XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 12 SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ: O DISCURSO LITERÁRIO COMO RESSIGNIFICAÇÃO DO HUMANO EM UM ESPAÇO DE EDUCAÇÃO POPULAR Tiago Cavalcante da Silva (UFRJ) RESUMO: É indiscutível que a capacidade de ressignificar o ordinário é o que nos confere humanidade. Nesse caminho, a literatura cumpre itinerário basilar: é ela que nos conduz a um não-andar-com-os-pés-no-chão que nos (re)decora o viver e nos precipita a mundos-outros, onde se encorpam as possibilidades do que pode(ría?)mos sentir e ser. Isto, que é, todavia, um direito inalienável do homem, perde fôlego quando nos voltamos para o cenário da educação literária nas escolas públicas: abordada, não raro, por meio de metodologias que a distanciam da experiência mais densa dos alunos com a vida, a literatura acaba sendo concebida como um conjunto de textos mofados que nada têm a ver com o humano-em-nós. A situação se agrava se pensamos ainda em escolas localizadas em áreas como o Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde, para muitos estudantes, a fruição da arte literária mostra-se supérflua diante de questões sociais muito mais pungentes. Nessa medida, desenvolvido em um pré-vestibular comunitário da favela de Nova Holanda – projeto ligado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro –, este trabalho teve por objetivo entender como, por intermédio de encontros semanais do grupo SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ, os educandos puderam se ressignificar humanos. Baseando-se na pedagogia crítica freiriana, o grupo se desenvolveu seguindo uma metodologia dialógica: constituiu-se como espaço de troca/construção de saberes e de reflexões sobre a prática pedagógica do próprio educador. Durante as reuniões, o grupo produziu inúmeros textos que eram publicados em uma rede social da internet e servirão como corpus para as reflexões aqui feitas. Palavras-chave: projeto de extensão; pré-vestibular social; formação continuada de professores Meus sonhos ganharam asas As de Ícaro lhe serviram bem E voaram alto. E lá do alto De uma altitude segura Viajavam e me sorriam Desejos e segredos sob a cera Que já começava a lamentar. Os segredos eram frágeis Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006028 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 13 Mas os desejos, ambiciosos, De nada se importavam. Comandavam determinados As asas tristonhas em direção ao Sol. Bem alto e cada vez mais longe... Eu já não os via mais. Mas quanto mais alto subiam Mais chorosas ficavam as asas Que desmanchavam sonhos Que matavam desejos E quebravam os segredos Próximos à luz. Seu lamento foi a única coisa que vi então. Em gotas como bolinhas cintilantes Que mais pareciam pingentes de madre pérola. Eu as juntei do chão. Vou derretê-las. Reconstruí-las... E terei asas outra vez. (KAIROS, 2009:16) I. MEUS SONHOS GANHARAM ASAS... De-vez-quase-sempre, o D(d)eus pessoano – também nosso –, que “Limpa o nariz ao braço direito”, “Colhe as flores, e gosta delas e as esquece” (PESSOA, 1997: 24) nos tira a poesia: olhamos a flor, e vemos a flor mesmo. Emudece a batucada: hora de a fantasia voltar para o barracão. Cada coisa em seu lugar. O humano-nosso sabe, todavia, da necessidade (condição) de ressignificarmos o ordinário: de rejuntar a cera chorosa, caída ao chão, devolvendo-lhe – asas novamente – a Ícaro. E sabe, ainda, que é na palavra que se opera a possibilidade dessa ressemantização do trivial. É a literatura, nesse caminho, que nos dá coragem para seguir viagem, conduzindo-nos a um não-andar-com-os-pés-no-chão que nos (re)decora o viver e nos provoca ao (des)olhar. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006029 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 14 Se a literatura, como toda arte, é a confissão de que a vida não basta, a palavra escrita, em sua órbita literária, permite ao leitor experienciar sentires-outros, olharesoutros, capazes de conduzi-lo a perceber as emoções, o pensamento, a vida humana de maneira distinta – e, por isso, enriquecedora – daquela com a qual aprendeu, não raro puerilmente, a conceber a realidade – sua e do mundo. A leitura literária é, pois, um meio de, vivenciando a alteridade, enriquecer-nos de outras experiências de sentir, olhar, de ser (humano). Jouve (2003: 109) nos ensina: “Ser quem não somos [...] tem algo de desestabilizante. Ler, pois, é uma viagem, uma entrada insólita em outra dimensão que, na maioria das vezes, enriquece a experiência”. Mas literatura é também meio de apuração do senso crítico. Sendo o homem feito na palavra, e não no silêncio, conforme Freire (2005), a palavra literária é um modo de assumirmos um lugar no mundo diante das questões de ordem social que necessariamente nos implicam – cidadãos do mundo que somos. Para Lehay-Dios (2000: 245), a educação literária “ajudaria a construir ‘pessoas melhores’, no sentido de serem sujeitos mais competentes para validar a cidadania e nela se engajar, buscando a formação de comunidades democráticas.” Se a fruição da estética literária lega ao leitor a experiência enriquecedora de sentir a vida por meio de uma miríade de outras possibilidades de ser (humano) e lhe concede o poder da palavra como exercício de cidadania, por que, entretanto, como apontam Cavalcante (2005; 2006; 2007; 2008; 2009) e Martins (2006), o fenômeno literário ser, não raramente, tratado sob a ótica do “beletrismo” em muitas escolas públicas e outros espaços de educação popular? Se é a literatura instrumento e registro da (r)evolução do homem, por que razão trabalhar a leitura literária em sala de aula sob perspectivas, concepções, metodologias que levam o aluno a afastar-se dela, sentindo-se intruso ao apenas vislumbrar a possibilidade de se alçar ao Parnaso – lugar de eleitos? Convivo com essa visão deformada sobre o fenômeno literário todo início de ano quando começo a ministrar minhas aulas de literatura no Curso Pré-vestibular Redes da Maré (CPV Redes da Maré), da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) Redes de Desenvolvimento da Maré (www.redesdamare.org.br), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro por meio de Eliana Sousa Silva, diretora da OSCIP e da Divisão de Integração Universidade Comunidade (DIUC) da UFRJ. Localizado na favela de Nova Holanda e fundado em 1997 por moradores – hoje seus diretores – que visavam à democratização do acesso à universidade pública de qualidade, o CPV atende cerca de 300 alunos todos os anos, provindos das mais Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006030 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 15 diferentes comunidades e escolas do complexo da Maré (Cf. Relatório Anual do CPV Redes da Maré – 2011). É, portanto, a vivência da prática pedagógica no CPV Redes da Maré que me enredou em um incômodo para o qual desejo, aqui, criar inteligibilidades: Poderia, a experiência literária, servir como ferramenta de ressignificação do próprio estar-nomundo de meus alunos, contribuindo para que seus sonhos ganhem asas rumo a uma outra percepção de si como cidadãos, seres humanos, sujeitos de sua própria história? II. ALAGADOS, TRENCHTOWN, FAVELA DA MARÉ... “Palafitas, trapiches, farrapos”, como na canção dos Paralamas do Sucesso. Entre a vida-que-não-para da Av. Brasil, o lodo da Baía de Guanabara e no entrecortar das Linhas Vermelha e Amarela, encontra-se o Complexo da Maré. Formado no início do século XX, principalmente por nordestinos que buscavam tentar a vida na “cidade que tem braços abertos no cartão postal”, o Complexo reúne atualmente 16 comunidades, tendo sido emancipado à condição de bairro pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1994. À deriva das políticas públicas, o Complexo da Maré carece de educação de qualidade, saúde, espaços culturais, bibliotecas, instituições de amparo legal e, principalmente, segurança, que traz, a seu reboque, a violência – um grande drama vivido pela região. Estando, pois, as autoridades com “os punhos fechados pra vida real”, ocupam seu lugar cerca de 100 OSCIPs que atuam nos mais diferentes âmbitos. Uma delas, a já citada Redes de