XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ: O DISCURSO LITERÁRIO
COMO RESSIGNIFICAÇÃO DO HUMANO EM UM ESPAÇO DE EDUCAÇÃO
POPULAR
Tiago Cavalcante da Silva (UFRJ)
RESUMO:
É indiscutível que a capacidade de ressignificar o ordinário é o que nos confere
humanidade. Nesse caminho, a literatura cumpre itinerário basilar: é ela que nos conduz
a um não-andar-com-os-pés-no-chão que nos (re)decora o viver e nos precipita a
mundos-outros, onde se encorpam as possibilidades do que pode(ría?)mos sentir e ser.
Isto, que é, todavia, um direito inalienável do homem, perde fôlego quando nos
voltamos para o cenário da educação literária nas escolas públicas: abordada, não raro,
por meio de metodologias que a distanciam da experiência mais densa dos alunos com a
vida, a literatura acaba sendo concebida como um conjunto de textos mofados que nada
têm a ver com o humano-em-nós. A situação se agrava se pensamos ainda em escolas
localizadas em áreas como o Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde,
para muitos estudantes, a fruição da arte literária mostra-se supérflua diante de questões
sociais muito mais pungentes. Nessa medida, desenvolvido em um pré-vestibular
comunitário da favela de Nova Holanda – projeto ligado à Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –, este trabalho teve por objetivo entender
como, por intermédio de encontros semanais do grupo SOCIEDADE DOS POETAS
VIVOS DA MARÉ, os educandos puderam se ressignificar humanos. Baseando-se na
pedagogia crítica freiriana, o grupo se desenvolveu seguindo uma metodologia
dialógica: constituiu-se como espaço de troca/construção de saberes e de reflexões sobre
a prática pedagógica do próprio educador. Durante as reuniões, o grupo produziu
inúmeros textos que eram publicados em uma rede social da internet e servirão como
corpus para as reflexões aqui feitas.
Palavras-chave: projeto de extensão; pré-vestibular social; formação continuada de
professores
Meus sonhos ganharam asas
As de Ícaro lhe serviram bem
E voaram alto.
E lá do alto
De uma altitude segura
Viajavam e me sorriam
Desejos e segredos sob a cera
Que já começava a lamentar.
Os segredos eram frágeis
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Mas os desejos, ambiciosos,
De nada se importavam.
Comandavam determinados
As asas tristonhas em direção ao Sol.
Bem alto e cada vez mais longe...
Eu já não os via mais.
Mas quanto mais alto subiam
Mais chorosas ficavam as asas
Que desmanchavam sonhos
Que matavam desejos
E quebravam os segredos
Próximos à luz.
Seu lamento foi a única coisa que vi então.
Em gotas como bolinhas cintilantes
Que mais pareciam pingentes de madre
pérola.
Eu as juntei do chão.
Vou derretê-las.
Reconstruí-las...
E terei asas outra vez.
(KAIROS, 2009:16)
I. MEUS SONHOS GANHARAM ASAS...
De-vez-quase-sempre, o D(d)eus pessoano – também nosso –, que “Limpa o
nariz ao braço direito”, “Colhe as flores, e gosta delas e as esquece” (PESSOA, 1997:
24) nos tira a poesia: olhamos a flor, e vemos a flor mesmo. Emudece a batucada: hora
de a fantasia voltar para o barracão. Cada coisa em seu lugar.
O humano-nosso sabe, todavia, da necessidade (condição) de ressignificarmos o
ordinário: de rejuntar a cera chorosa, caída ao chão, devolvendo-lhe – asas novamente –
a Ícaro. E sabe, ainda, que é na palavra que se opera a possibilidade dessa
ressemantização do trivial. É a literatura, nesse caminho, que nos dá coragem para
seguir viagem, conduzindo-nos a um não-andar-com-os-pés-no-chão que nos (re)decora
o viver e nos provoca ao (des)olhar.
