1 LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS – Coordenador Prof Marcos Teodorico DESENVOLIVIMENTO E APRENDIZAGEM NA CONCEPÇÃO DE VYGOTSKY Dados biográficos de Vygotsky Inicialmente é oportuno apresentar alguns dados biográficos de Lev Semionovitch Vygotsky (1896-1934). Nasceu em 17 de novembro na cidade de Orsha, na Bielorússia, embora pelo antigo calendário utilizado na Rússia até a data corresponda a 5 de novembro. Em 1913 concluiu seus estudos de psicologia na escola superior de Gomel obtendo medalha de ouro. Em 1917 concluiu curso de especialização em literatura e psicologia na Universidade de Moscou; de 1917 a 1923 foi professor de literatura e psicologia em uma escola de Gomel, onde também dirigia sessões de teatro no centro de Educação de adultos. Em 1924 transferiu-se para Moscou e começou a trabalhar no Instituto de Psicologia e, posteriormente, no Instituto de Deficientes, fundado por ele. De 1924 a 1934 com um grupo de jovens cientistas trabalhou no campo da psicologia, defectologia e anormalidade mental, falecendo de tuberculose em 11 de junho de 1934, segundo o que consta na obra de Wertsch, que faz uma análise crítica de seus estudos sobre cognição e desenvolvimento humano. Núcleos e marcos teóricos Deforma resumida pode-se dizer que são três os núcleos da estrutura teórica de Vygotsky: a) a crença no método genético ou evolutivo, entendido como processo de desenvolvimento; b) a tese de que os processos psicológicos superiores tem sua origem em processos sociais; c) a opinião de que os processos mentais somente podem ser entendidos mediante a compreensão dos instrumentos e sinais que atuam como mediadores. Na análise crítica de Wertsch, Vygotsky nunca foi muito claro sobre o que pensava do desenvolvimento natural, porque centrou sua investigação quase que exclusivamente no desenvolvimento social ou cultural, base de seu enfoque teórico. Neste sentido, afirmava que um mecanismo essencial dos processos reconstrutivos que tem lugar no curso do desenvolvimento das crianças é a criação e o uso de um determinado número de estímulos artificiais. Para ele os estímulos artificiais desempenham um papel secundário que permite ao homem dominar sua própria conduta, inicialmente por meios externos, posteriormente, mediante operações internas muito mais complexas. Defende Vygotsky que a criação e o uso de estímulos auxiliares ou “artificiais” constituem um aspecto crucial da capacidade humana que se manifesta já na infância. Através desses estímulos se alteram, pela ativa intervenção humana, a situação imediata e a reação vinculada à mesma. Ao mesmo tempo que põe ênfase no organismo ativo, considera que o jogo é o meio básico do desenvolvimento cultural das crianças. LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 2 Foi pioneiro ao insistir nas origens sociais da linguagem e do pensamento (embora neste sentido, seguindo o caminho traçado por sociólogos franceses) e, com isto, foi o primeiro psicólogo moderno a mencionar os mecanismos através dos quais a cultura se converte em uma parte da natureza do indivíduo. Ao afirmar que as funções psicológicas são um produto da atividade do cerébro, torna-se o primeiro defensor da combinação da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a fisiologia. Situa-se como marco teórico marxista, uma vez que encontra nos métodos e princípios do materialismo dialético a solução para os paradoxos científicos com que se enfrentavam seus contemporâneos. O eixo central desse método consistia em que todos os fenômenos deveriam ser estudados como processos em constante movimento e mudança. Por outro lado, apoiando-se na linha de pensamento de Marx e Engels, acredita que o mecanismo de mudança evolutiva do indivíduo encontra suas raízes na sociedade e na cultura. Marco social e intelectual, Vygotsky, como muitos outros teóricos soviéticos da época (década de 1920), estava profundamente influenciada pelos trabalhos dos sociólogos e antropólogos da Europa ocidental. Antes de sua morte fez muitas conferências e escreveu intensamente sobre os problemas da educação, utilizando com freqüência o termo “paidologia”, que se pode traduzir como “psicologia educacional”. Ao mesmo tempo criticava a paidologia que dava ênfase aos testes de capacidade intelectual, que estavam no auge na Europa e Estados Unidos. Como predominava na época a metodologia da psicologia experimental, que se movimenta num contexto racionalista, seus estudos foram muito criticados, por ele não adotar tal procedimento nas suas investigações. Defendia a tese de que, para que um experimento fosse um meio efetivo para estudo do “desenvolvimento dos processos”, os fatos não deveriam ser estritamente controlados. A observação como processo de investigação deveria ter um caráter relevante. Por exemplo, para estudar a comunicação das crianças e a função da