UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA MARCELO TOMELIN BOGO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE PALHOÇA (SC) 2010 MARCELO TOMELIN BOGO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Universidade Sul de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª Patrícia Russi. PALHOÇA (SC) 2010 MARCELO TOMELIN BOGO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado à obtenção do título de Bacharel em Direito e aprovado em sua forma final pelo Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina. Palhoça (SC), 14 de Junho de 2010 ______________________________________ Orientadora: Prof.ª Patrícia Russi. Universidade do Sul de Santa Catarina BANCA EXAMINADORA: _________________________________________ Prof.ª Siomara Aparecida Marques _________________________________________ Prof.ª Priscila de Azambuja Tagliari TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA - REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IGUALDADE Declaro, para todos os fins de direito e que se fizerem necessários, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico e referencial conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade Sul de Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de todo e qualquer reflexo acerta desta monografia. Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso de plágio comprovado do trabalho monográfico. Palhoça (SC), 14 de Junho de 2010 ___________________________________________ Marcelo Tomelin Bogo Dedico este trabalho primeiramente a minha família pelo carinho e pela ajuda que nunca faltou, agradeço também meus amigos que sempre estiveram presentes e a Deus por me proporcionar este momento. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, que deu a mim esta oportunidade. Aos meus pais, Valdir e Teresinha, sempre tão presentes em minha vida, mesmo diante de tantos afazeres, mas sempre me apoiando e incentivando com muito amor e carinho. Aos meus irmãos, André e Rose, por termos vividos junto grande parte de nossas vidas, e por eles terem presenciado a maior parte das minhas conquistas, ambos sempre me ajudando e apoiando no que fosse preciso, sem deixar de lado minha sobrinha Eduarda que é uma fonte de inspiração e energia para toda a família. A minha professora orientadora, por ter disponibilizado gentilmente seu precioso tempo para me ajudar no que foi preciso para a elaboração deste trabalho. Por fim, agradeço meus colegas de faculdade, pelos momentos inesquecíveis proporcionados nestes anos juntos, bem como a todos que de certo modo me incentivaram para a conclusão deste. RESUMO O presente trabalho trata da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). A qual foi editada em decorrência de uma longa luta pelo combate à violência doméstica contra a mulher, alvo principal deste tipo de agressão. No transcurso da pesquisa será abordado a Lei Maria da Penha, bem como seus aspectos legais, e fundamentação a cerca da sua constitucionalidade. No decorrer desta também será analisada a Lei, desde a origem da sua denominação, os tipos de violência no âmbito doméstico, a importância dos tratados internacionais, a sua efetividade e abrangência no plano jurídico, sua harmonia com a Constituição Federal em face do Princípio da Isonomia, por fim a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 19 do STF. A Verificação de críticas referentes a inconstitucionalidade da lei, seu fundamento e se ela é comprovadamente necessária, justa e eficaz no combate à violência praticada no âmbito doméstico contra a mulher. Palavras-chave: Princípio Constitucionalidade da Lei. da Isonomia. Violência contra as mulheres. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................9 2 ASPECTOS HISTÓRICOS A RESPEITO DA LEI 11.340/2006..............................10 2.1 O NOME DE UMA MULHER.................................................................................10 2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO.....................................................................................11 2.2.1 A luta contra a violência doméstica................................................................13 2.3 A INFLUÊNCIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.........................................15 2.4 O PROJETO DE LEI N° 4.559/2004......................................................................17 3 ASPECTOS DA LEI N° 11.340/2006......................................................................19 3.1 FINALIDADE..........................................................................................................19 3.2 ABRANGÊNCIA.....................................................................................................20 3.2.1 Unidade doméstica...........................................................................................22 3.2.2 Âmbito familiar..................................................................................................22 3.2.3 Relação íntima de afeto....................................................................................24 3.3 ESPÉCIES DE VIOLÊNCIA...................................................................................25 3.3.1 Violência física..................................................................................................26 3.3.2 Violência psicológica........................................................................................27 3.3.3 Violência sexual................................................................................................28 3.3.4 Violência patrimonial........................................................................................30 3.3.5 Violência moral..................................................................................................31 4 SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE....................................................................32 4.