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Se a literatura, como toda arte, é a confissão de que a vida não basta, a palavra
escrita, em sua órbita literária, permite ao leitor experienciar sentires-outros, olharesoutros, capazes de conduzi-lo a perceber as emoções, o pensamento, a vida humana de
maneira distinta – e, por isso, enriquecedora – daquela com a qual aprendeu, não raro
puerilmente, a conceber a realidade – sua e do mundo. A leitura literária é, pois, um
meio de, vivenciando a alteridade, enriquecer-nos de outras experiências de sentir,
olhar, de ser (humano). Jouve (2003: 109) nos ensina: “Ser quem não somos [...] tem
algo de desestabilizante. Ler, pois, é uma viagem, uma entrada insólita em outra
dimensão que, na maioria das vezes, enriquece a experiência”.
Mas literatura é também meio de apuração do senso crítico. Sendo o homem
feito na palavra, e não no silêncio, conforme Freire (2005), a palavra literária é um
modo de assumirmos um lugar no mundo diante das questões de ordem social que
necessariamente nos implicam – cidadãos do mundo que somos. Para Lehay-Dios
(2000: 245), a educação literária “ajudaria a construir ‘pessoas melhores’, no sentido de
serem sujeitos mais competentes para validar a cidadania e nela se engajar, buscando a
formação de comunidades democráticas.”
Se a fruição da estética literária lega ao leitor a experiência enriquecedora de
sentir a vida por meio de uma miríade de outras possibilidades de ser (humano) e lhe
concede o poder da palavra como exercício de cidadania, por que, entretanto, como
apontam Cavalcante (2005; 2006; 2007; 2008; 2009) e Martins (2006), o fenômeno
literário ser, não raramente, tratado sob a ótica do “beletrismo” em muitas escolas
públicas e outros espaços de educação popular? Se é a literatura instrumento e registro
da (r)evolução do homem, por que razão trabalhar a leitura literária em sala de aula sob
perspectivas, concepções, metodologias que levam o aluno a afastar-se dela, sentindo-se
intruso ao apenas vislumbrar a possibilidade de se alçar ao Parnaso – lugar de eleitos?
Convivo com essa visão deformada sobre o fenômeno literário todo início de
ano quando começo a ministrar minhas aulas de literatura no Curso Pré-vestibular
Redes da Maré (CPV Redes da Maré), da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público) Redes de Desenvolvimento da Maré (www.redesdamare.org.br), em
parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro por meio de Eliana Sousa Silva,
diretora da OSCIP e da Divisão de Integração Universidade Comunidade (DIUC) da
UFRJ. Localizado na favela de Nova Holanda e fundado em 1997 por moradores – hoje
seus diretores – que visavam à democratização do acesso à universidade pública de
qualidade, o CPV atende cerca de 300 alunos todos os anos, provindos das mais
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diferentes comunidades e escolas do complexo da Maré (Cf. Relatório Anual do CPV
Redes da Maré – 2011).
É, portanto, a vivência da prática pedagógica no CPV Redes da Maré que me
enredou em um incômodo para o qual desejo, aqui, criar inteligibilidades: Poderia, a
experiência literária, servir como ferramenta de ressignificação do próprio estar-nomundo de meus alunos, contribuindo para que seus sonhos ganhem asas rumo a uma
outra percepção de si como cidadãos, seres humanos, sujeitos de sua própria história?
II. ALAGADOS, TRENCHTOWN, FAVELA DA MARÉ...
“Palafitas, trapiches, farrapos”, como na canção dos Paralamas do Sucesso.
Entre a vida-que-não-para da Av. Brasil, o lodo da Baía de Guanabara e no entrecortar
das Linhas Vermelha e Amarela, encontra-se o Complexo da Maré. Formado no início
do século XX, principalmente por nordestinos que buscavam tentar a vida na “cidade
que tem braços abertos no cartão postal”, o Complexo reúne atualmente 16
comunidades, tendo sido emancipado à condição de bairro pela Prefeitura do Rio de
Janeiro em 1994.
