UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
MARCELO TOMELIN BOGO
A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A
RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE
PALHOÇA (SC)
2010
MARCELO TOMELIN BOGO
A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A
RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Curso de Direito da
Universidade Sul de Santa Catarina, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Direito.
Orientadora: Prof.ª Patrícia Russi.
PALHOÇA (SC)
2010
MARCELO TOMELIN BOGO
A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A
RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi
julgado adequado à obtenção do título de
Bacharel em Direito e aprovado em sua
forma final pelo Curso de Direito da
Universidade do Sul de Santa Catarina.
Palhoça (SC), 14 de Junho de 2010
______________________________________
Orientadora: Prof.ª Patrícia Russi.
Universidade do Sul de Santa Catarina
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________
Prof.ª Siomara Aparecida Marques
_________________________________________
Prof.ª Priscila de Azambuja Tagliari
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A
RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE
Declaro, para todos os fins de direito e que se fizerem necessários, que assumo total
responsabilidade pelo aporte ideológico e referencial conferido ao presente trabalho,
isentando a Universidade Sul de Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito,
a Banca Examinadora e o Orientador de todo e qualquer reflexo acerta desta
monografia.
Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso
de plágio comprovado do trabalho monográfico.
Palhoça (SC), 14 de Junho de 2010
___________________________________________
Marcelo Tomelin Bogo
Dedico este trabalho primeiramente a
minha família pelo carinho e pela ajuda que
nunca faltou, agradeço também meus
amigos que sempre estiveram presentes e
a Deus por me proporcionar este momento.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, que deu a mim esta oportunidade.
Aos meus pais, Valdir e Teresinha, sempre tão presentes em minha vida,
mesmo diante de tantos afazeres, mas sempre me apoiando e incentivando com
muito amor e carinho.
Aos meus irmãos, André e Rose, por termos vividos junto grande parte de
nossas vidas, e por eles terem presenciado a maior parte das minhas conquistas,
ambos sempre me ajudando e apoiando no que fosse preciso, sem deixar de lado
minha sobrinha Eduarda que é uma fonte de inspiração e energia para toda a família.
A minha professora orientadora, por ter disponibilizado gentilmente seu
precioso tempo para me ajudar no que foi preciso para a elaboração deste trabalho.
Por fim, agradeço meus colegas de faculdade, pelos momentos inesquecíveis
proporcionados nestes anos juntos, bem como a todos que de certo modo me
incentivaram para a conclusão deste.
RESUMO
O presente trabalho trata da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). A qual foi editada
em decorrência de uma longa luta pelo combate à violência doméstica contra a
mulher, alvo principal deste tipo de agressão. No transcurso da pesquisa será
abordado a Lei Maria da Penha, bem como seus aspectos legais, e fundamentação a
cerca da sua constitucionalidade. No decorrer desta também será analisada a Lei,
desde a origem da sua denominação, os tipos de violência no âmbito doméstico, a
importância dos tratados internacionais, a sua efetividade e abrangência no plano
jurídico, sua harmonia com a Constituição Federal em face do Princípio da Isonomia,
por fim a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 19 do STF. A
Verificação de críticas referentes a inconstitucionalidade da lei, seu fundamento e se
ela é comprovadamente necessária, justa e eficaz no combate à violência praticada
no âmbito doméstico contra a mulher.
Palavras-chave:
Princípio
Constitucionalidade da Lei.
da
Isonomia.
Violência
contra
as
mulheres.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................9
2 ASPECTOS HISTÓRICOS A RESPEITO DA LEI 11.340/2006..............................10
2.1 O NOME DE UMA MULHER.................................................................................10
2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO.....................................................................................11
2.2.1 A luta contra a violência doméstica................................................................13
2.3 A INFLUÊNCIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.........................................15
2.4 O PROJETO DE LEI N° 4.559/2004......................................................................17
3 ASPECTOS DA LEI N° 11.340/2006......................................................................19
3.1 FINALIDADE..........................................................................................................19
3.2 ABRANGÊNCIA.....................................................................................................20
3.2.1 Unidade doméstica...........................................................................................22
3.2.2 Âmbito familiar..................................................................................................22
3.2.3 Relação íntima de afeto....................................................................................24
3.3 ESPÉCIES DE VIOLÊNCIA...................................................................................25
3.3.1 Violência física..................................................................................................26
3.3.2 Violência psicológica........................................................................................27
3.3.3 Violência sexual................................................................................................28
3.3.4 Violência patrimonial........................................................................................30
3.3.5 Violência moral..................................................................................................31
4 SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE....................................................................32
4.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE.................................................................................32
4.2 HIPÓTESES VÁLIDAS DE TRATAMENTO DIFERENCIADO..............................34
4.3 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI..................................................................36
4.4 AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE N° 19...........................37
5 CONCLUSÃO.........................................................................................................43
REFERÊNCIAS...........................................................................................................45
ANEXOS......................................................................................................................48
ANEXO A.....................................................................................................................49
9
1 INTRODUÇÃO
A presente monografia tem como objetivo principal analisar a Lei Maria da
Penha. Iniciando por seus aspectos mais importantes, contexto histórico, alguns
conceitos
relevantes
e,
por
fim,
a
polêmica
gerada
em
torno
da
sua
constitucionalidade, em vista do suposto confronto com o princípio da igualdade.
A preferência por este tema se deu em razão da Lei Maria da Penha ser um
tema socialmente relevante, devido à necessidade de amparo às mulheres vítimas de
violência, no caso, a doméstica.
Este trabalho, além de descrever e analisar o processo histórico que deu
origem à Lei Maria da Penha, conceitua algumas pontos específicos constantes na
referida Lei, os quais merecem maior esclarecimento considerando a necessidade de
tratamento desigual no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O procedimento de pesquisa adotado no presente trabalho será o bibliográfico,
sendo que, para o seu desenvolvimento, serão trazidas informações de livros que
tratam da violência doméstica, bem como jurisprudências, legislação e artigos
publicados na rede mundial de computadores (internet).
O trabalho está dividido em cinco capítulos. O primeiro traz a presente
introdução e em seguida no segundo capítulo expõe o contexto histórico da Lei Maria
da Penha, tratando dos principais acontecimentos até seu surgimento, desde a sua
origem, até o projeto de lei que a antecedeu.
Logo o terceiro capítulo analisa conceitos especiais acerca de dispositivos
previstos na mencionada Lei, a fim de que haja compreensão e entendimento sobre
os fins a que ela se destina, bem como sobre as situações em que cabe a sua
aplicação.
No quarto capítulo, há considerações a respeito da constitucionalidade no
contexto da Lei n° 11.340/2006, à possibilidade de tratamento diferenciado perante a
constituição, e também analisaremos a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº.
19 do STF, em face dos artigos 33 e 41 da Lei Maria da Penha. E por fim, no quinto e
último capítulo a conclusão deste trabalho.
10
2 ASPECTOS HISTÓRICOS À RESPEITO DA LEI 11.340/2006
Até surgir a Lei Maria da Penha houve inúmeros casos de sofrimento de
mulheres, não reconhecidas pelo Estado durante séculos, lutaram pelo fim da
violência, luta esta, que é de muita importância para a sociedade.
Este
capítulo
aborda
todo
o
caminho
percorrido
pelas
mulheres,
especificamente por Maria da Penha, até a sanção da Lei n° 11.340 de 2006.
2.1 O nome de uma mulher
Maria da Penha Maia, farmacêutica bioquímica, mãe de três filhas, uma dentre
inúmeras mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil1. Casada com Marco
Antônio, sofria agressões e ameaças, contudo se calava, pois temia algo pior
acontecer.
Não obstante, no ano de 1983, durante seu repouso, Maria da Penha foi
surpreendida por parte de seu marido, que lhe desferiu um tiro, deixando-a
paraplégica.2
Sobre o acontecimento, acrescentam Cunha e Pinto:
O ato foi marcado pela premeditação. Tanto que seu autor, dias antes,
tentou convencer a esposa a celebrar um seguro de vida, do qual ele seria o
beneficiário. Ademais, cinco dias antes da agressão, ela assinara, em
branco, um recibo de venda de veículo de sua propriedade, a pedido do
3
marido.
Insatisfeito e descontente pela tentativa de homicídio frustrada, o agressor
novamente atentou contra a vida de sua esposa, desta vez tentou eletrocutar a
esposa enquanto ela tomava banho, apenas algumas semanas após ter retornado do
hospital quando ainda se recuperava da violência anterior.4
Diante de tanta amargura, Maria da Penha saiu de casa e denunciou o marido
pelos crimes cometidos e iniciou uma longa batalha em busca da condenação de seu
1
HERMANN, Leda Maria; Maria da Penha Lei com Nome de Mulher: violência domestica e familiar,
considerações à Lei nº. 11.340/2006, comentada por artigo, 1ª. Ed, Editora Servanda, 2008, p. 17.
2
Ibid, p. 18.
3
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei maria da penha (lei
nº.11340/2006), comentada artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: editora Revista dos
Tribunais, 2008, p. 21.
4
BISOGNIN, Carolina Vicente; STAHLHÖFER, Iásin Schäffer; PEREIRA, Matheus Castelan. Lei
11.340/2006: seu contexto, conteúdo e aplicação. Revista eletrônica do Curso de Direito da UFSM,
Santa aria, v. 2, n. 3, nov. 2007. Disponível em:
<http://www.ufsm.br/revistadireito/arquivos/v2n3/a08.pdf>. Acesso em 21 abr. 2010.
11
agressor. A fase investigativa começou em junho do mesmo ano, mas a denúncia
somente foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984.5
Passados 14 anos, já em 1998, Maria da Penha, insatisfeita com a atuação do
Judiciário Brasileiro delatou o fato à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Três anos depois o Estado Brasileiro foi responsabilizado por sua negligência e
omissão quanto à violência doméstica e, recebeu recomendações da CIDH para
tomar as devidas providências no que diz respeito ao episódio de Maria da Penha,
bem como ficou de rever as políticas públicas no que tange à violência contra a
mulher no País.6
Tal sanção foi motivo suficiente para a edição da Lei n° 11.340/06, que foi
denominada como Lei Maria da Penha, devido ao sofrimento de uma mulher que
lutou por anos em busca de justiça.
Marco Antônio somente foi encarcerado em 2002, ou seja, quase vinte anos
após os fatos, porém ficou preso por apenas dois anos, tendo em vista que obteve a
progressão para o regime aberto, permitido na época para o delito de homicídio
qualificado.7
2.2 Violência de gênero
Influenciado pelas diferenças culturalmente existentes entre homens e
mulheres, criou-se em nossa sociedade a idéia de que as mulheres pertencem aos
homens e eles podem “dispor” delas da maneira como desejarem.
Assim explica Silva:
Ainda hoje a construção social engendrada para manter o status quo de
domínio não é percebida pelo senso comum social, razão pela qual a
submissão feminina ainda assume contornos de realidade imanente,
histórica, biológica e natural. E é neste contexto de normalidade das
relações de poder entre os sexos, de naturalidade da vida sob a égide da
8
"lei do pai" que tem lugar a violência doméstica.
5
SILVA, Ricardo José de Medeiros e; A Lei Maria da Penha e a União Homoafetiva. Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=413>. Acesso em 19 de Abr. 2010.
6
CORTÊS, Iares Ramalho; MATOS, Myllena Calasans de. Lei Maria da Penha: do papel para a
vida. Brasília: centro feminino de estudos e assessoria, 2007. Disponível em:
<http://www.assufba.org.br/legis/leimariadapenha.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2010.
7
CUNHA; PINTO, 2008, p. 22 e 23.
8
SILVA, Danielle Martins. Violência doméstica na Lei Maria da Penha. Reflexos da visibilidade
jurídica do conflito familiar de gênero. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1874, 18 ago. 2008.