linguagem egocêntrica, utilizava como técnicas de investigação os seguintes procedimentos: a) estabelecia uma situação de trabalho que exigia das crianças comprometimento em atividades cooperativas com outras que não compartilhavam de sua linguagem (crianças estrangeiras ou surdos); b) proporcionava mudanças alternativas na solução de problemas, incluindo enorme variedade de materiais, que ele denominava de “ajudas externas”; c) impunha à criança uma tarefa que superasse seu conhecimento e sua capacidade, para descobrir o início da compreensão de novas habilidades. Nesse sentido tinha a convicção de que os resultados dos estudos experimentais são tanto de natureza qualitativa como quantitativa, e por isso centrou seus estudos mais na observação do que na quantificação dos resultados obtidos. Concepção de Vygotsky sobre as desenvolvimento teorias que relacionam aprendizagem e Os estudos realizados por Vygotsky indicam que as teorias que relacionam desenvolvimento e aprendizagem estão aglutinadas basicamente em três grupos. No primeiro grupo estão aquelas que partem do pressuposto de que existe independência entre o processo de desenvolvimento e o processo de aprendizagem. Nesse caso a aprendizagem seria um processo puramente externo, que não participa ativamente do desenvolvimento nem o modifica, ainda que sejam processos paralelos. Nessa vertente podemos incluir o pensamento de Montessori, quando afirma que o fator ambiente pode ser modificado, isto é, construído ou destruído, mas jamais criado, por entender que as origens do desenvolvimento são interiores. Montessori justifica seu ponto de vista afirmando que a criança, não porque se alimenta, porque respira, ou porque se encontra em situações de clima favorável, mas porque possui vida exuberante dentro de si; desenvolve-se porque o LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 3 germe fecundo de onde essa vida provém evolui em conformidade com o impulso de destino biológico fixado pela herança. Para Vygotsky, os que defendem essa linha de raciocínio entendem que existe uma completa independência entre o processo de desenvolvimento e o de aprendizagem. Nessa perspectiva, a aprendizagem seria uma superestrutura do desenvolvimento e, essencialmente, não existiria intercâmbio entre ambos os momentos, já que o desenvolvimento precederia sempre a aprendizagem. O segundo grupo de teorias se fundamenta basicamente em que a aprendizagem é desenvolvimento. Essa premissa é completamente oposta à anterior. Neste caso, existe um desenvolvimento paralelo dos dois processos, de forma que a cada etapa da aprendizagem corresponde a uma etapa do desenvolvimento. Para Vygotsky, o problema principal está em saber qual é o processo que precede e qual é o que se segue, já que o princípio que nos rege é a simultaneidade e a sincronização entre ambos. O terceiro grupo de teorias busca conciliar os extremos das duas teorias anteriores, fazendo-as coexistir. Na opinião de John-Steiner e Souberman, a posição de Vygotsky é distinta de seus contemporâneos mais prestigiados, como Thorndike, Piaget, ou Koffka, porque ele dá ênfase à psicologia culturalmente transmitida e historicamente configurada. Vygotsky não toma partido por nenhuma dessas teorias, mas dá destaque às que se situam no terceiro grupo e observa três pontos inovadores. Primeiro aproxima as duas primeiras, isto é, aglutina-as porque os dois pontos de vista anteriores não se excluem. Em segundo lugar, considera a questão da interdependência: o desenvolvimento é produto da interação de dois processos fundamentais. Além disso, o processo de maturação prepara e possibilita um determinado processo de aprendizagem, enquanto o processo de aprendizagem estimula o processo de maturação e o desenvolve. Um terceiro aspecto, e o mais importante para ele, consiste na ampliação do papel da aprendizagem no desenvolvimento da criança; ao mesmo tempo, determina, do ponto de vista pedagógico, o fracasso da teoria da disciplina formal, isto é, a aprendizagem em determinado campo tem uma influência mínima sobre o desenvolvimento geral da criança. A juízo de Vygotsky, muitos dos estudos sobre este tema demostraram que o intelecto não é precisamente a reunião de certo número de capacidades gerais, como a observação, a atenção, a memória, o juízo, etc., mas sim a soma de muitas capacidades diferentes, cada uma das quais até certo ponto é independente das demais e, portanto, devem ser desenvolvidas independentemente mediante exercícios adequados. De qualquer modo, a tarefa daquele que ensina consiste em desenvolver, não uma única capacidade de pensamento, mas muitas das capacidades particulares do pensamento situados em campos diferentes. Não se trata de reforçar nossa capacidade geral de prestar atenção, mas de desenvolver diferentes faculdades de concentrar a atenção em diferentes matérias. A