À deriva das políticas públicas, o Complexo da Maré carece de educação de
qualidade, saúde, espaços culturais, bibliotecas, instituições de amparo legal e,
principalmente, segurança, que traz, a seu reboque, a violência – um grande drama
vivido pela região. Estando, pois, as autoridades com “os punhos fechados pra vida
real”, ocupam seu lugar cerca de 100 OSCIPs que atuam nos mais diferentes âmbitos.
Uma delas, a já citada Redes de Desenvolvimento da Maré, encabeça projetos
relacionados à área da cultura, comunicação, mobilização social, segurança pública e
educação, com o apoio de instituições como Petrobrás, Supergasbrás, WordFund, UFRJ.
Fundada na década de 1990, a OSCIP oferece aos moradores da região o CPV Redes da
Maré desde 1997 – conforme já mencionado –, que já contribuiu para o acesso de cerca
de 1.000 jovens do Complexo à universidade pública.
A comunidade se situa às costas da maior universidade do Brasil: a UFRJ. Nesse
sentido, é preponderante que a pesquisa acadêmica volte sua face para esse espaço, que
sempre lhe forneceu mão-de-obra para ocupações exigentes de baixa ou nenhuma
formação escolar, e reflita como podemos estabelecer diálogo entre os saberes
produzidos na Academia e as questões cotidianas vivenciadas por seus funcionários e
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alunos moradores do Complexo. Por isso a escolha desse espaço como contexto de
pesquisa.
O espaço específico de minha investigação se constituiu de maneira bastante
natural. Nascido de um desejo dos próprios alunos do CPV, após assistirem, em uma
aula, ao filme Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Morts, EUA, 1989), de Peter
Weir, o grupo SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ desenvolveu-se
durante o segundo semestre de 2009 em horário fora da grade curricular do curso,
contando com cerca de 15 participantes. Sem um plano pré-definido, os encontros
giravam em torno de textos que abordavam os mais variados temas. A seleção desses
textos condicionava-se pelo querer dos educandos e por questões espontâneas que
surgiam no decorrer das discussões. Como forma de registro das reflexões provocadas
pelos encontros, os alunos publicavam textos seus (poemas, aforismos, pensamentos,
contos) em uma rede social na internet, o Orkut.
III. AI, PALAVRAS... AI, PALAVRAS...
Se estamos na lida com o discurso literário, não podemos, de modo algum,
desprezar a estranha potência das palavras e deixá-las rolar inocuamente pelo rio difícil
sobre o qual nos fala Drummond. Para tanto, ancoro-me em uma concepção bakhtiniana
de discurso. Embora Bakhtin não tenha proposto formalmente uma teoria do discurso, é
possível, por meio de seus escritos, perceber que a linguagem não se caracteriza como
um mero sistema abstrato fechado, mas sim como atividade, como um fazer
incontornavelmente ligado à vida.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin afirma ser o discurso “[...] a
língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da
Linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de
alguns aspectos da vida concreta do discurso.” (2002: 181). O discurso apresenta,
portanto, uma dimensão sócio-histórica, ideológica, valorativa. Nenhuma palavra é
inócua: são todas, sempre, prenhes de valores, sentidos construídos nas relações
humanas, num contexto social, histórico e ideológico que necessariamente determina
esses sentidos. Nessa medida, nenhuma escolha lexical, sintática, morfológica,
prosódica, mesmo que inconscientemente, é pueril. Todas revelam/produzem
determinadas posições ideológicas diante da realidade, da vida.
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É por meio do discurso que nos (re)construímos, dialogicamente. O diálogo é
uma arena, um espaço de luta entre vozes sociais. Nesse embate, atuam tanto forças
centrípetas (aquelas que servem ao monologizante, ao hegemônico) quanto forças
centrífugas (aquelas que se chocam contra as tendências centralizadoras). Estabelecese, desse modo, uma luta social entre as diferentes “verdades sociais”, luta essa que,
consoante Bakhtin, é infinita, haja vista que nunca haverá uma síntese da dialética, uma
superação definitiva das contradições.
