidas como resultantes de um processo dedutivo, pois existe
algo além, que é a consciência valoradora.
Destarte, o “logos” do razoável constitui a lógica que serve ao homem. Não está destinada a explicar, mas
sim, compreender e penetrar o sentido dos objetos humanos. Está voltada para a adequação das soluções aos casos reais, ainda que de forma irracional, pois assim como o próprio Direito, é fruto da concepção humana, que tem por fim a realização de certos valores. Embora originando-se indiretamente de fatos, transcende às fronteiras fáticas, devendo ser visto numa noção de conjunto. Ademais, tem por objetivo a compreensão do sentido e nexos entre as significações, a fim de realizar operações valorativas,
fixando finalidades e propósitos, pois o fato humano não se restringe apenas à causa e efeito, eis que
tem um algo a mais, um sentido.
Este sentido se explica na multiplicidade de fatores que intervêm na vida humana, obrigando especialmente o julgador, que trata os conflitos humanos, a interpretar os sentidos e significações legais, pois,
efetivamente, verifica-se que a atividade do legislador estava muito apartada da realidade.
Com o advento deste novo Código, a despeito de algumas fundadas críticas, outras desprovidas de suporte, podemos perceber a intenção do legislador, certamente influenciado pelo culturalismo de Miguel Reale,
de tentar aproximar mais a sua função legislativa e a jurisdicional, dos anseios dos jurisdicionados.
Nem se discute da possibilidade, como defendem alguns autores, de que o legislador somente labora para
o futuro, como norte ou referencial para a sociedade, pois em muitos casos encontramos injustificáveis
equívocos.
A este particular, impende trazer à colação, o artigo 21 do Código Civil Mexicano, contido nas Disposições
Preliminares, que tem a seguinte disposição:
“La ignorancia de las leyes no excusa su cumplimento; pero los jueces teniendo en cuenta el notorio
atraso intelectual de algunos individuos, su apartamiento de las vías de comunicación o su miserable
situación económica, podrán, si está de acuerdo el Ministerio Público, eximir-los de las sanciones en que
hubieren incurrido por la falta de cumplimiento de la ley que ignoraban, o de ser posible, concederles un
plazo para que la cumplan; siempre que no se trate de leyes que afecten directamente al interés público.”
Evidentemente, ainda que a regra ditada no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil15 esteja a serviço da segurança das relações, em muitos casos isto não coaduna com a realidade e com o caso concreto
pendente de julgamento, em que a aplicação do texto da lei poderia conduzir a uma injustiça, não sendo
destarte “razoável”.
15
Art. 3º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
INTENSIVO III – Filosofia do Direito – André Gualtieri – Aula 03 – 20.03.10
Nesta esteira, isto comportaria uma hipótese: suponhamos um indivíduo que sempre viveu em uma região da selva amazônica, com parcos recursos e raros contatos com aquelas comunidades ribeirinhas, onde
precariamente aprendeu a “desenhar” seu próprio nome. Este indivíduo é preso em flagrante ao derrubar
determinada espécie de árvore para fazer uma canoa, imitando o que sempre viu seu avô e seu pai fazerem. Em um país de dimensões continentais como este, composto em grande parte de sua população, de
analfabetos ou semi-analfabetos, seria “justa” sua reclusão, dado o fato típico praticado? O mesmo não
poderia acontecer com um indivíduo no sertão nordestino? Será que todos os profissionais do Direito,
seus operadores, têm pleno conhecimento de todas as disposições editadas em sede de Medidas Provisórias?
Ao que parece, o legislador pátrio, quando da elaboração da regra constante no artigo 14, inciso I da Lei
9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, teve tal preocupação, ao “intuir” que no caso concreto
poder-se-ia verificar tal situação. Tanto é verdade, que a regra está assim disposta:
“Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena:
I – baixo grau de instrução ou escolaridade do agente.”
Aliás, tal medida somente vem a roborar o que já estava consagrado na âmbito do Direito Penal, no tocante à figura do Erro sobre a ilicitude do fato, explicitada no artigo 21 do Código Penal vigente:
“Art. 21 O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de
pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude
do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”
Ora, da mesma forma já abordada no tocante ao comentário do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código
Civil, o agente não pode pretender se livrar da responsabilidade penal, alegando simplesmente que ignorava a lei, pois para a segurança do sistema jurídico-penal, quando a lei entra em vigor, pressupõe-se ser
conhecida por todos. Daí o período destinado à sua divulgação.
Entretanto, é inegável que o legislador penal não se colocou em posição de cometer possíveis injustiças,
porque dentro de sua atividade, ao que se nos parece, não desconheceu ou desconsiderou a nossa realidade social, reafirmando o objeto de sua “intuição”, na regra do artigo 65 do mesmo diploma legal:
“Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
I - .....
II – o desconhecimento da lei.“
Evidentemente que a segurança das relações não pode coadunar com a simples alegação de desconhecimento, mas em casos especiais, pode-se conduzir a verdadeira injustiça. Muito certamente, o legislador
mexicano debruçou-se sobre sua realidade, sobre seus problemas sociais, reconheceu as deficiências e
deu margem ao julgador, de que em certos casos, poderia consultar o Ministério Público e aplicar à situação, a medida justa e razoável.
A Lógica do Razoável e a Interpretação
A interpretação das normas jurídicas incluem a referência a princípios axiológicos e a critérios valorativos,
os quais muitas vezes não estão expressos no texto da lei, o que resulta dizer, que um ordenamento jurídico positivo não tem como funcionar, atendendo-se única e exclusivamente ao que nele está formulado.
Destarte, torna-se mister recorrer a princípios ou critérios, que embora não formulados explicitamente,
são necessários, na medida em que o texto legal deva ser interpretado em função do propósito para o
qual fora emitido, sempre com relação ao sentido e o alcance dos fatos particulares em relação à norma.
Desta forma, a interpretação apenas literal, além de absurda, torna-se sem sentido, pois se está buscando uma interpretação, esta nunca poderá ser literal, ainda que realcemos a importância do caráter semântico como elemento facilitador de acesso à correta via de interpretação.
Não fosse somente por este particular, temos ainda que o sentido das palavras empregadas pode ser delimitado, de sorte que por mais que o legislador se esforce, na qualidade de transmissor, o receptor jamais conseguirá fixar de modo preciso, o sentido claro e inequívoco das palavras empregadas, o que se
deve basicamente à plurisignificação das palavras e também à mudança de sentido que estas sofrem através dos tempos.
Assim, Recaséns Siches aponta que o sentido de uma palavra ou frase, sobretudo nas normas jurídicas,
nunca está terminantemente definido nem completo. Muito pelo contrário, seu significado existe somente
em relação com a singular realidade do problema humano prático sobre o qual deva operar.
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Como o legislador ou o órgão jurisdicional, ao usar palavras e frases, dá o sentido atual que elas têm na
cultura de seu país, deve o julgador usar da atividade criativa do espírito para julgar com propriedade.
A Lógica do Razoável e a função legislativa
Como já mencionado alhures, na atividade de elaboração da norma, o legislador tem diante de si um enorme leque de opções e, por certo, deve escolher a que melhor se ajuste aos propósitos eleitos, no sentido de melhor adequação ao fato social gerado no seio da sociedade, que “requeira” e que justifique a
sua formulação.
Impende esclarecer que o termo “requerer” adredemente destacado, está intimamente ligado àquela crítica de que o legislador, em várias situações, estaria apartado da realidade.
Destarte, delimita então o campo axiológico, e, aplicando a Lógica do Razoável, deverá eleger valores que
interessem ao mundo jurídico. É bem verdade que existem alguns valores, como os religiosos, entendidos
como de superior hierarquia, que se realizam espontaneamente. Somente a título de ilustração, mister se
faz mencionar que os valores estéticos, tidos como de menor hierarquia, como o estabelecer distinção
entre o belo e o feio, não são relevantes.
O que importa ressaltar é que não se deve cogitar de hierarquia entre valores, pois este não é um critério
a ser seguido pelo legislador. A Justiça sim é um valor que sempre deve inspirar o legislador, já que entre
outras funções, ao Direito se designa a incumbência de garantir a realização de alguns valores e prestigiar
outros para a garantia da paz social.
Resulta disto que a atividade legislativa deve estar impregnada de critérios valorativos, mas que não podem ser fornecidos pela lógica formal, mas sim, pela lógica do humano, pela Lógica do Razoável.
A Lógica do Razoável e a função jurisdicional
Como visto no item retro, o legislador opera com valorações sobre os tipos de situações reais ou hipotéticas, valorações sobre gêneros ou espécies de situações, enquanto o Juiz, na sua atividade jurisdicional,
completa a obra do legislador. Isto porque em vez de avaliar os tipos de situações em termos de gênero e
espécie, avalia as situações individuais em termos concretos. Torna-se evidente então a incontestável
diferença entre a operação do julgador e a do legislador, pois o essencial na atividade do primeiro não é
necessariamente o texto da lei.
A despeito de colocado no presente opúsculo, de uma maneira bastante sintética, Recaséns Siches16 elabora um esquema das situações em que pode o juiz se encontrar, no mister de sua tarefa de prestação da
tutela jurisdicional, elaborando a norma individualizada, encontrada de maneira clara e precisa, também
na monografia de Lídia Reis de Almeida Prado:
“Situação 1 - Aparentemente existe uma norma vigente, aplicável ao caso em julgamento, de modo a lhe
produzir uma solução satisfatória. Mas, mesmo nesta situação, o magistrado realiza uma série de juízos
axiológicos: para encontrar a norma, para apreciar a prova e qualificar os fatos, e para adequar o sentido
abstrato e geral da norma à significação concreta do caso controvertido;
Situação 2 - Há dúvida sobre a qual das normas de mesma hierarquia, mas de conteúdo diferente, deve
ser aplicável ao conflito. Em tal hipótese, além das valorações referidas na "situação 1", o juiz, após analisar os resultados que cada uma dessas normas produziria, deve escolher aquela que conduz a uma solução mais justa;
Situação 3 - À primeira vista, o juiz, por se deixar influenciar por nomenclaturas e conceitos classificatórios contidos numa norma, pensa estar diante da regra que cobre o caso. Mas quando ensaia mentalmente a aplicação desta à controvérsia sub judice, percebe que a aplicação de tal norma à espécie, levaria a
uma conseqüência diversa ao resultado a que a norma propõe, ou seja, contrária aos efeitos que o legislador pretendeu ou que teria pretendido se tivesse em vista a controvérsia concreta da questão. Em tal
circunstância, o juiz deve afastar a norma aparentemente aplicável à espécie e considerar-se diante de
um caso de lacuna.
Situação 4 - Por mais que o juiz investigue, não contém o Direito positivo vigente uma norma aplicável
ao caso. Nessa situação, dá-se uma autêntica hipótese de lacuna.”17
16
LUIS RECASÉNS SICHES, Nueva filosofia de la interpretación del Derecho, Editorial Porrua, AS, México, 1973, p. 258 e
seguintes.
17
LÍDIA REIS DE ALMEIDA PRADO, apud Direito, Cidadania e Justiça – ensaios sobre lógica, interpretação, teoria, sociologia e
filosofia jurídicas RT, 1995, p. 71/72.
INTENSIVO III – Filosofia do Direito – André Gualtieri – Aula 03 – 20.03.10
Após a apresentação dessas situações, Siches adverte serem frutíferas para análise das situações "3" e
"4", algumas considerações sobre a eqüidade, que serão feitas no próximo item.
Como o processo de produção do Direito não se encerra com a promulgação da lei, mas sim no momento
de sua individualização, que é a fase concreta, pode-se afirmar que esta é a mais importante. Mesmo não
se verificando lacunas e contradições na lei, o órgão jurisdicional, no momento de julgar o caso concreto a
si apresentado, valora as provas e fatos aos autos carreados, qualificando-as de maneira jurídica e adaptando-as ao geral e abstrato sentido da lei. Isto o faz, porque ao se deparar com leis contraditórias, deverá optar por uma ou outra, e pautar-se por critérios de justiça, antecipando mentalmente os efeitos que
da aplicação da norma advirão e verificar se tais efeitos estão de acordo com os propósitos da lei. Nada
mais lógico e razoável do que isto.
A Lógica do Razoável e a eqüidade
A eqüidade deve ser considerada em toda extensão possível do termo e liga-se a três acepções intimamente correlacionadas no dizer de Alípio Silveira18, e que são as seguintes:
a) latíssima, o princípio universal da ordem normativa, a razão prática extensível a toda conduta humana como religiosa, moral, social, jurídica e outras, que configura-se como uma suprema regra de justiça a
que os homens devem obedecer;
b) lata, confundindo-se com a idéia de justiça absoluta ou ideal, com os princípios de Direito, com a idéia
do Direito, com o Direito natural em todas as suas significações;
c)
estrita, o ideal de justiça enquanto aplicado, ou seja, na interpretação, integração, individualização
judiciária, adaptação, etc. Sendo, nessa acepção empírica, a justiça no caso concreto.