análise crítica de Vygotsky aponta no sentido de que esse terceiro grupo de teorias implica também uma teoria dualista de desenvolvimento, considerando que o desenvolvimento mental da criança está caracterizado por dois processos que, ainda conectados, possuem diferente natureza e se condicionam reciprocamente. Sem formular inicialmente uma teoria, trata de esclarecer que aprendizagem e desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez na idade escolar e, portanto, estão ligados entre si desde os primeiros dias de vida da criança. Quando a criança chega à escola já aprendeu muitas coisas, e isso constitui a pré-história da aprendizagem escolar, que se adquire de forma não-sistemática. Provavelmente essa seria a diferença fundamental com respeito aquela que se adquire na escola. Vygotsky, aborda de uma dupla perspectiva o problema que se coloca. Inicialmente, refere-se às características específicas da inter-relação entre aprendizagem e desenvolvimento na idade escolar e, após, à relação entre aprendizagem e LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 4 desenvolvimento em geral. Quanto à primeira relação, evoca a inovadora teoria que trata da área de desenvolvimento e propõe que a aprendizagem deve ser congruente com o nível de desenvolvimento da criança, sempre e quando tem que demonstrar que somente em certa idade pode-se começar a ensinar gramática ou álgebra. Entretanto, Vygotsky toma como ponto de partida a existência de uma relação entre um determinado nível de desenvolvimento e a capacidade potencial de aprendizagem. Defende a idéia de que, para verificar o nível de desenvolvimento, da criança, temos que determinar pelo menos, dois níveis de desenvolvimento. O primeiro deles seria o nível de desenvolvimento efetivo, que se faz através dos testes que estabelecem a idade mental, isto é, aqueles que a criança é capaz de realizar por si mesmo; o segundo deles se constituiria na área de desenvolvimento potencial, que se refere a tudo aquilo que a criança é capaz de fazer com a ajuda dos demais, seja por imitação, demonstração etc. O que a criança pode fazer hoje com a ajuda dos adultos ou dos iguais certamente fará amanhã sozinha. Isso significa que se pode examinar, não somente o que foi produzido por seu desenvolvimento, mas também o que se produzirá durante o processo de maturação. Juntamente com essas conclusões Vygotsky formula a seguinte lei: “Todas as funções psicointelectivas superiores aparecem duas vezes no curso do desenvolvimento da criança: a primeira vez nas atividades coletivas e nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas de pensamento da criança, como funções intrapsíquicas”(1979, p.114). Outro aspecto relevante dos estudos de Vygotsky sobre a interação entre aprendizagem e desenvolvimento é o de que a aprendizagem não é em si mesma desenvolvimento, mas que este último se consegue graças a uma correta organização de “dita aprendizagem”, já que a aprendizagem vai ativar todo um grupo de processos de desenvolvimento que não poderia se produzir sem ela. Em síntese, a característica fundamental da hipótese levantada por Vygotsky é a noção de que os processos evolutivos não coincidem com os processos de aprendizagem. Pelo contrário, o processo evolutivo vai a “reboque” do processo de aprendizagem, seqüência essa que se converte em “zona de desenvolvimento proximal”. A zona de desenvolvimento proximal significa a distância entre o nível real de desenvolvimento, determinado pela capacidade de resolver de forma independente um determinado problema, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da resolução de um problema sob guia de um adulto ou em colaboração com outro companheiro mais capaz. Nesse sentido, a análise desse autor altera a opinião tradicional de que, no momento em que a criança assimila o significado de uma palavra, ou domina uma operação que pode ser a soma ou a linguagem escrita, seus processos evolutivos se realizaram por completo. Na realidade, apenas começaram. Outra hipótese de seus estudos, é a de que, embora a aprendizagem esteja diretamente relacionada com o decorrer do desenvolvimento infantil, nenhuma das duas se realiza na mesma medida ou paralelamente. Fundamenta seu ponto de vista dizendo que a linguagem surge inicialmente como meio de comunicação entre a criança e as pessoas que a rodeiam, mas somente mais tarde, ao se converter em linguagem interna, contribui para organizar o pensamento da criança, isto é, se converter em uma função mental interna. Com base nos dados teóricos de Vygotsky, cabe colocar o seguinte questionamento: esses princípios que ele defende se aplicam às aprendizagens denominadas motoras ou psicomotoras? Se a resposta for sim, teremos uma concepção de totalidade do ser humano; se a resposta for não, estaremos frente a uma visão dualista, que de certa forma