O sujeito é, pois, inconcluso, (re)construindo-se em um movimento dialógico
perpétuo no interior de uma multiplicidade de discursos. Em tal movimento, ele pode
estabelecer relações de aceitação e recusa, de convergência e divergência, de harmonia e
de conflitos, de interseções e hibridizações. O mundo interior do sujeito é povoado por
vozes de autoridade e vozes persuasivas, isto é, vozes que servem a um discurso
hegemônico, absoluto sobre a realidade, a vida, e vozes que, como uma entre muitas
outras, transitam nas fronteiras, estando abertas a outras possibilidades de compreensão
da mesma realidade, da mesma vida. É nesse espaço, portanto, de incorporação do
monológico ou de sua negação, que o sujeito se constitui socioideologicamente.
Partindo dos referidos conceitos bakhtinianos, penso ser o discurso fundamental
à construção axiológica do próprio conceito de literatura como “alta cultura” com o qual
os alunos do CPV Redes da Maré têm/tiveram contato por intermédio de seus
professores, provavelmente também educados na Academia por meio de tal conceito.
Assim, quando refletimos sobre o ensino de literatura em espaços populares, é
incontornável esbarrarmos na relação do grupo social a que pertencem os estudantes de
tais espaços e o grupo ao qual eles acreditam ser destinado o direito de usufruir da arte
literária. Para muitos, que entram em contato com o fenômeno literário a partir de uma
abordagem tradicionalista, beletrista e distanciada do viver, a leitura literária é algo
inimaginável no seu “chão tão salpicado de compromissos” (ANDRADE, 1978:74), é
algo destinado a poucos, nascidos em berço de cultura letrada, e não a eles, nãoletrados, “favelados”. Representaria ato herético um estudante de espaço popular se
apropriar do discurso literário, direito do outro-nascido-em-berço-de-cultura-letrada,
quem esse estudante não-é, em contrapartida.
Nesse sentido, é de extremo relevo que o professor de literatura, ancorando-se
em uma pedagogia crítica, conduza o educando de espaços populares a, por meio do
discurso literário, desconstruir determinados padrões de ser que só operam na
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manutenção do sofrimento humano e no asfixiamento de grupos sociais julgados
culturalmente inferiores. Ensina-nos Rajagopalan (2003: 111-2):
Ao educador crítico cabe a tarefa de estimular a visão crítica
dos alunos, de implantar uma postura crítica, de constante
questionamento de certezas que, com o passar do tempo,
adquirem a aura e a ‘intocabilidade’ de dogmas. [...] O
educador crítico sempre foi e sempre será uma ameaça para
os poderes constituídos.
Cerrando fileiras com esse pensamento, Freire (2005) afirma que prevaleceu,
durante muito tempo – e ainda prevalece em muitos contextos –, uma educação
“bancária”, segundo a qual a relação entre educador e educandos se dá de forma
hierárquica. O professor, chancelado por seu diploma acadêmico, é aquele que dispõe
dos conhecimentos que devem ser passados para os alunos, os quais são concebidos
como “tábulas rasas”, cujos conhecimentos prévios e experiências de vida não são
relevantes para o processo de ensino-aprendizagem.
Freire volta-se ferozmente contra essa perspectiva pedagógica engessada e
advoga que a educação, para ser efetiva, isto é, para alcançar seu maior objetivo – a
formação de seres pensantes, autônomos –, tem de ser libertadora, capaz de levar o
educando a questionar, a criticar, a pensar por si mesmo, a ser ativo na construção dos
conhecimentos trabalhados na escola. Uma educação de fato libertadora, consoante
Freire, tem de ser conciliadora, isto é, tem de partir do pressuposto de que os saberes
são construídos em um intenso e equilibrado diálogo entre educadores e educandos.