Desenvolvimento da Maré, encabeça projetos relacionados à área da cultura, comunicação, mobilização social, segurança pública e educação, com o apoio de instituições como Petrobrás, Supergasbrás, WordFund, UFRJ. Fundada na década de 1990, a OSCIP oferece aos moradores da região o CPV Redes da Maré desde 1997 – conforme já mencionado –, que já contribuiu para o acesso de cerca de 1.000 jovens do Complexo à universidade pública. A comunidade se situa às costas da maior universidade do Brasil: a UFRJ. Nesse sentido, é preponderante que a pesquisa acadêmica volte sua face para esse espaço, que sempre lhe forneceu mão-de-obra para ocupações exigentes de baixa ou nenhuma formação escolar, e reflita como podemos estabelecer diálogo entre os saberes produzidos na Academia e as questões cotidianas vivenciadas por seus funcionários e Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006031 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 16 alunos moradores do Complexo. Por isso a escolha desse espaço como contexto de pesquisa. O espaço específico de minha investigação se constituiu de maneira bastante natural. Nascido de um desejo dos próprios alunos do CPV, após assistirem, em uma aula, ao filme Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Morts, EUA, 1989), de Peter Weir, o grupo SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ desenvolveu-se durante o segundo semestre de 2009 em horário fora da grade curricular do curso, contando com cerca de 15 participantes. Sem um plano pré-definido, os encontros giravam em torno de textos que abordavam os mais variados temas. A seleção desses textos condicionava-se pelo querer dos educandos e por questões espontâneas que surgiam no decorrer das discussões. Como forma de registro das reflexões provocadas pelos encontros, os alunos publicavam textos seus (poemas, aforismos, pensamentos, contos) em uma rede social na internet, o Orkut. III. AI, PALAVRAS... AI, PALAVRAS... Se estamos na lida com o discurso literário, não podemos, de modo algum, desprezar a estranha potência das palavras e deixá-las rolar inocuamente pelo rio difícil sobre o qual nos fala Drummond. Para tanto, ancoro-me em uma concepção bakhtiniana de discurso. Embora Bakhtin não tenha proposto formalmente uma teoria do discurso, é possível, por meio de seus escritos, perceber que a linguagem não se caracteriza como um mero sistema abstrato fechado, mas sim como atividade, como um fazer incontornavelmente ligado à vida. Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin afirma ser o discurso “[...] a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da Linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso.” (2002: 181). O discurso apresenta, portanto, uma dimensão sócio-histórica, ideológica, valorativa. Nenhuma palavra é inócua: são todas, sempre, prenhes de valores, sentidos construídos nas relações humanas, num contexto social, histórico e ideológico que necessariamente determina esses sentidos. Nessa medida, nenhuma escolha lexical, sintática, morfológica, prosódica, mesmo que inconscientemente, é pueril. Todas revelam/produzem determinadas posições ideológicas diante da realidade, da vida. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006032 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 17 É por meio do discurso que nos (re)construímos, dialogicamente. O diálogo é uma arena, um espaço de luta entre vozes sociais. Nesse embate, atuam tanto forças centrípetas (aquelas que servem ao monologizante, ao hegemônico) quanto forças centrífugas (aquelas que se chocam contra as tendências centralizadoras). Estabelecese, desse modo, uma luta social entre as diferentes “verdades sociais”, luta essa que, consoante Bakhtin, é infinita, haja vista que nunca haverá uma síntese da dialética, uma superação definitiva das contradições. O sujeito é, pois, inconcluso, (re)construindo-se em um movimento dialógico perpétuo no interior de uma multiplicidade de discursos. Em tal movimento, ele pode estabelecer relações de aceitação e recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, de