A eqüidade, segundo Agostinho Alvim19, classifica-se em legal e judicial. Na primeira, seria a contida no
texto da norma, que prevê várias soluções, por exemplo, o artigo 10, §§ 1º e 2º, da Lei 6.515, de 26 de
dezembro de 197720. Todavia o leitor não deve deixar de consultar o vigente Código, acerca deste assunto, nos artigos 1.584 e 1586.
Torna-se evidente que ainda antes do advento do atual Código, o juiz ao aplicar tal preceito em benefício
das partes, sempre averiguava certas circunstâncias, como idade dos filhos, inocência ou não dos pais, e
outras. O mesmo se verificava nos artigos 145,II (impossibilidade do objeto), 219,I(insuportabilidade da
vida em comum), 395,I(castigo imoderado), 932(justo motivo), 956,§Único(inutilidade da prestação),
958(isenção de dolo), 971(fins imorais), 1002(má-fé), 1059(o que razoavelmente deixou de lucrar),
1183,III(injúria grave), 1300(aplicar toda a sua diligência habitual) e 1543(estimativa de afeição), todos
do Código Civil de 1916. Todavia, em todas estas situações, vê-se claramente um standard jurídico, e que
“há um apelo à eqüidade do magistrado, a quem cabe julgar do enquadramento ou não do caso, em face
das diretivas jurídicas”, no dizer de Limongi França.
Na segunda concepção do aludido autor, a judicial, podemos dizer que é aquela em que o legislador permite, explícita ou implicitamente ao julgador, no caso concreto, como no caso do artigo 1040, IV do Código Civil de 1916, que antes da revogação promovida por força da Lei 9.307/96, consistia na autorização,
dada aos árbitros para julgarem por eqüidade, fora das regras e formas de direito.
Na mesma esteira, a regra do artigo 1456 do aludido documento legal, estatuía que “no aplicar a pena do
art. 1454, procederá o juiz com eqüidade, atentando nas circunstâncias reais, e não em probabilidades
infundadas, quanto à agravação dos riscos”, e, do artigo 127 do Código de Processo Civil, que autoriza ao
julgador decidir por eqüidade nos casos previstos em lei.
Dos requisitos que Limongi França21 aponta, o que mais ressalta aos olhos quanto à pertinência deste trabalho, é no que tange à omissão, defeito ou acentuada generalidade da lei.
18
ALÍPIO SILVEIRA, apud Maria Helena Diniz, Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. São Paulo : Saraiva,
1994. P. 128.
19
AGOSTINHO ALVIM, in Maria Helena Diniz, op. cit. p. 129.
20
Art. 10. Na separação judicial fundada no caput do art. 5º, os filhos menores ficarão com o cônjuge que a ela não houver dado causa. § 1º Se pela separação judicial forem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficarão em poder da mãe, salvo se o juiz
verificar que de tal solução possa advir prejuízo de ordem moral para eles. §2º Verificado que não devem os filhos permanecer em
poder da mãe nem do pai, deferirá o juiz a sua guarda a pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos cônjuges.
21
LIMONGI FRANÇA, apud Maria Helena Diniz, Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. São Paulo : Saraiva,
1994. p. 130.
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A eqüidade é tradicionalmente vista como um método para colmatar, para corrigir a lei em sua aplicação
ao caso concreto, daí, a advertência de Recaséns Siches no sentido de ser indispensável a restauração da
autêntica perspectiva de eqüidade, que foi mostrada, entre outros, por Aristóteles e Cícero.
Para Aristóteles, a eqüidade consistia na expressão do justo natural em relação ao caso concreto, sendo
superior ao justo legal. Em outras palavras, a eqüidade é o autenticamente justo a respeito do caso particular. Observava Aristóteles que o erro resultante da aplicação da fórmula geral da lei a casos particulares
diferentes dos habituais por ela previstos, não é um erro que tenha praticado o legislador, não é um erro
que esteja na lei mas algo que decorre da natureza das coisas, porque a lei só pode reger universalmente.
Segundo Cícero, eqüidade não consiste em corrigir a lei na aplicação desta a casos, mas sim, na sua exata aplicação, precisamente de acordo com as verdadeiras vontades do legislador, acima da imprecisão das
palavras.
O que Siches22 extrai dos ensinamentos de Cícero e Aristóteles é que o legislador elabora suas normas
gerais tendo em vista as situações habituais. Quando se tratar de um caso que não pertença a esse campo de situações, como quando o caso se apresenta como um tipo diferente daqueles que serviram de motivação na elaboração da lei ou, se a aplicação da regra genérica ao caso produzir resultados opostos àqueles a que se propôs, então deve-se considerar aquela regra como não aplicável à espécie. E se não há,
na ordem jurídico-positiva, outra norma que sirva para resolver satisfatoriamente o caso, o juiz deve considerar-se como se estivesse diante de uma hipótese de lacuna.
Isto ocorre porque o problema de se decidir se uma norma jurídica é ou não aplicável a um determinado
caso concreto, não se resolve por procedimento de lógica dedutiva. Ao contrário, é um problema que se
pode solucionar somente por ponderação e estimativa dos resultados práticos que a aplicação da norma
produziria em determinadas situações reais.
Siches conclui que correto é o caminho de se considerar a eqüidade como um "procedimento-adaptação"
das normas jurídicas aos casos práticos, conjugando-as com as cambiantes necessidades da vida. No dizer de Lídia Reis de Almeida Prado23, a eqüidade não é um método de interpretação, mas o meio de interpretação, pois foi um antecedente, um pressentimento do "logos" do razoável em matéria da interpretação das normas jurídicas.
Maria Helena Diniz24, supeditando-se em Recaséns Siches, afirma que a eqüidade aparece na aplicação do
método histórico-evolutivo no que pertine a interpretação do Direito, pois preconiza a adequação da lei às
novas circunstâncias e do método teleológico, que requer a valoração da lei a fim de que o órgão jurisdicional possa acompanhar as vicissitudes da realidade concreta.
Desta forma, pela eqüidade, compreendem-se e estimam-se os resultados práticos que a aplicação da
norma produziria em determinadas situações fáticas; se o resultado prático concorda com as valorações
que inspiram a norma em que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Todavia, se ao contrário, a norma
aplicável a um caso singular produzir efeitos que viriam a contradizer as valorações, conforme as quais se
modela a ordem jurídica, então indubitavelmente, tal norma não deve ser aplicada a esse caso concreto, o
que resulta dizer que a eqüidade está consagrada como elemento de adaptação da norma ao caso concreto.
Na leitura, ainda que perfunctória da regra ditada no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vê-se
claramente que é possível corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. Destarte, a eqüidade seria
uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a
revolta dos fatos contra os códigos.
Por derradeiro a este tópico, convém ressaltar a posição de Vicente Ráo25 que apresenta três regras que
devem ser seguidas pelo magistrado ao aplicar a eqüidade:
“a) por igual modo devem ser tratadas as coisas iguais e desigualmente as desiguais;
b) todos os elementos que concorreram para constituir a relação sub judice, coisa ou pessoa, ou que, no
tocante a estas, tenham importância, ou sobre elas exerçam influência, devem ser devidamente considerados;
c) entre várias soluções possíveis deve-se preferir a mais humana, por ser a que melhor atende à justiça
“.(sem destaque no original)
A eqüidade, então, confere um poder discricionário ao magistrado, mas não uma arbitrariedade. É uma
autorização de apreciar, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo
22
op. cit. p. 264.
op. cit. p. 73.
24
op. cit. p. 131.
25
VICENTE RÁO, apud Maria Helena Diniz, op. cit. . p. 133.
23
INTENSIVO III – Filosofia do Direito – André Gualtieri – Aula 03 – 20.03.10
legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular. Um poder conferido ao
julgador para revelar o direito latente. Ora, como valer-se da eqüidade, aplicando-se a lógica do razoável,
sem considerarmos o poder de intuição do julgador?
Aplicações práticas
As aplicações em casos práticos são da mais variada natureza possível. Não somente naqueles casos já
suscitados, que de certa forma contestam a regra ou aplicação do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil mas que diuturnamente ocorrem.
Com específica relação aos negócios jurídicos, podemos arrolar como grandes exemplos, ainda que outros
possam ser alinhados, todas as disposições constantes do Livro III, Título I, Capítulo IV, dos defeitos dos
negócios jurídicos. É que os efeitos reflexos destas patologias podem ser causa de extremada injustiça se
o julgador se descuidar das considerações alinhadas neste trabalho e, em alguns casos, aplicar a norma
positivada como está e declarar a nulidade ou a anulação de um negócio defeituoso.
É ainda possível destacar dentre estes, os artigos 156 e 157 e respectivos parágrafos, pois o leitor poderá
perceber a imensidão de situações conseqüentes da falta de razoabilidade. Aliás, esta foi a impressão digital do legislador: faltou com a razoabilidade nestas específicas disposições. A despeito dos elogios que
são merecedores os aludidos artigos, não podemos nos furtar à crítica, dadas as omissões que também
são resultantes, como a previsão do parágrafo segundo do 157, inexistente no artigo 156.
Com base nestas ponderações, espera-se que a razoabilidade oriente o julgador no instante de analisar o
caso submetido à sua apreciação e que os conceitos de “grave dano” e onerosidade excessiva sejam realmente verificados no negócio jurídico, eis que a norma do artigo 171 determina a sua anulação. Todavia, talvez em algumas situações, o melhor mesmo não seria retira-lo do mundo jurídico, mas sim promover medidas que equilibrem a relação jurídica e atenuem a onerosidade para patamares aceitáveis de acordo com a função social do contrato.
Demais disto, como esperar que o julgador atinja a percepção da intenção da vontade prevista no artigo
112 do vigente Código, sem uma atividade intuitiva e razoável? Como detectar e aplicar o preceito de
boa-fé explicitado no artigo 113?
Será que no caso em concreto a atividade interpretativa, acerca do que seria “pessoa de diligência normal” é algo que não exige uma maior cautela e que a falta de razoabilidade não poderia conduzir à injustiça? E que se afirmará acerca do artigo 152, ao apreciar a coação?
Este trabalho não tem a pretensão se esgotar continental assunto. Apenas o intuito de servir de breves
reflexões.
Considerações finais
Ao afastar a concepção até então corrente, Recaséns Siches recomendou ao intérprete e ao operador do
Direito, uma antevisão das coisas, sustentada por princípios estimativos, de modo a conduzi-lo a uma
solução razoável para o caso concreto.
Esta teoria, construída de forma compatível com todos os anseios de uma época, dá ao operador, principalmente ao julgador, uma atividade criadora, imbuindo-o do objetivo maior do Direito.
A pretensão de Siches é superar a multiplicidade de processos hermenêuticos comumente verificados no
Direito, considerando que os juízes, como um bom exemplo de intuição, costumam valer-se, ainda que
inconscientemente, da Lógica do Razoável, para determinar a decisão que darão ao caso a si apresentado,
mas, no momento de prolatar o decisório, encobrem esta atividade, esta operação, com “uma roupagem
pseudo-dedutiva de natureza silogística”, no dizer de Fábio Ulhoa Coelho26.
Segundo a Lógica do Razoável, o pensamento não se guia pelos princípios da lógica clássica, por entendêla, sozinha, insuficiente ao estudo e compreensão do Direito, mas por outros, centrados na investigação
da congruência entre a realidade, os valores, os meios e os fins da norma jurídica.
Isto faz com que o operador do Direito, realizando operações normativas, fixe finalidades e propostas,
uma vez que o ser humano não se restringe apenas a causa e efeito.
Desta forma, a interpretação deve operar-se dentro de critérios de razoabilidade, de sorte que o Direito
seja interpretado com vistas à realidade, para atingir seu objetivo: regular comportamentos sociais. O
Direito não deve se ocupar dos homens, mas da sua conduta.
26
FÁBIO ULHOA COELHO: Roteiro de Lógica Jurídica, 3ª Ed. São Paulo : Max Limonad, 1997, p. 97.
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Por derradeiro, deve ser destacado que a específica consideração da Lógica do Razoável com o negócio
jurídico, deve-se em mesma medida às justificativas do legislador em explicita-lo no Título I do Livro III,
dos Fatos Jurídicos, deixando o ato jurídico apenas circunscrito ao artigo 185.
Bibliografia
COELHO, Luis Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Rio de Janeiro, Forense, 1981
PRADO, Lídia Reis de Almeida. Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do Direito, Apud BEATRIZ DI GIORGI; CELSO FERNANDES CAMPILONGO e FLÁVIO PIOVESAN, Direito, Cidadania e Justiça. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1995.
SICHES, Luis Recaséns. Tratado de Sociologia. Tradução do Prof. João Batista Aguiar. 1ª ed. 3ª impressão, Porto Alegre : Editora Globo, 1970.