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE.................................................................................32 4.2 HIPÓTESES VÁLIDAS DE TRATAMENTO DIFERENCIADO..............................34 4.3 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI..................................................................36 4.4 AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE N° 19...........................37 5 CONCLUSÃO.........................................................................................................43 REFERÊNCIAS...........................................................................................................45 ANEXOS......................................................................................................................48 ANEXO A.....................................................................................................................49 9 1 INTRODUÇÃO A presente monografia tem como objetivo principal analisar a Lei Maria da Penha. Iniciando por seus aspectos mais importantes, contexto histórico, alguns conceitos relevantes e, por fim, a polêmica gerada em torno da sua constitucionalidade, em vista do suposto confronto com o princípio da igualdade. A preferência por este tema se deu em razão da Lei Maria da Penha ser um tema socialmente relevante, devido à necessidade de amparo às mulheres vítimas de violência, no caso, a doméstica. Este trabalho, além de descrever e analisar o processo histórico que deu origem à Lei Maria da Penha, conceitua algumas pontos específicos constantes na referida Lei, os quais merecem maior esclarecimento considerando a necessidade de tratamento desigual no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher. O procedimento de pesquisa adotado no presente trabalho será o bibliográfico, sendo que, para o seu desenvolvimento, serão trazidas informações de livros que tratam da violência doméstica, bem como jurisprudências, legislação e artigos publicados na rede mundial de computadores (internet). O trabalho está dividido em cinco capítulos. O primeiro traz a presente introdução e em seguida no segundo capítulo expõe o contexto histórico da Lei Maria da Penha, tratando dos principais acontecimentos até seu surgimento, desde a sua origem, até o projeto de lei que a antecedeu. Logo o terceiro capítulo analisa conceitos especiais acerca de dispositivos previstos na mencionada Lei, a fim de que haja compreensão e entendimento sobre os fins a que ela se destina, bem como sobre as situações em que cabe a sua aplicação. No quarto capítulo, há considerações a respeito da constitucionalidade no contexto da Lei n° 11.340/2006, à possibilidade de tratamento diferenciado perante a constituição, e também analisaremos a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 19 do STF, em face dos artigos 33 e 41 da Lei Maria da Penha. E por fim, no quinto e último capítulo a conclusão deste trabalho. 10 2 ASPECTOS HISTÓRICOS À RESPEITO DA LEI 11.340/2006 Até surgir a Lei Maria da Penha houve inúmeros casos de sofrimento de mulheres, não reconhecidas pelo Estado durante séculos, lutaram pelo fim da violência, luta esta, que é de muita importância para a sociedade. Este capítulo aborda todo o caminho percorrido pelas mulheres, especificamente por Maria da Penha, até a sanção da Lei n° 11.340 de 2006. 2.1 O nome de uma mulher Maria da Penha Maia, farmacêutica bioquímica, mãe de três filhas, uma dentre inúmeras mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil1. Casada com Marco Antônio, sofria agressões e ameaças, contudo se calava, pois temia algo pior acontecer. Não obstante, no ano de 1983, durante seu repouso, Maria da Penha foi surpreendida por parte de seu marido, que lhe desferiu um tiro, deixando-a paraplégica.2 Sobre o acontecimento, acrescentam Cunha e Pinto: O ato foi marcado pela premeditação. Tanto que seu autor, dias antes, tentou convencer a esposa a celebrar um seguro de vida, do qual ele seria o beneficiário. Ademais, cinco dias antes da agressão, ela assinara, em branco, um recibo de venda de veículo de sua propriedade, a pedido do 3 marido. Insatisfeito e descontente pela tentativa de homicídio frustrada, o agressor novamente atentou contra a vida de sua esposa, desta vez tentou eletrocutar a esposa enquanto ela tomava banho, apenas algumas semanas após ter retornado do hospital quando ainda se recuperava da violência anterior.4 Diante de tanta amargura, Maria da Penha saiu de casa e denunciou o marido pelos crimes cometidos e iniciou uma longa batalha em busca da condenação de seu 1 HERMANN, Leda Maria; Maria da Penha Lei com Nome de Mulher: violência domestica e familiar, considerações à Lei nº. 11.340/2006, comentada por artigo, 1ª. Ed, Editora Servanda, 2008, p. 17. 2 Ibid, p. 18. 3 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei maria da penha (lei nº.11340/2006), comentada artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 21. 4 BISOGNIN, Carolina Vicente; STAHLHÖFER, Iásin Schäffer; PEREIRA, Matheus Castelan. Lei 11.340/2006: seu contexto, conteúdo e aplicação. Revista eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa aria, v. 2, n. 3, nov. 2007. Disponível em: <http://www.ufsm.br/revistadireito/arquivos/v2n3/a08.pdf>. Acesso em 21 abr. 2010. 11 agressor. A fase investigativa começou em junho do mesmo ano, mas a denúncia somente foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984.5 Passados 14 anos, já em 1998, Maria da Penha, insatisfeita com a atuação do Judiciário Brasileiro delatou o fato à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). Três anos depois o Estado Brasileiro foi responsabilizado por sua negligência e omissão quanto à violência doméstica e, recebeu recomendações da CIDH para tomar as devidas providências no que diz respeito ao episódio de Maria da Penha, bem como ficou de rever as políticas públicas no que tange à violência contra a mulher no País.6 Tal sanção foi motivo suficiente para a edição da Lei n° 11.340/06, que foi denominada como Lei Maria da Penha, devido ao sofrimento de uma mulher que lutou por anos em busca de justiça. Marco Antônio somente foi encarcerado em 2002, ou seja, quase vinte anos após os fatos, porém ficou preso por apenas dois anos, tendo em vista que obteve a progressão para o regime aberto, permitido na época para o delito de homicídio qualificado.7 2.2 Violência de gênero Influenciado pelas diferenças culturalmente existentes entre homens e mulheres, criou-se em nossa sociedade a idéia de que as mulheres pertencem aos homens e eles podem “dispor” delas da maneira como desejarem. Assim explica Silva: Ainda hoje a construção social engendrada para manter o status quo de domínio não é percebida pelo senso comum social, razão pela qual a submissão feminina ainda assume contornos de realidade imanente, histórica, biológica e natural. E é neste contexto de normalidade das relações de poder entre os sexos, de naturalidade da vida sob a égide da 8 "lei do pai" que tem lugar a violência doméstica. 5 SILVA, Ricardo José de Medeiros e; A Lei Maria da Penha e a União Homoafetiva. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=413>. Acesso em 19 de Abr. 2010. 6 CORTÊS, Iares Ramalho; MATOS, Myllena Calasans de. Lei Maria da Penha: do papel para a vida. Brasília: centro feminino de estudos e assessoria, 2007. Disponível em: <http://www.assufba.org.br/legis/leimariadapenha.