Dessa forma, o professor perderia o posto de senhor do conhecimento e passaria a
desenvolver o papel de um orientador, um facilitador entre os conhecimentos já trazidos
pelos alunos e aqueles que ele domina.
Freire ainda entende que, para além dessa relação dialógica entre educador e
educando na construção do conhecimento, marca a educação libertadora o processo de
humanização dos estudantes. Por humanização, compreende-se a ação de conduzir os
educandos a uma reflexão/ação sobre sua sensibilidade e sobre o mundo, com o fito de
transformá-lo e torná-lo um lugar mais justo, igualitário para se viver. Não atentar para
a importância de humanização é, conforme Freire (ib.: 86), uma forma de violência:
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“[...] qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam
sujeitos de sua busca se instaura como situação de violência.”
IV. DESEJOS E SEGREDOS SOB A CERA...
Como já posto, a SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ se
desenvolveu durante o segundo semestre de 2009, fora da grade horária do curso. De
início, os encontros realizavam-se quinzenalmente, mas, no decorrer do processo,
atendendo a um desejo dos próprios alunos, as reuniões passaram ocorrer todas as
semanas.
A cada encontro discutiam-se temas ou autores escolhidos pelos alunos.
Baseando-me na perspectiva crítica freireana, não atuei na SOCIEDADE como
professor daquele grupo, mas sim como um par disposto a orientar possíveis caminhos
de leitura e/ou escrita pelos quais eu já havia me enveredado. Sendo assim, o material
discutido era levado, sobretudo, pelos educandos: incluíam-se, aí, desde textos de
autores consagrados pela crítica, como Clarice Lispector e Carlos Drummond de
Andrade, até letristas, poetas, escritores que publicam em blogs na internet, além de
textos produzidos pelos próprios alunos.
Não havia um caminho de leitura pré-definido por mim. Toda semana, lidava
com a beleza do que não-se-sabe-por-vir. As reflexões se processavam à medida que as
questões surgiam e os poemas, contos, crônicas, dentre outros, eram trazidos. A
dinâmica da própria leitura também se pautava pelo inesperado. Havia alunos que
gostavam de declamar os textos; outros, de musicá-los; outros, de dramatizá-los. E
dessa forma caminhava nossa vivência literária: uma experiência compartilhada, sem
conteúdos pré-estabelecidos, sem um professor dono do significado essencial dos
textos; uma experiência que se operava na palavra, consciente de que, pelo dizer, é
possível ressignificarmos o humano-em-nós.
Um dos autores mais lidos na SOCIEDADE – não sei dizer ao certo por quê –
foi Clarice Lispector. Sua busca por si mesma, por seu sentir, pelo significado de estarno-mundo despertou, em muitos membros do grupo, o desejo de também interrogar-se,
de se (re)pensarem humanos. Após os encontros, os alunos sempre publicavam
reflexões, por meio dos mais diversos gêneros textuais, em uma comunidade
homônima, na rede social Orkut, como podemos visualizar abaixo:
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Figura 1: comunidade dos POETAS VIVOS DA MARÉ na rede social Orkut.
Inspirado por uma reunião em que se discutiram alguns textos da escritora
Clarice Lispector, um dos membros da SOCIEDADE publicou o seguinte poema,
reproduzido, aqui, ipsis litteris:
A despeito das inadequações gramaticais verificadas no texto - é importante
frisar, aqui, que os alunos tinham livre acesso à comunidade; por isso, os textos eram
publicados diretamente por eles, sem revisão do professor –, observa-se, nele, uma
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reflexão bastante alentada acerca do significado da existência humana e da própria
escritura. Publicado por um aluno que hoje cursa Serviço Social na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o texto corporifica-se como um testemunho do caráter
fugidio das palavras no que toca à apreensão do que pensamos, sentimos, somos.