Disponível em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11614>. Acesso em: 26 abr. 2010.
12
Diante desse comportamento social, advindo de fatores culturais, fica clara a
necessidade de uma lei que tenha uma abrangência específica, para combater neste
caso a violência de gênero.
“A violência de gênero é um padrão específico de violência fundada na
hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero
feminino, e amplia-se e reatualiza-se na proporção direta em que o poder masculino é
ameaçado.” 9
Portanto, o homem que busca ser respeitado em sua virilidade, comportamento
advindo de uma cultura imposta pela sociedade, muitas vezes opta por usar a
violência, geralmente em casa.
Resultados de pesquisas da Organização Mundial de Saúde (OMS) realizadas
junto a mulheres vítimas de várias formas de agressões, demonstram que “30% das
mulheres foram forçadas nas primeiras experiências sexuais; 52% são alvo de
assédio sexual; 69% já foram agredidas ou violadas.”10
Não obstante, para piorar a situação, Dias (2008) aponta que os números
mencionados acima “não retratam a realidade, pois a violência é subnotificada,
somente 10 % das agressões sofridas por mulheres são levadas ao conhecimento da
polícia.”11
A maioria das vítimas se calam perante a violência, e esse comportamento
decorre de diversos fatores, tais como o receio de novamente serem agredidas, como
também o medo em relatar a situação, pelo fato de não terem para onde ir a princípio,
ou por serem economicamente dependentes dos maridos, ou até mesmo por
esperança que a agressão não se repetirá.12
A violência doméstica contra as mulheres, jamais cessará enquanto estas não
pedirem ajuda, e deixarem de ficar caladas. Maria da Penha também temia o pior
acontecer e por muito tempo permaneceu calada, causando-lhe um sofrimento
indescritível.
9
SAFFIOTE; ALMEIDA apud RECHTMAN, Moisés; PHEBO, Luciana. Pequena história da
subordinação da mulher: as raízes da violência de gênero. Disponível em:
http://comunidadesegura.org.br/pt-br/node/20099 Acesso em: 29 abr.2010.
10
WELTER apud DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da
Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008, p.15
11
Ibid, p. 16-17.
12
ANDRADE, Maísa Sá de; NETO, Manoel Valente Figueiredo. Considerações sobre a
constitucionalidade da Lei Maria da Penha (Lei N° 11.340/2006). Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5219>. Acesso em: 30 abr.
2010.
13
Apesar disso, depois da triste experiência de dor e sofrimento, Maria da Penha
confessou: “me senti recompensada por todos os momentos nos quais, mesmo
morrendo de vergonha, expunha minha indignação e pedia justiça para meu caso não
ser esquecido.” 13
2.2.1 A luta contra a violência doméstica
O início dessa luta pode ser definido com o slogan “Quem ama não mata”, feito
devido aos inúmeros casos de assassinato de mulheres, por seus companheiros, em
legítima defesa da honra.14
Diante desta situação muitas mulheres sofreram com a violência perpetrada
por seus companheiros, os quais chegam ao ponto de matar as esposas e depois se
defendem alegando a legítima defesa da honra, tese facilmente admitida pelo
Tribunal do Júri.
Atualmente, tais argumentações ainda são levantadas pelos agressores,
porém, felizmente, não têm a mesma aceitação que possuíam há décadas, conforme
se constata no julgado da Apelação Criminal, nº. 2005.026932-4 do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina (TJSC).
JÚRI - TENTATIVA DE HOMICÍDIO SIMPLES - AGENTE QUE DESFERE
TRÊS FACADAS NA REGIÃO ABDOMINAL DA VÍTIMA, A QUAL NÃO VEM
A FALECER POR CIRCUNSTÂNCIAS ALHEIAS À VONTADE DO RÉU LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA NÃO ACOLHIDA PELO CONSELHODE
SENTENÇA - DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS
AUTOS - INOCORRÊNCIA - CONFISSÃO DO ACOIMADO ALIADA ÀS
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA SOBREVIVENTE E DEMAIS PROVAS QUE
AMPARA A VERSÃO ACOLHIDA PELOS JURADOS - MANUTENÇÃO DO
15
DECISUM.
Tal quebra da tese da legítima defesa da honra, a respeito das agressões
contra mulheres, teve início no final da década de 1970, quando as mulheres
iniciaram a batalha contra a violência doméstica e sexual.16
13
CUNHA; PINTO, 2008, p. 26.
RECHTMAN, Moisés; PHEBO, Luciana. Pequena história da subordinação da mulher: as raízes da
violência de gênero. Disponível em:
<http://www.isis.cl/Feminicidio/doc/doc/violencia_mulhe%8A%E9s_Rechtman.pdf.>. Acesso em: 29
abr.2010.
15
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal n° 2005.026932-4. Recorrente:
Hélio Ortiz dos Santos Júnior. Recorrido: Ministério Público de Santa Catarina. Relator:
Desembargador Karstens Köhler. Disponível
em:<http://www.tj.sc.gov.br/institucional/diario/a2006/20061186600.PDF>. Acesso em 1° mar. 2010.
16
THOMAS apud BARSTED, Leila Linhares. A violência contra as mulheres no Brasil e a
convenção de belém do pará dez anos depois. Disponível em:
<http://www.mulheresnobrasil.org.br/pdf/PMB_Cap8.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2010.
14
14
Continuando, Thomas explica que
[...] tal tese, até o final daquela década, encontrava aceitação tranqüila e
pacífica nos diversos tribunais do júri do país. Certamente, foi pela atuação
insistente do movimento de mulheres, que enfim, em 1991, o Superior
17
Tribunal de Justiça rejeitou essa idéia de forma explícita.
As brasileiras influenciadas pelo movimento de mulheres e feministas, que se
empenharam, em trabalhar para demonstrar a violência contra a mulher como um
problema social de relevância, que não será resolvido apenas com políticas de
tratamento das vítimas e sanções aos agressores, mas sim recolocando a mulher na
sociedade, definindo sua função dentro ou fora de casa.18
Em conseqüência a “resposta às iniciativas desencadeadas pelas mulheres,
tanto reivindicatórias quanto de estudos e produção teórica, aos poucos o país foi
avançando no desenvolvimento de políticas sociais voltadas ao problema.” 19
Outro avanço em virtude desta luta foi a criação das Delegacias da mulher, na
década de 1980, com o objetivo de prestar atendimento especial às mulheres, com
relação às delegacias relata Dias:
A primeira foi implantada em São Paulo, no ano de 1985. Desempenharam
importante papel, pois o atendimento especializado, feito quase sempre por
mulheres, estimulava as vítimas a denunciar os maus tratos sofridos, muitas
vezes, ao longo de anos. De outro lado, o fato de os agressores serem
chamados perante a autoridade policial cumpria importante função
20
intimidatória.
Depois da criação das Delegacias da Mulher, foram instituídos, “órgãos
especiais, como os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM), que ocorreu também nos anos 1980, impulsionou a luta pela
cidadania feminina e, em especial, a luta contra a violência”.21
Enfim, após duas décadas de lutas, as mulheres conseguiram ampliar seus
direitos, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que garantiu a
igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (artigo 5°, inciso I), a
proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 5°, inciso XX), a igualdade no
exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, o fim do pátrio poder
17
THOMAS apud BARSTED, loc. cit.
BOSELLI, Giane. Dimensões da violência contra a mulher: construindo bases de dados.
Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/pdf/dimensoesdaviolenciacontraamulher_gianeboselli.pdf>.
Acesso em: 1° mar 2010.
19
BOSELLI, loc. cit.
20
DIAS, 2008, p. 22-23.
21
BARSTED, loc. cit.
18
15
(artigo 226, § 5°) e a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar
(artigo 226, § 8°).22
Tais mudanças constitucionais fizeram com que o Estado proporcionasse
maior assistência às mulheres vítimas de violência doméstica, pois, já havia um
consenso da importância do tema.
Com o intuito de estabelecer maior assistência, houve a “criação de novos
serviços, como os abrigos e os serviços de atendimento jurídico, previstos em
Constituições Estaduais (1989) e Leis Orgânicas Municipais (1990).” 23
Um importante papel estabelecido nesta jornada de combate à violência contra
a mulher foram os tratados internacionais a que o Brasil aderiu, os quais serão
estudados no próximo tópico.
Finalizando Barsted (2008) conclui que “todo esse esforço permitiu, nos
primeiros anos do século 21, um avanço significativo na luta pela cidadania das
mulheres e possibilitou uma expertise no diálogo com o Estado em diferentes áreas e
dimensões.”24
Assim, como resultado da luta das mulheres desenvolvida por mais de três
décadas, é notório que hoje exista consciência de que a violência de gênero é algo
inaceitável em uma sociedade civilizada, devendo ser sempre combatida.
2.3 A influência dos Tratados Internacionais
Antes que o assunto da violência contra a mulher fosse debatido no Brasil,
realizou-se no México, no ano de 1975, a primeira Conferência Mundial sobre a
Mulher, que resultou na elaboração da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres em 1979 (CEDAW), a qual entrou em
vigor em 1981.
Em 1993 aprovou-se a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as
Mulheres, conforme Barsted:
[...] em resposta às denúncias dos movimentos feministas do mundo inteiro,
a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, pela Resolução 48/104, a
Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres – um marco
na doutrina jurídica internacional. Essa declaração subsidiou, em 1994, a
elaboração, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da
22
BRASIL. Constituição Federal. Constituição de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 1° mar: 2010.
23
BARSTED, loc. cit.
24
BARSTED, loc. cit.
16
Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres –
25
Convenção de Belém do Pará.
Perante a importância do assunto, bem como as pressões exercidas pelos
movimentos feministas, o Brasil assinou dois Tratados Internacionais: o primeiro, de
abrangência mundial (CEDAW), da Organização das Nações Unidas, em 1984, e o
segundo, na esfera regional (Convenção de Belém do Pará), da OEA ratificada em
1995.26
No mesmo ano da ratificação da OEA o país também assinou a Declaração e a
Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, na China. Esta
declaração prevê algumas ações, no que diz respeito à violência doméstica, conforme
esclarecem Cortês e Matos:
Com relação à violência doméstica, a Plataforma prevê, além das medidas
punitivas ao agressor, ações voltadas para prevenção e assistência social,
psicológica e jurídica à vítima e a sua família. Prevê, também, ações que
27
possibilitem a reabilitação dos agressores.
A participação em ambos os Tratados e na Conferência foi decisiva para o
Brasil criar a Lei n° 11.340/2006, pois, se não cumprisse os compromissos assumidos
perante a comunidade internacional, o País seria responsabilizado. E foi
precisamente o que ocorreu.
Em virtude de uma denúncia, a CIDH, órgão da OEA, publicou o relatório
54/2001, no qual foram apontados os erros cometidos pelo Estado brasileiro, que não
cumpriu com o acordo internacional, por não se adequar ante a violência doméstica.28
Dentre as recomendações feitas ao Brasil, a CIDH se pronunciou:
A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria,
imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do
delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para
determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham
impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também
recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas,
no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência
29
doméstica contra as mulheres.
No ano de 2003 o Brasil “apresenta o seu primeiro relatório ao Comitê
CEDAW, referente ao período de 1985-2002. Após análise, o Comitê recomendou a
25
BARSTED, loc. cit.
BOSELLI, loc. cit.
27
CORTÊS; MATOS, loc. cit.
28
CUNHA; PINTO, 2008, p. 24.
29
Ibid, p. 25.
