Artigos Jurídicos
Autor: André Luiz Prieto
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha programática e
ideológica da Editora Letras Jurídicas.
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Devemos Ressucitar a Guilhotina?
A guilhotina, como instrumento utilizado para aplicar a
pena de morte por decapitação na idade média, por mais paradoxal
que possa parecer, representou uma das contribuições humanatárias
mais importantes no campo da execução da pena durante a fase do
iluminismo.
Foi o médico francês Joseph-Ignace Guillotin (17381814) que sugeriu o uso deste aparelho na aplicação da pena de morte,
embora não fosse ele o inventor desse método. Guillotin considerava
esta forma de execução mais humana do que o enforcamento ou a
decapitação com um machado. Na realidade, a agonia do enforcado
podia ser longa: em certas decapitações, o machado não cumpria seu
papel ao primeiro golpe, o que aumentava consideravelmente o
sofrimento da vítima. Guillotin estimava que a instantaneidade da
punição era a condição necessária e absoluta de uma morte decente.
Sem dúvida, o iluminismo abriu, pela primeira vez na
história das ciências políticas e sociais, um grande e vigoroso debate
sobre a pena de morte, largamente utilizado pelas legislações penais.
A imortal obra de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, “Dos
Delitos e das Penas”, publicada em Milão no ano de 1764, constituiu a
síntese do pensamento penal renovador. O “pequeno grande livro”,
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como disse Faustin Hélie, foi o primeiro grande brado de revolta
contra as iniquidades da justiça criminal da época.
E o encarceramento, que papel tinha naquele sistema
medieval de justiça penal? Na verdade, conforme autorizada doutrina,
a privação da liberdade não existia nas práticas antigas como
expressão autônoma de sanção, pois tinha apenas finalidade de
assegurar a execução das penas corporais, especialmente a de morte,
além de servir para a colheira de prova mediante tortura.
Nesse contexto, a idade média representou para a
história um período em que a humanidade foi subjugada pela
ignorância e flagelada pela peste, vivendo oprimida sob o terror das
fogueiras da Inquisição. Com razão, essa fase crítica de nossa vida em
sociedade mereceu o rótulo de “idade das trevas”.
Olhando para o nosso tempo - nesse exato momento em
que vivenciamos uma comoção social por mudanças, especialmente
na esfera penal -, o que uma honesta interpretação desse período
representa para os valores que passamos a apoiar e muitas vezes
militar? Será que os fenômenos criminais que estão ocorrendo são
fatos que meramente planam na abstração, soltos no tempo e no
espaço?
Numa sincera análise, deveras estamos vivendo tempos
difíceis, de inflação não apenas econômica, mas legislativa, que revela
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um direito penal de terror, um Estado Policial e não de Direito, onde a
massificação da responsabilidade penal demonstra uma ausência de
política criminal governamental.
O modelo de processo penal proposto atualmente, e que
ganha a simpatia popular, semelhante ao sistema de justiça penal
medieval, que era canônica, tem se projetado na forma inquisitiva,
oficiosa, adotando o cárcere como regra e como instrumento
“espiritual” de castigo, posto que, pelo sofrimento e pela solidão, “a
alma do homem depura e purga o pecado” (Ruiz Funes, A crise nas
prisões, p. 63). Não esqueçamos que no calor da luta contra as
manifestações de heresia, a prisão se aplicava como sanção frequente.
Michel Foucat prega que a função real (oculta) da pena,
ao contrário do que revelam os juristas, não é propriamente combater
a criminalidade, mas produzi-la. Não obstante a isso, apesar de ser
uma instituição falida, nenhuma explicação se encontra para a sua
longevidade e aplicação desenfreada. Por outro lado, a crescente e
contagiante propaganda que anuncia como produto o rigor penal para
determinados tipos de ocorrências sociais, mascara uma outra
realidade social, oculta da grande massa.
As linhas gerais dessa propaganda são bem delineadas
por Maria Lúcia karam, nos seguintes termos: “Anunciado como
produto destinado a fornecer segurança e tranquilidade à população,
através de punição dos autores de condutas, que a lei define como
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crimes, sua propaganda apresenta a idéia de que a violência é igual a
crime, mediante a utilização de alguns fatos que comovem e assustam
o conjunto da sociedade.” (De crimes, penas e fantasias, p. 196).
Deveras, o recurso da exploração do medo, cria um
clima de pânico, de alarma social, de modo a gerar mais repressão
policial e de penas mais rigorosas, num clima que desencadeia e é
alimentado pelas chamadas campanhas de lei e ordem. Isso tudo
propicia a ampla e irrestrita atuação de um Estado policialesco,
autoritário, desproporcional, inquisitor, que faz ouvidos rasos aos
direitos mais fundamentais dos cidadãos, fruto da conquista iluminista
revolucionária prestigiada pela nossa atual Carta Magna.
Nesse tenso clima, realizam-se prisões provisórias
populistas e midiáticas, julgamentos ao vivo, operações policiais com
nomes de batismo, mandados de condução coercitiva para inquirição
imediata, buscas domiciliares desnecessárias, entrevistas coletivas
espetaculosas, entre outras medidas atentatórias a presunção de não
culpabidade e a dignidade da pessoa humana. Tudo sob o aplauso
acalorado dos fundamentalistas de plantão que apoiam esse modelo de
justiça criminal.
Assim, à semelhança das penas cruéis do período
medieval, que causavam interminável sofrimento, as cerimônias
degradantes desse “novo” e fascista modelo penal, fazem do processo,
simples instrumento da jurisdição, o pior e mais cruel dos castigos. A
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diferença é que não temos a guilhotina para interromper o sofrimento,
que vem a conta gotas, até que haja um dia um pronunciamento
definitivo que ponha fim a esse martírio, às vezes tarde demais (Luiz
Gushiken que o diga).
É nesse sentido que Luiz Flávio Gomes, citando
Umberto Eco, menciona que ainda não acertamos todas as nossas
contas com a Idade Média. De fato, o discurso fácil da severidade
penal como panaceia para todos os males sociais, é difícil de ser
desconstituído, especialmente após a aprovação popular.
Entretanto,
não
é
demais
lembrar,
socorrendo
novamente ao autor de “O Nome da Rosa”, que Nem todas as
verdades são para todos os ouvidos. Porém, não podemos permanecer
em silêncio, emudecer a voz, fechar os olhos às injustiças,
escondermos da violência, da má-fé e da falta de comprometimento
daqueles a quem a Constituição da República confiou a sua guarda.
Quem sabe encontraremos os ouvidos certos para escutarem essas
verdades.
André Luiz Prieto, Professor, pós-graduado em Ciências Criminais e
Advogado Criminalista em Mato Grosso.
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Autor: André Luiz Prieto