____________________ . Nueva filosofia de la interpretacion del Derecho. México : Editorial
Porrúa. S.A. , 1973.
____________________ . Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y Lógica “razonable”.
México : Fondo de Cultura Económica – Universida Nacional Autónoma de México, 1971.
____________________ . Tratado General de Filosofia del Derecho. México : Editorial Porrúa
S.A., 1959.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. A lógica do razoável e o negócio jurídico: reflexões sobre a difícil
arte de julgar. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em xx de xxxxxxxx
de xxxx.
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 27.08.2004.
NOVOS CAMINHOS PARA UMA FILOSOFIA DA CONSTITUCIONALIDADE:
Notas sobre a obra Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma
Nova Crítica do Direito, de Lenio Luiz Streck
Ernildo Stein
Pós-Doutor em Filosofia
Doutor em Filosofia pela UFRGS.
Professor do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (Mestrado e Doutorado) da PUCRS.
I
Existe certamente uma irradiação da Lei fundamental sobre todo o sistema jurídico, mas é possível que se
produzam difrações sobre o modo de funcionamento das leis, dependendo da cultura em que se enraíza a
Constituição e do amplo espectro de interpretações. Se uma Constituição apresenta o balisamento para a
difusão da juridicidade no tecido social, passando pelos tribunais e pela aplicação do direito, através dos
autores das leis e daqueles que as recebem em seus efeitos no tecido social, ela deve necessariamente
ser interpretada e compreendida.
Encontrar as verdadeiras formas de circulação entre Constituição, direito e democracia tornou-se hoje
uma questão da qual depende o exercício da justiça constitucional no Estado democrático de direito. Durante séculos, a concepção do papel da Constituição se concentrava no caráter monolítico de sua presença
numa determinada ordem política. Conquista da modernidade, a Constituição incorporava os ideais de
convivência dos grupos humanos reunidos num país. É por isso que nela se reproduziam as heranças mais
caras que possibilitava o convívio humano regrado pela lei. Assim, a Constituição passou a ser o refúgio
para todas as pretensões de direito dos povos que se organiz(av)am democraticamente.
No entanto, já no seu nascedouro, a Constituição não se situava numa espécie de limbo de neutralidade,
porque ela implicava, para seu funcionamento, uma pluralidade de instâncias da ordem jurídica e a presença de uma multiplicidade de pessoas responsáveis pela implementação de tudo aquilo que se difundia
nos códigos a partir da Lei fundamental. A Constituição passou assim a representar uma ordem substantiva que regrava todas as dimensões processuais. O enorme ativismo judicial do século XX passou a justifi-
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car-se numa concepção procedimentalista. Constituir era considerado mais como consolidar, em formas
de discurso, as posturas substancialistas ou os comportamentos procedimentalistas.
O resultado desses modos de conceber a própria Constituição e todo o sistema de interpretação da mesma conduziu a muitas teorias jurídicas, todas elas, de um modo ou de outro, apresentando traços de uma
espécie de dedutivismo que, na concepção do direito como um todo, passou a tomar a forma do positivismo jurídico.
II É claro que nas discussões do direito constitucional, nas teorias gerais do direito e nas filosofias do direito, foram-se desenvolvendo diversas formas de concepção dos conteúdos da Constituição escrita no
contexto de uma tradição jurídica. A filosofia do direito, no contexto da filosofia política e das teorias sociais, tinha como função analisar e identificar certos imperativos jurídicos categóricos fundados na Constituição. Esses princípios, no entanto, impunham a discussão de conceitos fundamentais como, liberdade,
poder, justiça, eqüidade, lei, moral, imputabilidade, relações entre ética e direito, entre direito e política,
entre direito e sociedade, entre o público e o privado. Nesse terreno conceitual, as teorias não podiam
dispensar o vínculo entre fato e norma, entre validade e legalidade e outros pares de conceitos abstratos
cujo conteúdo dependia da potência teórica dos analistas do direito.
Ao lado das análises históricas essenciais para identificar a gênese conceitual das categorias que compunham o fundo teórico de todo o processo normativo, surgiram as inovações teóricas que descolavam o
aparato conceitual de dimensões históricas e culturais para dar-lhe uma estrutura imune às mudanças da
cultura e da sociedade.
A rapidez das mudanças sociais das sociedades contemporâneas foi, no entanto, exigindo uma mobilidade
nas questões jurídicas que enfrenta o poder judiciário e a justiça constitucional, à qual deveria corresponder um conjunto de novas formas de conceber os problemas do direito e do que significa o constituir da
Constituição. Enfrentou-se, assim, o estudo do direito com situações inteiramente novas a que era necessário responder com radicalidade e sem repetir velhas fórmulas teóricas.
III A multiplicação das teorias do direito que foram surgindo enfrentavam dois desafios fundamentais. De
um lado, as transformações sociais que exigiam uma resposta jurídica. De outro lado, os elementos emancipatórios que se esperava fossem sustentados também pelo direito. Como diante desses desafios
não era possível ir multiplicando apenas as leis, modificando a Constituição e revisando os códigos, era
necessário chegar aos problemas fundamentais que eram levantados pela interpretação. Todos sabemos
da trajetória da hermenêutica jurídica desde séculos. E todos também sabemos da relativa rigidez com
que funcionava a interpretação do direito. Ao lado da hermenêutica bíblica, a hermenêutica jurídica era
sempre um exercício de interpretação técnica, de um lado, e, de outro, essa interpretação era comandada
por cânones rígidos e por intérpretes dotados de especial autoridade. A partir daí foi-se desenvolvendo
toda a jurisprudência que se articula com a dogmática jurídica.
Se, de um lado, esse desenvolvimento era necessário e possuía uma eficácia indiscutível, de outro lado,
ele foi-se fazendo no quadro de uma concepção de totalidade que mais colaborava com a rigidez da interpretação do que com a abertura de novos espaços que deveriam urgentemente ser enfrentados para uma
compreensão do direito e da dogmática jurídica que trouxesse maior mobilidade.
No fundo, qualquer concepção de princípio, de norma fundamental ou de justificação, era concebido num
contexto substancialista herdado da tradição metafísica. Todas as filosofias que cercavam a discussão da
interpretação traziam em si métodos e concepções de conteúdo que levavam a objetificações no universo
dos códigos e da constituição. As filosofias oriundas da tradição metafísica não poderiam trazer para o
direito senão uma espécie de espelho da realidade. E essa era considerada sólida, imutável, e, sobretudo,
marcada por uma concepção que transformava a realidade toda em coisa. Ora, a realidade humana e existencial que percorre todo o mundo da lei, do direito e das normas fundamentais criava uma espécie de
inquietação no campo da interpretação que não recebia uma resposta de efetivo caráter filosófico. O pensamento dogmático do direito era capaz, quando muito, de responder com novos aparatos legais que
sempre traziam em seu bojo, a mesma rigidez dos pressupostos metafísicos de onde provinham. Era o
império da objetificação que prendia o pensamento dogmático no estreito domínio da positividade. Podese imaginar que mudanças teriam que ser introduzidas na concepção do direito e, sobretudo, no âmbito
da intepretação, para que se conseguisse descobrir um horizonte de totalidade que não terminasse na
objetificação da tradição metafísica.
IV Certamente muitos autores na área jurídica se aperceberam dos impasses em que se movimenta toda
a dogmática jurídica. Muitos devem ter sentido, na prática do dia-a-dia, o quanto funcionava uma espécie
de escompasso entre o funcionamento do direito na realidade e as formulações nos códigos, na Constituição e as respectivas interpretações. Mas esse descontentamento com o mundo do direito levava a corre-
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ções pontuais e a sugestões transitórias. Quando muito se faziam apelos a velhas fórmulas de fundamentação do direito ou a teses em que se debate a filosofia do direito.
Quando, então, se trata da questão da relação entre o papel do direito e da justiça constitucional no funcionamento do estado e da sociedade, a insatisfação se manifestava numa espécie de ativismo e voluntarismo, em diversas correntes teóricas e de interpretação.
Temos no livro, Jurisdição constitucional e hermenêutica – uma nova crítica do direito, de Lenio Luiz Streck1, uma tentativa, de certo modo revolucionária, de examinar toda a questão desde um ponto de vista não apenas consistente, mas sobretudo inovador. Trata-se de um livro que mostra, primeiro, uma enorme capacidade de análise do ponto de vista do diagnóstico e do ponto de vista histórico. É uma obra
que tem sua primeira qualidade na inversão do próprio ritual de colocação do problema. Em vez de iniciar
a volumosa obra com a exposição histórica, o autor abre um verdadeiro rombo na tradição jurídica, iniciando com uma descrição diagnóstica do problema da Constituição, do constitucionalismo e da jurisdição
constitucional. Sem rodeios o leitor é posto
1 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica - Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002. p. 709.
diante da questão da efetividade ou da inefetividade dos direitos. O autor se pergunta se "estão exauridas
as conquistas do estado democrático de direito?" (p. 27). É a partir dessa pergunta que vão aparecer os
diversos níveis da crise da sociedade, do estado, do direito e da crise que no fundo envolve a questão da
Constituição nos países periféricos.
Depois de levar a sua análise até constatar as crises de um modelo, o autor mostra-se otimista com a
afirmação inédita de que "a Constituição (ainda) constitui" (p. 78). Portanto, é possível a saída da crise do
direito pela superação do modelo e do ponto de não-retorno a que chegou, e uma reação nova do direito
diante das mudanças sociais. O caminho que o autor irá revelar será exposto pelo exame da jurisdição
constitucional e da idéia de supremacia constitucional. Dada a insuficiência das principais teorias contemporâneas, o autor propõe "uma resistência constitucional" que se alimenta da crítica e se apoia na busca
de uma mudança daquilo que ele denomina através da Nova crítica do direito.
Como já dissemos, o autor antecipa um diagnóstico para depois fazer, ao longo de mais de quinhentas
páginas do livro, uma aguda análise histórica das formas, dos sistemas e da evolução da jurisdição constitucional. É aí que aparece, após a revelação do agudo teórico, a erudição admirável de um estudioso da
matéria. Se ficássemos nessas observações estaríamos apenas diante de mais uma obra que se ocupa
com o problema da eficácia, da crise, das perspectivas da jurisdição constitucional. Entretanto, após o
diagnóstico em alentados quatro capítulos e antes dos sete capítulos de análise histórica, o autor produz
uma exposição dos elementos que compõe a sua nova crítica do direito.
Há, nesse capítulo quinto, uma verdadeira surpresa que aguarda o leitor atento dessa obra monumental.
É nesse capítulo que se desdobram todas as etapas da fundamentação teórica que iluminam o diagnóstico
retrospectivamente, e situam todas as análises históricas numa nova luz. O capítulo quinto se revela como aquela matriz teórica que mostra uma originalidade rara em nossos tempos de fáceis teorias. Tem-se
a impressão de que o autor ensaiou durante muito tempo, na produção das obras anteriores, não apenas
um modo de revolucionar as posturas diante da Constituição. Ele percebeu que todas elas traziam uma
falha que talvez não lhes reduzisse o brilho, mas que produzia em todos uma espécie de sensação de malestar diante da ausência de algo mais radical. Na verdade, toda dogmática jurídica estava como que pedindo que fosse aberto um novo horizonte que transformasse a rigidez de todas as teorias. O autor encontrou esse universo que foi capaz de lhe permitir dar o verdadeiro tom à "resistência constitucional" e
de encaminhar um novo modelo para iluminar uma análise da Constituição, de um lado. E de outro, na
própria teoria em que abriu esses horizontes, ele fixou as possibilidades emancipatórias da teoria
jurídica.
V De que trata esse esplêndido capítulo quinto? Num primeiro momento, ele descerra um horizonte de
totalidade que acaba com a busca inútil de fundamentos, com os empenhos infinitos de objetificação e
com a fragilidade hermenêutica dos métodos de interpretação jurídica. A visada que o autor nos descerra
possui, sobretudo, um caráter em que a teoria do direito e a filosofia do direito se encontram para elevar
a Constituição a um novo patamar.
Era necessário que o autor encontrasse uma concepção filosófica que não se reduzisse a uma simples repetição de outras concepções que se apressam em encontrar uma nova orientação para o direito. O autor
foi direto para o enfrentamento em que pudesse encontrar uma filosofia com um novo standard de racionalidade, capaz de fornecer o verdadeiro substrato de totalidade para a crítica do direito, e um novo hábito de perceber o verdadeiro enigma do dogmatismo e do positivismo jurídico. O autor realizou
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uma leitura da fenomenologia hermenêutica implantada por Heidegger e "urbanizada" na expressão de
Habermas, por Gadamer.
Isso tinha como conseqüência primeira a necessidade de libertar a dogmática jurídica da tendência herdada da tradição metafísica e, como outra conseqüência, a inserção de toda a máquina jurídica num universo que a libertasse da tradição subjetivista da modernidade. O que, efetivamente, foi encontrado por Streck é o âmbito do paradigma hermenêutico que, ao mesmo tempo em que nos fornece a compreensão
como totalidade, nos traz a linguagem como modo de acesso às coisas e ao mundo.
