A violência contra a mulher e a segurança pública: combinando abordagens Marilene de Paula1 No Brasil, quando falamos em políticas de segurança pública, o que primeiro vem à mente é o combate à violência letal. Em média, de 1997 a 2007, 45 mil pessoas foram vítimas de homicídio, em sua maioria homens (94%), na faixa etária de 15 a 24 anos, negros, vivendo nas periferias das cidades, mas com forte interiorização a partir de 2003. Essa predominância masculina torna invisíveis para ongs e movimentos de defesa dos direitos humanos, que lidam com a temática da segurança pública, as mulheres e meninas envolvidas em variadas formas de violência armada. O processo de violência armada está mais presente nas redes de tráfico de drogas, que são também o sustento das mulheres, só que em posições mais baixas. Estão no trabalho de base como olheiras ou no transporte de armas e drogas. No Rio, as mulheres dos grandes traficantes são chamadas de “damas do tráfico” e ficam na linha de frente quando seus companheiros estão presos. São elas também as “viúvas” do tráfico. Mães, esposas e parentes que de forma geral (engajadas ou não no crime) sofrem violência indireta. Para os homens há uma intenção de matar, por isso o número tão grande de homicídios, para a mulher, não. O processo é diferenciado, voltado para a intimidação e violência física. Nas favelas do Rio de Janeiro, há relatos de que quando uma mulher comete adultério, maus tratos em crianças ou algo nessa linha, sua cabeça é raspada ou ela é espancada para que toda comunidade saiba. Os “senhores” do tráfico fazem isso, a partir de uma denúncia. Mas elas são também a esmagadora maioria das lideranças e ativistas dos movimentos de defesa de direitos contra a violência e a impunidade. A maioria dos grupos no Rio de Janeiro são liderados por mulheres e tem um grande número de mulheres militando. O movimento de mulheres não está alheio a essas situações, mas em geral as abordagens sobre a violência contra a mulher se baseiam na violência doméstica, dando pouca ênfase ao debate mais amplo sobre a segurança pública. Essa prevalência do tema violência doméstica pode ser explicada: a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil; de 2003 a 2007 ocorreram 19.440 homicídios de mulheres, numa média nacional de 4,2 em 100 mil/hab.; num ranking de 73 países, o Brasil ocupa o 12º lugar entre os mais violentos. Esse quadro começou a mudar em 2006, quando foi aprovada a Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, bandeira histórica do movimento feminista. O nome da Lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia, que sofreu agressões e tentativas de assassinato pelo marido durante 7 anos, ficando paraplégica. O caso percorreu os tribunais durante 18 anos e somente em 2002 o agressor foi preso, para cumprir uma pena de dois anos de reclusão. Foi apresentado também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que condenou o Estado brasileiro por omissão. O caso de Maria da Penha exemplifica o que ocorria antes da criação da Lei, quando a violência doméstica contra as mulheres era considerada um crime menor, punido com três meses a três anos de prisão. O agressor podia continuar frequentando o mesmo lugar que a vítima e era permitida a aplicação de penas pecuniárias e doação de cestas básicas, alternativa que permitia que muitos agressores permanecessem em liberdade, fazendo novas ameaças as suas vítimas. A atual legislação prevê uma pena mais dura e inova ao elencar diretrizes para a implementação de políticas públicas mais amplas, como a assistência à mulher vítima de violência, a criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, construção de casas-abrigo, ampliação da rede de delegacias especializadas, criação de núcleos de defensoria pública e Juizados especiais etc. 1 Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais, Coordenadora da área de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll. No exemplo da Lei Maria da Penha, sociedade civil e governo federal deram passos na direção da integração de questões de gênero e sistema de segurança pública. Muito recentemente um campo de diálogo também se iniciou, tendo como marco a realização em 2009 da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, uma iniciativa do Governo Federal que congregou profissionais da segurança, gestores públicos e sociedade civil. Outras iniciativas foram a criação, em 2007, do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, com diretrizes estratégicas sobre o tema, e a inclusão orçamentária no Programa Nacional de Segurança com Cidadania – PRONASCI, principal iniciativa na área de segurança pública, das medidas de assistência e proteção propostas na Lei Maria da Penha. Qual o ganho ao combinar estudiosos, ativistas e gestores públicos do campo da segurança pública com os do campo feminista, ou ainda, os trabalhos e estudos sobre criminalidade e segurança, predominantemente sobre os homens no espaço público, para uma visão que inclua a perspectiva de gênero como uma questão da segurança pública? O ganho está na construção de um campo de diálogo includente, democrático, em que caibam as contradições, novas propostas e atores, para lidar com um tema complexo e instigante. A participação integral e equitativa de mulheres no planejamento de ações e na tomada de decisões são passos para romper com os discursos e práticas dominados por uma visão hegemônica-belicista, afeita à resolução de conflitos de forma não violenta, que possa conjugar a promoção da solidariedade e da confiança entre as pessoas.