interseções e hibridizações. O mundo interior do sujeito é povoado por vozes de autoridade e vozes persuasivas, isto é, vozes que servem a um discurso hegemônico, absoluto sobre a realidade, a vida, e vozes que, como uma entre muitas outras, transitam nas fronteiras, estando abertas a outras possibilidades de compreensão da mesma realidade, da mesma vida. É nesse espaço, portanto, de incorporação do monológico ou de sua negação, que o sujeito se constitui socioideologicamente. Partindo dos referidos conceitos bakhtinianos, penso ser o discurso fundamental à construção axiológica do próprio conceito de literatura como “alta cultura” com o qual os alunos do CPV Redes da Maré têm/tiveram contato por intermédio de seus professores, provavelmente também educados na Academia por meio de tal conceito. Assim, quando refletimos sobre o ensino de literatura em espaços populares, é incontornável esbarrarmos na relação do grupo social a que pertencem os estudantes de tais espaços e o grupo ao qual eles acreditam ser destinado o direito de usufruir da arte literária. Para muitos, que entram em contato com o fenômeno literário a partir de uma abordagem tradicionalista, beletrista e distanciada do viver, a leitura literária é algo inimaginável no seu “chão tão salpicado de compromissos” (ANDRADE, 1978:74), é algo destinado a poucos, nascidos em berço de cultura letrada, e não a eles, nãoletrados, “favelados”. Representaria ato herético um estudante de espaço popular se apropriar do discurso literário, direito do outro-nascido-em-berço-de-cultura-letrada, quem esse estudante não-é, em contrapartida. Nesse sentido, é de extremo relevo que o professor de literatura, ancorando-se em uma pedagogia crítica, conduza o educando de espaços populares a, por meio do discurso literário, desconstruir determinados padrões de ser que só operam na Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006033 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 18 manutenção do sofrimento humano e no asfixiamento de grupos sociais julgados culturalmente inferiores. Ensina-nos Rajagopalan (2003: 111-2): Ao educador crítico cabe a tarefa de estimular a visão crítica dos alunos, de implantar uma postura crítica, de constante questionamento de certezas que, com o passar do tempo, adquirem a aura e a ‘intocabilidade’ de dogmas. [...] O educador crítico sempre foi e sempre será uma ameaça para os poderes constituídos. Cerrando fileiras com esse pensamento, Freire (2005) afirma que prevaleceu, durante muito tempo – e ainda prevalece em muitos contextos –, uma educação “bancária”, segundo a qual a relação entre educador e educandos se dá de forma hierárquica. O professor, chancelado por seu diploma acadêmico, é aquele que dispõe dos conhecimentos que devem ser passados para os alunos, os quais são concebidos como “tábulas rasas”, cujos conhecimentos prévios e experiências de vida não são relevantes para o processo de ensino-aprendizagem. Freire volta-se ferozmente contra essa perspectiva pedagógica engessada e advoga que a educação, para ser efetiva, isto é, para alcançar seu maior objetivo – a formação de seres pensantes, autônomos –, tem de ser libertadora, capaz de levar o educando a questionar, a criticar, a pensar por si mesmo, a ser ativo na construção dos conhecimentos trabalhados na escola. Uma educação de fato libertadora, consoante Freire, tem de ser conciliadora, isto é, tem de partir do pressuposto de que os saberes são construídos em um intenso e equilibrado diálogo entre educadores e educandos. Dessa forma, o professor perderia o posto de senhor do conhecimento e passaria a desenvolver o papel de um orientador, um facilitador entre os conhecimentos já trazidos pelos alunos e aqueles que ele domina. Freire ainda entende que, para além dessa relação dialógica entre educador e educando na construção do conhecimento, marca a educação libertadora o processo de humanização dos estudantes. Por humanização, compreende-se a ação de conduzir os educandos a uma reflexão/ação sobre sua sensibilidade e sobre o mundo, com o fito de transformá-lo e