Certamente, a utilização do paradigma fenomenológico hermenêutico no campo da decifração da crise e
do encontro de um novo caminho, causa, num primeiro momento, uma espécie de benéfico mal-estar. Era
preciso ter a coragem de mostrar que a filosofia, no sentido radical de Hegel, é o mundo invertido, isto é,
ela nos liberta da ingenuidade de encontrar um âmbito de totalidade junto ao positivo, junto ao universo
da fatualidade. A pobreza do mundo natural e das referências sólidas da semântica do objeto é exibida de
maneira avassaladora com a idéia do modo de ser do ser humano como compreensão. Desde sempre já
envolvemos numa rede antecipadora de précompreensão aquilo que nos parecia exterior e objetivo. Com
isso é dado o golpe definitivo na fantasia de um mundo natural e de uma objetividade independente e
fundamento da compreensão que desde sempre somos enquanto seres humanos. No fundo, toda a crise
do direito e todo o modo como essa crise nos oprime, somente poderia encontrar um espaço de elaboração através do rompimento com os equívocos de uma tradição historicista e objetificadora.
O livro de Streck, entretanto, não se resume simplesmente em nos apontar o paradigma hermenêutico
como base da nova crítica do direito. Ele desenvolve, numa dinâmica de explicitação e justificação fenomenológica, todos os passos a serem desenvolvidos para compreendermos a verdadeira revolução que
pode ser produzida através da incorporação do standard de racionalidade da fenomenologia hermenêutica
no campo da verdadeira interpretação do que é direito, Constituição e jurisprudência constitucional. O
mérito, portanto, não está simplesmente em apontar um caminho. O capítulo quinto desenvolve os conceitos fundamentais e os espaços novos com os quais conseguimos olhar para os capítulos iniciais de diagnóstico e os capítulos que desenvolvem o estudo histórico. É por isso que vale a pena exibir alguns aspectos centrais desse capítulo.
O leitor deve situar-se diante da seguinte questão: Como encontrar sob as diversas camadas consolidadas
no sistema jurídico não apenas uma espécie de palimpsesto que guarda as memórias que jamais serão.
Que jamais serão caso não seja infiltrado nessas camadas um processo que, ao mesmo tempo em que
lhes dá vida e sentido, permite que melhor se compreenda aquele que por elas se movimenta, não apenas
com sentido exploratório, mas com a intenção de encontrar algo imprescindível para se compreender a
camada que predomina na superfície. Como situar-se diante de tal desafio, encontrando, não simplesmente um método, mas recebendo o desafio de aí encontrar uma história viva do direito que desde sempre o sustenta? Não apenas uma historiografia, nem mesmo apenas um acontecer histórico, mas uma
historicidade que atravessa todas as formações culturais que sustentam o direito no próprio compreender
e não num fundamento definitivo. Nesse ponto, o leitor atento é posto diante da crucial desmistificação da
hermenêutica jurídica de cunho normativo que ainda predomina no cotidiano da dogmática jurídica. Tratase daquilo que o autor flagra nas tentativas insistentes de os juristas buscarem num método dos métodos, um método fundamental (na inovação do autor, uma Grundmethode).
Lenio Streck para responder a esse desafio partiu de uma descrição fenomenológica, mas não de uma
realidade dada. O que lhe importava era descobrir, pela fenomenologia hermenêutica, um movimento em
que ao mesmo tempo aconteciam as duas dimensões constitutivas fundamentais. De um lado, a compreensão de sentido que já sempre está antecipada numa experiência de mundo, e, de outro lado, uma experiência de mundo que teria que ser o elemento organizador da compreensão de sentido. O sentido do
texto jurídico passaria, assim, por uma série de transformações. Não seria mais um texto que reproduz
simplesmente a realidade objetiva. Nem seria mais um texto que se desdobraria num único nível esperando pela interpretação. O texto jurídico seria, como muitos outros textos, o lugar produzido pela précompreensão, isto é, pela compreensão que o homem tem de si mesmo enquanto é ser-no-mundo e a
compreensão do ser sem a qual ele não teria a compreensão de si mesmo. Visto assim, o contexto da
interpretação do direito carrega necessariamente consigo uma pré-compreensão em que o intérprete e o
sentido profundo do texto se aliavam na constituição de um mundo como totalidade como horizonte. A
partir desta totalidade a busca de justificação é constantemente posta diante do enfrentamento de um
sem-fundo que frustra toda a rigidez que quer estabelecer um fundamento definitivo.
Essa visão fenomenológica trazia como pressupostos que o ser humano é desde sempre compreender e
que sua relação com o mundo de qualquer formação cultural é instaurada nesse processo de compreen-
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são. Quando, portanto, interpretamos o texto jurídico ele já nos vem ao encontro por uma compreensão
em que já sempre antecipamos o seu sentido.
Com esse modo de ver, qualquer interpretação de um texto de certo modo já é feita com atraso, pois ela
sempre é antecipada e acontece numa interpretação que se dá como um modo de ser. Dessa maneira,
linguagem jurídica aparece como uma totalidade de dupla estrutura. A hermenêutica jurídica acontece
sobre um fundo que é constituído pelo horizonte de uma hermenêutica como pré-compreensão em que
qualquer intérprete já sempre se explicita em seu modo de ser. Essa dupla estrutura representa uma das
dimensões mais óbvias e, contudo, menos percebidas, porque para seu encobrimento operam vários fenômenos que o direito herdou da tradição metafísica:
1. Temos, primeiro, a ilusão metafísica da transparência. Nela o sujeito se põe como senhor do discurso
sobre objetos de que fala o direito.
2. Temos, ainda, a questão do fundamento que de acordo com sua origem metafísica o direito pretende
encontrar em algum tipo de afirmação sobre a realidade ôntica.
3. Ao lado do fundamento situa-se a aceitação da objetificação como um resultado óbvio da interpretação
do direito.
4. Como resultado disso, toda a dogmática jurídica move-se no universo apenas familiar dos textos, dos
códigos e da Constituição.
Uma vez descobertas as armadilhas que se escondem atrás dos vícios da tradição metafísica, a interpretação vai aparecer como um acontecer cuja transparência jamais será alcançada, dado que o sentido do
texto já sempre nos determina, e é por isso que se abandona também a velha querela de um fundamento
último, dado que o jogo do duplo sentido hermenêutico nos revela um fundamento sem fundo. Desfaz-se,
ao mesmo tempo, a confiança num discurso objetificador já que, na interpretação em que nos enfrentamos com o duplo sentido, o sentido profundo acontece para relativizar a posse imaginária e definitiva do
sentido superficial do texto. Assim, também, o direito está preparado para enfrentar a angústia de uma
dimensão escondida que entreaparece como constante ameaça ali, onde a interpretação pretende apenas
consolidar o sentido. O direito aprende a encontrar sua moradia cercada por uma constante ameaça de
invasão pelo estranho.
Streck, mediante uma exposição dos elementos novos trazidos pela fenomenologia hermenêutica, mergulhada no contexto da hermenêutica filosófica de Gadamer, prepara um cenário em que todos os fenômenos fundamentais do direito passam a ter uma mobilidade que irá se infiltrar em todo o edifício
jurídico.
VI Descerrado esse horizonte, pode-se compreender como a Constituição recebe um novo lugar e uma
nova importância. Ela não é um fundamento do qual arrancamos sentidos para o ofício cotidiano da atividade jurídica. Desde sempre essa atividade está perpassada, em cada um de seus gestos, por uma presença da Constituição cuja compreensão está antecipada em cada ato de compreender do autor da lei e
daquele que aplica a lei. Dessa maneira, rompidas as amarras metafísicas e objetificadoras, mediante a
abordagem fenomenológica, a Constituição desaparece como um fato sólido que norma, de maneira rígida, o exercício do direito. Ela já sempre opera através da pré-compreensão que dela tenho quando pratico
a justiça. A nova crítica do direito introduz, no pensamento dogmático que interpreta a Constituição, um
movimento em que essa já é condição existencial de qualquer ato interpretativo. Desaparecem, assim, no
horizonte novo que Streck extrai da fenomenologia hermenêutica, primeiro a falsa autonomia que a dogmática jurídica atribui ao direito constitucional. É assim que o autor desenvolve uma serena crítica de todo o pensamento constitucional que sonha com algum tipo de elemento fundamental.
Mas essa crítica não é mais feita ao modo de uma espécie de refutação metafísica em que o adversário é
objetificado e levado a uma derrota no nível simplesmente lógico. A intenção de Streck, e não poderia ser
de outra maneira a incorporação do modelo da fenomenologia hermenêutica para a interpretação do problema do direito constitucional, é mostrar como as intenções de fundamentar visam algo do qual elas não
têm consciência clara. E, por outro lado, o deslocamento para a estrutura de duplo sentido que possui a
Constituição como fazendo parte de um modo de ser-no-mundo, não dispensa a assiduidade interpretativa de caráter ôntico, sobretudo quando se passa a perceber que ele é o complemento necessário do processo pré-compreensivo no qual já sempre trazemos a Constituição conosco como o nosso modo fundamental de ser no estado e na sociedade.
Sem assumirmos o compromisso de apresentar um mau resumo das belas páginas do capítulo quinto,
temos que referir as conseqüências dessa nova crítica do direito e da Constituição para o diagnóstico da
crise da justiça constitucional e para a compreensão dos caminhos que podem levar a uma presença da
Constituição em todos os momentos do exercício do direito.
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O cuidado que a fenomenologia hermenêutica permite que tenhamos com o discurso do direito nasce,
sobretudo, da superação de um pensamento objetivista. A linguagem passa a ser o próprio ambiente que
o direito habita e isso não nos permite mais tratar as diversas manifestações que compõe o direito ao nível de coisas. Surge, assim, uma linguagem que revela um acontecer no qual a singularidade não é sufocada por uma espécie de presumida universalidade dogmática. Streck nos situa como servidores do direito no universo de uma linguagem não simplesmente de sinais e de formas lógicas.
Toma forma um modo de dizer que preserva o espaço para o não-dito entre os diversos discursos legais.
Mas esse não-dito não é algo que tenha que ser levado a sua total manifestação. Antes, o não-dito sustenta, por causa da précompreensão, tudo aquilo que aparece na palavra do discurso. Há sempre um
acontecer que opera quando falamos e que sustenta o sentido profundo das realidades jurídicas expressas
nos códigos e na Constituição.
VII A empresa que o autor do livro, Jurisdição constitucional e hermenêutica, nos apresenta é certamente
o começo de um modo de pensar que pode transformar o modo de ver da interpretação constitucional.
Mas essa empresa nos leva a uma atitude diante do direito como um todo que é capaz de preservar a vida
e o movimento que percorre a construção jurídica. Dessa maneira, é possível perceber como o direito deve acompanhar os movimentos e as vicissitudes do estado e da sociedade, com um direito vivo. Mas essa
vida não nasce por uma espécie de transgressão do direito e de sua invasão por problemas sociais e políticos. Visto como um acontecer, no qual todos nos autocompreendemos, o direito se comensura à estatura do ser humano em seu modo de ser-no-mundo.
Certamente, temos, nessa obra, uma profunda inovação nos processos de compreender a função da filosofia no direito. Ela não representa mais aspectos ornamentais do discurso jurídico. Mas ela também não
se isola mais na análise de certos problemas implícitos em categorias como poder, justiça, liberdade, imputabilidade e muitos outros. O exame de cada uma dessa questões continua imprescindível para qualquer filosofia do direito. Mas, a nova crítica do direito, mergulha toda essa atividade num acontecer em
que a Constituição faz parte do modo de ser-no-mundo de qualquer cidadão, e, sobretudo, deve ser explicitada na dimensão da pré-compreensão em que se movem os autores das leis e da Constituição e os aplicadores das mesmas.
Há, certamente, muito que realizar, a partir do momento em que nos refazemos da surpresa e do estranhamento em que nos situa e efetivamente nos quer situar essa profunda inovação filosófica no direito. A
hermenêutica jurídica, em todo caso, jamais irá recair numa simples interpretação que se conduz pelos
métodos lógico-dedutivos. Mesmo essa tarefa está constantemente subvertida por um compreender que
resulta de uma hermenêutica de profundidade. Assim, a Constituição deixará de existir apenas como ferramenta e surgirá já sempre em operação no auto-compreender-se do intérprete do direito. Ter jogado no
espaço público do debate jurídico o imenso material que traz o livro, não apenas justifica a sua aparição,
mas exige uma leitura urgente, para que todos aprendamos a nos mover numa compreensão muito mais
dilatada do que significa o acontecer da Constituição.
Porto Alegre, 03 de abril de 2003.
Ernildo Stein.