Redigido em primeira pessoa, o poema enfoca questões ligadas ao eu, questionando seu
próprio estar-no-mundo:
Não há razão nenhuma no que faço
Sem sentido, um vácuo pensamento me paira
Não há motivo que explique o que sinto
Nada é útil, nada é físico, nada
A negação é fundamental ao entender-se do eu lírico, ganhando forma por meio
do advérbio “não”, dos pronomes “nenhuma” e “nada” e da preposição “sem”: está, o
educando, a bordar o seu avesso, sem medo do violento rasgar-se a que a palavra o
inclina. É importante notar, ainda, o uso do adjetivo “útil”, negado pelo pronome “nada”
no quarto verso: consciência de que o discurso não dá conta de nos compreendermos
por inteiro, haja vista ser sempre uma elaboração simbólica de nosso sentir. Além disso,
mostra-se de grande relevo notar que já se inscreve no aluno a percepção de que o
fenômeno literário é, de fato, inútil: não paga contas, não dá respostas prontas, não
compra o pão do café matutino. Sua utilidade está, por outra verve, na provocação de
reflexões, de questionamentos que podem nos levar à ressignificação de nosso próprio
viver-nos:
Sei que estou ao mesmo tempo racional e louco
Se isto pode ser bom ou ruim?
Não sei dizer, talvez diga o tempo, talvez
Estreitando-se pelo paradoxo da razão e da loucura vicejantes e complementares
na experiência humana de todo indivíduo, o eu lírico indaga-se acerca do sentido dessa
contradição. A resposta faz visita com a merencória e necessária recorrência do
advérbio “talvez”, que circunstancia a responsabilidade de dizer do tempo.
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Nessa medida, embora não tragam enlaçadas as respostas, são as palavras,
abusadamente escorredias, que precipitam o eu lírico ao (re)ver-se, reelaborando, por
meio delas, o significado se pensar, sentir e ser:
Ou possa simplesmente ignorar esse pensamento vazio
Deixando escapar os ruídos que na realidade gostaria de
explicar
[...]
Ah, pensamento vazio, por onde andarão palavras que
preencham sua lacuna?
Livres, será que se esqueceram de seu antigo dono e
companheiro?
A resposta é um testemunho de que está no discurso a possibilidade de expressão
do que somos ou poder(ía)mos ser:
Acho que não, mas sim, procuraram um novo modo de
expressão
Sem medo, sem inibição, sem fragilidade
As palavras, já de casa, usufruem o eu lírico e fogem, rasteiras, serpenteando por
entre seus dedos e o conduzindo às veredas do perder-se – perder-se que é encontrar-se:
Vez ou outra algumas voltam e dão um “alô”, tomam café
Passam a noite e... despedem-se
Não sei quem está mais perdido, se são minhas palavras
fugitivas ou eu mesmo.
À reflexão sobre a experiência de se viver soma-se à dor de amor. Após um
encontro em que se discutiram textos que versavam sobre o significado de amar, um
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membro da sociedade que hoje cursa Ciências Sociais na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro registrou, na comunidade, o seguinte poema:
Concentrado, também, na 1ª pessoa, o texto constitui-se como um registro
dorido da pergunta que resta após a violência do se-ir de um amor: “Cadê eu?”. A
resposta se corporifica no próprio lugar ocupado pelo sujeito depois de “sucumbido”:
Chegou a hora, a luz se apagou.
O dia está escuro, mais que a noite.
Meus tímpanos e pupilas, cobertos, para não captar sons
e ações ilícitas.
Intacto estou!
Imerso em um ambiente soturno, o eu lírico tem por companheira a ausência: “a
luz se apagou”. Povoado pelas sombras de um dia paradoxalmente mais “escuro” que a
noite, o sujeito cobre as vias de sentir e perceber o mundo, entregando-se à inércia,
como sugere o adjetivo “intacto”, no contexto.
