Por que estudar Ciência Política e Teoria Geral do Estado? Autor Agassiz Almeida Filho Advogado. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca/Espanha. Coordenador do Núcleo de Estudos Jurídicos da Fundação Casa de José Américo (2003-2009), Professor Titular da UEPB, Colaborador Permanente da Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais e autor de diversas obras. (www.agassizfilho.com) Por que precisamos estudar Ciência Política e Teoria Geral do Estado? Qual a utilidade dessas disciplinas para um juiz ou um advogado? Por que não começamos logo a analisar o Código Civil ou o Código Penal? Essas são perguntas que muitos estudantes fazem no início do curso de Direito. Em geral, há uma certa frustração por parte dos acadêmicos com as disciplinas do núcleo fundamental, aquelas que estão por trás, para dizer de alguma maneira, da cultura geral indispensável para uma adequada formação do futuro profissional do Direito. É como se elas fossem empecilhos para o estudo de casos; é como se fossem barreiras que impedem as emoções dos julgamentos, as expectativas criadas pelos filmes de tribunais, pela vontade de observar e ser parte da distribuição da justiça. Esse preconceito talvez seja resultado, cada vez mais, da forma como as pessoas atualmente vêem o curso de Direito: uma carreira comprometida com uma práxis cada vez mais desligada do homem e dos problemas que afetam a convivência. Ao contrário das disciplinas dogmáticas, a Ciência Política e a Teoria Geral do Estado precisam conquistar o aluno. Essa conquista tem lugar quando os acadêmicos percebem que a compreensão do Direito Público e do fenômeno jurídico em geral exige deles uma visão prévia acerca do comportamento coletivo do homem. Antes de mais nada, torna-se indispensável uma espécie de catarse mental, um estar aberto à experiência da realidade vivida, à lógica da vida em sociedade e ao papel da Política e do Estado nesse contexto tão amplo. O estudante de Direito precisa ter vontade de entender o mundo que o cerca. Isso faz parte de uma descoberta tão importante como todas as outras, que surpreende, entusiasma, decepciona, mas que está na base da formação de todos aqueles que vão atuar em um mundo jurídico onde a Constituição e o Estado ocupam lugar de relevo. O Direito e a Política caminham lado a lado. Ambos são responsáveis, cada qual à sua maneira, pela estruturação da vida em comunidade. Porém, a relação entre eles nem sempre se traduz em harmonia e complementariedade. Historicamente, nos passos da tradição greco-romana, o Direito vem se empenhando no sentido de co-locar limites ao exercício do poder político. Tratase de uma tendência que se manifesta de distintas formas, variando, por exemplo, conforme observemos o pensa-mento antigo, as práticas jurídicas da Idade Média ou a era das revoluções liberais (séculos XVII e XVIII). A própria idéia de Constituição, núcleo do sistema jurídico-político do nosso tempo, baseia-se no princípio geral de limitação da Política pelo Direito. Sempre que nos deparamos com a lógica do poder político - uma das dimensões da idéia mais ampla de Política -, também encontramos o Direito e sua vocação para conformá-la. Mas essa constante busca de limitação por parte do jurídico nem sempre alcança o êxito esperado. Muitas vezes, o poder político termina por burlar o Direito em nome de interesses de grupos sociais, políticos e econômicos. Por isso, a tradição de limitar juridicamente a ação da Política, que está na base do atual Estado Democrático de Direito, não conduz a uma submissão total do político ao jurídico. Ao contrário, ao longo desse tumultuado processo histórico, a força do poder político vem colecionando muitas vitórias sobre as normas jurídicas que pretendem submetê-lo a uma limitação mais ou menos racional. Na verdade, a história do Direito e da Política é a história de um cabo de guerra no qual estão implicados os indivíduos, a sociedade com seus grupos - e o Estado. Os vencedores e vencidos são definidos de acordo com as contingências de cada momento histórico. Sabemos que no Brasil de hoje vigora uma Constituição democrática. Por outro lado, também é de conhecimento geral que muitas das normas constitucionais não têm eficácia social, ou seja, não funcionam como verdadeiras normas jurídicas. Mas por que isso acontece? Aquilo que está previsto na Constituição não deve ser observado pelas pessoas, pelas organizações e pelo Estado? O fato de a Constituição mencionar o fim das desigualdades regionais como objetivo do Estado ou o primado dos direitos fundamentais não é suficiente para que essas previsões se convertam em realidade? Qual o papel dos partidos políticos e do Congresso Nacional nesse contexto? Essas perguntas só podem ser adequadamente respondidas se tomarmos o Estado e a Constituição como esferas da vida em comunidade que tanto possuem natureza jurídica quanto política. Não há nenhuma dúvida de que a Constituição