torná-lo um lugar mais justo, igualitário para se viver. Não atentar para a importância de humanização é, conforme Freire (ib.: 86), uma forma de violência: Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006034 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 19 “[...] qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca se instaura como situação de violência.” IV. DESEJOS E SEGREDOS SOB A CERA... Como já posto, a SOCIEDADE DOS POETAS VIVOS DA MARÉ se desenvolveu durante o segundo semestre de 2009, fora da grade horária do curso. De início, os encontros realizavam-se quinzenalmente, mas, no decorrer do processo, atendendo a um desejo dos próprios alunos, as reuniões passaram ocorrer todas as semanas. A cada encontro discutiam-se temas ou autores escolhidos pelos alunos. Baseando-me na perspectiva crítica freireana, não atuei na SOCIEDADE como professor daquele grupo, mas sim como um par disposto a orientar possíveis caminhos de leitura e/ou escrita pelos quais eu já havia me enveredado. Sendo assim, o material discutido era levado, sobretudo, pelos educandos: incluíam-se, aí, desde textos de autores consagrados pela crítica, como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, até letristas, poetas, escritores que publicam em blogs na internet, além de textos produzidos pelos próprios alunos. Não havia um caminho de leitura pré-definido por mim. Toda semana, lidava com a beleza do que não-se-sabe-por-vir. As reflexões se processavam à medida que as questões surgiam e os poemas, contos, crônicas, dentre outros, eram trazidos. A dinâmica da própria leitura também se pautava pelo inesperado. Havia alunos que gostavam de declamar os textos; outros, de musicá-los; outros, de dramatizá-los. E dessa forma caminhava nossa vivência literária: uma experiência compartilhada, sem conteúdos pré-estabelecidos, sem um professor dono do significado essencial dos textos; uma experiência que se operava na palavra, consciente de que, pelo dizer, é possível ressignificarmos o humano-em-nós. Um dos autores mais lidos na SOCIEDADE – não sei dizer ao certo por quê – foi Clarice Lispector. Sua busca por si mesma, por seu sentir, pelo significado de estarno-mundo despertou, em muitos membros do grupo, o desejo de também interrogar-se, de se (re)pensarem humanos. Após os encontros, os alunos sempre publicavam reflexões, por meio dos mais diversos gêneros textuais, em uma comunidade homônima, na rede social Orkut, como podemos visualizar abaixo: Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006035 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 20 Figura 1: comunidade dos POETAS VIVOS DA MARÉ na rede social Orkut. Inspirado por uma reunião em que se discutiram alguns textos da escritora Clarice Lispector, um dos membros da SOCIEDADE publicou o seguinte poema, reproduzido, aqui, ipsis litteris: A despeito das inadequações gramaticais verificadas no texto - é importante frisar, aqui, que os alunos tinham livre acesso à comunidade; por isso, os textos eram publicados diretamente por eles, sem revisão do professor –, observa-se, nele, uma Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006036 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 21 reflexão bastante alentada acerca do significado da existência humana e da própria escritura. Publicado por um aluno que hoje cursa Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o texto corporifica-se como um testemunho do caráter fugidio das palavras no que toca à apreensão do que pensamos, sentimos, somos. Redigido em primeira pessoa, o poema enfoca questões ligadas ao eu, questionando seu próprio estar-no-mundo: Não há razão nenhuma no que faço Sem sentido, um vácuo pensamento me paira Não há motivo que explique o que sinto Nada é útil, nada é físico, nada A negação é fundamental ao entender-se do eu lírico, ganhando forma por meio do advérbio “não”, dos pronomes “nenhuma” e “nada” e da preposição “sem”: está, o educando, a bordar o seu avesso, sem medo do violento rasgar-se a que a palavra o inclina. É importante notar, ainda, o uso do adjetivo “útil”, negado pelo pronome “nada” no quarto verso: consciência de que o discurso não dá conta de nos compreendermos por inteiro, haja vista ser sempre uma elaboração simbólica de nosso sentir. Além disso, mostra-se de grande relevo notar que já se inscreve no aluno a percepção de que o fenômeno literário é, de fato, inútil: não paga contas, não dá respostas prontas, não compra o pão do café matutino. Sua utilidade está, por outra verve, na provocação de reflexões, de questionamentos que podem nos levar à ressignificação de nosso próprio viver-nos: Sei que estou ao mesmo tempo racional e louco Se isto pode ser bom ou ruim? Não sei dizer, talvez diga o tempo, talvez Estreitando-se pelo paradoxo da razão e da loucura vicejantes e complementares na experiência humana de todo indivíduo, o eu lírico indaga-se acerca do sentido dessa contradição. A resposta faz visita com a merencória e necessária recorrência do advérbio “talvez”, que circunstancia a responsabilidade de dizer do tempo. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006037 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 22 Nessa medida, embora não tragam enlaçadas as respostas, são as palavras, abusadamente escorredias, que precipitam o eu lírico ao (re)ver-se, reelaborando, por meio delas, o significado se pensar, sentir e ser: Ou possa simplesmente ignorar esse pensamento vazio Deixando escapar os ruídos que na realidade gostaria de explicar [...] Ah, pensamento vazio, por onde andarão palavras que preencham sua lacuna? Livres, será que se esqueceram de seu antigo dono e companheiro? A resposta é um testemunho de que está no discurso a possibilidade de expressão do que somos ou poder(ía)mos ser: Acho que não, mas sim, procuraram um novo modo de expressão Sem medo, sem inibição, sem fragilidade As palavras, já de casa, usufruem o eu lírico e fogem, rasteiras, serpenteando por entre seus dedos e o conduzindo às veredas do perder-se – perder-se que é encontrar-se: Vez ou outra algumas voltam e dão um “alô”, tomam café Passam a noite e... despedem-se Não sei quem está mais perdido, se são minhas palavras fugitivas ou eu mesmo. À reflexão sobre a experiência de se viver soma-se à dor de amor. Após um encontro em que se discutiram textos que versavam sobre o significado de amar, um Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006038 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 23 membro da sociedade que hoje cursa Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro registrou, na comunidade, o seguinte poema: Concentrado, também, na 1ª pessoa, o texto constitui-se como um registro dorido da pergunta que resta após a violência do se-ir de um amor: “Cadê eu?”. A resposta se corporifica no próprio lugar ocupado pelo sujeito depois de “sucumbido”: Chegou a hora, a luz se apagou. O dia está escuro, mais que a noite. Meus tímpanos e pupilas, cobertos, para não captar sons e ações ilícitas. Intacto estou! Imerso em um ambiente soturno, o eu lírico tem por companheira a ausência: “a luz se apagou”. Povoado pelas sombras de um dia paradoxalmente mais “escuro” que a noite, o sujeito cobre as vias de sentir e perceber o mundo, entregando-se à inércia, como sugere o adjetivo “intacto”, no contexto. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006039 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 24 Ressemantiza-se, desse modo, a própria esperança, agora não mais alimento do caminhar, mas substância que, deglutida a seco, em uma digestão “lenta” e “hostil”, incomoda e fragmenta o corpo: No fundo, uma esperança tarjada, engolida e triturada. A digestão é lenta e hostil. Seus nutrientes passam eliminando células que aliadas da esperança eram. A dor vai aumentando em detrimento de um amor que sucumbido foi. Sinto-me fragmentado. E a experiência amorosa, antes sinônimo de liberdade, calor e alimento, perde-se em um “vão escuro”, conduzindo o eu lírico à errância de seus passos: Um amor que outrora era vento, era sol, era água Agora, distorcido, vagando em meio ao vão escuro do universo. V. E TEREI ASAS OUTRA VEZ... Os dois poemas