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Ressemantiza-se, desse modo, a própria esperança, agora não mais alimento do
caminhar, mas substância que, deglutida a seco, em uma digestão “lenta” e “hostil”,
incomoda e fragmenta o corpo:
No fundo, uma esperança tarjada, engolida e triturada.
A digestão é lenta e hostil.
Seus nutrientes passam eliminando células que aliadas da
esperança eram.
A dor vai aumentando em detrimento de um amor que
sucumbido foi.
Sinto-me fragmentado.
E a experiência amorosa, antes sinônimo de liberdade, calor e alimento, perde-se
em um “vão escuro”, conduzindo o eu lírico à errância de seus passos:
Um amor que outrora era vento, era sol, era água
Agora, distorcido, vagando em meio ao vão escuro do
universo.
V. E TEREI ASAS OUTRA VEZ...
Os dois poemas aqui analisados corroboram por inteiro a tese bakhtiniana de que
o signo não pode ser compreendido como um decalque da realidade. É nele que se opera
a possibilidade de (re)construção de nosso estar-no-mundo. No caso específico dos
membros da SOCIEDADE, observamos como, por meio do discurso literário,
conseguiram ressignificar-se humanos, imergindo em questões existenciais que, a
priori, não podem se inserir na pauta de vida de quem mora em espaços como o
Complexo da Maré.
A experiência do grupo orientou seus participantes no caminho da humanização
– ansiedade que deve mover a prática de todo educador crítico, conforme Freire. A
literatura, como um fenômeno de elaboração do simbólico, constitui um meio de
ressignificação do que somos, ressignificação que só se pode desenvolver no plano do
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ficcional, uma vez que a razão e a realidade por si mesmas não dão conta do
ininteligível em nós:
A literatura é uma forma de pensar como a vida poderia ser,
ou deveria ser, desenvolver utopias. Rompendo com as
obviedades e com as ‘realidades’, a literatura rompe com a
vida já dada e suspende a capacidade de não acreditar no
que nossos olhos não veem.
(Ramos, 2004: 81)
Dessa maneira, a fruição do texto literário não somente pelo caminho do
estético, mas deste relacionado à experiência do humano é que nos permite dar sentido à
complexidade da vida, “pois o homem sempre precisará de meios capazes de
representar seus anseios, desejos, sonhos, enfim, algo que mantenha sua imaginação
sempre viva e ativa.” (Martins, 2006: 36)
A SOCIEDADE, contudo, não foi importante apenas para os educandos, mas
principalmente para mim, como educador. Por meio de sua vivência, foi-me possível
ressignificar a minha própria ação docente, entendendo que a prática da sala de aula é
sempre dialógica e que nossa atuação perde a boniteza de existir se nos cerramos em um
saber que se julga pronto. Educar é uma experiência de vida, e, como tal, sempre
provisória, inacabada, inconclusa, sequiosa de refletir-se.
Nesse sentido, penso ser fundamental que a universidade pública assuma a
consciência de sua responsabilidade com o que está para além de seus muros. É de sumo
relevo que projetos como o CPV Redes de Desenvolvimento da Maré dialoguem com os
saberes produzidos no âmbito da Academia, de modo que o conhecimento não se
fossilize em gabinetes de poeira e mofo. É mister, de forma mais estrita, que a Prática
de Ensino de Língua portuguesa e suas literaturas permita ao licenciando a vivência em
projetos de extensão que os impliquem em uma prática pedagógica responsável, uma
vivência capaz de lhes fazer alçar e conduzir voos para além.
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Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A flor e a náusea. ______. Poesia reunida. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1978.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiéviski. Tradução de Paulo
Bezerra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CAVALCANTE, Tiago. Uma (des)aprendizagem ou o livro dos (des)prazeres: a
dramatização e a educação literária no ensino médio. Rio de Janeiro: FL/UFRJ, 2009.
Dissertação de Mestrado.
______________. “A dramatização e a problemática do ensino de Literatura brasileira
no Nível Médio: uma análise de instituições públicas e privadas.” In: Coletânea de
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