26
17
adoção, sem demora, de uma lei integral de combate à violência doméstica contra as
mulheres.” 30
O relato de Maria da Penha foi o primeiro em que houve aplicação da
Convenção de Belém do Pará, o que ocasionou o fim do processo penal contra Marco
Antônio, encarcerado poucos meses antes da prescrição da pena, bem como houve a
elaboração do Projeto de Lei n° 4.559/2004, que deu origem Lei Maria da Penha (Lei
n° 11.340/2006). 31
2.4 O projeto de Lei n° 4.559/2004
Em virtude de anos de luta contra o combate à violência doméstica, enfim é
criado o Projeto de Lei n° 4.559/2004 (PL 4.559/2004), o qual tramitou da seguinte
maneira, consoante descrevem Cortês e Matos:
2004 - Em 25 de novembro do mesmo ano, por ocasião do Dia Internacional
pelo Fim da Violência contra as Mulheres, o Executivo encaminha o Projeto
de Lei ao Congresso Nacional, que recebe, na Câmara dos Deputados, o
número PL 4.559/2004.
2005 - Discussão do Projeto na Câmara dos Deputados com realização de
audiências públicas em vários estados e aprovação na Comissão de
Seguridade Social e Família (CSSF), na Comissão de Finanças e Tributação
(CFT), na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). Recebe
apoio e empenho da Bancada Feminina do Congresso Nacional, de
parlamentares sensíveis à causa e das Deputadas relatoras Jandira Feghali
(na CSSF); Yeda Crusius (na CFT) e Iriny Lopes (na CCJC).
2006 - Os fóruns de mulheres de todo Brasil, seguindo iniciativa do Estado
de Pernambuco, realizam, em março, as Vigílias pelo Fim da Violência
contra as Mulheres, para denunciar a violência e os homicídios de mulheres
e pedir a aprovação do PL 4.559/2004.
O Projeto é aprovado no Plenário da Câmara e vai para o Senado, onde
recebe o número PLC 37/2006. É discutido e aprovado na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), tendo como relatora a Senadora
Lúcia Vânia. Em seguida é encaminhado para o Plenário do Senado, onde
também é aprovado, seguindo para sanção presidencial.
Em todas as instâncias o projeto foi aprovado por unanimidade e sua
tramitação no Congresso Nacional durou 20 meses. No dia 7 de agosto, em
cerimônia no Palácio do Planalto, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
assina a Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que entrou em vigor no dia
22 de Setembro. Com isso, escreveu um novo capítulo na luta pelo fim da
32
violência contra as mulheres.
O Projeto Lei 4.559/2004 é resultado de todo um processo de conscientização
da população realizado pelos movimentos feministas, assim como pelos órgãos
internacionais, o que trouxe expectativa por uma efetiva mudança no tratamento às
30
CORTÊS, loc. cit.
HERMANN, 2008, p. 16.
32
CORTÊS, loc. cit.
31
18
mulheres brasileiras que, por muito tempo, não tiveram um amparo legal específico
no que concerne à violência no âmbito familiar.
Finalmente, em setembro de 2006, o PL se concretiza e dá origem à Lei n°
11.340/2006, que veio como intuito de prevenir e proteger a mulher vítima de
violência doméstica.
Destarte, observa-se a importância da participação de segmentos da
sociedade em busca da criação de leis que lhes tragam amparo, para que se
solucionem os problemas como os de Maria da Penha, que geralmente acontecem
dentro do lar, longe dos olhos da sociedade.
19
3 ASPECTOS DA LEI N° 11.340/2006
Neste capítulo, será analisado alguns conceitos para o entendimento da Lei
Maria da Penha, com objetivo de fazer a devida aplicação de seus dispositivos,
principalmente no que tange à área constitucional.
3.1 Finalidade
Conforme descrito na ementa da Lei n° 11.340/2006, esta veio para instituir
[...] mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a Violência contra
33
a Mulher [...]
Deste modo, a Lei Maria da Penha tem por finalidade atender ao compromisso
constitucional acima citado, bem como aos tratados internacionais, com o objetivo de
que as mulheres vítimas tenham assistência necessária.
Assim expõem Cunha e Pinto, “[...] a ofendida passa a contar com precioso
estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e
assistencial, criando mecanismos aptos a coibir essa modalidade de agressão.” 34
Partindo deste ponto, verifica-se que o alvo da Lei é muito mais do que punir o
agressor, é também trazer aspectos conceituais e educativos, de modo que os
valores sociais que demonstram a violência doméstica como algo natural sejam
modificados.35
Assim, Cortês e Matos ensinam que “[...] a Lei apresenta, de maneira
detalhada, os conceitos e as diferentes formas de violência contra a mulher,
pretendendo ser um instrumento de mudança política, jurídica e cultural.” 36
O mal que assombrava silenciosamente dentro dos lares agora é de
conhecimento público, e esse foi um grande passo para uma mudança de
mentalidade, para que as vítimas passem a receber maior apoio da sociedade.
33
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm.>. Acesso em: 1 abr:2010
34
CUNHA; PINTO, 2008, p. 30.
35
CORTÊS; MATOS, loc. cit.<http://www.assufba.org.br/legis/leimariadapenha.pdf>. Acesso em: 23
abr. 2010.
36
CORTÊS; MATOS, loc. cit.
20
3.2 Abrangência
A Lei aqui discutida traz em seu artigo 5°. que a violência doméstica e familiar
é aquela que ocorre:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
37
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Verifica-se que não é qualquer delito atentado contra a mulher que poderá ser
considerado como violência doméstica, pois devem ser preenchidos alguns
requisitos, levando em conta que a lei possui uma limitada abrangência.
Como condição para aplicação da lei estudada, a violência deve ser de gênero
e contra a mulher. Com isso, a princípio restam excluídas agressões entre pessoas
de mesmo sexo e as praticadas contra o homem, ainda que causadas por outro
homem. É certo que o parágrafo único do artigo 5º da lei diz que as relações pessoais
enunciadas no artigo independem de orientação sexual, mas tal dispositivo serve
para dizer que o homem agressor pode ter qualquer orientação sexual, assim como a
vítima mulher.38
Outra condição é que a violência contra a mulher deve se referir às relações
domésticas e afetivas daquela. Então, não importa o grau de parentesco nem se há
coabitação, mas que o agressor se valha das relações domésticas e afetivas. Esse
requisito exclui as empregadas domésticas quando sofram agressões de gênero no
local de trabalho, pois em regra, embora haja convivência doméstica, não há o
vínculo afetivo. Contudo, na hipótese de a empregada integrar o quadro afetivo dos
membros da família para quem trabalha, o que ainda é comum no Brasil, e ser vítima
de violência de gênero por um daqueles, deve-se-lhe estender, excepcionalmente, a
proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
Também não se compreende na abrangência da lei, a agressão praticada
contra a mulher por parentes que não façam parte da intimidade doméstica dessa.
Assim, não basta que seja praticada entre parentes, mas que esses tenham relação
37
BRASIL, 2006, loc. cit.
SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. 2ª. ed.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 35.
38
21
afetiva e partilhem de relações domésticas, o que somente se dá, em regra, entre
cônjuges, companheiros, enteados, pais, filhos, irmãos, padrastos e em alguns
namoros. Se algum parente do sexo masculino vai residir com a mulher ou participar
de sua intimidade doméstica por visitas frequentes, a violência que pratique contra ela
resta abrangida pela lei, que contempla até os delitos praticados por “agregados”
(artigo 5º, I, Lei 11.340/2006).
Frise-se quanto a esse tópico que as relações domésticas, por vezes,
extrapolam a residência da mulher, pois por vezes diversas residências de pessoas
de uma mesma família se encontram fixadas em um mesmo terreno, de forma a
propiciar proximidade entre seus membros, característica da vivência doméstica.
Por outro lado, exclui-se da aplicação da lei a violência praticada por aqueles
que simplesmente disputam direitos patrimoniais, a exemplo do que se dá nas brigas
entre herdeiros, exemplos recorrente nas Varas e Juizados Especializados em
Violência Doméstica contra a Mulher. A tais casos não se aplica a proteção prevista
na Lei Maria da Penha se não houver, na época da agressão, relações domésticas
entre mulher agredida e parente agressor e tais casos devem ser remetidos para as
varas criminais comuns.39
Não há que se aplicar a Lei Maria da Penha à violência praticada por homem
contra mulher que não mais tenham relações domésticas e afetivas, ainda que tais
requisitos tenham existido no passado. Extintas as relações afetivas e a convivência
doméstica, a lei não merece aplicação quando ocorra violência de gênero por
questões diversas, como por exemplo, discussões sobre pensão alimentícia ou
guarda de filhos ou aquelas praticadas por irmão contra irmã ou pai contra a filha que
não mais residam sob o mesmo teto e não partilhem mais da vida doméstica.
Por outro lado, a lei abrange namoros mais íntimos, pois, embora não
configurem união estável por não pretenderem a formação de uma família,
caracterizam, além das relações de afeto, intimidade doméstica.
Assim sendo, para que fique acolhida por esta lei, a agressão deve ser
cometida no âmbito doméstico, familiar ou nas relações íntimas de afeto, conforme se
estudará em seguida.
39
MELLO, Adriana Ramos de. Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a
Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.25.
22
3.2.1 Unidade doméstica
Explica Nucci (2007, p. 1.043)) que unidade doméstica é “o local onde há o
convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar, vale dizer, como se
família fosse, embora não haja necessidade de existência de vínculo familiar, natural
ou civil.” 40
Desse modo a empregada doméstica tanto poderá ser sujeito passivo quanto
ativo da violência cometida no âmbito doméstico, em virtude de existir um convívio
com os moradores da casa, sem que haja parentesco.
Seguindo o entendimento de Nucci, Cunha e Pinto dizem que “agressão no
âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro,
envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas, integrantes dessa aliança [...].” 41
No entanto, faz-se uma advertência no sentido de que a vítima deve estar
inserida no âmbito da relação doméstica, não podendo ser terceiro, que adentra em
casa sem ter a mesma relação.42
Para esclarecer a situação, Nucci traz o seguinte exemplo: “uma mulher,
fazendo uma entrega de encomenda na casa de determinada família, agredida por
alguém, nesse espaço [...].”43 Como, no caso, não há relação doméstica entre a
vítima e o agressor, aquela não poderá ser acolhida pela Lei Maria da Penha.
3.2.2 Âmbito familiar
O artigo 5°, inciso II da Lei 11.340/2006, assim dispõe: “no âmbito da família,
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.44
O parentesco deriva da consanguinidade ou da afinidade, bem como pode ter
origem civil, pois assim conceitua o Código Civil de 2002, por meio dos artigos 1.593
e 1.595, que seguem abaixo:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consangüinidade ou outra origem.
40
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 1.043.
41
CUNHA; PINTO, 2008, p. 49.
42
NUCCI, loc. cit.
43
NUCCI, loc. cit.
44
BRASIL, 2006, loc. cit.
23
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro
45
pelo vínculo da afinidade.
Em seguida, quando a Lei n° 11.340/2006 cita os termos “laços naturais” e
“vontade expressa”, está mencionando, respectivamente, à consangüinidade e ao
parentesco de origem civil.
Todavia, há controvérsia quanto ao dispositivo que trata dos “indivíduos que
[...] se consideram aparentados”. Para Nucci é inaceitável esta hipótese, pois
“qualquer um, por qualquer razão, pode se achar ‘aparentado’ com outra(s)
pessoa(s), embora o Direito não lhe reconheça tal status. Para ingressar no contexto
de família, é preciso algo mais do que se ‘considerar’ como tal.” 46
Entretanto, trazendo à tona, é fácil perceber a aplicação do dispositivo
mencionado, haja vista a existência da filiação socioafetiva, na qual pode ser incluída,
segundo Dias, “a infeliz expressão ‘filho de criação’.”47
Enquadram-se também no âmbito familiar aquelas relações advindas de união
homoafetiva, por força do artigo 5°, parágrafo único, da Lei n° 11.340/2006, o qual
dispõe que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação
sexual”,48 encaixando-se, nesta ocasião, o entendimento de Dias, “lésbicas, travestis,
transexuais e transgêneros.” 49
Assim, Bisognin, Stahlhöfer e Pereira (2007) explicam que
um casal homossexual feminino são cônjuges “autoconsiderados”, porque,
perante si mesmos e perante a sociedade, mas à margem da lei, têm um
vínculo íntimo sólido, com envolvimento sexual afetivo tal qual um casal
heterossexual. Além disso, mesmo que o Direito não as reconheça como tal,
50
elas o fazem, mediante ato voluntário de manifestação de vontade.