aqui analisados corroboram por inteiro a tese bakhtiniana de que o signo não pode ser compreendido como um decalque da realidade. É nele que se opera a possibilidade de (re)construção de nosso estar-no-mundo. No caso específico dos membros da SOCIEDADE, observamos como, por meio do discurso literário, conseguiram ressignificar-se humanos, imergindo em questões existenciais que, a priori, não podem se inserir na pauta de vida de quem mora em espaços como o Complexo da Maré. A experiência do grupo orientou seus participantes no caminho da humanização – ansiedade que deve mover a prática de todo educador crítico, conforme Freire. A literatura, como um fenômeno de elaboração do simbólico, constitui um meio de ressignificação do que somos, ressignificação que só se pode desenvolver no plano do Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006040 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 25 ficcional, uma vez que a razão e a realidade por si mesmas não dão conta do ininteligível em nós: A literatura é uma forma de pensar como a vida poderia ser, ou deveria ser, desenvolver utopias. Rompendo com as obviedades e com as ‘realidades’, a literatura rompe com a vida já dada e suspende a capacidade de não acreditar no que nossos olhos não veem. (Ramos, 2004: 81) Dessa maneira, a fruição do texto literário não somente pelo caminho do estético, mas deste relacionado à experiência do humano é que nos permite dar sentido à complexidade da vida, “pois o homem sempre precisará de meios capazes de representar seus anseios, desejos, sonhos, enfim, algo que mantenha sua imaginação sempre viva e ativa.” (Martins, 2006: 36) A SOCIEDADE, contudo, não foi importante apenas para os educandos, mas principalmente para mim, como educador. Por meio de sua vivência, foi-me possível ressignificar a minha própria ação docente, entendendo que a prática da sala de aula é sempre dialógica e que nossa atuação perde a boniteza de existir se nos cerramos em um saber que se julga pronto. Educar é uma experiência de vida, e, como tal, sempre provisória, inacabada, inconclusa, sequiosa de refletir-se. Nesse sentido, penso ser fundamental que a universidade pública assuma a consciência de sua responsabilidade com o que está para além de seus muros. É de sumo relevo que projetos como o CPV Redes de Desenvolvimento da Maré dialoguem com os saberes produzidos no âmbito da Academia, de modo que o conhecimento não se fossilize em gabinetes de poeira e mofo. É mister, de forma mais estrita, que a Prática de Ensino de Língua portuguesa e suas literaturas permita ao licenciando a vivência em projetos de extensão que os impliquem em uma prática pedagógica responsável, uma vivência capaz de lhes fazer alçar e conduzir voos para além. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.006041 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 26 Referências bibliográficas: ANDRADE, Carlos Drummond de. A flor e a náusea. ______. Poesia reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiéviski. Tradução de Paulo Bezerra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CAVALCANTE, Tiago. Uma (des)aprendizagem ou o livro dos (des)prazeres: a dramatização e a educação literária no ensino médio. Rio de Janeiro: FL/UFRJ, 2009. Dissertação de Mestrado. ______________. “A dramatização e a problemática do ensino de Literatura brasileira no Nível Médio: uma análise de instituições públicas e privadas.” In: Coletânea de resumos da 13ª Jornada Nacional de Iniciação Científica da 58ª Reunião Anual da SBPC. Florianópolis: UFSC, 2006. ______________. “A dramatização e a problemática do ensino de Literatura brasileira no Nível Médio: uma análise de instituições públicas e privadas.” In: Inicia (Revista da Graduação em Letras da UFRJ), Rio de Janeiro, ano 4, nº 4, jan.-dez. 2006. ______________. “A Morte e vida Severina da leitura no Ensino Fundamental: consequências e contribuições para os estudos literários do Nível Médio.” In: Caderno de Resumos da IX Semana de Letras – As letras e seu ensino. 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