fragmenta e reduz a unidade do ser. LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 5 A verdade é que os estudos de Vygotsky não fazem referência a diferentes tipos de aprendizagem. Essa é a leitura que fizemos de seu pensamento, uma vez que, ao analisar o binômio desenvolvimento-aprendizagem, entende o ser humano como uma unidade complexa e indivisível. Seguindo essa linha de raciocínio, toda a fundamentação teórica que sustenta que a aprendizagem motora ou psicomotora segue forma distinta, certamente nos coloca frente a uma concepção pelo menos dualista, que fragmenta a unidade do ser explicar o processo de desenvolvimento. Contrapondo-nos aquelas visões sobre a aprendizagem e desenvolvimento, partimos da premissa de que a criança não joga somente com seu intelecto, por menos ação aparente que um determinado tipo de jogo possa indicar, mas que, ao jogar, coloca em ação seu ser como um todo. Portanto, esse fato torna difícil estabelecer quais são as estruturas mentais que a criança utiliza para jogar, embora Piaget, ao estudar o jogo infantil, estabeleça tais limites. Essa visão de totalidade corporal com relação ao desenvolvimento do ser humano resgata de certa forma as idéias que os antropólogos já defendiam no início do século, como Mauss, por um exemplo. Por outro lado, é importante fazer uma reflexão sobre a contribuição que Vygotsky presta à educação, principalmente aos pedagogos, quando diz que a aprendizagem infantil começa muito antes de a criança chegar à escola. Isso significa que toda aprendizagem na escola tem sempre uma história prévia. Esta pré-história da aprendizagem escolar é construída nas experiências vividas pela criança no seu contexto sócio-cultural, e é aí que o jogo se inscreve. Para situar as bases teóricas da aprendizagem através do jogo, temos que pressupor que a linguagem interna, ao transformar-se em função interior, traduz a experiência que a criança adquire através dos jogos e das vivências que experimenta com seu corpo. Vygotsky situa suas contribuições no âmbito pedagógico quando aceita que a aprendizagem escolar orienta e estimula processos internos de desenvolvimento, como é o caso do desenvolvimento do sistema nervoso central. Nesse sentido existe uma dependência recíproca, sumamente complexa e dinâmica, sendo totalmente impossível explicar essa dependência mediante uma única fórmula. Rivière faz uma leitura do pensamento de Vygotsky, quando expõe que, sem reduzir a relação entre aprendizagem e desenvolvimento a uma única direção, é evidente que a aprendizagem depende também do desenvolvimento potencial do sujeito. Todos esses são elementos que, de certa forma, perfilam a concepção de Vygotsky sobre o desenvolvimento e a aprendizagem, e nos ajudam a entender o papel que para ele desempenha o jogo no desenvolvimento da criança. Entretanto, ao mesmo tempo que dá ênfase à importância do organismo ativo, considera que o jogo é o meio básico para o desenvolvimento cultural da criança. Dito isso, retomamos a discussão sobre as análises que são feitas em separado com relação às aprendizagens cognitivas e psicomotoras. Falar dessas aprendizagens em separado esconde uma tendência dualista do desenvolvimento do homem, além de reducionismo; e isso explicita a incoerência do discurso, principalmente quando se fala de totalidade. Os modelos de aprendizagens, ora cognitivas, ora psicomotoras, são fragmentados, positivistas e refletem a concepção dualista do desenvolvimento humano. Essa discussão sobre desenvolvimento relacionado com a aprendizagem deveria ser ampliada e realizada com mais freqüência pelos responsáveis pela educação das crianças. A tarefa de um professor deve estar respaldada, antes de tudo, pela concepção que ele tem sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem, independente da área em que atue no currículo escolar. É fundamental situar-se, ter consciência da base teórica em que estamos inseridos no desempenho de nossa tarefa docente, seja na educação pré- escolar, primária, secundária ou superior. A partir dessas LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 6 questões preliminares, conclui-se que estudar a criança, seus processos de desenvolvimento e aprendizagem através da atividade lúdica, dependendo do marco teórico em que o professor se situa, lhe permite expandir as teorias referentes ao valor do jogo infantil, dimensionar seu valor como elemento, não somente de desenvolvimento e aprendizagem, mas também de diagnóstico emocional da criança. Para isso é necessário que estejam preparados aqueles que utilizam a atividade lúdica como meio pedagógico, tanto para interpretar o jogo da criança, como para facilitar a aprendizagem e alavancar o desenvolvimento. Com o objetivo de debater as teorias sobre o jogo infantil que mais influenciam psicólogos e pedagogos, no próximo segmento discutimos as