Portanto, as relações homoafetivas são reconhecidas como de vínculo familiar,
motivo pelo qual estão amparadas pela Lei Maria da Penha.
45
BRASIL. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF, 10 jan. 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.>. Acesso em: 5 mai. 2010.
46
NUCCI, loc. cit.
47
DIAS, 2008, p. 44.
48
BRASIL, 2006, loc. cit.
49
DIAS, 2008, p. 44.
50
BISOGNIN; STAHLHÖFER e PEREIRA, loc. cit.
24
3.2.3 Relação íntima de afeto
A Lei n° 11.340/2006 trouxe como última forma de violência contra a mulher
aquela que incide “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.” 51
Deste modo, consoante com o que ensinam Cunha e Pinto, o inciso III da Lei
“etiquetou como violência ‘doméstica’ relacionamento estreito entre duas pessoas,
fundado em camaradagem, confiança, amor.”
Contudo, o legislador indicou a desnecessidade de que tenha ocorrido
coabitação entre ofendido e agressor, o que abriu uma enorme lacuna de
possibilidades de alcance da Lei.
Nucci argumenta pela inaplicabilidade do referido dispositivo, vez que se afasta
da pretensão obtida com a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher, conforme segue transcrito:
Exige-se no texto da convenção a existência de coabitação atual ou
pretérita. Na Lei 11.340/2006 basta a convivência presente ou passada,
independentemente de coabitação. Ora, se agressor e vítima não são da
mesma família e nunca viveram juntos, não se pode falar em violência
doméstica e familiar. Daí emerge a inaplicabilidade do disposto no inciso
52
III.
Baseado na sua argumentação, Nucci comparara o texto da Convenção, que
trata, em seu art. 2°, § 1°, que, além da hipótese de haver violência contra a mulher
no âmbito doméstico ou da família, pode também haver violência “em qualquer outra
relação interpessoal, em que o agressor conviva ou tenha convivido no mesmo
domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maustratos e abuso sexual.”53
A despeito da interpretação de Nucci, decisões recentes justificam a existência
do artigo 5°, inciso III da Lei n° 11.340/2006. Como exemplo, equipara-se o seguinte
julgado, proveniente do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA.
RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E
CONVIVÊNCIA CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E
FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO
DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL.
51
BRASIL, 2006, loc. cit.
NUCCI, 2007, p. 1.044.
53
NUCCI, 2007, p. 1.044.
52
25
1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006,
quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem
em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de
afeto, independente de coabitação.
2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação;
portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha
cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza
violência doméstica.
3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos
nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi
alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles
casos concretos, a agressão não decorria do namoro.
4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do
gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as
mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.
5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª
54
Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG.
Participando do mesmo entendimento, Dias afirma que hoje existe uma nova
concepção de família, baseada na relação de afeto e, portanto,
[...] não há como restringir o alcance da previsão legal. Vínculos afetivos que
refogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam
de ser marcados pela violência. Assim, namorados e noivos, mesmo que
não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do
relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da
penha. Para a configuração de violência doméstica é necessário um nexo
entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto
55
deve ser a causa da violência.
Deste modo, constatando-se, no caso concreto, que a violência emanou da
relação íntima de afeto, aplicar-se-á Lei n° 11.340/2006 para proteger a vítima.
3.3 Espécies de violência
O legislador, posteriormente a realização de pesquisas com inúmeras
mulheres (vítimas), elucidou cinco formas de violência doméstica, previstas no artigo
7° da Lei 11.340/2006, in verbis:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento,
vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
54
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de competência n° 2008.0127004-8. Relatora:
Ministra Jane Silva. Julgado em 05 dez. 2008. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2351420/conflito-de-competencia-cc-90767-mg-20070245333-3-stj>. Acesso em 11 mai. 2010.
55
DIAS, 2008, p. 45.
26
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
56
calúnia, difamação ou injúria.
O termo “entre outras”, descrito no caput do referido artigo, é satisfatório para
evidenciar que o rol acima não é taxativo e, portanto, pode haver demais ações que
se enquadrem como violência doméstica e familiar contra a mulher.
Não obstante, Dias alerta que “as ações fora do elenco legal podem gerar a
adoção de medidas protetivas no âmbito civil, mas não em sede de Direito Penal,
pela falta de tipicidade.”57
Portanto, qualquer forma de violência doméstica que não esteja estabelecida
no artigo 7° gerará efeitos apenas no âmbito civil, uma vez que o citado artigo já traz
as modalidades de violência acolhidas pelo Código Penal, bem como pela Lei de
Contravenções Penais.
3.3.1 Violência física
O inciso I do artigo 7° conceitua que a violência física contra a mulher deve ser
“entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.”58
Esclarecendo tal dispositivo, Nucci explica que violência física “é a lesão
corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar.”59
Porém, o conceito deve ser mais amplo, já que nem sempre a violência física
deixa marcas. Um puxão de cabelo, por exemplo, ofenderá a integridade da vítima,
contudo muitas vezes não deixará marcas ao ponto de ficar caracterizado o crime de
lesão corporal.
Em contrapeso, a violência física pode decorrer também de um fato muito mais
grave do que uma lesão corporal, como é o caso do homicídio.
56
BRASIL, 2006, loc. cit.
DIAS, 2008, p. 46.
58
BRASIL, 2006, loc. cit.
59
NUCCI, 2007, p. 1.045.
57
27
Cunha e Pinto explicam, de forma detalhada, que
violência física é o uso da força, mediante socos, tapas, pontapés,
empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc., visando, desse modo,
ofender a integridade ou a saúde corporal da vítima, deixando ou não
marcas aparentes, naquilo que se denomina, tradicionalmente, vis
corporalis. São condutas previstas por exemplo, no Código Penal,
configurando os crimes de lesão corporal e homicídio e mesmo na Lei das
60
Contravenções Penais, como a vias de fato.
Enfim, trazendo menção ao crime de lesão corporal, Dias (2008, p. 47) ensina
que “não só a lesão dolosa, também a lesão culposa constitui violência física, pois
nenhuma distinção é feita pela lei sobre a intenção do agressor.” 61
3.3.2 Violência psicológica
O legislador conceituou a violência psicológica como
[...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
62
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Conforme Dias, esta espécie de violência “foi incorporada ao conceito de
violência contra mulher na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Doméstica, conhecida como Convenção de Belém do Pará.” 63
Desde então, não se protege somente a integridade física da vítima, mas
também o seu estado emocional, inibindo aquelas condutas que são capazes de
causar medo e, até, transtornos psicológicos.
Cunha e Pinto ensinam a respeito da caracterização da violência psicológica
dizendo que “o comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha
ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir
amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva.”64
No entanto, Dias explica que tal violência “é a mais freqüente e talvez seja a
menos denunciada. A vítima muitas vezes nem se dá conta que agressões verbais,
60
CUNHA; PINTO, 2008, p. 61.
DIAS, 2008, p. 47.
62
BRASIL, 2006, loc. cit.
63
DIAS, 2008, p. 47.
64
CUNHA; PINTO, 2008, p. 61.
61
28
silêncios prolongados, tensões, manipulações [...] são violência e devem ser
denunciadas.” 65
Em um caso concreto de violência psicológica, Cunha e Pinto comparam a
manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, que descreve o fato:
No caso concreto o denunciado tinha vivido maritalmente com a vítima
durante dez meses, e já estavam separados há dois. Ele, então, começou a
intimidá-la, dizendo que se não ficasse com ele, não ficaria com mais
ninguém. No dia dos fatos, o denunciado pulou o portão da casa da vítima e
bateu em sua porta, imitando a voz do filho dela, de 10 anos de idade, para
que ela a abrisse. Como a porta não foi aberta, ele passou a bater
insistentemente, até que a vítima, muito amedrontada, telefonou para sua
mãe, que é sua vizinha, instante em que esta, juntamente com uma irmã da
vítima, abriram uma janela e se depararam com o denunciado, que só fugiu,
66
pelo telhado, quando ouviu que a polícia seria acionada.
A suposição acima se enquadra como violência psicológica devido ao temor
causado a vítima, a qual fica emocionalmente abalada, a ponto de não ter, nem
sequer, coragem para sair de casa.
Assim, referidas situações devem ser tratadas pela Lei Maria da Penha, a fim
de proporcionar maior proteção às mulheres que suportam esse tipo de violência.
3.3.3 Violência sexual
O inciso III do artigo 7° traz o conceito de violência sexual, que pode ser
entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter
ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar,
de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou
67
que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Nessa situação, nota-se, portanto, plausível a existência da violência sexual
contra a mulher no âmbito doméstico, tendo em vista que por muito tempo foi
difundida a idéia de que o marido deveria ter o seu desejo sexual saciado, mesmo
contra a vontade de sua esposa.
Embora atualmente tal situação seja considerada retrógrada, muitos ainda
toleram esses conceitos machistas, pois, segundo Dias,
[...] houve uma certa resistência da doutrina e da jurisprudência em admitir a
possibilidade da ocorrência de violência sexual nos vínculos familiares. A
tendência sempre foi identificar o exercício da sexualidade como um dos
deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se
68
estivesse ele a exercer um direito.
65
DIAS, 2008, p. 48.
CUNHA; PINTO, 2008, p. 62.
67
BRASIL, 2006, loc. cit.
68
DIAS, 2008, p. 49.
66
29
No que diz respeito às modalidades de crimes arrolados pelo CP, que
constituem violência sexual, enquadra-se o estupro, o atentado violento ao pudor, a
posse sexual mediante fraude, o atentado violento ao pudor mediante fraude, o
assédio sexual e a corrupção de menores.69
Desta forma, existindo relação doméstica entre empregada e empregador (a),
se este (a) for sujeito ativo do crime de assédio, deverá ser enquadrado pelos
ditames da Lei Maria da Penha.
Como o texto do inciso III é bastante abrangente, enfoca, até mesmo,
conforme o ensinamento de Dias, “a sexualidade sob o aspecto do exercício dos
direitos sexuais e reprodutivos. Trata-se de violência que traz diversas conseqüências
à saúde da mulher.70
Sob este ponto de vista, a mulher também não poderá ser obrigada a ter
filhos, contrair matrimônio, realizar aborto e até mesmo ser forçada à prostituição, se
assim não desejar e, caso isso ocorra, restará caracterizada a violência sexual.
3.3.4 Violência patrimonial
Violência patrimonial, conforme inciso IV do artigo 7° é,
[...] qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial
ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
71
satisfazer suas necessidades.
Esta espécie de violência está caracterizada no Código Penal sob a forma de
crimes contra o patrimônio, como, por exemplo, furto, roubo, dano, etc.
A suspeita paira, entretanto, sobre a aplicação da dispensa absolutória prevista
no artigo 181 do CP, bem como da imunidade relativa trazida no artigo 182 do mesmo
código, para os delitos cometidos no âmbito de violência doméstica e familiar contra a
mulher.
Dispõem os artigos 181 e 182, ambos do Código Penal:
Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos
neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo,
seja civil ou natural.
Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto
neste título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
69
DIAS, 2008, p. 49
Ibid, p. 51.
71
BRASIL, 2006, loc. cit.