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2010. 7 CUNHA; PINTO, 2008, p. 22 e 23. 8 SILVA, Danielle Martins. Violência doméstica na Lei Maria da Penha. Reflexos da visibilidade jurídica do conflito familiar de gênero. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1874, 18 ago. 2008. Disponível em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11614>. Acesso em: 26 abr. 2010. 12 Diante desse comportamento social, advindo de fatores culturais, fica clara a necessidade de uma lei que tenha uma abrangência específica, para combater neste caso a violência de gênero. “A violência de gênero é um padrão específico de violência fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero feminino, e amplia-se e reatualiza-se na proporção direta em que o poder masculino é ameaçado.” 9 Portanto, o homem que busca ser respeitado em sua virilidade, comportamento advindo de uma cultura imposta pela sociedade, muitas vezes opta por usar a violência, geralmente em casa. Resultados de pesquisas da Organização Mundial de Saúde (OMS) realizadas junto a mulheres vítimas de várias formas de agressões, demonstram que “30% das mulheres foram forçadas nas primeiras experiências sexuais; 52% são alvo de assédio sexual; 69% já foram agredidas ou violadas.”10 Não obstante, para piorar a situação, Dias (2008) aponta que os números mencionados acima “não retratam a realidade, pois a violência é subnotificada, somente 10 % das agressões sofridas por mulheres são levadas ao conhecimento da polícia.”11 A maioria das vítimas se calam perante a violência, e esse comportamento decorre de diversos fatores, tais como o receio de novamente serem agredidas, como também o medo em relatar a situação, pelo fato de não terem para onde ir a princípio, ou por serem economicamente dependentes dos maridos, ou até mesmo por esperança que a agressão não se repetirá.12 A violência doméstica contra as mulheres, jamais cessará enquanto estas não pedirem ajuda, e deixarem de ficar caladas. Maria da Penha também temia o pior acontecer e por muito tempo permaneceu calada, causando-lhe um sofrimento indescritível. 9 SAFFIOTE; ALMEIDA apud RECHTMAN, Moisés; PHEBO, Luciana. Pequena história da subordinação da mulher: as raízes da violência de gênero. Disponível em: http://comunidadesegura.org.br/pt-br/node/20099 Acesso em: 29 abr.2010. 10 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.15 11 Ibid, p. 16-17. 12 ANDRADE, Maísa Sá de; NETO, Manoel Valente Figueiredo. Considerações sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha (Lei N° 11.340/2006). Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5219>. Acesso em: 30 abr. 2010. 13 Apesar disso, depois da triste experiência de dor e sofrimento, Maria da Penha confessou: “me senti recompensada por todos os momentos nos quais, mesmo morrendo de vergonha, expunha minha indignação e pedia justiça para meu caso não ser esquecido.” 13 2.2.1 A luta contra a violência doméstica O início dessa luta pode ser definido com o slogan “Quem ama não mata”, feito devido aos inúmeros casos de assassinato de mulheres, por seus companheiros, em legítima defesa da honra.14 Diante desta situação muitas mulheres sofreram com a violência perpetrada por seus companheiros, os quais chegam ao ponto de matar as esposas e depois se defendem alegando a legítima defesa da honra, tese facilmente admitida pelo Tribunal do Júri. Atualmente, tais argumentações ainda são levantadas pelos agressores, porém, felizmente, não têm a mesma aceitação que possuíam há décadas, conforme se constata no julgado da Apelação Criminal, nº. 2005.026932-4 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). JÚRI - TENTATIVA DE HOMICÍDIO SIMPLES - AGENTE QUE DESFERE TRÊS FACADAS NA REGIÃO ABDOMINAL DA VÍTIMA, A QUAL NÃO VEM A FALECER POR CIRCUNSTÂNCIAS ALHEIAS À VONTADE DO RÉU LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA NÃO ACOLHIDA PELO CONSELHODE SENTENÇA - DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS - INOCORRÊNCIA - CONFISSÃO DO ACOIMADO ALIADA ÀS DECLARAÇÕES DA VÍTIMA SOBREVIVENTE E DEMAIS PROVAS QUE AMPARA A VERSÃO ACOLHIDA PELOS JURADOS - MANUTENÇÃO DO 15 DECISUM. Tal quebra da tese da legítima defesa da honra, a respeito das agressões contra mulheres, teve início no final da década de 1970, quando as mulheres iniciaram a batalha contra a violência doméstica e sexual.16 13 CUNHA; PINTO, 2008, p. 26. RECHTMAN, Moisés; PHEBO, Luciana. Pequena história da subordinação da mulher: as raízes da violência de gênero. Disponível em: <http://www.isis.cl/Feminicidio/doc/doc/violencia_mulhe%8A%E9s_Rechtman.pdf.>. Acesso em: 29 abr.2010. 15 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal n° 2005.026932-4. Recorrente: Hélio Ortiz dos Santos Júnior. Recorrido: Ministério Público de Santa Catarina. Relator: Desembargador Karstens Köhler. Disponível em:<http://www.tj.sc.gov.br/institucional/diario/a2006/20061186600.PDF>. Acesso em 1° mar. 2010. 16 THOMAS apud BARSTED, Leila Linhares. A violência contra as mulheres no Brasil e a convenção de belém do pará dez anos depois. Disponível em: <http://www.mulheresnobrasil.org.br/pdf/PMB_Cap8.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2010. 14 14 Continuando, Thomas explica que [...] tal tese, até o final daquela década, encontrava aceitação tranqüila e pacífica nos diversos tribunais do júri do país. Certamente, foi pela atuação insistente do movimento de mulheres, que enfim, em 1991, o Superior 17 Tribunal de Justiça rejeitou essa idéia de forma explícita. As brasileiras influenciadas pelo movimento de mulheres e feministas, que se empenharam, em trabalhar para demonstrar a violência contra a mulher como um problema social de relevância, que não será resolvido apenas com políticas de tratamento das vítimas e sanções aos agressores, mas sim recolocando a mulher na sociedade, definindo sua função dentro ou fora de casa.18 Em conseqüência a “resposta às iniciativas desencadeadas pelas mulheres, tanto reivindicatórias quanto de estudos e produção teórica, aos poucos o país foi avançando no desenvolvimento de políticas sociais voltadas ao problema.” 