atribuições de Wallon, Piaget e Vygotsky. Concepção do jogo de Vygotsky A visão do jogo como uma atividade prazerosa para a criança resulta, para Vygotsky, inadequada por duas razões: em primeiro lugar, porque existem muitas atividades que proporcionam à criança maiores experiências de prazer, como é o caso, muito concreto, de succionar uma “teta”; em segundo lugar, porque entende que existem jogos em que a atividade não é prazerosa em si mesma, como é o caso dos jogos que unicamente produzem prazer se a criança obtém um resultado interessante. Esses jogos costumam predominar no final da idade pré-escolar e no princípio da etapa escolar. Vygotsky além de não considerar o prazer como uma característica definitiva do jogo, é de opinião de que as teorias que ignoram o fato de que o jogo completa as necessidades da criança “ desembocam em uma intelectualização pedante do jogo”. Por outro lado, entende que todo o avanço da criança está relacionado com uma profunda mudança e respeito aos estímulos ,inclinações e incentivos, e que a criança satisfaz certas necessidades através dos jogos. O mundo ilusório e imaginário que surge na criança é o que se constitui “jogo”, já que a imaginação, como novo processo psicológico, não está presente na consciência das crianças pequenas e está totalmente ausente nos animais. Justifica esse ponto de vista dizendo que “não encontramos nenhuma criança com menos de três anos que deseje fazer alguma coisa nos dias seguintes.” Entretanto, ao alcançar a idade escolar, emergem numerosas tendências irrealizáveis e desejos postergados, que se manifestam através de seus jogos. Esse enfoque de como começa o jogo da criança está baseado na sua convicção de que o jogo é coetâneo à aparição do simbolismo. Suas inferências levam a crer que a atividade da criança antes desta etapa de desenvolvimento não constitui jogo. Afirma, entretanto, que a imaginação, como todas as funções do conhecimento, surge da ação. Ao atuar, a criança imagina; e ao imaginar, joga. Vygotsky cita um provérbio – segundo o qual o jogo da criança é a imaginação em ação – que deve de ser invertido para os adolescentes e crianças na idade escolar: “a imaginação é um jogo sem ação”. Uma de suas conclusões, ao estabelecer critérios para distingir o jogo infantil de outras formas de atividades, é que no jogo a criança cria uma situação imaginária. Entretanto, e como ele mesmo afirma, esta idéia não é nova, pois as situações imaginárias no jogo sempre foram bem aceitas, ou melhor, ao princípio se considerava unicamente como um exemplo de atividades lúdicas e eram tratadas como atributo das subcategorias específicas do jogo. A situação imaginária é uma característica definitiva do jogo geral. Ao analisar a situação imaginária no jogo da criança, traz novos elementos para reflexão. Sempre que se produza uma situação imaginária haverá regras, não LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 7 aquele tipo de regras que se formulam anteriormente e que vão mudando segundo o desenvolvimento do jogo, mas regras que se desprendem da mesma situação imaginária. Não existe jogo sem regras, posto que a própria situação imaginária contém em si certas regras de conduta, todo tipo de jogo com regras contém uma situação imaginária, isto é, a recíproca parece ser verdadeira. Caillois está de acordo com essa idéia quando diz que não pode haver jogo sem regras, ainda que sejam propostas por uma única pessoa. Para fundamentar esse ponto de vista, coloca alguns exemplos. Vejamos um deles que se refere a duas irmãs na vida real, que “jogavam” de ser irmãs. No jogo, a criança trata de comporta-se como acredita que deve ser uma irmã. Na vida real, a criança se comporta sem pensar que é irmã de sua irmã. No jogo ambas estão envolvidas pela representação de seus respectivos papéis, pois o fato de que decidam jogar de ser irmãs determina que tenham que respeitar algumas regras de conduta. Em síntese, aquilo que na vida real passa de forma inadvertida pela criança se converte em uma regra de conduta no jogo. Essa análise o leva a uma de suas conclusões em relação ao desenvolvimento dos jogos das crianças. Afirma que os jogos evoluem de uma evidente situação imaginária e certas regras ocultas, para jogos com regras manifestas e situações imaginárias pouco evidentes. Esses dados nos levam a crer que, para Vygotsky, o jogo da criança evolui, não do jogo simbólico ao jogo de regras como pensa Piaget, mas do jogo de regras ocultas ao jogo de regras manifestas. Neste ponto, sua teoria sobre o jogo da criança entra em posição à teoria de Piaget, quando diz que o jogo de exercício antecede o jogo simbólico, uma vez que a criança joga por um simples prazer funcional ou por uma tomada de consciência de suas novas capacidades. Vygotsky, ao considerar que o jogo começa com o surgimento de um mundo ilusório ou