ACESSO E SAÍDA DA JUSTIÇA A proliferação dos conflitos tem direta relação com o aumento populacional, que é inevitável. Com a tendência universal de ampliação do acesso à justiça, sentida no Brasil, notadamente a partir do advento da Constituição da República de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, sintomaticamente, houve uma redescoberta da Justiça pelo cidadão. Mais de oito milhões de causas têm ingressado nos juízos brasileiros, anualmente, sem que o Poder Judiciário se estruture adequadamente para recepcionálas. Abriram-se as portas da Justiça. Houve o esquecimento, entretanto, de que era preciso também ampliar os instrumentos para a saída da Justiça! O Judiciário não deve ser só o lugar onde as causas começam, mas também o lugar onde as causas terminam. O acesso à Justiça, que antes representava uma simples garantia formal − dentro da estrutura arcaica, complicada e carregada de ônus pecuniário impossível de ser suportado pelo cidadão comum − passou a representar um direito efetivo. Houve um redirecionamento sistêmico e a Constituição da República passou a viabilizar o acesso ao Judiciário, não mais restrito aos interesses individuais, mas também aos interesses coletivos. Há uma nova concepção da promessa de acesso à justiça que começa a se tornar real, instrumentalizada no Mandado de Segurança Coletivo, que consagrou a tutela jurisdicional coletiva, na Ação Popular (Lei nº4.717/65), na Ação Civil Pública (Lei nº7.347/85), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8.069/90), no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº8.078/90) dentre outros instrumentos, como habeas-data e o mandado de injunção.1 Os extintos juizados de pequenas causas Ainda antes do advento da Constituição da República de 1988, como vimos, já havia a preocupação com a viabilização da promessa de acesso à justiça. Merece destaque a iniciativa da Coordenação do Programa Nacional de Desburocratização, dirigida pelo Ministro Hélio Beltrão; com sua avançada visão, havia percebido a inadequação da estrutura judiciária para dar atendimento às causas de menor valor que, embora em grande número, não eram pleiteadas, em face da absoluta obstrução econômica e precariedade material do aparato judiciário do País. Após consulta à opinião pública, no ano de 1982, o Ministro Hélio Beltrão fazia publicar o esboço do anteprojeto que deu origem à Lei dos Juizados de Pequenas Causas. Antes mesmo da existência de qualquer lei, os Tribunais de Justiça2 do Rio Grande do Sul, do Paraná e da Bahia, por meio de Conselhos de Conciliação e Arbitramento,∗ nos anos de 1982 o primeiro, e 1983 os outros,3 respectivamente, passaram a testar esses mecanismos extrajudiciais de composição dos litígios; posteriormente, vários Estados da Federação seguiram mais esses exemplos pioneiros que vieram dos estados do Rio Grande do Sul, do Paraná e da Bahia. 1 A Lei da Ação Civil Pública, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, além de trazer a distinção entre os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, atribuíram ao Ministério Público e a outros órgãos a legitimidade extraordinária, base da tutela coletiva. 2 Em parceria com a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) e Associação dos Magistrados do Paraná (AMP). ∗ Arbitragem seria expressão mais técnica e adequada para definir a exteriorização do Juízo Arbitral. Arbitramento se emprega com propriedade em casos de perícia para fixação de valores. 3 Em 30 de maio de 1983 o Desembargador Alceu Conceição Machado instalou o Conselho em Curitiba; em 23 de novembro de 1983 foi instalado em Barreiras. Antonio Guilherme Tanger Jardim, na Comarca de Rio Grande, RS, Celso Rotoli de Macedo,∗ na Comarca de Curitiba, PR e José Luiz Pessôa Cardoso da Comarca de Barreiras, BA, foram os primeiros juízes dos experimentais Juizados de Pequenas Causas brasileiros, hoje Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Em 1984, com a Lei n.