19 Outro avanço em virtude desta luta foi a criação das Delegacias da mulher, na década de 1980, com o objetivo de prestar atendimento especial às mulheres, com relação às delegacias relata Dias: A primeira foi implantada em São Paulo, no ano de 1985. Desempenharam importante papel, pois o atendimento especializado, feito quase sempre por mulheres, estimulava as vítimas a denunciar os maus tratos sofridos, muitas vezes, ao longo de anos. De outro lado, o fato de os agressores serem chamados perante a autoridade policial cumpria importante função 20 intimidatória. Depois da criação das Delegacias da Mulher, foram instituídos, “órgãos especiais, como os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que ocorreu também nos anos 1980, impulsionou a luta pela cidadania feminina e, em especial, a luta contra a violência”.21 Enfim, após duas décadas de lutas, as mulheres conseguiram ampliar seus direitos, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que garantiu a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (artigo 5°, inciso I), a proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 5°, inciso XX), a igualdade no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, o fim do pátrio poder 17 THOMAS apud BARSTED, loc. cit. BOSELLI, Giane. Dimensões da violência contra a mulher: construindo bases de dados. Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/pdf/dimensoesdaviolenciacontraamulher_gianeboselli.pdf>. Acesso em: 1° mar 2010. 19 BOSELLI, loc. cit. 20 DIAS, 2008, p. 22-23. 21 BARSTED, loc. cit. 18 15 (artigo 226, § 5°) e a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar (artigo 226, § 8°).22 Tais mudanças constitucionais fizeram com que o Estado proporcionasse maior assistência às mulheres vítimas de violência doméstica, pois, já havia um consenso da importância do tema. Com o intuito de estabelecer maior assistência, houve a “criação de novos serviços, como os abrigos e os serviços de atendimento jurídico, previstos em Constituições Estaduais (1989) e Leis Orgânicas Municipais (1990).” 23 Um importante papel estabelecido nesta jornada de combate à violência contra a mulher foram os tratados internacionais a que o Brasil aderiu, os quais serão estudados no próximo tópico. Finalizando Barsted (2008) conclui que “todo esse esforço permitiu, nos primeiros anos do século 21, um avanço significativo na luta pela cidadania das mulheres e possibilitou uma expertise no diálogo com o Estado em diferentes áreas e dimensões.”24 Assim, como resultado da luta das mulheres desenvolvida por mais de três décadas, é notório que hoje exista consciência de que a violência de gênero é algo inaceitável em uma sociedade civilizada, devendo ser sempre combatida. 2.3 A influência dos Tratados Internacionais Antes que o assunto da violência contra a mulher fosse debatido no Brasil, realizou-se no México, no ano de 1975, a primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, que resultou na elaboração da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres em 1979 (CEDAW), a qual entrou em vigor em 1981. Em 1993 aprovou-se a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, conforme Barsted: [...] em resposta às denúncias dos movimentos feministas do mundo inteiro, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, pela Resolução 48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres – um marco na doutrina jurídica internacional. Essa declaração subsidiou, em 1994, a elaboração, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da 22 BRASIL. Constituição Federal. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 1° mar: 2010. 23 BARSTED, loc. cit. 24 BARSTED, loc. cit. 16 Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres – 25 Convenção de Belém do Pará. Perante a importância do assunto, bem como as pressões exercidas pelos movimentos feministas, o Brasil assinou dois Tratados Internacionais: o primeiro, de abrangência mundial (CEDAW), da Organização das Nações Unidas, em 1984, e o segundo, na esfera regional (Convenção de Belém do Pará), da OEA ratificada em 1995.26 No mesmo ano da ratificação da OEA o país também assinou a Declaração e a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, na China. Esta declaração prevê algumas ações, no que diz respeito à violência doméstica, conforme esclarecem Cortês e Matos: Com relação à violência doméstica, a Plataforma prevê, além das medidas punitivas ao agressor, ações voltadas para prevenção e assistência social, psicológica e jurídica à vítima e a sua família. Prevê, também, ações que 27 possibilitem a reabilitação dos agressores. A participação em ambos os Tratados e na Conferência foi decisiva para o Brasil criar a Lei n° 11.340/2006, pois, se não cumprisse os compromissos assumidos perante a comunidade internacional, o País seria responsabilizado. E foi precisamente o que ocorreu. Em virtude de uma denúncia, a CIDH, órgão da OEA, publicou o relatório 54/2001, no qual foram apontados os erros cometidos pelo Estado brasileiro, que não cumpriu com o acordo internacional, por não se adequar ante a violência doméstica.28 Dentre as recomendações feitas ao Brasil, a CIDH se pronunciou: A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência 29 doméstica contra as mulheres. No ano de 2003 o Brasil “apresenta o seu primeiro relatório ao Comitê CEDAW, referente ao período de 1985-2002. Após análise, o Comitê recomendou a 25 BARSTED, loc. cit. BOSELLI, loc. cit. 27 CORTÊS; MATOS, loc. cit. 28 CUNHA; PINTO, 2008, p. 24. 29 Ibid, p. 25. 26 17 adoção, sem demora, de uma lei integral de combate à violência doméstica contra as mulheres.” 30 O relato de Maria da Penha foi o primeiro em que houve aplicação da Convenção de Belém do Pará, o que ocasionou o fim do processo penal contra Marco Antônio, encarcerado poucos meses antes da prescrição da pena, bem como houve a elaboração do Projeto de Lei n° 4.559/2004, que deu origem Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006). 31 2.4 O projeto de Lei n° 4.559/2004 Em virtude de anos de luta contra o combate à violência doméstica, enfim é criado o Projeto de Lei n° 4.559/2004 (PL 4.559/2004), o qual tramitou da seguinte maneira, consoante descrevem Cortês e Matos: 2004 - Em 25 de novembro do mesmo ano, por ocasião do Dia Internacional pelo Fim da Violência contra as Mulheres, o Executivo encaminha o Projeto de Lei ao Congresso Nacional, que recebe, na Câmara dos Deputados, o número PL 4.559/2004. 2005 - Discussão do Projeto na Câmara dos Deputados com realização de audiências públicas em vários estados e aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). Recebe apoio e empenho da Bancada Feminina do Congresso Nacional, de parlamentares sensíveis à causa e das Deputadas relatoras Jandira Feghali (na CSSF); Yeda Crusius (na CFT) e Iriny Lopes (na CCJC). 