de 1988 defende o postulado do Estado Democrático de Direito. Contudo, também parece evidente que a mera previsão normativa não é suficiente para que o país se converta em uma verdadeira democracia, onde os membros da comunidade política, entre outros aspectos, tenham condições de expressar adequadamente a vontade política que está na base da soberania popular. A lógica democrática ou mesmo o funcionamento das instituições conforme o Direito, por exemplo, são realidades que dependem da cultura política de um povo. Não é à toa que um dos principais obstáculos enfrentados pelo Estado de Direito entre nós seja o velho sistema da clientela e da patronagem, através do qual a atuação da Administração Pública se compromete com a distribuição de vantagens entre seguidores de determinadas facções políticas. A cultura política não pode ser estudada pelo Direito. Também fogem à sua esfera de abrangência a dinâmica dos partidos políticos, o funcionamento dos sistemas eleitorais, a maior ou menor representatividade do Poder Legislativo ou a própria relação quotidiana entre as instituições. Essas questões devem ser tratadas como realidades concretas que muitas vezes não seguem os padrões normativos previa-mente determinados pelo ordenamento jurídico. A Ciência Política faz parte da formação do estudante de Direito em virtude da sua aptidão analítica para enfrentar esse tipo de problema. Ela aproxima-se da realidade com o fim de estudar aquilo que realmente acontece no âmbito das relações e das instituições políticas. Seu objeto é o sistema político concebido de forma dinâmica. Nessa linha, a Ciência Política procura evitar que o profissional do Direito veja no ordenamento jurídico a solução para todos os desafios da convivência, tentando impedir, entre outras distorções, que saiam das faculdades os velhos aplica-dores autômatos da lei, os profissionais que se posicionam acriticamente em relação às soluções jurídicas criadas pelo Estado. No curso de Direito, a principal função da Ciência Política consiste em mostrar que o sistema político nem sempre atua segundo as previsões da Constituição e do ordenamento jurídico como um todo, o que exige do profissional do Direito uma permanente visão crítica acerca do funcionamento geral do sistema. Para alcançar esse objetivo, a Ciência Política atua ao lado da tradicional Teoria Geral do Estado. Houve uma época em que a Política era dominada quase que exclusivamente pelo Estado. No século XIX, existia no plano das idéias e na lógica do universo político uma espécie de separação entre Estado e Sociedade. O social seguia regras próprias, definidas segundo a autonomia dos indivíduos e o funcionamento da economia. O Estado não podia interferir nesse âmbito privado, alterando o modo de vida que estava na base do mundo liberal. Atuava apenas como mecanismo de garantia das regras sociais e de alguns direitos fundamentais, como a liberdade, a igualdade perante a lei, a propriedade privada e a segurança jurídica. Em uma palavra, o Estado figurava como um "aparato policial" que vigiava o livre desenvolvimento da vida em comunidade. Se à Sociedade cabia a esfera privada, ao Estado estava reservado o âmbito político. Apesar de manter uma inevitável proximidade, em termos políticos o social e o estatal não podiam entrar em contato. Em tal contexto, surge a Teoria Geral do Estado como modelo de análise da Política. Porém, a universalização do sufrágio eleitoral, entre outros fatores, quebrou o tradicional exclusivismo político do Estado, permitindo que novos atores - sindicatos, opinião pública, grupos de pressão, partidos políticos etc. - passassem a fazer parte do processo de tomada das decisões estatais. A Política deixa de ser algo relacionado apenas com o âmbito estatal, aproximando-se dos grupos sociais e superando a diferenciação que existia entre Estado e Sociedade. Essa nova realidade interfere no papel a ser desempenhado pela Teoria Geral do Estado no curso de Direito? Não há nenhuma dúvida. Afinal, o fenômeno político sofreu grandes transformações no decorrer do século passado. Mas não se trata apenas disso. Desde o começo, a Teoria Geral do Estado teve uma vocação essencialmente normativa, ou seja, uma tendência para analisar o Estado e a Política como se fossem realidades teóricas. A Teoria Geral do Estado situa-se no plano abstrato, enquanto a Ciência Política busca o fato vivo, real, o acontecimento político como parte de um sistema em constante movimento. Deixando de lado a posição de alguns autores, a exemplo de Zippelius, que procuram dar nova feição à Teoria Geral do Estado, pode-se concluir que as duas disciplinas se complementam. E se é verdade que pode haver alguma divergência a esse respeito, é muito difícil negar a posição de ambas como conteúdo fundamental para a formação do estudante de Direito. No nosso complexo mundo atual, fazer política e compreendê-la são condições de sobrevivência da democracia.