70
30
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
72
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Sobre o assunto, Nucci fundamenta que “neste caso, não vemos muita
utilidade no contexto penal. Lembremos que há as imunidades (absoluta ou relativa),
fixadas pelos arts. 181 e 182 do Código Penal, nos casos de delitos patrimoniais não
violentos no âmbito familiar.73
Diante deste aspecto, Nucci se posiciona no sentido de que as imunidades
valem para os crimes patrimoniais cometidos no âmbito da Lei 11.340/2006.
Dias, no entanto, entende que
a Lei Maria da Penha reconhece como violência patrimonial o ato de
“subtrair” objetos da mulher, o que nada mais é do que furtar. Assim, se
subtrair para si coisa alheia móvel configura o delito de furto, quando a
vítima é mulher com quem o agente mantém relação de ordem afetiva, não
se pode mais reconhecer a possibilidade de isenção de pena. O mesmo se
diga com relação à apropriação indébita e ao delito de dano. É violência
patrimonial “apropriar” e “destruir”, os mesmos verbos utilizados pela lei
penal para configurar tais crimes. Perpetrados contra a mulher, dentro de um
contexto de ordem familiar, o crime não desaparece e nem fica sujeito à
74
representação.
Para amparar seu posicionamento, Dias aludi o Estatuto do Idoso, o qual,
“além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta
excludente da criminalidade quando a vítima tiver mais de 60 anos.” 75
O artigo 183 do CP, fazendo menção às imunidades absoluta e relativa, assim
dispõe:
Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego
de grave ameaça ou violência à pessoa;
II - ao estranho que participa do crime
III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60
76
(sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003) (grifo nosso)
Diante desta situação, Cunha e Pinto compartilham do mesmo entendimento
de Nucci:
[...] quando o legislador pretendeu excluir o âmbito de incidência das
imunidades, ele o fez expressamente, como ocorre na hipótese do crime ser
praticado contra o patrimônio de idoso. [...] Ante o silêncio do legislador no
que concerne à mulher vítima de crime patrimonial, a conclusão é mesmo no
sentido de que as imunidades previstas no Código Penal não suportam
77
qualquer tipo de alteração.
72
BRASIL. Código Penal. Decreto-lei n° 2848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro, 7 dez.
1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso
em 14 mai. 2010
73
NUCCI, 2007, p. 1.046-1.047.
74
DIAS, 2008, p. 52-53.
75
Ibid. ,p.52
76
BRASIL, 1940, loc. cit.
77
CUNHA; PINTO, 2008, p. 65.
31
Destarte, em caso de violência patrimonial, será aplicada a Lei Maria da Penha
somente nas situações em que o CP não conceder imunidade absoluta, como no
exemplo da empregada doméstica, ou quando houver imunidade relativa, se a vítima
oferecer representação.
3.3.5 Violência moral
Esta última forma de violência, denominada violência moral que está
estabelecida no artigo 7°, inciso V, da Lei n° 11.340/2006, que a conceitua como
“qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” 78
Cunha e Pinto (2008, p.65) expõem o crime de calúnia como:
“imputar à vítima a prática de determinado fato criminoso sabidamente
falso”, de difamação como “imputar à vítima a prática de determinado fato
desonroso” e, por último, conceituam a injúria como “atribuir à vítima
qualidades negativas”.
79
Os delitos acima citados são de “ação penal privada e os de calúnia e
difamação admitem exceção da verdade. Como a norma penal teve aqui mera função
de referência, este critério de exclusão da criminalidade só se aplica para fins
penais”.80
Conforme Dias (2008, p. 54), “estes delitos, quando são perpetrados contra a
mulher no âmbito da relação familiar ou afetiva, devem ser reconhecidos como
violência doméstica, impondo-se o agravamento da pena (CP, art. 61, II, f).” 81
A violência moral consiste na desmoralização da mulher vítima, confundindo-se
e entrelaçando-se com a violência psicológica. Conforme trazem Cunha e Pinto, a
violência moral “normalmente se dá concomitante à violência psicológica.” 82
Portanto o artigo 7º define as formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, conceituando as esferas de proteção trazidas pelo artigo 5º caput. As
definições não possuem escopo criminalizador, ou seja, não pretendem definir tipos
penais. Sua função, no contexto misto da lei, é delinear situações que implicam em
violência doméstica e familiar contra a mulher, para todos os fins da Lei Maria da
Penha, agilizando ações preventivas e protetivas.
78
BRASIL, 2006, loc. cit.
CUNHA; PINTO, 2008, p. 65.
80
HERMANN, 2008, p. 115.
81
DIAS, 2008, p. 54.
82
CUNHA; PINTO, 2008, p. 65.
79
32
4. SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE
Há muito se busca uma sociedade igualitária e justa a todos, mas nem sempre
a igualdade pode ser justa. Até que ponto é necessário manter essa igualdade e se
ela é sempre benéfica, este capítulo aborda as questões constitucionais da lei Maria
da Penha, em seu aspecto isonômico devido ao tratamento diferenciado em favor das
mulheres.
4.1 O Princípio da igualdade
Desde os primórdios o homem tem se atormentado com o problema das
desigualdades inerentes ao seu ser e à estrutura social em que está inserido. Daí
surgiu a noção de igualdade que os doutrinadores comumente denominam de
igualdade substancial. Entende-se por esta a equiparação de todos os homens no
que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres.
Essa igualdade, contudo, a despeito da carga humanitária e idealista que
carrega, até hoje não se realizou em qualquer sociedade humana. São muitos os
fatores que obstaculizam a sua efetivação, desde a natureza física do homem, ora
débil, ora forte, até a diversidade da estrutura psicológica humana, ora voltada para a
dominação, ora voltada para a submissão, sem mencionar as próprias estruturas
políticas e sociais, que no mais das vezes tendem a consolidar e até mesmo a
exacerbar essas distinções, em vez de atenuá-las.83
No campo político-ideológico, a manifestação mais acendrada deste tipo de
igualdade foi traduzida no ideal comunista.
Na trajetória das democracias ocidentais, o princípio da igualdade material não
é de todo desconhecido. Ele se insere nas Constituições sob a forma de normas
programáticas, tendentes a planificar desequiparações muito acentuadas na fruição
dos bens, quer materiais, quer imateriais. Assim é que, com freqüência, encontramos
hoje regras jurídicas voltadas a desfazer o desnivelamento intenso ocorrido em
alguns momentos históricos entre o capital e o trabalho.
No Brasil a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de
direitos, vedando qualquer tipo de diferenciação ou discriminação arbitrária, ou seja,
83
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27. Ed. São Paulo:
Saraiva 2001. p.177.
33
todos são iguais perante a lei, em consonância com os critérios do ordenamento
jurídico. Esse princípio é trazido diversas vezes em inúmeros dispositivos
constitucionais, realçando a importância de buscar a igualdade entre seres humanos
no nosso país.84
Deste tema trata Mello (2001, p. 9):
O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma
voltada quer para o aplicador lei quer para o próprio legislador. Deveras, não
só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição
85
assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.
Já no capítulo dos direitos individuais, a igualdade é salientada no caput do art.
5º da Constituição Federal, como um dos direitos individuais básicos, e logo após em
seu primeiro inciso equipara homens e mulheres em direitos e obrigações.
“A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação da igualdade perante o
juiz: da norma inscrita no art. 5º, caput, da Constituição, brota o princípio da igualdade
processual. As partes e os procuradores devem merecer tratamento igualitário, para
que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.86
A igualdade consiste em tratar igualmente os iguais, com os mesmos direitos e
obrigações, e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Tratar
igualmente os desiguais seria aumentar a desigualdade já existente. Nem todo
tratamento desigual é inconstitucional, somente se este tratamento desigual aumentar
a desigualdade existente.87
Para Marcelo Novelino(2008, p. 292):
O princípio da igualdade tem por fim impedir distinções, discriminações e
privilégios arbitrários, preconceituosos, odiosos ou injustificáveis. A
expressão “sem distinção de qualquer natureza” não impede a lei de
estabelecer distinções: “o papel da lei não é outro senão o de implantar
diferenciações”. Ademais, a análise da violação ao princípio isonômico não
deve recair sobre traço de diferenciação escolhido pela lei, o qual pode ser
qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações. O que se
deve analisar é se o elemento discriminador, cuja adoção exige uma
justificativa racional, está em harmonia com um fim constitucionalmente
consagrado, devendo o critério utilizado na diferenciação ser objetivo,
88
razoável e proporcional.
84
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 66.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª.Ed. São
Paulo: Editora Malheiros, 2010, p. 9.
86
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido
Rangel. Teoria geral do processo. 20. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.353 p.53
87
CÉSAR, Rodrigo; PINHO, Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais.
Sinopses Jurídicas,10ª Ed. Vol. 17, São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 123 e 124.
88
a
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2 Ed. São Paulo, Editora Método, 2008, p.292.
85
34
O princípio da isonomia proíbe que o essencialmente igual seja tratado
desigualmente e o essencialmente desigual de maneira igual. A grande dificuldade
reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem são os iguais, quem
são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade89. Quanto aos tratamentos
normativos diferenciados, estes são constitucionais quando verificada a existência de
uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.
Nesse sentido ensina Mello:
Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério
discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do
traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico
90
construído em função da desigualdade afirmada.
Analisaremos no próximo tópico, específicas hipóteses válidas para um
tratamento desigual, no entanto, sem contrariar o princípio da isonomia.
4.2 Hipóteses válidas de tratamento diferenciado
Conforme exposto anteriormente, a Constituição Federal trata em seu art.5º, I,
que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição. Apenas com leitura deste dispositivo, entende-se como inaceitável a
utilização de qualquer discriminação com relação ao sexo com o propósito de
desnivelar o relacionamento entre ambos os sexos, porém, é aceitável um tratamento
diferenciado quando a finalidade tiver pretensão em atenuar os desníveis. É permitido
que a legislação infraconstitucional atue em matéria que tenha a pretensão de atuar
desníveis com relação ao sexo.91
Nota-se a existência de duas hipóteses válidas de tratamento diferenciado, por
não ofender o princípio constitucional da igualdade. No primeiro caso, a própria Carta
Magna estabelece tratamento desigual, como por exemplo, nos casos de
aposentadoria com menor idade e menor tempo de contribuição previdenciária para
as mulheres. Já na segunda hipótese, para que haja possibilidade de tratamento
desigual, deve haver a existência de um pressuposto lógico e racional que justifique a
89
ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 10ª.
Ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2006, p. 131.
90
MELLO, 2010, p. 38.
91
MORAES, 2004, p. 66.
35
desigualdade efetuada, desde que esteja em consonância com os valores tutelados
pela Constituição Federal. 92
A igualdade nem sempre suprime a diferença, o que se deve é reconhecer as
diferenças e respeitá-las. Em termos de proteção ao trabalho, a Constituição Federal
no inciso XX do art. 7.º, novamente comanda tratamento diverso entre o homem e a
mulher. Vale ressaltar que somente valem as discriminações feitas pela própria
Constituição e sempre em favor das mulheres, como nos casos citados.93
Em verdade, nada impede que a lei ordinária disponha a cerca de tratamento
diferenciado entre homens e mulheres, desde que respeitados os princípios
norteadores da Constituição. A legitimidade da legislação infraconstitucional, para
diferenciar o tratamento entre as pessoas, com o fito de nivelar as relações jurídicas,
advém da própria Constituição.
A lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso,
em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de
indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e
94
o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada
Contudo deve se averiguar a necessidade da criação de determinada categoria
diferenciada para que se torne menos desigual, neste contexto entende-se que a lei
deva ser o “instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente
todos os cidadãos.” Todos os abrangidos pela lei hão de receber um tratamento
parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir
disciplinas diversas para situações equivalentes.