2006 - Os fóruns de mulheres de todo Brasil, seguindo iniciativa do Estado de Pernambuco, realizam, em março, as Vigílias pelo Fim da Violência contra as Mulheres, para denunciar a violência e os homicídios de mulheres e pedir a aprovação do PL 4.559/2004. O Projeto é aprovado no Plenário da Câmara e vai para o Senado, onde recebe o número PLC 37/2006. É discutido e aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), tendo como relatora a Senadora Lúcia Vânia. Em seguida é encaminhado para o Plenário do Senado, onde também é aprovado, seguindo para sanção presidencial. Em todas as instâncias o projeto foi aprovado por unanimidade e sua tramitação no Congresso Nacional durou 20 meses. No dia 7 de agosto, em cerimônia no Palácio do Planalto, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina a Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que entrou em vigor no dia 22 de Setembro. Com isso, escreveu um novo capítulo na luta pelo fim da 32 violência contra as mulheres. O Projeto Lei 4.559/2004 é resultado de todo um processo de conscientização da população realizado pelos movimentos feministas, assim como pelos órgãos internacionais, o que trouxe expectativa por uma efetiva mudança no tratamento às 30 CORTÊS, loc. cit. HERMANN, 2008, p. 16. 32 CORTÊS, loc. cit. 31 18 mulheres brasileiras que, por muito tempo, não tiveram um amparo legal específico no que concerne à violência no âmbito familiar. Finalmente, em setembro de 2006, o PL se concretiza e dá origem à Lei n° 11.340/2006, que veio como intuito de prevenir e proteger a mulher vítima de violência doméstica. Destarte, observa-se a importância da participação de segmentos da sociedade em busca da criação de leis que lhes tragam amparo, para que se solucionem os problemas como os de Maria da Penha, que geralmente acontecem dentro do lar, longe dos olhos da sociedade. 19 3 ASPECTOS DA LEI N° 11.340/2006 Neste capítulo, será analisado alguns conceitos para o entendimento da Lei Maria da Penha, com objetivo de fazer a devida aplicação de seus dispositivos, principalmente no que tange à área constitucional. 3.1 Finalidade Conforme descrito na ementa da Lei n° 11.340/2006, esta veio para instituir [...] mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a Violência contra 33 a Mulher [...] Deste modo, a Lei Maria da Penha tem por finalidade atender ao compromisso constitucional acima citado, bem como aos tratados internacionais, com o objetivo de que as mulheres vítimas tenham assistência necessária. Assim expõem Cunha e Pinto, “[...] a ofendida passa a contar com precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, criando mecanismos aptos a coibir essa modalidade de agressão.” 34 Partindo deste ponto, verifica-se que o alvo da Lei é muito mais do que punir o agressor, é também trazer aspectos conceituais e educativos, de modo que os valores sociais que demonstram a violência doméstica como algo natural sejam modificados.35 Assim, Cortês e Matos ensinam que “[...] a Lei apresenta, de maneira detalhada, os conceitos e as diferentes formas de violência contra a mulher, pretendendo ser um instrumento de mudança política, jurídica e cultural.” 36 O mal que assombrava silenciosamente dentro dos lares agora é de conhecimento público, e esse foi um grande passo para uma mudança de mentalidade, para que as vítimas passem a receber maior apoio da sociedade. 33 BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm.>. Acesso em: 1 abr:2010 34 CUNHA; PINTO, 2008, p. 30. 35 CORTÊS; MATOS, loc. cit.<http://www.assufba.org.br/legis/leimariadapenha.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2010. 36 CORTÊS; MATOS, loc. cit. 20 3.2 Abrangência A Lei aqui discutida traz em seu artigo 5°. que a violência doméstica e familiar é aquela que ocorre: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou 37 tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Verifica-se que não é qualquer delito atentado contra a mulher que poderá ser considerado como violência doméstica, pois devem ser preenchidos alguns requisitos, levando em conta que a lei possui uma limitada abrangência. Como condição para aplicação da lei estudada, a violência deve ser de gênero e contra a mulher. Com isso, a princípio restam excluídas agressões entre pessoas de mesmo sexo e as praticadas contra o homem, ainda que causadas por outro homem. É certo que o parágrafo único do artigo 5º da lei diz que as relações pessoais enunciadas no artigo independem de orientação sexual, mas tal dispositivo serve para dizer que o homem agressor pode ter qualquer orientação sexual, assim como a vítima mulher.38 Outra condição é que a violência contra a mulher deve se referir às relações domésticas e afetivas daquela. Então, não importa o grau de parentesco nem se há coabitação, mas que o agressor se valha das relações domésticas e afetivas. Esse requisito exclui as empregadas domésticas quando sofram agressões de gênero no local de trabalho, pois em regra, embora haja convivência doméstica, não há o vínculo afetivo. Contudo, na hipótese de a empregada integrar o quadro afetivo dos membros da família para quem trabalha, o que ainda é comum no Brasil, e ser vítima de violência de gênero por um daqueles, deve-se-lhe estender, excepcionalmente, a proteção conferida pela Lei Maria da Penha. Também não se compreende na abrangência da lei, a agressão praticada contra a mulher por parentes que não façam parte da intimidade doméstica dessa. Assim, não basta que seja praticada entre parentes, mas que esses tenham relação 37 BRASIL, 2006, loc. cit. SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 35. 38 21 afetiva e partilhem de relações domésticas, o que somente se dá, em regra, entre cônjuges, companheiros, enteados, pais, filhos, irmãos, padrastos e em alguns namoros. Se algum parente do sexo masculino vai residir com a mulher ou participar de sua intimidade doméstica por visitas frequentes, a violência que pratique contra ela resta abrangida pela lei, que contempla até os delitos praticados por “agregados” (artigo 5º, I, Lei 11.340/2006). Frise-se quanto a esse tópico que as relações domésticas, por vezes, extrapolam a residência da mulher, pois por vezes diversas residências de pessoas de uma mesma família se encontram fixadas em um mesmo terreno, de forma a propiciar proximidade entre seus membros, característica da vivência doméstica. Por outro lado, exclui-se da aplicação da lei a violência praticada por aqueles que simplesmente disputam direitos patrimoniais, a exemplo do que se dá nas brigas entre herdeiros, exemplos recorrente nas Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica contra a Mulher. A tais casos não se aplica a proteção prevista na Lei Maria da Penha se não houver, na época da agressão, relações domésticas entre mulher agredida e parente agressor e tais casos devem ser remetidos para as varas criminais comuns.39 Não há que se aplicar a Lei Maria da Penha à violência praticada por homem contra mulher que não mais tenham relações domésticas e afetivas, ainda que tais requisitos tenham existido no passado. Extintas as relações afetivas e a convivência doméstica, a lei não merece aplicação quando ocorra violência de gênero por questões diversas, como por exemplo, discussões sobre pensão alimentícia ou guarda de filhos ou aquelas praticadas por irmão contra irmã ou pai contra a filha que não mais residam sob o mesmo teto e não partilhem mais da vida doméstica. Por outro lado, a lei abrange namoros mais íntimos, pois, embora não configurem união estável por não pretenderem a formação de uma família, caracterizam, além das relações de afeto, intimidade doméstica. Assim sendo, para que fique acolhida por esta lei, a agressão deve ser cometida no âmbito doméstico, familiar ou nas relações íntimas de afeto, conforme se estudará em seguida. 