º 7.244, foi reconhecido o sucesso dos experimentais Conselhos de Conciliação e Arbitramento, agora, já com a denominação legal própria − Juizados de Pequenas Causas − e com processo e procedimento regulamentados por lei federal. Tratava-se de um procedimento célere, simples, seguro e que ainda assim garantia o devido processo legal em todas as suas fases. Mesmo com sua reduzida competência, limitada, como o próprio nome já indicava, às pequenas demandas, os Juizados de Pequenas Causas, historicamente, foram fundamentais para “bater o pó” dos tradicionais autos de processo e fazer vislumbrar um novo semblante para a Justiça, obscurecido pela falta de indignação, iniciativa e criatividade dos até então acomodados legisladores e juristas. Foi preciso que Hélio Beltrão, observador de fora∗ , fosse buscar na experiência norte-americana o caminho da modernidade judiciária. A inovação contribuiu decisivamente para estimular a reflexão por parte dos juristas, principalmente dos processualistas, que, inicialmente renitentes em aceitar o diferenciado sistema, acabaram por tolerá-lo, em face dos incontestáveis resultados práticos alcançados pela Lei n.º 7.244 de 7.11.84, que dispôs sobre a criação e o funcionamento do extinto Juizado de Pequenas Causas.∗ ∗ Em 1983, o autor assessorou o juiz Celso Rotoli de Macedo, ex-Presidente do Tribunal de Alçada do Paraná, junto ao Conselho de Conciliação e Arbitramento de Curitiba (pequenas causas). ∗ Quem não faz parte da instituição e observa à distância. No caso de Hélio Beltrão, dessa observação resultou um grande passo em direção à modernidade e adequação do sistema para determinadas demandas, ditas pequenas. ∗ Diz-se extinto porque, infelizmente, o artigo 97 da Lei n.º 9.099/95 revogou expressamente a Lei n.º 7.244/84 (ver, a respeito, artigo do autor “O novo estatuto da advocacia e o juizado de pequenas causas” − Revista de Processo n.º 75, p. 99). Faltava, ainda, a consciência popular voltada à exigência de respeito aos direitos. A promissora iniciativa, sem qualquer imposição, antecipou a conscientização popular, principalmente da população mais carente, de que o conhecimento e a defesa dos direitos são fundamentais para o exercício da cidadania. Operou-se uma natural mudança de mentalidade e o povo por intermédio desses juízos consensuais passou a não mais deixar represada a gota de lágrima da renúncia, até então contida pela falta de acesso à justiça. Renunciar aos direitos é renunciar à qualidade de cidadão. O valor da causa passou a ser analisado genericamente na visão daquele que necessita da Justiça, não mais apenas mediante o enfoque puramente econômico. Assim, a partir dessa elogiável iniciativa, os direitos passaram a ser pleiteados independentemente de sua representação econômica, ocasionando um proporcional aumento no volume de ingresso de pequenas causas nos juízos brasileiros. A partir daí, não mais se impôs a renúncia aos direitos ou a procura por soluções encontradas à margem da ordem jurídica, como tem ocorrido em algumas comunidades brasileiras, onde prospera a anomia (ausência de lei ou regra). Ao trabalhador humilde e desprovido de capacidade econômica abriu-se o caminho para impor sua condição de cidadão. Infelizmente, no contexto geral brasileiro, parte significativa do povo desconhece essa nova realidade, embora bons trabalhos informativos educacionais tenham sido elaborados para divulgação das múltiplas portas de acesso à justiça. Eis alguns: Cartilha da Justiça (Associação dos Magistrados Brasileiros), Gibi dos Juizados Especiais, Revistinha Educativa do Litoral − Projeto Operação Litoral e Educação para o Trânsito; Gibi da Cidadania − Brasilzinho e a Cidadania − Projeto Justiça se Aprende na Escola; Panfletos Educativos sobre Juizados Cíveis e Criminais (todos do Tribunal de Justiça e Associação dos Magistrados do Paraná), Cartilha dos Direitos Básicos do Cidadão (Associação dos Magistrados Catarinenses e Universidade do Vale do Itajaí), Conhecendo o Judiciário (Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro), O Juiz e o Poder Judiciário (Associação Paulista dos Magistrados), Recorrendo à Justiça (Tribunal de Justiça do Amazonas), dentre outros. Uma população que não tem acesso à informação, não tem acesso ao direito e, portanto, não exerce sua cidadania. Roberto Portugal Bacellar – juiz de direito em Curitiba, mestre em direito pela PUC-PR e Presidente da AMAPAR (Associação dos Magistrados do Paraná)