O princípio de igualdade material, no âmbito de elaboração das espécies
normativas, orienta os parlamentares no sentido de que a lei, por eles elaborada,
deve distinguir as pessoas quando necessária à obtenção da justiça.
Concluindo, Mello (2010, p.39) cita que:
“[...] não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei
distinga situações sem ofensa a isonomia. Também não é suficiente o
poder-se arguir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico
que autoriza a desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de
interesse prestigiados na ordenação máxima. Fora daí ocorrerá
95
incompatibilidade com o preceito igualitário.”
92
CÉSAR, 2010, p. 123 e 124.
CAPEZ, Fernando; CHIMENTI, Ricardo Cunha; ELIAS, Marcio Fernando; SANTOS; Marisa Ferreira
dos; Curso de Direito Constitucional, 3ª. Ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2006, p.64.
94
MELLO, 2010, p. 39.
95
Ibid, p.43.
93
36
Nota-se a necessidade da norma atender os seus interesses, cuidando para
que não haja a criação de mecanismos que possam ofender os princípios da Carta
Magna.
4.3 Da constitucionalidade da lei
O principal argumento desfavorável à Lei Maria da Penha, é a de que ela seria
inconstitucional por suposto confronto ao princípio da isonomia, na medida em que
estabelece tratamento diferenciado entre homens e mulheres alvo de violência
doméstica, no sentido de que o sexo da pessoa é o que decide se o crime será
julgado pelo rigor da lei ou então na modalidade de menor potencial ofensivo da Lei
dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Argumenta-se que a Constituição teria vedado
peremptoriamente o tratamento desigual entre homens e mulheres por força de seu
artigo 5o, I, que estatui que homens e mulheres são iguais perante a lei.96
Tal argumento leva em conta somente o aspecto formal da isonomia,
ignorando o conteúdo jurídico material do princípio. O caráter meramente formal da
igualdade provou-se historicamente insuficiente, na medida em que deu ao legislador
o poder de definir arbitrariamente o conteúdo dos direitos fundamentais. Os direitos
fundamentais praticamente se confundiam com o princípio da legalidade, na medida
em que somente existiam se a lei infraconstitucional definisse seus contornos.
Confiava-se cegamente no Parlamento, não se vendo motivo para dele desconfiar em
hipótese nenhuma já que eleito democraticamente para representar os interesses do
povo. 97
Todavia, a existência de regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo,
que existiram em Estados de Direito que consagravam a idéia de igualdade
meramente formal, fez a humanidade perceber que o legislador também pode ser
inimigo dos direitos humanos, donde se retomou o aspecto material da isonomia,
extraído da célebre frase de Aristóteles segundo a qual se deve tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.
Não se trata de um direito penal de gênero e sim de efetivo direito que protege
a vítima. Também nela não se edifica direito penal do inimigo, uma vez que o sujeito
ativo, no caso, etiquetou-se como agressor, e o fez por si próprio, no curso da
96
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
a
de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p.29
97
a
SARLET, Ingo Wolfgang. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, 6 Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006. p.32.
37
história, dos fatos e das leis; além disso, cumpre ponderar que não houve criação de
tipos penais novos.
Assim,
está
constitucionalmente afastada qualquer hipótese de aplicabilidade da legislação
anterior, não mais existindo, de acordo com o método da interpretação conforme a
Constituição, atribuição alguma, nessa matéria, ao Juizado Especial Criminal para
essas infrações como se fossem de menor potencial ofensivo.
4.4 Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19
A Ação Declaratória de Constitucionalidade é uma das espécies de controle de
constitucionalidade. Para Moraes “Controlar a constitucionalidade significa verificar a
adequação (compatibilidade) de uma lei ou ato normativo com a constituição”. 98
Trazida pela ECn°3/93 e modificada posteriormente pela Emenda n° 45/04. A
ADC é proposta, com o intuito de declarar a constitucionalidade de uma norma
infraconstitucional. E dessa maneira dar maior segurança jurídica sobre a validade
das leis quanto à aplicação nas relações jurídicas. 99
Conforme Alexandre de Moraes (2004, p.600) ensina: “Neste ponto, situa-se a
finalidade precípua da Ação Declaratória de Constitucionalidade: transformar a
presunção relativa de constitucionalidade em presunção absoluta, em virtude de seus
efeitos vinculantes”.100
O artigo 102, inciso I, a, da Constituição Federal preceitua que compete ao
Supremo Tribunal Federal, órgão guardião da Constituição, a competência originária
para apreciar e julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Segundo
estabelece o artigo 103 da Constituição Federal, são legítimos para a propositura da
referida ação, as pessoas relacionadas nos seus respectivos incisos, entre elas, o
Presidente da República.
Silva relata que no processamento desta ação não será necessária a
intervenção do Advogado-geral da União, como ocorre com a Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade, pois o Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido. 101
98
MORAES, 2004, p. 600.
a
SILVA, Roberto B. Dias da. Manual de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora
Manole, 2007. p.53.
100
Ibid, p. 658.
101
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros,
2005, p.59
99
38
A peça que deu início a ADC n° 19, foi oferecida em dezembro de 2007, pelo
Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União. Este atua na
presente causa nos termos do art. 131 da Constituição Federal, ou seja, não como
defensor da lei em si, mas como assessor jurídico do Poder Executivo.
Em seu texto, foi analisada a validade de alguns artigos da Lei Maria da Penha
com o objetivo de declarar harmônicos com a Constituição. Inicialmente o art. 1° e o
principio da isonomia (art.5°, CF), o segundo foi o art. 33 e a competência atribuída
os Estados para fixar a organização judiciária (art. 125, parágrafo 1° e art.96, II, “d”,
CF) e por fim o art. 41 e a competência conferida aos juizados especiais para
processar e julgar os crimes de menor potencial ofensivo.
A petição da Ação Declaratória nº. 19 argumenta a necessidade de uma Lei
especial para regulamentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, uma
vez que elas são notoriamente mais atingidas do que os homens. Afirmou ainda que
a Lei Maria da Penha é um instrumento de concretização da igualdade material entre
homens e mulheres, confere, portanto, efetividade à Constituição Federal, pois esta
inspira-se em princípios éticos e compensatórios. 102
Como acima citado, algumas inconstitucionalidades apontadas contra a Lei
Maria da Penha, não têm a intenção de afastá-la do mundo jurídico, mas sim,
discutirem questões eminentemente processuais.
Alega-se que seria inconstitucional a lei federal definir a organização judiciária,
ao determinar a criação de juizados específicos para a proteção da mulher, tendo em
vista que isso seria de competência exclusivamente estadual.
Contudo, compete à União legislar sobre Direito Processual (art. 22, inc. I da
CF/88), razão pela qual a Lei Maria da Penha, elaborada pela União, pode dispor
sobre normas de Direito Processual. Ademais, em atenção ao próprio princípio
federativo, cumpre à União fixar as diretrizes gerais e aos Estados, os locais, onde a
determinação da criação de Juizados específicos para a violência doméstica implica
em diretriz geral passível de complementação pelos Estados segundo as
peculiaridades regionais, consoante com o entendimento segue transcritas palavras
proferidas na ADC nº. 19:
A alegação é improcedente, visto que compete privativamente à União
legislar sobre Direito Processual (CF, art. 22, I), de forma a conferir
102
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19 (petição
inicial). Requerente: Presidente da República. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 21 de
dezembro de 2007. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584650>. Acesso em: 1.
Jun. 2010
39
tratamento uniforme a tais questões, em especial as que extrapolam os
interesses regionais dos Estados, como é o combate internacional à
violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Dessa forma, em virtude dos compromissos internacionais firmados pelo
Brasil, não se pode deixar o regramento da matéria ao alvedrio das ordens
locais, visto que a violação aos direitos das mulheres pode implicar
responsabilidade, no âmbito internacional, do país.
No entanto, caberá ao Estado o detalhamento das peculiaridades locais, a
exemplo do número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, desde que observe as diretrizes gerais fixadas pela União.
Com efeito, a Lei 11.240/2006 não trata do detalhamento típico da
organização judiciária do Estado mas apenas regula matéria processual
pertinente à necessária especialização do Juízo, bem assim determina a
acumulação das competências cível e criminal em Vara Criminal até a
criação dos Juizados, de forma a conferir celeridade à solução das questões
sabidamente interdependentes e urgentes, como é o combate à violência
103
doméstica, que, geralmente, envolve aspectos penais e cíveis.
No mesmo sentido expõe Maria Berenice Dias (2005, p.45):
Porém, não há inconstitucionalidade no fato de lei federal definir
competência. Ao assim proceder, não transborda seus limites. Nem é a
primeira vez que o legislador assim age. Situação semelhante já ocorreu
quando foi afastada a incidência da Lei dos Juizados Especiais no âmbito
dos crimes militares. Também a Lei 9;278/1996, ao regulamentar a união
estável, definiu a competência do juízo da Vara de Família.
A par de ter determinado a criação dos Juizados da Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher – JVDFMs, enquanto não forem eles instalados, foi
atribuída às Varas Criminais competência para julgar as causas cíveis e
criminais. Com isso, subtraiu-se a competência dos Juizados Especiais, ao
ser expressamente afastada a aplicação da Lei 9.099/95 (art. 41). Como foi
excluída a incidência do juízo especial, a definição da competência deixa de
ser da esfera de organização privativa do Poder Judiciário (CF, 125, §1o).
Desse modo, não há como questionar a constitucionalidade da alteração
104
levada a efeito, atentando ao vínculo afetivo dos envolvidos.
Por outro lado, também não há inconstitucionalidade no afastamento dos
institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995 no que tange à violência doméstica. É
incoerente dizer que a União, cujo tem a competência para legislar sobre Direito
Penal e Processual (art. 22, I, CF/88) não poderia criar penas diversas para situações
diversas, visto que investida de competência constitucional para tanto, não havendo,
ademais, qualquer proibição para que fixe diversos definidores de menor potencial
ofensivo, segundo os conceitos de regra e exceção.
Segundo a ADC nº. 19:
103
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19
(petição inicial). Requerente: Presidente da República. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília,
21 de dezembro de 2007. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584650>. Acesso
em: 1. Jun. 2010
104
a
DIAS, Maria Berenice. MANUAL DO DIREITO DAS FAMÍLIAS, 1 Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005. p.45.
40
No ponto, inexiste inconstitucionalidade, uma vez que o Poder Constituinte
não pré-selecionou o critério a ser valorado para definição de crimes de
menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais, ao
contrário, cometeu ao legislador infraconstitucional a tarefa de concretizar o
comando normativo (mediação legislativa).Assim, cabe ao legislador
infraconstitucional, observado o princípio da razoabilidade, selecionar um ou
mais critérios para definição do que se considera ‘menor potencial
105
ofensivo’.
Consoante Maria Berenice Dias traz ainda:
(...) A exclusão destas benesses levada a efeito pela Lei Maria da Penha
quanto aos delitos domésticos não afeta sua higidez. Como explica Marcelo
Lessa Bastos, existe uma regra e a exceção: são infrações penais de menor
potencial ofensivo e, portanto, da competência dos Juizados Especiais
Criminais, sujeitas aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, todas
as infrações penais cuja pena máxima cominada não exceda a dois anos,
exceto aquelas que, independente da pena cominada, decorram de violência
doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41, combinado
106
com os arts. 5.o e 7.o da Lei 11.340/2006.
O afastamento dos mecanismos despenalizadores da Lei 9.099/1995 do
âmbito da violência doméstica justifica-se pelo fato de que os mesmos se provaram
ineficazes para combater a violência doméstica. Nesse sentido, aponta Marcelo
Lessa Bastos (2007, p.56):
Veio, então, a lei em comento – a Lei ‘Maria da Penha’ – cuja origem, não se
tem dúvidas em afirmar isto, está no fracasso dos Juizados Especiais
Criminais, no fiasco que se tornou a operação dos institutos da Lei
9.099/1995, não por culpa do Legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por
culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça,
que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de
enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de
qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se
fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tãosomente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais
107
Criminais.