39 MELLO, Adriana Ramos de. Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.25. 22 3.2.1 Unidade doméstica Explica Nucci (2007, p. 1.043)) que unidade doméstica é “o local onde há o convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar, vale dizer, como se família fosse, embora não haja necessidade de existência de vínculo familiar, natural ou civil.” 40 Desse modo a empregada doméstica tanto poderá ser sujeito passivo quanto ativo da violência cometida no âmbito doméstico, em virtude de existir um convívio com os moradores da casa, sem que haja parentesco. Seguindo o entendimento de Nucci, Cunha e Pinto dizem que “agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, integrantes dessa aliança [...].” 41 No entanto, faz-se uma advertência no sentido de que a vítima deve estar inserida no âmbito da relação doméstica, não podendo ser terceiro, que adentra em casa sem ter a mesma relação.42 Para esclarecer a situação, Nucci traz o seguinte exemplo: “uma mulher, fazendo uma entrega de encomenda na casa de determinada família, agredida por alguém, nesse espaço [...].”43 Como, no caso, não há relação doméstica entre a vítima e o agressor, aquela não poderá ser acolhida pela Lei Maria da Penha. 3.2.2 Âmbito familiar O artigo 5°, inciso II da Lei 11.340/2006, assim dispõe: “no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.44 O parentesco deriva da consanguinidade ou da afinidade, bem como pode ter origem civil, pois assim conceitua o Código Civil de 2002, por meio dos artigos 1.593 e 1.595, que seguem abaixo: Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem. 40 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 1.043. 41 CUNHA; PINTO, 2008, p. 49. 42 NUCCI, loc. cit. 43 NUCCI, loc. cit. 44 BRASIL, 2006, loc. cit. 23 Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro 45 pelo vínculo da afinidade. Em seguida, quando a Lei n° 11.340/2006 cita os termos “laços naturais” e “vontade expressa”, está mencionando, respectivamente, à consangüinidade e ao parentesco de origem civil. Todavia, há controvérsia quanto ao dispositivo que trata dos “indivíduos que [...] se consideram aparentados”. Para Nucci é inaceitável esta hipótese, pois “qualquer um, por qualquer razão, pode se achar ‘aparentado’ com outra(s) pessoa(s), embora o Direito não lhe reconheça tal status. Para ingressar no contexto de família, é preciso algo mais do que se ‘considerar’ como tal.” 46 Entretanto, trazendo à tona, é fácil perceber a aplicação do dispositivo mencionado, haja vista a existência da filiação socioafetiva, na qual pode ser incluída, segundo Dias, “a infeliz expressão ‘filho de criação’.”47 Enquadram-se também no âmbito familiar aquelas relações advindas de união homoafetiva, por força do artigo 5°, parágrafo único, da Lei n° 11.340/2006, o qual dispõe que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”,48 encaixando-se, nesta ocasião, o entendimento de Dias, “lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros.” 49 Assim, Bisognin, Stahlhöfer e Pereira (2007) explicam que um casal homossexual feminino são cônjuges “autoconsiderados”, porque, perante si mesmos e perante a sociedade, mas à margem da lei, têm um vínculo íntimo sólido, com envolvimento sexual afetivo tal qual um casal heterossexual. Além disso, mesmo que o Direito não as reconheça como tal, 50 elas o fazem, mediante ato voluntário de manifestação de vontade. Portanto, as relações homoafetivas são reconhecidas como de vínculo familiar, motivo pelo qual estão amparadas pela Lei Maria da Penha. 45 BRASIL. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF, 10 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.>. Acesso em: 5 mai. 2010. 46 NUCCI, loc. cit. 47 DIAS, 2008, p. 44. 48 BRASIL, 2006, loc. cit. 49 DIAS, 2008, p. 44. 50 BISOGNIN; STAHLHÖFER e PEREIRA, loc. cit. 24 3.2.3 Relação íntima de afeto A Lei n° 11.340/2006 trouxe como última forma de violência contra a mulher aquela que incide “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.” 51 Deste modo, consoante com o que ensinam Cunha e Pinto, o inciso III da Lei “etiquetou como violência ‘doméstica’ relacionamento estreito entre duas pessoas, fundado em camaradagem, confiança, amor.” Contudo, o legislador indicou a desnecessidade de que tenha ocorrido coabitação entre ofendido e agressor, o que abriu uma enorme lacuna de possibilidades de alcance da Lei. Nucci argumenta pela inaplicabilidade do referido dispositivo, vez que se afasta da pretensão obtida com a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conforme segue transcrito: Exige-se no texto da convenção a existência de coabitação atual ou pretérita. Na Lei 11.340/2006 basta a convivência presente ou passada, independentemente de coabitação. Ora, se agressor e vítima não são da mesma família e nunca viveram juntos, não se pode falar em violência doméstica e familiar. Daí emerge a inaplicabilidade do disposto no inciso 52 III. Baseado na sua argumentação, Nucci comparara o texto da Convenção, que trata, em seu art. 2°, § 1°, que, além da hipótese de haver violência contra a mulher no âmbito doméstico ou da família, pode também haver violência “em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maustratos e abuso sexual.”53 A despeito da interpretação de Nucci, decisões recentes justificam a existência do artigo 5°, inciso III da Lei n° 11.340/2006. Como exemplo, equipara-se o seguinte julgado, proveniente do Superior Tribunal de Justiça (STJ): CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL. 51 BRASIL, 2006, loc. cit. NUCCI, 2007, p. 1.044. 53 NUCCI, 2007, p. 1.044. 