DOS CÓDIGOS PARA AS CONSTITUIÇÕES: BREVE DISCUSSÃO SOBRE OS PRINCÍPIOS GERAIS
DE DIREITO E A NOVA DOGMÁTICA JURÍDICA
Marcus Firmino Santiago1
Considerações Iniciais. 1. Princípios Gerais de Direito: idéias gerais; 1.1. Evolução Conceitual. 2. Distinção
entre Princípios e Regras. 3. Aplicação dos Princípios Gerais de Direito: os caminhos da nova hermenêutica. Considerações Finais. Referências
Bibliográficas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No atual estágio de desenvolvimento das sociedades, claramente insuficientes se mostram as concepções
acerca do Direito que, de alguma forma, o mantenham dissociado do corpo social ao qual deve tutelar.
Assim como a transição do Estado liberal para os Estados Social e Democrático ocorreu em grande parte
por força das crescentes pressões pela construção de um modelo mais atento à satisfação dos anseios da
sociedade, também o Direito erigido sobre os pilares do Positivismo Jurídico vem sucumbindo ante novos
paradigmas que visam à estruturação de uma dogmática jurídica igualmente voltada a uma função social.
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A guinada paradigmática que vem apontando o Direito na direção da realização de valores atinentes à
tutela da pessoa, tingindo-o com cores que melhor representam as vontades e necessidades dos jurisdicionados, tem por principal moto a reaproximação entre o corpo de normas jurídicas e os valores morais,
éticos, políticos ou humanos que permeiam as sociedades. Esta interação permite que se rompa a redoma
dentro da qual fora o Direito enclausurado e mantido por largo tempo, assepticamente distante da realidade fática.
Um dos caminhos trilhados para que se logre alcançar tal intento passa pela consagração no plano constitucional dos Princípios Gerais de Direito, repositórios jurídicos de valores socialmente relevantes. Graças à
natureza normativa atualmente a eles reconhecida, mostram-se capazes de fornecer as bases conceituais
imprescindíveis à materialização das promessas de promoção de justiça e dignidade a partir das quais
forja-se o Direito contemporâneo.
Por força da consagração de sua natureza normativa, tanto graças ao labor dos pensadores da atual jusfilosofia quanto pela sua inscrição nos textos constitucionais atuais, a dogmática principiológica ganha vulto, oferecendo um novo paradigma para a compreensão e interpretação do Direito. Nesta mesma esteira,
as constituições, grandes repositórios da pauta axiológica consagrada nos Princípios de Direito, assumem
posição central no ordenamento jurídico, figurando como fonte conceitual-normativa suprema, de onde
emanam valores humanísticos que estruturam e dão forma ao Direito contemporâneo.
Diante deste quadro, propõe-se o presente trabalho a discutir alguns aspectos da atual teoria do Direito,
na qual foram os Princípios Gerais de Direito alçados ao patamar de normas jurídicas de espectro amplo e
aberto, a partir das quais ergue-se e orienta-se o ordenamento jurídico. Assumem o papel de indicadores
das premissas a serem observadas quando da elaboração, interpretação e aplicação das normas, constituindo, desta maneira, a materialização dos paradigmas de um Direito permeado de valores e voltado à
realização do ideal de justiça.
Para tanto, inicia-se fazendo breve abordagem acerca do que sejam Princípios Gerais de Direito, apresentando-se, em seguida, a evolução da dogmática jurídica que culminou com a elevação destes ao patamar
no qual ora se encontram, comentando-se o contexto em que se deu este desabrochar, o qual levou ao
definitivo reconhecimento de sua normatividade, com a conseqüente inserção dos mesmos nos textos
constitucionais.
Busca-se, então, aclarar os aspectos que os diferenciam das regras jurídicas, tanto conceitualmente quanto no que pertine às peculiaridades inerentes à sua operacionalização.
Finaliza-se o trabalho com breve explanação acerca da posição de relevo que assumem novos métodos
interpretativos voltados para a realização de uma hermenêutica principiológica, especialmente em face da
necessidade de se conferir, argumentativamente, legitimidade para a aplicação destes representantes dos
novos paradigmas orientadores do Direito.
1. PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO: IDÉIAS GERAIS
Ao Direito atual vem sendo reconhecida, entre suas tantas finalidades, a de realizar os princípios de justiça e dignidade humana, aos quais é dado orientá-lo, de sua base constitucional até seus ramos mais especializados. Este paradigma humanista e socializante vem ganhando vulto desde a segunda metade do
Século XX e servindo de premissa para o desenvolvimento de brilhantes postulados que visam a legitimar
a definitiva consagração, como um dos pilares do Direito, do arcabouço axiológico sobre o qual se
funda a sociedade.
Os valores socialmente relevantes, que inspiram a elaboração do ordenamento constitucional e orientam a
interpretação de todo o ordenamento jurídico, encontram expressão através de Princípios Gerais de Direito, enunciações normativas que os consubstanciam e, assim, indicam os fins que devem ser perseguidos
pelo Estado em todas as suas formas de manifestação.
Já afirmava Eduardo Couture, referindo-se aos princípios em geral, em uma análise propedêutica acerca
do tema, que o legislador:
(...) não os pode contrariar, como o construtor que executa uma obra ão pode contrariar as linhas diretivas fundamentais consignadas no plano do arquiteto e sem as quais é impossível iniciar a construção
do edifício que lhe foi confiada.
Daí porque entendia ser o sistema legal “(...) um sistema de princípios que constituem uma espécie de
esqueleto, a estrutura rígida e interna da obra, seu arcabouço lógico, sobre o qual se ordenam os detalhes
da composição.”
A correta compreensão da extensão dogmática dos Princípios Gerais de Direito, permitindo o reconhecimento do lugar de destaque que ostentam na estruturação do Estado e do ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, é capaz de endossar as teses que lhes conferem ampla aplicabili-
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dade, espraiando sua influência, definitivamente, a todos os ramos da ciência jurídica. Consegue-se, desta
forma, realizar o manancial axiológico neles imprimido, permitindo que cumpram seu papel de arcabouço
lógico fundamental do Estado Democrático e do Direito.
Da mesma forma como a conceituação dos Princípios de Direito vem ganhando novos contornos no decorrer das últimas décadas, também os métodos interpretativos destinados à sua aplicação têm merecido
atenção, buscando os pensadores da jusfilosofia oferecer aos aplicadores vasto material capaz de legitimar esta forma de reconstrução do Direito atual. Também ressaltava Eduardo Couture a necessidade de
os juristas se libertarem das velhas fórmulas interpretativas, que apenas serviam para perpetuar construções ultrapassadas, em favor de novos métodos, capazes de viabilizar a realização de uma interpretação
construtiva e atualizadora.3 Demonstra-se, assim, que o Direito não é matéria inerte, mas tecido vivo e
em constante mutação, tal qual o corpo social ao qual deve se amoldar.
1.1. Evolução conceitual
Atualmente, na Teoria do Direito, encontra-se reconhecido e consagrado, em patamar cada vez mais elevado, o papel que pode ser pelos Princípios Gerais de Direito desempenhado, configurando-se como fonte
normativa estruturante do ordenamento jurídico. Um dos elementos que melhor permitem embasar esta
assertiva encontra-se no processo de inserção dos Princípios Gerais de Direito nos textos constitucionais,
o que se mostra crucial para que adquiram “(...) força positiva incontrastável, perdendo, desde já, grande
parte daquela clássica e alegada indeterminação, habitualmente invocada para retirar-lhes o sentido normativo de cláusulas operacionais.”5 Transformam-se, com isto, de Princípios Gerais em Princípios Constitucionais, segundo a lição de Paulo Bonavides.
O caminho trilhado pelos Princípios de Direito até este patamar de força incontestável, alcançado com o
advento da doutrina jusfilosófica usualmente denominada de Pós-positivismo, é longo, passando pelas
fases do Jusnaturalismo e do Positivismo Jurídico, evolução merecedora de comento.
A idéia de um Direito Natural encontra raízes na Grécia Clássica, resistindo à Idade Média e se desenvolvendo e difundindo ardorosamente entre os Séculos XVII e XVIII.
Pertencem a este último período as mais expressivas obras – onde se incluem a de Hugo Grocio, De Iure
Belli ac Pacis, publicada em 1625, ou o Discours de la Méthode, de Descartes – que vivificaram e aprofundaram os estudos acerca desta doutrina.
O Jusnaturalismo reconhece a existência de um sistema de normas de conduta diverso daquele ditado
pelo Estado. Estas normas compõem um Direito Natural, metafísico, extra-histórico, eterno e imutável,
que encontra em si mesmo seu fundamento de validade, posto que anterior e superior ao Direito Positivo.6 Posiciona-se lógica e eticamente acima do Direito posto pelo legislador, impondo-lhe limites que,
caso ultrapassados pelas leis dos homens, gravam-nas de ilegitimidade. Nesta etapa de desenvolvimento
do pensamento jusfilosófico, os Princípios são tidos em alto grau de abstração, refletindo postulados éticos de justiça fundamentados tanto na razão humana quanto na lei divina. São verdadeiramente princípios de justiça, “um conjunto de verdades objetivas derivadas da lei divina e humana”,7 sendo comum
autores identificarem nesta doutrina uma coincidência entre Princípios Gerais e o próprio Direito Natural,
como o faz Giorgio Del Vecchio.
Com a promulgação dos primeiros códigos da era moderna – tempo que é assinalado pelo Código Napoleônico, de 1804 – inicia-se um movimento de transposição do direito racional para os textos legais, passando-se, então, a não admitir outro Direito que não o abstraído das fontes positivadas. O recurso a princípios ou normas não inscritas no Direito Positivo passa a ser considerado ilegítimo, negação que se estende até mesmo, em um momento inicial, para a supressão de lacunas no ordenamento. O ideário do
Positivismo Jurídico rejeitava qualquer referência a justiça – no plano do Direito – e qualquer menção a
valores – no campo filosófico – reduzindo-se ambos a ciências objetivas e impessoais.
Dentre os cânones desta doutrina encontra-se o postulado da unicidade das fontes do Direito, o qual somente poderia ser gerado pelo trabalho do Estado, realizado por legisladores para este fim constituídos.
Esta unicidade impõe-se enfaticamente aos aplicadores do Direito, o que justifica a ponderação formulada
por Del Vecchio, ao comentar o papel do magistrado, salientando que este:
(...) deve sempre ex officio interpretar e aplicar as leis vigentes do seu país. Certamente, no seu esforço
de reconstrução do sistema jurídico positivo, e dum modo particular na sua aplicação prática, o
intérprete deve, antes de tudo, ater-se à lei como ela é, e não à lei como ela deveria ser segundo certos
princípios. O contrário comprometeria a unidade do sistema jurídico, levando a confundir (...) a função do
juiz com a do legislador, e roubando assim ao direito positivo aquela certeza que ele, como tal, não pode
dispensar.
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O estreito vínculo que surge entre Direito e lei assinala a busca por referências sólidas, intangíveis, que
caracteriza as sociedades modernas do Século XIX, período conhecido por época da segurança,9 durante
a qual o ideal maior que pautava a relação entre Estado e sociedade civil cingia-se ao respeito aos direitos
individuais de liberdade e à tutela da propriedade. O movimento pela codificação, com a elaboração de
corpos legislativos herméticos, oferece resposta a semelhantes anseios, disponibilizando fontes sistematizadas de onde se esperava poder retirar, em cada hipótese, solução para todo e qualquer conflito.
De início expurgados de referências a conceitos que pudessem soar vagos, aparentemente incapazes de
fornecer respostas prontas, gradualmente foram os códigos permeados com Princípios de Direito, que
vieram a compor estes arcabouços legais na condição de fontes subsidiárias, verdadeiras válvulas de segurança destinadas a suprir, em derradeira instância, as lacunas da lei. Diferentemente do entendimento
preconizado pelos pensadores da antiga escola Jusnaturalista, neste instante deixaram os Princípios de
ser concebidos como sobrepostos e antecedentes às leis, passando a assumir o papel de produto destas,
somente existentes em função de exercício de generalização do Direito Positivo, sendo inferidos de suas
normas, as quais constituem a fonte de seu valor.
A postura adotada pelos pensadores que, com suas obras, lograram estruturar esta corrente jusfilosófica
implica, em função da certeza de que os Princípios originam-se tão somente do resultado indutivo obtido a
partir da abstração dos comandos inseridos em normas positivadas, na conclusão de serem os mesmos
absolutamente desprovidos de normatividade, razão pela qual beiram a irrelevância jurídica. Os Princípios
serviam à lei, ostentando no ordenamento jurídico o mais baixo grau na hierarquia positiva; nada mais
que fontes secundárias de normatividade.