imaginário, provavelmente se esqueceu de explicar como ele entendia as atividades desenvolvidas pelas crianças anteriores ao aparecimento do símbolo. Seus estudos não esclarecem a etapa anterior, e isso, se constitui numa limitação de sua teoria.Com respeito à ação e a seu significado no jogo, atribui ao ato de jogar uma relevância completamente espacial, pois crê que a influência do jogo no desenvolvimento da criança é enorme, ao mesmo tempo que opina que jogar em uma situação imaginária resulta totalmente impossível para uma criança de menos de três anos, já que é uma nova forma de conduta que libera o pequeno das coações a que se vê submetido. Vygotsky faz referência a um estudo de Lewin sobre a natureza motivada das coisas. Em suas conclusões, Lewin diz que são as coisas que ditam à criança o que ela deve fazer, como, por exemplo: uma porta exige ser aberta e fechada, uma escada pela qual se pode subir e descer. Considerando essas afirmações como uma hipótese, pode-se inferir que toda percepção é um estímulo para a atividade e, conseqüentemente, um convite para determinar tipos de jogos. No jogo, para Vygotsky, as coisas perdem sua força determinante. A criança vê uma coisa, mas atua prescindindo do que vê. Em outras palavras, existe uma independência entre o atuar e o que a criança percebe. A ação em uma situação imaginária ensina a criança a guiar sua conduta, não somente através da percepção imediata dos objetos ou pela situação que lhe afeta modo imediato, mas também pelo significado desta situação. Assinala também que para as crianças muito pequenas é impossível separar o campo do significado do campo visual, por existir uma íntima fusão entre o significado e o que percebe visualmente. A divergência entre os campos do significado e da visão costuma se dar na idade pré-escolar, isto é, no jogo o pensamento está separado dos objetos, e a ação surge a partir das idéias, mais que das coisas. Quando um pau se converte em cavalo, o objeto é o ponto de partida para a separação do significado da palavra “cavalo” do cavalo real; nesse caso, o jogo proporciona um estado de transição. LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 8 Vygotsky explica que a percepção humana podia expressar-se de modo figurativo, sendo o objeto, o numerador e o significado o denominador (objeto/significado). Toda a percepção humana se elabora a partir de percepções generalizadas, mais que isoladas. Portanto, para a criança, o objeto domina a relação objeto/significado. No momento em que o pau se converte em ponto de partida para suprimir o significado, o significado do conceito “cavalo” do cavalo real, irá inverter esta proporção ficando a relação significado/objeto. Entretanto isso não significa que as propriedades das coisas não tenham significado, pois qualquer pau pode ser um cavalo, mas um “cartão postal” não pode nunca era um cavalo para a criança. Em resposta a Goethe esclarece que, no jogo, qualquer coisa pode converter-se em outra. Se os adultos são capazes de fazer uso consciente dos símbolos, como por exemplo utilizar um cartão postal como se fosse um cavalo, para a criança isso é impossível, porque a atividade da criança é jogo, não simbolismo. Esse fato representa um estado transicional importante na operação com significados que se produz quando o pequeno atua primeiro com significado do que com objetos. No jogo, a criança, sem saber o que está fazendo de forma espontânea, tem a capacidade de separar o significado do objeto, ao mesmo tempo que fala em prosa sem prestar atenção nas palavras que pronuncia. Dessa forma, a criança, através do jogo, vai aceder a uma definição funcional dos conceitos ou objetos, e as palavras se convertem em partes integrantes de uma coisa. Atribui, entretanto, uma grande importância à criação de uma situação imaginária considerando-o como a primeira manifestação de emancipação da criança em relação às limitações situacionais. O primeiro paradoxo do jogo, na sua opinião, consiste em que a criança opera com um significado alheio a uma situação real; o segundo é que, no jogo, a criança adota uma linha de menor resistência, isto é, faz o que mais lhe apetece, porque o jogo tem relação com o “prazer” e, ao mesmo tempo, aprende a seguir uma linha de maior resistência submetendo-se a certas regras e renunciando ao que deseja. O caminho em direção a obter o máximo prazer no jogo consistirá nesta sujeição às regras e na renúncia à ação impulsiva. O maior autocontrole de que é capaz uma criança se produz no jogo, ao renunciar a uma atração imediata, como por exemplo um caramelo, já que as regras proíbem, porque representa alguma coisa nãocomestível. Essa renúncia é uma forma de alcançar o máximo prazer, e o “respeito às regras é uma fonte de prazer”. Este tipo de regra interna é uma regra de autolimitação e autodeterminação. Cita, para fundamentar