52 25 1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação. 2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica. 3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro. 4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª 54 Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG. Participando do mesmo entendimento, Dias afirma que hoje existe uma nova concepção de família, baseada na relação de afeto e, portanto, [...] não há como restringir o alcance da previsão legal. Vínculos afetivos que refogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam de ser marcados pela violência. Assim, namorados e noivos, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da penha. Para a configuração de violência doméstica é necessário um nexo entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto 55 deve ser a causa da violência. Deste modo, constatando-se, no caso concreto, que a violência emanou da relação íntima de afeto, aplicar-se-á Lei n° 11.340/2006 para proteger a vítima. 3.3 Espécies de violência O legislador, posteriormente a realização de pesquisas com inúmeras mulheres (vítimas), elucidou cinco formas de violência doméstica, previstas no artigo 7° da Lei 11.340/2006, in verbis: Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; 54 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de competência n° 2008.0127004-8. Relatora: Ministra Jane Silva. Julgado em 05 dez. 2008. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2351420/conflito-de-competencia-cc-90767-mg-20070245333-3-stj>. Acesso em 11 mai. 2010. 55 DIAS, 2008, p. 45. 26 III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure 56 calúnia, difamação ou injúria. O termo “entre outras”, descrito no caput do referido artigo, é satisfatório para evidenciar que o rol acima não é taxativo e, portanto, pode haver demais ações que se enquadrem como violência doméstica e familiar contra a mulher. Não obstante, Dias alerta que “as ações fora do elenco legal podem gerar a adoção de medidas protetivas no âmbito civil, mas não em sede de Direito Penal, pela falta de tipicidade.”57 Portanto, qualquer forma de violência doméstica que não esteja estabelecida no artigo 7° gerará efeitos apenas no âmbito civil, uma vez que o citado artigo já traz as modalidades de violência acolhidas pelo Código Penal, bem como pela Lei de Contravenções Penais. 3.3.1 Violência física O inciso I do artigo 7° conceitua que a violência física contra a mulher deve ser “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.”58 Esclarecendo tal dispositivo, Nucci explica que violência física “é a lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar.”59 Porém, o conceito deve ser mais amplo, já que nem sempre a violência física deixa marcas. Um puxão de cabelo, por exemplo, ofenderá a integridade da vítima, contudo muitas vezes não deixará marcas ao ponto de ficar caracterizado o crime de lesão corporal. Em contrapeso, a violência física pode decorrer também de um fato muito mais grave do que uma lesão corporal, como é o caso do homicídio. 56 BRASIL, 2006, loc. cit. DIAS, 2008, p. 46. 58 BRASIL, 2006, loc. cit. 59 NUCCI, 2007, p. 1.045. 57 27 Cunha e Pinto explicam, de forma detalhada, que violência física é o uso da força, mediante socos, tapas, pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc., visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde corporal da vítima, deixando ou não marcas aparentes, naquilo que se denomina, tradicionalmente, vis corporalis. São condutas previstas por exemplo, no Código Penal, configurando os crimes de lesão corporal e homicídio e mesmo na Lei das 60 Contravenções Penais, como a vias de fato. Enfim, trazendo menção ao crime de lesão corporal, Dias (2008, p. 47) ensina que “não só a lesão dolosa, também a lesão culposa constitui violência física, pois nenhuma distinção é feita pela lei sobre a intenção do agressor.” 61 3.3.2 Violência psicológica O legislador conceituou a violência psicológica como [...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro 62 meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Conforme Dias, esta espécie de violência “foi incorporada ao conceito de violência contra mulher na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, conhecida como Convenção de Belém do Pará.” 63 Desde então, não se protege somente a integridade física da vítima, mas também o seu estado emocional, inibindo aquelas condutas que são capazes de causar medo e, até, transtornos psicológicos. Cunha e Pinto ensinam a respeito da caracterização da violência psicológica dizendo que “o comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva.”64 No entanto, Dias explica que tal violência “é a mais freqüente e talvez seja a menos denunciada. A vítima muitas vezes nem se dá conta que agressões verbais, 60 CUNHA; PINTO, 2008, p. 61. DIAS, 2008, p. 47. 62 BRASIL, 2006, loc. cit. 63 DIAS, 2008, p. 47. 64 CUNHA; PINTO, 2008, p. 61. 61 28 silêncios prolongados, tensões, manipulações [...] são violência e devem ser denunciadas.” 65 Em um caso concreto de violência psicológica, Cunha e Pinto comparam a manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, que descreve o fato: No caso concreto o denunciado tinha vivido maritalmente com a vítima durante dez meses, e já estavam separados há dois. Ele, então, começou a intimidá-la, dizendo que se não ficasse com ele, não ficaria com mais ninguém. No dia dos fatos, o denunciado pulou o portão da casa da vítima e bateu em sua porta, imitando a voz do filho dela, de 10 anos de idade, para que ela a abrisse. Como a porta não foi aberta, ele passou a bater insistentemente, até que a vítima, muito amedrontada, telefonou para sua mãe, que é sua vizinha, instante em que esta, juntamente com uma irmã da vítima, abriram uma janela e se depararam com o denunciado, que só fugiu, 66 pelo telhado, quando ouviu que a polícia seria acionada. A suposição acima se enquadra como violência psicológica devido ao temor causado a vítima, a qual fica emocionalmente abalada, a ponto de não ter, nem sequer, coragem para sair de casa. Assim, referidas situações devem ser tratadas pela Lei Maria da Penha, a fim de proporcionar maior proteção às mulheres que suportam esse tipo de violência. 3.3.3 Violência sexual O inciso III do artigo 7° traz o conceito de violência sexual, que pode ser entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou 67 que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Nessa situação, nota-se, portanto, plausível a existência da violência sexual contra a mulher no âmbito doméstico, tendo em vista que por muito tempo foi difundida a idéia de que o marido deveria ter o seu desejo sexual saciado, mesmo contra a vontade de sua esposa. Embora atualmente tal situação seja considerada retrógrada, muitos ainda toleram esses conceitos machistas, pois, segundo Dias, [...] houve uma certa resistência da doutrina e da jurisprudência em admitir a possibilidade da ocorrência de violência sexual nos vínculos familiares. A tendência sempre foi identificar o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se 68 estivesse ele a exercer um direito. 