A superação deste entendimento ocorreu de modo deveras gradual, na medida em que a resistência de
pensadores do mais alto quilate foi sendo suplantada pelos novos teóricos do Direito, pessoas que tiveram
a perspicácia de rapidamente captar e oferecer uma resposta às mutações sociais decorrentes da ruína
dos bastiões de segurança típicos do Século XIX, especialmente na Europa ocidental, e o florescer de uma
era de incertezas no Século XX. Em poucos anos, a solidez inerente a tudo que emanava do Estado desapareceu; naturalmente, a confiança que se depositava nas leis por aquele elaboradas também esmoreceu.
Da mesma forma como na física a certeza do absoluto, de Newton, foi suplantada pela incerteza da relatividade, de Einstein, no Direito semelhante transposição se passou. Quando ficou patente a impossibilidade de se conter todo o Direito nas leis, no corpo de normas positivas ditadas coercitivamente e, não raro,
arbitrariamente por um Estado liberal, evidenciou-se uma grave lacuna, um abismo de incertezas que
precisava ser preenchido.
Em atenção às diversas carências de sociedades ansiosas por resgatar e preservar valores que ultrapassassem a esfera da individualidade egoísta típica do mundo liberal, número cada vez maior de pensadores
abraçou uma nova postura acerca da dogmática jurídica, resaltando a incoerência do posicionamento até
então prevalente.
Marco referencial desta evolução paradigmática pode ser identificado no estudo do constitucionalista italiano Vezio Crisafulli, trazido a lume em 1941, em seu texto Per la Determinazione del Concetto dei Principi
Generali del Diritto, mencionado por Norberto Bobbio em Teoria dell’Ordinamento Giuridico. Afirma este
autor, endossando a lição do primeiro, que:
Per sostenere che i principi generali sono norme gli argomenti sono due, ed entrambi validi: anzitutto ne
sono norme quelle da cui i principi generali sono estratti, attraverso un procedimento di generalizzazione
successiva, non si vede perchè non lebbano essere norme anch’essi: se astraggo da specie animali ottengo sempre animali, e non fiori o stelle. In secondo luogo, la funzione per cui sono estratti e adoperati è
quella stessa che è adempiuta da tutte lê norme, cioè è la funzione di regolare un caso. A quale scopo
vengono estratti in caso di lacuna? Per regolare un comportamento non regolato, è chiaro: ma allora servono allo stesso scopo cui servono le norme espresse. E perchè non dovrebbero essere
norme?
Os contextos social e político do início do Século XX forneceram argumentos irrefutáveis para o despontar
de uma diferente atitude perante o Direito, admitindo-o como imanente à história e impregnando-o novamente de valores e preceitos de cunho moral, fundamentais ao seu ressurgimento como expressão de
justiça social e instrumento de libertação.
O repúdio ao Estado criminoso, como o constituído na Alemanha nazista, impulsionou sobremaneira o
processo de reconhecimento da relevância dos Princípios Gerais para o Direito. Afinal, as inúmeras atrocidades praticadas naquele período encontraram amparo na atitude dos juristas, em variadas leis editadas
e mesmo na Constituição, que freqüentemente as acolhiam com beneplácito, não fornecendo
mecanismos para a preservação de uma base elementar de direitos fundamentais.
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Semelhante realidade desconcertou muitos dos que defendiam o império da lei, não reconhecendo no Direito um instrumento de realização de justiça.
Como explica Mauro Cappelletti, rememorando a realidade desta época: Parlamentos y cortes se transformaron, al menos de hecho, em sucubos servidores de los nuevos absolute rules; frente al eliminado,
incontrolado poder del tirano, la separación de los poderes, aun cuando no expresamente negada, fue una
engañosa e ilusória fachada. En Alemania, el querer del Führer – el arbitrio, es decir, la absoluta supremacía de un hombre, de un grupo, de un partido de una ‘raza’ – fue arrogantemente proclamada como la
suprema ley del país. Opresión y exterminio fueran ‘legalizadas’. La ‘justicia legal’ y la rule of law se manifestaron totalmente incapaces de operar como baluartes contra la arbitrariedad y los abusos, al contrario,
fueran ellas mismas el símbolo de los peores y más repugnantes arbitrios, como se vio trágicamente manifestado en la infame legislación racial emanada primero en Alemania y después en Italia, y como fue
proclamado en el proceso de Nuremberg, contra los crímenes de los gobernantes nazis.
Formalizado o armistício, viram-se os tribunais nacionais e internacionais, no que foram coadjuvados por
juristas e filósofos do mais alto quilate, motivados pela necessidade de oferecer uma resposta à sociedade
e apontar os Estados para o rumo da democracia, compelidos a orquestrar uma veemente reação ao império do arbítrio. Para tanto, outra saída não encontraram que admitir a impossibilidade de identificar o
Direito com a lei, reconhecendo nesta sua única fonte, pois, como explica o professor polonês radicado na
Bélgica, Chaïm Perelman:
(...) há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles
para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que
este tem por missão promover, dentre os quais em primeiro plano a justiça.
O desenvolvimento lógico do raciocínio jurídico, a partir do momento em que se passa a reconhecer este
novo paradigma do Direito, culmina no reconhecimento da imperatividade e subseqüente aplicabilidade
em espectro amplo dos Princípios. Foi com base nesta certeza, principalmente, que afirmou Perelman, em
posicionamento bastante inovador à época, a possibilidade de serem estes invocáveis pelo julgador independentemente de sua inserção em um texto legal.
Perelman assinala o julgamento de Nuremberg como o marco inicial da busca pelos Princípios que exprimem os valores reconhecidos e consagrados na sociedade democrática, como a dignidade humana, que
passam a compor seu substrato jurídico. Um dos primeiros pensadores do Direito a buscar o desenvolvimento de uma teoria capaz de fornecer elementos sustentadores desta evolução, ao elaborar sua Teoria
da Argumentação, teve em vista o combate ao raciocínio jurídico positivista, elegendo como modelo a ser
enfrentado aquele erigido por Hans Kelsen. Rompendo tradições fortemente arraigadas no undo jurídico,
Perelman explica que o Positivismo, sob suas variadas formas de xpressão, ao procurar justificar uma
epistemologia que favorece, invariável e xclusivamente, os métodos científicos, acaba chegando a uma
ontologia que retém tão omente os aspectos do real que os métodos das ciências positivas permitem reconhecer.
Apegando-se à compreensão do Direito em bases estritamente científicas, afasta-se da nálise dos elementos racional e social que o compõem.17 Diante desta realidade, é natural ue pouca ou nenhuma importância seja despendida aos Princípios Gerais de Direito pela etodologia do normativismo kelseniano, o que vai
de encontro não só aos objetivos lmejados pelo Direito, como também à realidade da prática judiciária, na
qual são aqueles econhecidos, explícita ou implicitamente, mesmo quando não expressamente proclamados pelos legisladores. Entende o autor que neste fato residiria a prova da “(...) natureza insuficiente da
construção kelseniana que faz a validade de toda regra de direito depender de sua integração num sistema hierarquizado e dinâmico, cujos elementos tirariam, todos, sua validade de uma norma suprema pressuposta.”
Perelman apresenta, a partir daí, a correlação existente entre o Direito e a Moral, paralelo fundamental
que deve ser tido em conta quando da solução dos litígios, acrescentando ao Direito o elemento valor, um
dos aspectos que se pode refutar como de maior relevância na hermenêutica jurídica contemporânea.
Considera, por conseguinte, que a sistemática do Direito não constitui um conjunto de regras jurídicas
com sentido e alcance independentes do contexto político e social, mas, antes, subordinadas a certos fins
e que devem ter em conta determinados valores, em função dos quais serão entendidas.
Defende o autor, assim, uma lógica baseada em valores – a lógica do razoável – a partir da qual busca o
aplicador do Direito alcançar a solução melhor amalgamada com as pré-concepções acerca da dimensão
conceitual de justiça inerentes ao grupo a que se destina a argumentação. E caberá, não só às regras positivadas, mas também aos Princípios de Direito, graças ao papel de destaque que assumem, conferir o
fundamento de validade do raciocínio jurídico.
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A necessidade de integração entre Direito e Moral também é identificada pelo jusfilósofo norte-americano
Ronald Dworkin, que reconhece a condição jurídica de determinados preceitos morais. Buscando a superação do juspositivismo, repudia a independência entre Direito e Moral pregada por esta doutrina, que
pugna pela desnecessidade de se conhecer e explicar a Moral para conceituar o Direito. Defende, assim, a
elaboração de uma nova via, intermediária entre o Jusnaturalismo e o Positivismo Jurídico, que tenha por
pressuposto a característica inerente à argumentação moral de construção de um conjunto principiológico
consistente que justifique e dê sentido às intuições humanas.
Objetiva, desta maneira, superar a dissociação entre Direito e Moral afirmada inclusive por positivistas
moderados como Herbert Hart,20 reconhecendo a insuficiência deste posicionamento na construção de
uma teoria do Direito que o identifique com a busca pela realização do ideal democrático e do princípio de
justiça. Como conseqüência deste raciocínio, alcança-se satisfatória acomodação dos juízos racionais e
dos Princípios de Direito, reinstaurando-se uma íntima relação entre a argumentação moral e a jurídica.
Tendo por base tão sólido substrato teórico, conseguiram, os forjadores do Pós-positivismo, vencer as
críticas formuladas pela ainda expressiva corrente de pensadores afeitos ao Positivismo Jurídico, logrando
alcançar o reconhecimento da posição de destaque dos Princípios Gerais de Direito. A admissão da sua
qualidade de normas jurídicas ultrapassou a esfera dos tribunais e atingiu os legisladores, que passaram a
buscar inscrevê-los nas Constituições promulgadas ao longo da segunda metade do Século XX, na esteira
do gradual processo de democratização dos Estados. Visando a assegurar a preservação de direitos reconhecidos como fundamentais ante a atuação do próprio Estado, ampliando a pauta axiológica orientada
para a tutela da dignidade humana, foram os Princípios Gerais de Direito inseridos nos textos constitucionais, alçados à condição de normas fundamentais do ordenamento e providos de inconteste normatividade, condição que os tingiu de indeléveis imperatividade e coercibilidade.
A normatização dos Princípios de Direito, paralelamente à assunção da natureza de Princípios Constitucionais, promove a ampliação do cânone democrático do Direito, vivificando seu caráter de instrumento para
realização da justiça e preservação da dignidade humana, valores que o permeiam de maneira fundamental e passam a ser identificados como seu eixo central. A constitucionalização dos Princípios e o reconhecimento de sua normatividade em espectro amplo também têm por conseqüência sua valorização, ornando-os com a condição de elementos centrais do ordenamento jurídico e afastando “(...) o conteúdo inócuo
de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais.”
Paulo Bonavides realça a importância do movimento de transposição dos Princípios de Direito dos códigos
para as constituições, convertendo-se, assim, no “(...)
fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais”, donde passam a servir
como critério para apuração de todos os conteúdos normativos do ordenamento jurídico, em vista do caráter hegemônico que lhes confere esta positivação no mais elevado grau. Encabeçam, desta forma, o
sistema jurídico, fundamentando e guiando a elaboração e aplicação de todas as demais normas instituídas.
Sob a perspectiva de Bonavides, os Princípios Gerais de Direito são substituídos pelos Princípios Constitucionais, os quais, porém, àqueles não se resumem, abrangendo, ainda, outros valores de caráter mais
específico, voltados à orientação de espaços específicos do plano jurídico estatal.
Sobre a larga influência da constitucionalização dos Princípios Gerais de Direito, Lenio Streck lembra:
O legislador ordinário se erigia em dono absoluto dos conteúdos da Constituição, podendo desenvolvê-los
com maior ou menor amplitude, ou, inclusive, desconhecê-los, sem que nem os cidadãos e nenhum outro
órgão do Estado pudessem ser capazes de reprovar tais comportamentos. (...) Mesmo com o advento da
CF/88, ainda é considerável o movimento de refragação ao novo texto, mormente naquilo que ele tem de
ab-rogante e por seu papel de filtragem hermenêutica.
O resultado que emerge desta evolução histórica, dogmática e legislativa mostra o seguinte:
(...) a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do
Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da
distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o
domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a
total hegemonia e preeminência dos princípios.
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A inscrição dos Princípios de Direito no patamar atualmente por eles ocupado deu ensejo ao recrudescimento de várias discussões que encontram sua essência ora na delimitação de sua natureza normativa,
ora nos mecanismos que devam ser observados para sua concretização, entre outras de igual relevância.
Tendo em mira a profunda renovação que a atual dogmática pautada na valorização dos Princípios promoveu na teoria jurídica, redefinindo as noções vigentes acerca das fontes do Direito e de sua estrutura
normativa, cumpre dedicar alguma atenção à conceituação daqueles, buscando-se identificar o lugar ocupado pelos Princípios no espaço normativo estatal.
2. DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS
Uma vez consolidados como fonte do Direito e reconhecido seu caráter normativo, quer por construção
jusfilosófica, quer por sua expressa inscrição nos textos constitucionais, cumpre analisar que espécies de
normas jurídicas seriam os Princípios.