Em resumo, a Lei Maria da Penha se afigura constitucional também sobre os
aspectos abordados neste capítulo. Contudo, ainda que se considere equivocado o
entendimento, haveria tais inconstitucionalidades, mesmo inexistentes, contudo as
mesmas não têm o condão de expurgar a Lei Maria da Penha do mundo jurídico, seu
reconhecimento levaria, tão-somente, ao julgamento das ações de violência
doméstica contra a mulher nas varas criminais comuns.
105
BRASIL, loc. cit.
DIAS, 2005, p.46.
107
BASTOS, Marcelo Lessa (Violência doméstica e familiar contra a mulher, p. 2), apud DIAS, Maria
Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
a
violência doméstica contra a mulher, 1 Edição, 2007, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.
56.
106
41
Ação Declaratória nº 19 também foi intentada com pedido de liminar. Ocorre
que, segundo relatório proferido pelo Ministro Marco Aurélio, ora relator, no dia 21 de
dezembro de 2007, foi negado a sua concessão.
Conforme expõem Moraes (2004, p.662), baseando-se em posicionamento do
STF:
Uma vez concedida a liminar em ação declaratória de constitucionalidade,
não haverá mais possibilidade do afastamento, por inconstitucionalidade, da
incidência da lei ou ato normativo federal por parte dos demais órgãos do
Poder Judiciária e Executivo, que deverão submeter-se ao integral
cumprimento da norma analisada liminarmente pelo Supremo Tribunal
108
Federal, em face dos seus efeitos vinculantes.
Desse modo, enquanto não for decidida definitivamente a Ação Declaratória
n°19 pelo Pretório Excelso, a Lei Maria da Penha poderá ter sua aplicação afastada
pelos juízes ou Tribunais que a julgarem inconstitucional. É por esse motivo que se
observa a necessidade da referida Ação ser julgada com mais celeridade. Enquanto
isso vigora, no plano jurídico atual, quanto à aplicação da nova Lei, certa insegurança
jurídica.109
É incontestável a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, tendo em vista
que o aspecto material da isonomia justifica o tratamento diferenciado às mulheres
em razão da histórica violência que têm elas sofrido no âmbito doméstico, violência
esta que não tem existido, ao menos em igual proporção, em face dos homens em
geral, além de constituir um importante fim estatal a especial proteção à mulher no
que tange à violência doméstica do que a proteção conferida ao homem nesse ponto,
mediante a censura estatal ao menosprezo à mulher pelo simples fato de ser do sexo
feminino, ante a função educativa do Direito em geral, donde também do Direito
Penal, sendo que mesmo à luz da teoria do Direito Penal Mínimo justifica-se a Lei
Maria da Penha na medida em que se trata de tema da mais alta relevância, que
precisa ser punido criminalmente pelo Estado ante a enormidade de casos de
violência doméstica contra a mulher por puro machismo de seus companheiros.110
Ainda que se considere afrontada a isonomia, o que é um equívoco, é de se
notar que se trata de inconstitucionalidade por omissão parcial, donde jamais poderá
a Lei Maria da Penha ser expurgada do mundo jurídico em virtude de as mulheres
fazerem jus à proteção por ela estabelecida, sendo inconteste que em casos tais de
108
MORAES, 2004, p. 662.
ANDRADE; NETO, loc. cit.
110
a
SILVA, Roberto B. Dias da. Manual de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora
Manole, 2007. p.175.
109
42
inconstitucionalidade por omissão o grupo beneficiado pela lei não pode perder tal
benefício em virtude de ser merecedor do mesmo como o são as mulheres.
Como já mencionado compete à União legislar sobre Direito Processual (art.
22, inc. I da CF/88), razão pela qual a Lei Maria da Penha, elaborada pela União,
pode dispor sobre normas de Direito Processual, sendo que, em atenção ao próprio
princípio federativo, cumpre à União fixar as diretrizes gerais e aos Estados, as locais,
donde a determinação da criação de Juizados específicos para a violência doméstica
implica em diretriz geral passível de complementação pelos Estados segundo as
peculiaridades regionais, donde inexiste inconstitucionalidade nas normas gerais
sobre Direito Processual existentes na Lei Maria da Penha.
43
5 CONCLUSÃO
A Lei 11.340/2006 surgiu após uma longa história de luta e sofrimento de
muitas mulheres, que durante décadas batalharam para terem seus direitos, assim
como extinguir a discriminação de gênero e consequentemente a diminuição da
violência doméstica, algo lamentavelmente existente em nossa sociedade.
A Lei Maria da Penha trouxe inúmeros privilégios às mulheres vítimas de
violência doméstica, bem como tratou de assuntos específicos jamais tratados
anteriormente em nossa legislação, dando maior segurança e amparo jurídico. Porém
tal lei trouxe consigo inúmeras polêmicas em torno de sua constitucionalidade,
principalmente por tratar de forma diferenciada homens e mulheres.
A principal argumentação desfavorável à constitucionalidade da Lei, é a de que
haveria suposto confronto ao princípio da isonomia, na medida em que estabelece
tratamento diferenciado entre homens e mulheres alvo de violência doméstica, no
sentido de que o sexo da pessoa é o que decide se o crime será julgado pelo rigor da
lei.
Diante dessa polêmica gerada em torno de sua constitucionalidade, o
Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União, entrou com
Ação Declaratória de Constitucionalidade para por fim a essa questão devido à real
necessidade de existência uma Lei especial para regulamentar a violência doméstica
e familiar contra as mulheres, uma vez que elas são notoriamente mais atingidas do
que os homens.
Cumpre ressaltar que a nossa Carta Magna, trouxe em seu texto os direitos e
garantias de cada um, e tentou da melhor maneira possível tirar os desníveis sociais
existentes, porém nem sempre é possível obter a isonomia em todas as relações
jurídicas, assim é imprescindível quando necessário adequar proporcionalmente a
desigualdade existente à norma, como é o caso da Lei 11.340/2006.
Portanto, entende-se que a legislação infraconstitucional possa dar um
tratamento diferenciado quando a finalidade tiver pretensão em atenuar os desníveis,
sem ofender o princípio da isonomia, assim como em diversos dispositivos que tratam
de maneira diferenciada pessoas da sociedade. Trata diferenciadamente, por
exemplo, o limite de idade para aposentadoria com menor idade e menor tempo de
contribuição previdenciária para as mulheres, exemplos estabelecidos na Carta
Magna.
44
Desse modo, fica clara a necessidade da norma se adequar caso a caso, é de
suma importância haver possibilidade de tratamento diferenciado em determinados
casos, porque realmente há diferenças existentes de fato. No tema estudado, as
mulheres são as principais vítimas, não restando dúvida da necessidade de um maior
amparo legal no âmbito da violência doméstica, que apesar de diferenciar a aplicação
apenas pelo gênero, é indiscutivelmente constitucional.
Não resta dúvida sobre a legalidade da lei, havia suposto afronto à constituição
uma vez que levava em conta somente o aspecto formal da isonomia, ignorando o
conteúdo jurídico material do princípio. O caráter meramente formal da igualdade
provou-se historicamente insuficiente, na medida em que deu ao legislador o poder
de definir arbitrariamente o conteúdo dos direitos fundamentais.
45
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48
ANEXOS
49
ANEXO A – Projeto Lei nº 4.559/2004
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, e dá outras providências.
O Congresso Nacional decreta:
TÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1° - Esta Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal e dos tratados
internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, e estabelece as
medidas para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de
violência.
Art. 2° - Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
moral, intelectual e social.
Art. 3° - É dever da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público, em
especial, assegurar à mulher condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à
cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária,
desenvolvendo ações que visem garantir os direitos humanos das mulheres no
âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-la de toda a
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 4° - Na interpretação desta Lei serão considerados os fins sociais a que ela se
destina e a condição peculiar da mulher em situação de violência doméstica e
familiar.
50
TÍTULO II
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 5° - Para os efeitos desta Lei, configura-se violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou conduta, baseada na relação de gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, ocorrida:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como relações pessoais afetivas;
III - em qualquer outra relação pessoal de afeto na qual o acusado compartilhe, tenha
compartilhado ou não o mesmo domicílio ou residência da ofendida.
Parágrafo único. Consideram-se relações de gênero as relações desiguais e
assimétricas de valor e poder atribuídas às pessoas segundo o sexo.
Art. 6° - A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de
violação dos direitos humanos.
CAPÍTULO II
DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
Art. 7° - São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras
previstas em lei:
51
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade
corporal ou a saúde da mulher;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que cause dano
emocional e diminuição da auto-estima, que prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento da mulher, vise a degradar ou a controlar suas ações,
comportamentos,
crenças
e
decisões,
mediante
humilhação,
manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou, por qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força, assim como ações que forcem a
mulher a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, ao
impedimento ao uso de qualquer método contraceptivo, ou ações que a forcem ao
matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição, mediante coação, chantagem, suborno,
manipulação ou qualquer outro meio que limite ou anule seu arbítrio;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta ilegítima que configure
perda, retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da
mulher e os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria à honra ou à reputação da mulher.
TÍTULO III
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR
CAPÍTULO I
DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO
52
Art. 8° - A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tendo
como diretrizes:
I - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria,
Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habitação;
II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes,
concernentes às causas, conseqüências e freqüência da violência doméstica e
familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados
nacionalmente, e a avaliação dos resultados das medidas adotadas;
III - a observância, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da
pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou
exacerbem a violência doméstica e familiar;
IV - a implementação de centros de atendimento multidisciplinar para as pessoas
envolvidas em situação de violência doméstica e familiar, visando agilizar e garantir o
atendimento integral às mulheres;
V - a implementação de atendimento policial especializado às mulheres;
VI - a realização de campanhas educativas, voltadas à prevenção da violência
doméstica e familiar contra a mulher e à difusão desta lei e dos instrumentos de
proteção aos direitos humanos das mulheres;
VII - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para a promoção de
parcerias
entre
si
ou
com
entidades
não-governamentais,
objetivando
a
implementação de programas voltados à erradicação da violência doméstica e
familiar contra a mulher, bem como a capacitação permanente dos integrantes dos
órgãos referidos no inciso I deste artigo.
53
VIII - a capacitação permanentemente dos integrantes do Poder Judiciário, do
Ministério Público, da Defensoria Pública, da Polícia Civil, bem assim dos
profissionais da saúde, da educação, da assistência social, dentre outros;
IX - a promoção de programas educacionais formais e não-formais que disseminem
valores éticos, do irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos das
mulheres.
X - privilegiar nos currículos escolares, em todos os níveis, de conteúdos relativos aos
direitos humanos, à equidade de gênero e à violência doméstica e familiar contra a
mulher.
CAPÍTULO II
DA ASSISTÊNCIA SOCIAL À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Art. 9° A assistência social às mulheres em situação de violência doméstica e familiar
deverá ser prestada de forma articulada, emergencial ou não, conforme os princípios
e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de
Saúde, dentre outras normas pertinentes.