essa opinião, os estudos de Piaget. Fica patente o papel que outorga às regras como ingredientes determinantes dos jogos da criança e também como responsáveis, de certa forma, pelo prazer que surge dessa atividade lúdica. Ao falar da separação da ação e significado afirma que numa criança de idade préescolar a ação domina em princípio sobre o significado, sendo isto compreendido somente pela metade, porque a criança é capaz de fazer mais coisas do que aquelas que ela pode compreender. Certamente, a criança não se comporta de modo puramente simbólico no jogo, mas deseja e realiza seus desejos deixando que as categorias básicas da realidade passem através de sua experiência, ou seja, ao mesmo tempo que deseja, realiza seus desejos. Ao pensar, atua, e neste caso a ação interna e externa são inseparáveis: a imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos realizados pela ação externa. Tem a convicção de que no jogo uma ação substitui outra, como também um objeto substitui outro. Pergunta e responde: Como flutua a criança entre um objeto e outro, entre uma ação e outra? Realiza-se graças a um movimento no campo no campo do significado que subordina a si mesmo todas as ações e objetos reais, posto que a conduta não está limitada pelo campo perceptual imediato. Por um lado, representa o movimento no campo abstrato, e, por outro, o método de movimento é situacional e concreto, isto é, mais mudança afetiva que lógica. Aí reside a principal contradição do desenvolvimento do jogo. Outro aspecto LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 9 destacável do pensamento de Vygotsky sobre o jogo se refere à “pré-história escrita”. Dá ênfase aos gestos e signos visuais no desenvolvimento do simbolismo no jogo e no desenvolvimento do simbolismo no desenho como elementos importantes na escrita da criança. Quanto ao “desenvolvimento do simbolismo no jogo”, afirma que os jogos infantis unem os gestos com a linguagem escrita. Neste aspecto, a chave de toda a função simbólica do jogo das crianças é a utilização do brinquedo e a possibilidade de executar com ele um gesto representativo. Vygotsky, quando aborda essa temática, fala do simbolismo de “primeira e de segunda ordem”. O simbolismo de primeira ordem se refere à representação do significado, e o de segunda ordem atinge os que surgem mais tarde. Estes últimos se referem ao jogo de fingir e se desenvolvem através do jogo, já que o objeto adota uma função de signo com uma história evolutiva própria, história que é independente do gesto da criança. Analisando um estudo de Hetzer (1926) sobre os jogos das crianças, Vygotsky afirma que a conclusão mais importante que se pode extrair dessa investigação é que a diferença observada na atividade lúdica entre os três e seis anos não reside na percepção dos símbolos, mas no modo de utilizar as distintas formas de representação. Para Vygotsky isso é sumamente importante uma vez que indica que a representação simbólica no jogo é, essencialmente, uma determinada forma de linguagem em estado prematuro, “uma forma que nos conduz diretamente à linguagem escrita.” Quando explica o papel do jogo no desenvolvimento da criança, chaga a algumas conclusões. Inicialmente, coloca que o jogo não é uma característica predominante da infância, e sim um fator básico no desenvolvimento. Posteriormente, fala da importância da mudança do predomínio da situação imaginária ao predomínio das regras na evolução do jogo, e, por último, destaca as transformações internas no desenvolvimento da criança que o jogo acarreta. O vínculo que se estabelece entre o jogo e o desenvolvimento é para Vygotsky o fator fundamental que se deve ter em conta, já que é no curso do jogo que a ação se subordina ao significado, e, portanto, tudo que interessa à criança é a realidade do jogo em si, porque na vida real a ação domina o significado. Discorda de que o jogo seja o protótipo da atividade cotidiana da criança, e de que seja sua forma predominante. Um objeto no jogo tem um significado distinto fora dele, pois no mundo da criança, a lógica dos desejos e de satisfação das necessidades domina sobretudo, deixando de lado a lógica real. Outro aspecto muito relevante da teoria de Vygotsky é a transferência que faz onipresente o comportamento do jogo na vida real. Esse fato pode ser considerado um sintoma de enfermidade, pois comportar-se em uma situação real como se se tratasse de algo ilusório. É um dos primeiros sinais de delírio. Admite, entretanto, que, quando a conduta do jogo se transfere para vida real, se pode considerar normal naquele tipo de jogo em que as crianças começam a jogar o que estão fazendo na realidade. Tem a convicção de que o jogo não é o tipo de atividade predominante na etapa escolar. Através dele a criança cria uma “zona de desenvolvimento proximal”, fato que a faz estar sempre por cima de sua