Mais uma vez é a Paulo Bonavides que se recorre para iniciar a abordagem do tema. Tomando por referência a obra do jurista argentino Agostín Gordillo, assevera:
(...) os princípios de Direito Público contidos na Constituição são normas jurídicas; mas não só isso: enquanto a norma é um marco dentro do qual existe uma certa liberdade, o princípio tem substância integral (...) A norma é limite, o princípio é limite e conteúdo (...) O princípio estabelece uma direção estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de espírito (...) O princípio exige que tanto a lei como o ato
administrativo lhe respeitem os limites e que, além do mais, tenham o seu mesmo conteúdo, sigam a
mesma direção, realizem o seu mesmo espírito.
Convém ressaltar a lição de Humberto Ávila que, com muita propriedade, lembra não serem as normas
jurídicas os textos legislativos, mas os sentidos que podem ser construídos a partir de sua interpretação,
consistindo no resultado deste labor. Estes não se confundem, portanto, inexistindo necessária correspondência entre texto e norma, o que autoriza a conclusão pela possibilidade de texto legislativo do qual
nada se extrai e de normas não inscritas em dispositivos legais.
A atribuição de uma natureza normativa aos Princípios Gerais de Direito, independentemente de sua expressa construção legislativa, já de longo tempo encontra defesa na obra de autores como Norberto Bobbio, que afirma serem os Princípios Gerais de Direito “(...) norme fondamentali o generalissime del sistema, le norme più generali. (...) Per me non c’è dubbio: i principi generali sono norme come tutte le altre.”
Considerando a defesa desenvolvida no sentido de reconhecer aos Princípios a capacidade de ditar parâmetros a serem seguidos quando da reconstrução interpretativa do ordenamento positivo, cabendo-lhes,
inclusive, dado o seu papel de canal para manifestação de valores e anseios sociais, se sobrepor a regras,
relevante se torna a distinção entre estas e aqueles. Saliente-se que tal diferenciação não se faz facilmente, servindo os discrepantes resultados encontrados por variados mestres que já levaram a cabo esta tarefa como abalizada ilustração do quanto ainda resta pensar e discutir.
Pode-se iniciá-la trazendo à luz a crítica à doutrina positivista que Ronald Dworkin elabora, calcada no
fato de esta considerar o Direito como sendo composto apenas por regras, racionalmente dissociadas dos
conceitos atinentes à moral, censura que outros pensadores, como o alemão Robert Alexy, subscrevem.
Fundamenta-se a restrição na constatação de que um sistema assim conformado necessariamente será
lacunoso, posto que impossível a qualquer legislador prever a integralidade das situações concretas que
deverão ser regulamentadas, em especial quando configurados os chamados hard cases.
Um caso será difícil sempre que pairarem incertezas quanto à sua solução, seja porque existem normas
conflitantes, que apontem para sentenças distintas, seja porque não há norma aplicável. Ocorrendo semelhante situação, diante da qual não se possa recorrer às normas jurídicas concretas, o deslinde poderá
advir do recurso aos Princípios, uma vez que se-los reconheça como critérios normativos pré-existentes
para solução dos litígios.
Para Dworkin, os Princípios se manifestam sob duas formas: princípios em sentido estrito e diretrizes políticas. Estas são o “(...) tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (...)”, ao passo que os princípios em
sentido estrito se definem como
padrões de observância vinculada, não porque se mostrem capazes de promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas por uma exigência de justiça ou eqüidade ou
alguma outra dimensão de moralidade.
Para Dworkin, a diferença entre Princípios e regras é de matiz lógica, localizando-se a distinção na seara
da natureza da orientação que oferecem.
As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os atos que uma regra estipula, então ou a
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regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em
nada contribui para a decisão.
Já os Princípios funcionam de maneira diversa. “Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras não
apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas.”
Ao contrário, sua função é o de enunciar “(...) uma razão que conduz o argumento em uma certa direção,
mas ainda assim necessita de uma decisão particular.”
Outro caracter distintivo, no entender de Dworkin, diz respeito à dimensão de peso que aos Princípios é
peculiar. Quando estes se entrecruzam, precisa o julgador considerar a força relativa de cada um dos que,
diante da situação particular, se opõem.
Esta decisão, que forçosamente deve ser tomada, não implica na negação da validade do Princípio excluído, na hipótese. Em posição oposta situam-se as regras, com relação às quais não há que cogitar em
maior ou menor importância (dentre as pertencentes a um mesmo sistema), sendo inevitável o reconhecimento da invalidade de uma delas quando do entrechoque, ressalvada a incidência de critérios específicos de solução de conflito.
Robert Alexy refere-se às regras jurídicas como mandamentos definitivos, no que se diferenciam dos Princípios, mandamentos de otimização. Esta característica permite que os Princípios de Direito sejam observados em graus variados, em função do contexto em que são aplicados, diferentemente das regras, que
devem ser integralmente aplicadas, uma vez verificadas as premissas delas abstraídas. Regras são normas que, sempre, ou só podem ser cumpridas ou não cumpridas. Se uma regra vale, é ordenado fazer
exatamente aquilo que ela pede, não mais e não menos. Regras contêm, com isso, determinações no
quadro do fática e juridicamente possível. Elas são, portanto, mandamentos definitivos. A forma de aplicação de regras não é ponderação, senão a subsunção.
(...) princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão ampla quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, portanto, mandamentos de otimização. Como tais, eles podem ser preenchidos em graus distintos.
Destas definições é possível abstrair a impossibilidade de se solucionar colisão de Princípios segundo um
conceito de tudo ou nada. Afinal, um valor reconhecido não pode ter sua existência negada, mas, quando
muito, mostrar-se mais ou menos adequado a uma determinada situação, prevalecendo em razão de sua
melhor adequação à defesa dos interesses que se quer tutelar, no caso apreciado.
Semelhantes conflitos encontram solução através de mecanismos que visam a compatibilizar valores igualmente relevantes e não excludentes, a priori. Ganha destaque a ponderação de interesses, método
hermenêutico que encontra neste autor um de seus mais entusiasmados e hábeis teóricos, para o qual “a
discussão sobre a teoria dos princípios é, (...) essencialmente, uma discussão sobre a ponderação.”35
Este método entra em cena sempre que Princípios venham a colidir, ou seja, quando o exercício ou realização do preceito que se possa extrair de determinada norma jurídica revestida desta natureza tenha
conseqüências negativas sobre outro, indicando prescrições diversas e antagônicas a serem observadas.
Diametralmente oposta é a situação das regras jurídicas, entre as quais não pode haver colidência. Sendo
imperativos categóricos, não cabe ponderação quando regulamentam de maneira discordante uma situação. Invocam-se, então, os critérios preestabelecidos para apuração da eficácia da lei, já que aqui se fala
em validade da norma, ao passo que na hipótese antecedente, a referência é a seu valor. Outra possibilidade é da incompatibilidade entre um Princípio e uma regra. Neste caso, não há que se falar em conflito
posto que sempre o primeiro, dadas as suas características de norma geral e de conteúdo valorativo, prevalecerá, ainda que a conseqüência seja o afastamento da regra jurídica destoante.
Gordillo Cañas procura sintetizar esta discussão por meio da seguinte explicação:
Uma diferença separa a norma legal da norma principial: a primeira é uma norma desenvolvida em seu
conteúdo e precisa em sua normatividade; acolhe e perfila os pressupostos de sua aplicação, determina
com detalhe o seu mandato, estabelece possíveis exceções; o princípio, pelo contrário, expressa a imediata e não desenvolvida derivação normativa dos valores jurídicos; seu pressuposto é sumamente geral e
seu conteúdo normativo é tão evidente em sua justificação como inconcreto em sua aplicação. É aqui que
o princípio, ainda quando legalmente formulado, continua sendo princípio, necessitado por isso de desenvolvimento legal e de determinação casuística em sua aplicação judicial.
Humberto Ávila, em sua obra já referida, assumiu a função de sistematizar este estudo, listando alguns
critérios distintivos fundamentais. Afirma, primeiramente, o equívoco em se fixar a estrutura formal do
dispositivo analisado como parâmetro distintivo, de modo a se entender que somente regras poderão ser
extraídas de normas que contenham preceitos e sanções. Qualquer norma, independentemente de seu
conteúdo, admite ser estruturada de forma a exteriorizar uma hipótese e uma conseqüência: por meio
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de sua interpretação, pode-se extrair Princípios que indiquem padrões de comportamentos a erem adotados e efeitos que advirão de sua não observância. Com isso, entende que a istinção deve se dar a partir
da natureza das prescrições comportamentais e não da forma por meio da qual se manifestam.
Prosseguindo, critica a idéia de que as regras devam ser aplicadas segundo critério de tudo ou nada e
Princípios, de modo gradual, não determinando prévia e incisivamente a decisão que deverá ser tomada,
posição abraçada por Dworkin. Procura, então, demonstrar que também as regras, para serem postas em
prática, podem carecer de extenso processo interpretativo, no qual serão inseridos elementos valorativos,
admitindo-se conclusões nas quais, até mesmo, venha a ser negada sua incidência em uma hipótese específica. Sob este prisma, a distinção recai sobre “(...) o modo como o intérprete justifica a aplicação dos
significados preliminares dos dispositivos, se frontalmente finalístico ou comportamental, que permite o
enquadramento numa ou noutra espécie normativa”.
Por fim, infirma a validade do critério do conflito normativo, por meio do qual busca-se a distinção em
função das conseqüências advindas do entrechoque de normas, tal qual exposto por Robert Alexy.
(...) o conflito entre regras não é necessariamente estabelecido em nível abstrato, mas pode surgir no
plano concreto, como ocorre normalmente com os princípios. Esses casos também indicam que a decisão
envolve uma atividade de sopesamento entre razões.
Conseqüentemente, o conflito entre regras não acarreta na compulsória invalidade de uma delas, podendo ser resolvido aplicando-se critérios de ponderação, avaliando-se, no caso concreto, qual se reveste de
maior peso em função da finalidade que cada uma visa a preservar. Esta assertiva reitera a idéia de que,
ao exercitar seu labor, o intérprete deve estar atento aos valores que inquinam as situações abrangidas
pelas normas jurídicas em geral, considerando-os sempre que realizar o silogismo, sopesando as circunstâncias e os argumentos que se mostrem relevantes.
A partir destas colocações, é possível concluir, juntamente com Humberto Ávila, que não apenas os textos
normativos ou as normas jurídicas deles extraídas determinarão os elementos a serem privilegiados. Ao
intérprete é conferida a atribuição de identificar os elementos próprios de regras e Princípios e assegurar
sua máxima realização, seu “(...) conteúdo de dever-ser”.
Restringe-se, portanto, a distinção maior que cumpre realizar à determinação da prescrição de conduta
que se abstrai por meio da interpretação:
(...) os princípios não determinam diretamente a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação
que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim; as regras dependem de modo
menos intenso de um ato institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já está previsto frontalmente pela norma.
Em outras palavras, as regras instituem o dever de adotar um comportamento prescrito que objetiva o
alcance de específico fim e os Princípios, a realização ou preservação de determinado estado de coisas,
não necessariamente especificando meios que devam ser observados; em simples termos, fins que devem
ser atingidos e condutas a serem adotadas podem ser apontados como o núcleo prático de, respectivamente, Princípios e regras.
E assim, visto o que são Princípios Gerais de Direito, sua evolução conceitual até o patamar de força ao
qual foram contemporaneamente alçados, sua natureza normativa, habilitando-os a fornecer a fundamentação teórica necessária para a efetivação dos valores afeitos a cada sociedade, e a importância da atuação do intérprete na construção das normas jurídicas e delimitação de seu conteúdo, resta apreciar brevemente os mecanismos por intermédio dos quais se procede à sua aplicação, viabilizando a plena
realização do manancial axiológico neles refletido.
A lógica jurídica defendida pela doutrina jusfilosófica contemporânea abrange três áreas fundamentais: a
produção das normas, a aplicação das normas e a dogmática jurídica. A primeira dizendo respeito à fase
legislativa, a segunda ao trabalho de resolução dos litígios e a terceira, à expressão dos critérios e argumentos a serem utilizados pelos julgadores no processo de tomada de decisões.
No estudo ora desenvolvido, concentra-se a atenção nas fases segunda e terceira, com maior ênfase para
esta, a qual abrange a categoria dos métodos interpretativos capazes de viabilizar e legitimar a aplicação
dos Princípios de Direito.
Novamente adentra-se em terreno pouco consistente, sobre o qual grandes dúvidas ainda pairam, sendo
difícil vislumbrar algum esboço de consenso acerca dos métodos hermenêuticos que devam ser invocados
de forma a viabilizar a aplicação dos Princípios de Direito.
3. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO: OS CAMINHOS DA NOVA
HERMENÊUTICA
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O advento das doutrinas jusfilosóficas voltadas à superação do Positivismo Jurídico, habitualmente reconhecidas como pós-positivistas, ajudou a depor a assimilação do raciocínio jurídico ao silogismo puro, pelo
qual pregava-se ser a conclusão verdadeira porque demonstrada a partir de premissas verdadeiras, extraídas das regras de Direito Positivo cujo conteúdo fora previamente interpretado e compreendido, postura
que não se coaduna com um raciocínio prático, calcado em uma lógica verdadeiramente jurídica e voltado
para a realização dos ideais do Direito.
Porém, afastada a ficção acerca da aplicação do Direito resumir-se na concretização, por meio do raciocínio silogístico, das premissas estatuídas nas regras jurídicas, surgiu uma esfera de incertezas. Afinal, como já visto, os Princípios Constitucionais mais gerais, conformadores do ordenamento jurídico e consubstanciadores de valores sociais de espectro aberto, caracterizam-se por seu alto grau de generalidade, a
qual tende a contaminar o raciocínio lógico-jurídico neles pautado, gerando uma potencial insegurança, a
qual deve ser sanada, sob pena de não se alcançar a imprescindível solidez das construções judiciais.
O método retórico-argumentativo, com suas técnicas interpretativas que viabilizam a aplicação dos Princípios de Direito, justificando e legitimando argumentativamente a contaminação de todo o ordenamento
jurídico pelos valores constitucionais, mostra-se crucial, especialmente quando se tem em mira o fortalecimento do princípio democrático, refratário a toda sorte de atitudes arbitrárias.
Como afirma Oscar Vilhena Vieira:
É através da racionalização e da argumentação contida na motivação da decisão judicial que os tribunais
assumem o papel de discutir, publicamente, o alcance dos princípios e direitos que constituem a reserva
de justiça do sistema constitucional. (...) Cabe à doutrina e à dogmática jurídica agir argumentativamente
com o sentido de racionalizar e viabilizar a aplicação desses princípios.
Ademais, é certo que os métodos interpretativos voltados à realização dos fins propugnados pelos Princípios Gerais de Direito consubstanciam técnicas que, corretamente operacionalizadas, auxiliam sobremaneira o alcance da efetividade da atuação jurisdicional. Correta se mostra, portanto, a conclamação feita
por Barbosa Moreira:
Ponhamos em relevo o papel instrumental da técnica; evitemos escrupulosamente quanto possa fazer
suspeitar de que, no invocá-la, se esteja dissimulando mero pretexto para a reentronização do velho e
desacreditado formalismo; demos a cada peça do sistema o lugar devido, na tranqüila convicção de que,
no mundo do processo, há pouco espaço para absolutos, e muito para o equilíbrio recíproco de valores
que não deixam de o ser apenas porque relativos.
O recurso, pelo aplicador do Direito, às técnicas interpretativas (aqui consideradas como mecanismos lógicos a partir dos quais são encaminhadas as soluções dos litígios) permite sistematizar minimamente a
forma como se deve proceder à realização do processo de interpretação e aplicação das normas jurídicas
em conformidade com a ótica preconizada, fornecendo mecanismos democráticos de controle aos destinatários da atividade judicial.
Não se pode deixar de assinalar, por outro lado, a crítica que alguns pensadores, como Lenio Streck, fazem às teorias procedimentalistas que têm na argumentação retórica seu fundamento de validade.
A partir de concepções gadamerianas, afirma este autor que a hermenêutica de matriz filosófica não depende de desenvolvimentos conceituais que almejem alcançar uma espécie de grundmethode (um método fundante/fundamental). Sendo a hermenêutica uma expressão da pré-compreensão do intérprete, não
se limita a prestar contas dos procedimentos que a ciência aplica. Entendê-la de outra forma, calcando-a
em métodos interpretativos, acaba por fragilizar seus resultados, posto que estes se pautam em igualmente frágeis técnicas que tendem a objetificar o Direito, “(...) impedindo o questionar originário da pergunta pelo sentido do Direito em nossa sociedade.”48 Em outras palavras, para Streck, na esteira do raciocínio de Gadamer ou Ernildo Stein, a racionalidade discursiva não pode ser confundida nem vir a substituir a busca por um fundamento para a construção hermenêutica. “(...) na medida em que o fundamento
(...) é um modo de ser e não um procedimento, este não fornece a ‘segurança’ que a metodologia pretende dar ao conhecimento.”
Ressalta-se, assim, que ainda longe parece estar um ponto de equilíbrio entre as teorias que explicam as
formas como se deve proceder à atividade construtiva e desveladora das normas jurídicas ínsitas aos
Princípios Gerais de Direito, divergindo, por vezes agudamente, eminentes jusfilósofos.
Um autor que merece menção, quer pela sofisticação de suas idéias, quer pela enorme projeção alcançada, é Robert Alexy, justificando-se um sucinto caminhar por algumas de suas construções com o fito de
lançar melhores luzes sobre as observações acima feitas.
Este pensador defende a idéia de uma teoria procedimental, buscando, por seu intermédio, encontrar
fundamentos argumentativos capazes de, racionalmente, sustentar a resposta alcançada pelo intérprete.50 Sua preocupação em estabelecer mecanismos rígidos para balizamento do raciocínio jurí-
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dico, firmado em critérios de racionalidade, se explica não só pela tradição da escola alemã mas, também,
pela estrita correlação que faz entre Princípios Gerais de Direito e Direitos Fundamentais, identificados
como “(...) elementos essenciais da ordem jurídica (...)”. Este caráter de essencialidade aflora tanto no
plano interno quanto no internacional, onde se identificam com os Direitos Humanos, em razão da sua
validade universal, sobrepondo-os ao corpo de normas jurídicas nacionais, que ao seu primado se submetem, e impondo ao aplicador do Direito o árduo fardo de justificar suas escolhas por meio de argumentos
dificilmente refutáveis que possam ser, a qualquer tempo, submetidos a amplo controle.
A ponderação de interesses surge, então, como o principal mecanismo capaz de colocar em prática a pauta de critérios lógico-racionais eleita. Este método para concretização das normas de matriz principiológica
encontra assento no Princípio da Proporcionalidade, podendo ser descrita como um de seus desdobramentos, ou princípipo parcial, nos dizeres do autor. A aplicação do Princípio da Proporcionalidade tem por
pressuposto lógico necessário a existência de uma medida concreta destinada a realizar uma específica
finalidade, espécie de estrutura normativa primordialmente encontrada nos Princípios, como visto anteriormente. O exame da proporcionalidade depende da relação entre meios e fins, alicerçando-se na forma
como podem ser precisados os efeitos da utilização do meio e de como é definido o fim justificativo da
medida.
Dentro da ótica preconizada por Alexy, a operacionalização do método da proporcionalidade impõe a observância da idoneidade do meio empregado para o alcance do resultado pretendido, logrando-se assegurar a sobrevivência do interesse antagônico; da necessidade de utilização do meio escolhido, não havendo
outro menos interventor que o pudesse substituir representando menor restrição ao bem jurídico contraposto; e da ponderação, ou proporcionalidade em sentido estrito. Por este último princípio parcial entende-se que, quanto mais intensa é a intervenção na esfera subjetiva de direitos, tanto mais graves devem
ser as razões que a justifiquem, certificando-se que o benefício alcançado com a limitação de algum interesse compense o grau de sacrifício a ele imposto.
A estrita obediência a este método de raciocínio jurídico confere às soluções encontradas a dose necessária de racionalidade, que tem por condão viabilizar o controle das decisões através da aferição objetiva
dos critérios utilizados, posto que previamente conhecidas as bases do raciocínio lógico jurídico e os passos seguidos pelo intérprete.
Objetiva-se, desta forma, limitar sua discricionariedade, atrelando o labor interpretativo a parâmetros
sólidos, erigidos segundo medidas pré-estabelecidas que não podem ser manipuladas irrestritamente pelo
aplicador do Direito.
Variados tribunais vêm colocando em prática esta doutrina, destacando-se os julgados da Corte Constitucional Federal alemã que, já de longa data, desenvolve sua jurisprudência em conformidade com tal ideário. Porém, apesar de utilizado vigorosamente por esta Corte e amplamente divulgado e teorizado, o método da ponderação de interesses ainda é objeto de críticas formuladas por autores largamente respeitados, como Karl Larenz, que expressam seu temor ante uma eventual impossibilidade de controle das decisões alcançadas a partir da ponderação de bens em jogo, no caso concreto.
Tal opinião que é partilhada por juristas nacionais como Ada Pellegrini Grinover, tal qual noticiado por
Barbosa Moreira; este, porém, se prontifica a refutar a crítica à natureza subjetiva, e, portanto, passível
de instabilidade e inseguranças, deste método:
Mas a subjetividade parece ineliminável do comportamento do juiz, sujeito que é, e não há modo de impedir que lhe influencie as valorações e decisões. Para conjurar de vez semelhante ‘perigo’, precisaríamos
atribuir a objetos as funções hoje exercidas pelo julgador de carne e osso – ou, quando menos (o que já
seria impraticável) retirar dos textos legais todos os conceitos jurídicos indeterminados e subtrair aos órgãos judiciais até a mais mínima parcela de discrição. Quanto às eventuais ‘aberrações’, pode-se conjecturar se não serão mais numerosas e mais graves as que se originam da recusa sistemática e incondicional a tomar em consideração um elemento de prova de alto valor, quiçá decisivo, para a formação do
convencimento do juiz, só porque obtido por meio pouco ortodoxo – às vezes, o único ao alcance do interessado.
Porém, em que pesem críticas ainda hoje sustentadas por doutrinadores cujas opiniões não podem ser
desconsideradas, o método hermenêutico da ponderação de interesses vem sendo observado pelos Tribunais Superiores brasileiros e estudado por alguns expoentes do pensamento jurídico contemporâneo.56
Tendo por base os ensinamentos de Robert Alexy, festejado por muitos como o maior teórico do assunto,
no momento, esta doutrina toma vulto e contribui para o assentamento, em alicerces cada vez mais sólidos, das idéias que formam a corrente filosófica identificada como pós-positivista.
Outros métodos para a realização de uma hermenêutica voltada à concretização de Princípios encontram
assento na obra de variados pensadores. Tendo por base uma lógica jurídica atenta à necessi-
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dade de promover o permanente imbricamento entre o Direito e a pauta de valores sociais identificadas
nos textos constitucionais, objetivam, ainda que por diversos modos, o alcance de idêntico fim: a proteção da dignidade humana, assegurando a toda coletividade a possibilidade de uma convivência harmônica, onde estejam presentes as oportunidades necessárias para a máxima realização das potencialidades
humanas.
Há que se salientar, por fim, que, se a superação da era de pragmatismo, consubstanciada no Positivismo
Jurídico, permitiu inscrever o Direito em um novo patamar – que tem por moto a exaltação do seu papel
de instrumento para a realização da justiça e consolidação do Estado Democrático – cumpre aos seus intérpretes e aplicadores velar para que semelhantes promessas possam ser concretizadas. O novo paradigma conformador das constituições atuais, pautado na realização do ideal de justiça social e valorização
da dignidade humana, deve ser observado permanentemente, oferecendo, os Princípios Constitucionais
tão farta e enfaticamente gravados em seus textos, os parâmetros para a construção de um Estado efetivamente justo e democrático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os Princípios Gerais de Direito possuem papel fundamental na estruturação do ordenamento jurídico de
qualquer povo, consubstanciando os valores basilares a partir dos quais busca-se erigir e equilibrar as
relações sociais.
A concepção acerca dos Princípios de Direito que se vem solidificando permite antever o real valor e a
importância fundamental que possuem para a viabilização de uma ordem jurídica mais justa, fundada não
no poder arbitrário, mas em critérios de eqüidade, reconhecendo-se a necessidade de adequação das soluções jurídicas aos anseios sociais.
A evolução deste novo entendimento, que representa uma ruptura com a postura de distanciamento do
Direito com a realidade social, vem já de algumas décadas, tendo, porém, apenas recentemente aportado
efetivamente no Brasil, especialmente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, na qual um
sem número de Princípios Gerais de Direito foram inscritos, alçando-os à categoria de Princípios Constitucionais.
É certo que a tendência dos Princípios em se espraiar pelo ordenamento jurídico, abandonando seu tradicional papel subsidiário e assumindo uma função primacial, representa uma exaltação ao ideal democrático, posto que voltada irrefutavelmente à concretização de anseios e valores atinentes a toda sociedade,
servindo-lhe, ainda, como forma de proteção contra eventuais abusos cometidos pelo próprio legislador.
Corretamente entendida e operacionalizada, a hermenêutica calcada nos Princípios Gerais de Direito pode
ser valiosíssimo instrumento para a superação das desigualdades e efetivação do Direito enquanto meio
hábil à realização da justiça, concedendo aos intérpretes e julgadores argumentos consistentes na luta
pela satisfação dos anseios sociais e realização dos fins do Estado.
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