CAPÍTULO III
DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL
Art. 10. Nas hipóteses de violência familiar ou doméstica praticadas ou na iminência
de serem praticadas contra mulheres deverá ser imediatamente notificada a
autoridade ou o agente policial para que possa comparecer ao local.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput na hipótese de descumprimento de
medida cautelar aplicada pelo juízo.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência a autoridade ou o agente
policial buscará adotar as seguintes providências:
54
I - providenciar transporte para a ofendida até o hospital, o posto de saúde ou o
Instituto Médico Legal;
II - providenciar transporte da ofendida e seus dependentes em risco de vida para
local seguro ou abrigo;
III - assegurar a possibilidade da ofendida retirar seus pertences pessoais do local da
ocorrência ou do domicílio familiar;
IV - comunicar à ofendida o horário e o local de comparecimento à delegacia, caso
não seja possível o seu atendimento imediato;
V - informar à ofendida dos direitos a ela conferidos nesta Lei e dos serviços públicos
e privados disponíveis; e
VI - garantir proteção policial, quando necessário.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o
registro do fato, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes
procedimentos, além daqueles já previstos no Código de Processo Penal e na Lei n°
9.099, de 26 de setembro de 1995:
I - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas
circunstâncias;
II - ouvir a ofendida;
III - ouvir o indiciado e as testemunhas;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito e requisitar os exames
periciais necessários;
V - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e
social, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do fato e durante ele, e
quaisquer outros elementos que contribuam para a apreciação do seu temperamento
e caráter;
55
VI - ordenar a identificação do indiciado e fazer juntar aos autos sua folha de
antecedentes;
VII - remeter à autoridade judiciária o expediente lavrado.
§ 1° O previsto no inciso IV deste artigo implicará no encaminhamento prioritário da
ofendida, quando necessário à preservação das provas.
TÍTULO IV
DOS PROCEDIMENTOS
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 13. Ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais em que
esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicar-se-ão os
Códigos de Processo Penal e Civil e a Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, no
que não conflitarem com o procedimento estabelecido nesta Lei.
CAPÍTULO II
DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR
Art. 14. A equipe de atendimento multidisciplinar deverá ser integrada por
profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e da saúde.
Art. 15. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, dentre outras atribuições
que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito à
autoridade judiciária, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos
ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de aconselhamento,
orientação, encaminhamento, prevenção e outros, assegurada a livre manifestação
do ponto de vista
56
técnico.
Art. 16. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, poderá
ser
determinada
pela
autoridade
judiciária
a
manifestação
de
profissional
especializado em determinada área, mediante a indicação da equipe de atendimento
multidisciplinar.
Art. 17. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá
prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento
multidisciplinar.
CAPÍTULO III
DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Art. 18. Caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, o Ministério
Público poderá intervir nas causas cíveis e criminais em que não for parte.
Art. 19. É facultado ao Ministério Público, nos casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, quando necessário:
I - requisitar a força policial e a colaboração dos serviços públicos de saúde, de
educação, de assistência social e de segurança, dentre outros;
II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em
situação de violência, de que trata esta Lei, e adotar de imediato as medidas
administrativas ou judiciais no tocante a quaisquer irregularidades constatadas.
CAPÍTULO IV
DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA
Art. 20. Em todos os atos processuais, a mulher em situação de violência doméstica e
familiar deverá estar acompanhada de advogado ou Defensor Público.
Art. 21. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o
acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos
57
termos da lei, mediante um atendimento específico e humanizado no Juízo
competente, nas Delegacias de Polícia e núcleos de atendimento das Defensorias
Públicas.
CAPÍTULO V
DAS MEDIDAS CAUTELARES
Art. 22. As medidas cautelares serão concedidas pelo juiz, por representação da
autoridade policial, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, da
ofendida ou de quem tenha qualidade para representá-la.
§ 1° As medidas cautelares poderão ser concedidas independentemente de audiência
das partes.
§ 2° O requerimento da ofendida, que poderá ser feito oralmente, independe da
presença de advogado.
§ 3° As medidas cautelares serão aplicadas, isolada ou cumulativamente, e poderão
ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os
direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
Art. 23. Poderá o juiz, a requerimento das partes ou do Ministério Público, conceder
novas cautelares ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção
da ofendida, seus familiares e seu patrimônio.
Art. 24. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a
prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público,
ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo,
verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se
sobrevierem razões que a justifiquem.
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Art. 25. A ofendida deverá ser intimada dos atos processuais relativos ao acusado,
especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão sem prejuízo da
intimação do advogado constituído ou do defensor público.
CAPÍTULO VI
DAS MEDIDAS CAUTELARES EM RELAÇÃO AO ACUSADO
Art. 26. Constatada a ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao acusado, em conjunto ou
separadamente, as seguintes medidas cautelares, dentre outras previstas em lei:
I - suspensão ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão
competente, nos termos da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, podendo
encaminhar o acusado a programa de acompanhamento psicossocial, onde houver,
ou a tratamento similar;
III - proibição de determinadas condutas, dentre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e de suas testemunhas;
b) utilização de qualquer meio de comunicação para contato com a ofendida, seus
familiares e testemunhas;
IV - proibição de freqüentar lugares que o juiz entenda conveniente para preservar a
integridade física e mental da ofendida;
V - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, sujeita à avaliação
do acusado por equipe de atendimento multidisciplinar, ou serviço similar; e
VI - prestação de alimentos provisionais.
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§ 1° As medidas referidas no caput não impedem a aplicação de outras previstas na
legislação em vigor sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o
exigirem.
§ 2° Na hipótese do inciso I, sendo o acusado policial ou integrante das Forças
Armadas, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição, a
suspensão ou a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do acusado,
responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de desobediência,
nos termos do artigo 330 do Código Penal.
§ 3° Para garantir a efetividade das medidas cautelares, poderá o juiz requisitar, a
qualquer momento, auxílio da força policial.
CAPÍTULO VII
DAS MEDIDAS CAUTELARES DE PROTEÇÃO À MULHER EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA
Art. 27. Poderá o juiz, quando necessário:
I - encaminhar a mulher em situação de violência e seus dependentes a programa
oficial ou comunitário de proteção e aos serviços de atenção integral à saúde das
mulheres;
II - determinar a recondução da mulher e a de seus dependentes ao respectivo
domicílio, após o afastamento do acusado; e
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo de seus direitos
relativos a bens, à guarda dos filhos e aos alimentos.
Art. 28. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal e daqueles de
propriedade particular da mulher, poderão ser determinadas liminarmente pelo juiz
competente as seguintes medidas, dentre outras previstas em lei:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo acusado à ofendida;
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II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
locação de propriedade em comum, condicionada excepcionalmente a decisão
judicial contrária;
III - revogação das procurações conferidas pela mulher ao acusado; e
IV - indenização por perdas e danos dos gastos decorrentes dos atos de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previsto nos
incisos II e III deste artigo.
CAPÍTULO VIII
DO PROCEDIMENTO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Seção I
Disposições Gerais
Art. 29. Ao processo, julgamento e execução dos crimes de competência dos
Juizados Especiais Criminais em que esteja caracterizada violência doméstica e
familiar contra a mulher, aplica-se lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que
não conflitar com o estabelecido nesta Lei.
Art. 30. Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher a ação penal
será pública condicionada à representação.
Seção II
Da Audiência de Apresentação
Art. 31. Ao receber o expediente lavrado pela autoridade policial, imputando prática
de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, deverá o juiz de imediato
designar audiência de apresentação.
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§ 1° É vedado proceder à intimação ou à notificação da pessoa autora da agressão
por intermédio da ofendida.
§ 2° À audiência de apresentação, presente o Ministério Público, deverão comparecer
a ofendida e o acusado, acompanhados por seus respectivos advogados.
§ 3° Comparecendo a ofendida desacompanhada de advogado, ser-lhe-á garantida a
assistência judiciária gratuita, nos termos da lei.
Art. 32. A mediação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
será conduzida por juiz ou mediador.
§ 1° O mediador, devidamente habilitado em curso superior, deverá ter capacitação
em violência doméstica e familiar contra a mulher.
§ 2° Sob pena de responsabilidade, nos termos da lei, em hipótese alguma a mulher
ofendida de violência doméstica e familiar poderá ser forçada, direta ou
indiretamente, à conciliação.
§ 3° Não havendo mediação, será dada à ofendida a oportunidade de exercer o
direito de
representação verbal, que será reduzida a termo.
§ 4° O não oferecimento da representação na audiência não implica na decadência
do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.
§ 5° Nos casos de violência doméstica e familiar, o prazo decadencial somente passa
a correr da data da audiência de apresentação para a qual estiver pessoalmente
intimada a ofendida, devendo tal advertência constar expressamente do mandado de
intimação.
§ 6°A retratação ou a renúncia da representação somente serão consideradas válidas
após ratificação em audiência.
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Art. 33. Exercido o direito de representação, o juiz colherá o depoimento pessoal da
ofendida, separadamente, e em seguida o do acusado, admitida a acareação.
Art. 34. O juiz encaminhará o caso à equipe de atendimento multidisciplinar ou aos
núcleos de atendimento similares, podendo, ainda, determinar a realização dos
exames periciais que julgar necessários.
Seção III
Da Audiência de Instrução e Julgamento
Art. 35. Havendo representação e não sendo caso de arquivamento, o Ministério
Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos, a ser
especificada na proposta.
§ 1° Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:
I - ter sido o acusado condenado, pela prática de crime, a pena privativa de liberdade,
por sentença definitiva;
II - ter sido o acusado beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela
aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;
III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente,
bem como os motivos e as circunstâncias, se necessária e suficiente a adoção da
medida;
IV - o descumprimento, pelo acusado, das medidas cautelares que lhe tenham sido
aplicadas.
§ 2° Ao propor a transação penal, o Ministério Público considerará os subsídios
apresentados pela Equipe de Atendimento Multidisciplinar e os antecedentes do
acusado.
§ 3° Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, será esta submetida à
apreciação do juiz.
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Art. 36. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, das penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa.
Art. 37. Não sendo possível a transação penal, o Ministério Público oferecerá de
imediato a denúncia oral, prosseguindo-se em audiência de instrução e julgamento,
devendo constar do mandado de citação do autor do fato tal advertência, bem como a
necessidade de arrolar testemunhas cinco dias antes da audiência, caso pretenda
ouvi-las.
TÍTULO V
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 38. A União, no Distrito Federal e Territórios e os Estados poderão criar Varas e
Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com
competência cível e criminal, cabendo ao Poder Judiciário dispor sobre sua estrutura.
Parágrafo único. Enquanto não estruturadas as Varas e os Juizados mencionados no
caput, os crimes relativos à violência doméstica e familiar contra as mulheres
continuarão a ser julgados nas Varas Cíveis e Criminais e nos Juizados Especiais
Cíveis
e Criminais, com observância do previsto nesta Lei e na legislação processual
pertinente.
Art. 39. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, poderão criar centros
de reabilitação para os acusados e de atendimento à mulher em situação de violência
doméstica e familiar, a serem previstos na legislação local.
Art. 40. Compete à União, ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios
promoverem a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos
princípios estabelecidos nesta Lei.
Art. 41. A defesa dos interesses e direitos previstos nesta Lei poderá ser exercida,
concorrentemente com a ofendida, pelo Ministério Público ou por associação de
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defesa da mulher, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da Lei
Civil.
Art. 42. Serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais as estatísticas sobre
a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Art. 43. Os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, previstos nesta
Lei, ainda que não tenham sido julgados, constarão de cadastro específico, de
conhecimento reservado da autoridade judiciária e do Ministério Público.
§ 1° Caberá às Varas e aos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar a
elaboração do cadastro referido no caput.
§ 2° Enquanto não estruturados as Varas e os Juizados Especiais previstos no art.
38, o cadastro de violência doméstica será elaborado nas Varas Criminais e Juizados
Especiais Criminais.
Art. 44. Serão estabelecidas dotações orçamentárias específicas, em cada exercício
financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei.
Art. 45. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos
princípios por ela adotados.
Art. 46. O art. 313 do Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de
Processo Penal) passa a vigorar acrescido do seguinte inciso:
“IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que
seja a pena aplicada.” (NR)
Art. 47. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 16 de novembro
de 2004.
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