idade média, isto é: todas as tendências evolutivas de forma condensada, sendo em si mesmo uma considerável fonte de desenvolvimento. Vygotsky denomina “zonas de desenvolvimento proximal” aquelas funções que ainda não estão maduras, mas que se encontram em processo de maturação, o que alcançarão no futuro não muito distante. Estas zonas são as que vão determinar o nível real de desenvolvimento em que a criança se encontra. Faz duras críticas aos que utilizam os testes com finalidade de determinar o nível evolutivo real da criança, porque dessa forma se valoriza unicamente o que a criança é capaz de fazer sozinha. Defende a idéia de que devemos valorizar tudo o que a criança é capaz de fazer com a ajuda dos demais, como, por exemplo: se oferecemos ajuda ou mostramos como ela pode resolver um problema, e a criança soluciona; ou se o professor inicia solução, e ela completa; ou se a criança resolve com a colaboração dos outros companheiros. A resolução de um problema em qualquer dessas LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 10 circunstâncias configura que está em processo de desenvolvimento. Isso significa que existem coisas que a criança num primeiro momento não pode fazer sozinha, mas que é capaz de realizar com o auxílio dos demais. O estágio de desenvolvimento mental de uma criança somente pode ser determinado levando-se em consideração o nível real de desenvolvimento e a zona de desenvolvimento proximal. Conclui que a total compreensão do conceito da zona de desenvolvimento proximal deve conduzir a uma nova avaliação do papel da imitação na aprendizagem. Portanto, uma criança avança essencialmente através da atividade lúdica, e somente neste sentido se pode considerar o jogo como uma atividade condutora que determina a evolução da criança. No jogo, a situação imaginária, inicialmente, está muito próxima da situação real; isso significa que as crianças jogam reproduzindo esta última. Os jogos de “casa”, de “papai- mamãe” são exemplos que fazem com que as crianças representem as situações que vivem nos seus lares. Para Vygotsky, neste momento, muito poucas situações pertencem ao terreno do imaginário; portanto, o jogo está mais próximo da reconstituição de alguma coisa que realmente ocorreu do que da imaginação; é mais memória em ação do que uma nova situação imaginária. Por outro lado, o jogo é sempre uma atividade com objetivos, enquanto seu propósito decide o jogo e justifica a atividade, sendo o objetivo o fim último, determinado a atitude afetiva da criança com respeito ao jogo. Com respeito aos jogos desportivos, Vygotsky centra o propósito do jogo como uma de suas características determinantes, característica sem a qual não haverá atrativo, pois neste tipo de jogo o objetivo (que tem que vencer) se conhece por antecipação. Quando o jogo transcorre sem objetivos concretos ou sem regras aparentes, como mínimo, resulta sem graça e não atrai as crianças. Temos que destacar duas variáveis relevantes nos jogos infantis: por um lado, uma criança quando joga é totalmente livre para determinar suas próprias ações; por outro lado, essa liberdade não é mais que ilusória, já que suas ações ficam subordinadas ao significado das coisas, e em conseqüência a criança se vê obrigada atuar. O fato de o jogo criar uma situação imaginária certamente determina o desenvolvimento do pensamento abstrato. Seriedade no jogo, para uma criança de três anos, significa jogar sem separar a situação imaginária da real; ao contrário, para uma criança em idade escolar, o jogo se converte em uma forma de atividade muito mais do tipo atlético e, portanto, desempenha um papel muito específico em seu desenvolvimento. LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS 11 Vygotsky conclui que a essência do jogo é a nova relação que se cria entre o campo do significado e o campo real, relação que, em outras palavras, se daria entre situações imaginárias, que somente existem no pensamento e em situações reais. Somente uma análise interna e profunda do jogo nos permite determinar o caminho de sua mudança e de seu papel no desenvolvimento. Após essa panorâmica do jogo nas diferenças entre as abordagens de Wallon, Piaget e Vygotsky, ficam evidentes as diferenças entre as abordagens de Piaget e Vygotsky, embora os dois se situem numa posição construtivista. Aspecto relevante que aproxima, de certa forma, o pensamento de Wallon ao de Vygotsky com relação ao jogo infantil está na tese de que ambos entendem que o jogo é produto do social. Apresentamos a seguir uma síntese das idéias de Piaget, Wallon e Vygotsky com relação ao jogo infantil, objetivando explicitar suas diferenças de pensamento. Fonte: Aprendizagem & Desenvolvimento Infantil: Simbolismo e Jogo. Autor: Airton Negrine. Editora Prodil. Porto Alegre, pág. 20 a 28 e 45 a 53 , 1994. LABRINJO – LABORATÓRIO DE BRINQUEDOS E JOGOS