65 DIAS, 2008, p. 48. CUNHA; PINTO, 2008, p. 62. 67 BRASIL, 2006, loc. cit. 68 DIAS, 2008, p. 49. 66 29 No que diz respeito às modalidades de crimes arrolados pelo CP, que constituem violência sexual, enquadra-se o estupro, o atentado violento ao pudor, a posse sexual mediante fraude, o atentado violento ao pudor mediante fraude, o assédio sexual e a corrupção de menores.69 Desta forma, existindo relação doméstica entre empregada e empregador (a), se este (a) for sujeito ativo do crime de assédio, deverá ser enquadrado pelos ditames da Lei Maria da Penha. Como o texto do inciso III é bastante abrangente, enfoca, até mesmo, conforme o ensinamento de Dias, “a sexualidade sob o aspecto do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Trata-se de violência que traz diversas conseqüências à saúde da mulher.70 Sob este ponto de vista, a mulher também não poderá ser obrigada a ter filhos, contrair matrimônio, realizar aborto e até mesmo ser forçada à prostituição, se assim não desejar e, caso isso ocorra, restará caracterizada a violência sexual. 3.3.4 Violência patrimonial Violência patrimonial, conforme inciso IV do artigo 7° é, [...] qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a 71 satisfazer suas necessidades. Esta espécie de violência está caracterizada no Código Penal sob a forma de crimes contra o patrimônio, como, por exemplo, furto, roubo, dano, etc. A suspeita paira, entretanto, sobre a aplicação da dispensa absolutória prevista no artigo 181 do CP, bem como da imunidade relativa trazida no artigo 182 do mesmo código, para os delitos cometidos no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Dispõem os artigos 181 e 182, ambos do Código Penal: Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal; II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural. Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; 69 DIAS, 2008, p. 49 Ibid, p. 51. 71 BRASIL, 2006, loc. cit. 70 30 II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; 72 III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita. Sobre o assunto, Nucci fundamenta que “neste caso, não vemos muita utilidade no contexto penal. Lembremos que há as imunidades (absoluta ou relativa), fixadas pelos arts. 181 e 182 do Código Penal, nos casos de delitos patrimoniais não violentos no âmbito familiar.73 Diante deste aspecto, Nucci se posiciona no sentido de que as imunidades valem para os crimes patrimoniais cometidos no âmbito da Lei 11.340/2006. Dias, no entanto, entende que a Lei Maria da Penha reconhece como violência patrimonial o ato de “subtrair” objetos da mulher, o que nada mais é do que furtar. Assim, se subtrair para si coisa alheia móvel configura o delito de furto, quando a vítima é mulher com quem o agente mantém relação de ordem afetiva, não se pode mais reconhecer a possibilidade de isenção de pena. O mesmo se diga com relação à apropriação indébita e ao delito de dano. É violência patrimonial “apropriar” e “destruir”, os mesmos verbos utilizados pela lei penal para configurar tais crimes. Perpetrados contra a mulher, dentro de um contexto de ordem familiar, o crime não desaparece e nem fica sujeito à 74 representação. Para amparar seu posicionamento, Dias aludi o Estatuto do Idoso, o qual, “além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta excludente da criminalidade quando a vítima tiver mais de 60 anos.” 75 O artigo 183 do CP, fazendo menção às imunidades absoluta e relativa, assim dispõe: Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores: I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; II - ao estranho que participa do crime III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 76 (sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003) (grifo nosso) Diante desta situação, Cunha e Pinto compartilham do mesmo entendimento de Nucci: [...] quando o legislador pretendeu excluir o âmbito de incidência das imunidades, ele o fez expressamente, como ocorre na hipótese do crime ser praticado contra o patrimônio de idoso. [...] Ante o silêncio do legislador no que concerne à mulher vítima de crime patrimonial, a conclusão é mesmo no sentido de que as imunidades previstas no Código Penal não suportam 77 qualquer tipo de alteração. 72 BRASIL. Código Penal. Decreto-lei n° 2848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro, 7 dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 14 mai. 2010 73 NUCCI, 2007, p. 1.046-1.047. 74 DIAS, 2008, p. 52-53. 75 Ibid. ,p.52 76 BRASIL, 1940, loc. cit. 77 CUNHA; PINTO, 2008, p. 65. 31 Destarte, em caso de violência patrimonial, será aplicada a Lei Maria da Penha somente nas situações em que o CP não conceder imunidade absoluta, como no exemplo da empregada doméstica, ou quando houver imunidade relativa, se a vítima oferecer representação. 3.3.5 Violência moral Esta última forma de violência, denominada violência moral que está estabelecida no artigo 7°, inciso V, da Lei n° 11.340/2006, que a conceitua como “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” 78 Cunha e Pinto (2008, p.65) expõem o crime de calúnia como: “imputar à vítima a prática de determinado fato criminoso sabidamente falso”, de difamação como “imputar à vítima a prática de determinado fato desonroso” e, por último, conceituam a injúria como “atribuir à vítima qualidades negativas”. 79 Os delitos acima citados são de “ação penal privada e os de calúnia e difamação admitem exceção da verdade. Como a norma penal teve aqui mera função de referência, este critério de exclusão da criminalidade só se aplica para fins penais”.80 Conforme Dias (2008, p. 54), “estes delitos, quando são perpetrados contra a mulher no âmbito da relação familiar ou afetiva, devem ser reconhecidos como violência doméstica, impondo-se o agravamento da pena (CP, art. 61, II, f).” 81 A violência moral consiste na desmoralização da mulher vítima, confundindo-se e entrelaçando-se com a violência psicológica. Conforme trazem Cunha e Pinto, a violência moral “normalmente se dá concomitante à violência psicológica.” 82 Portanto o artigo 7º define as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, conceituando as esferas de proteção trazidas pelo artigo 5º caput. As definições não possuem escopo criminalizador, ou seja, não pretendem definir tipos penais. Sua função, no contexto misto da lei, é delinear situações que implicam em violência doméstica e familiar contra a mulher, para todos os fins da Lei Maria da Penha, agilizando ações preventivas e protetivas. 78 BRASIL, 2006, loc. cit. CUNHA; PINTO, 2008, p. 65. 80 HERMANN, 2008, p. 115. 81 DIAS, 2008, p. 54. 82 CUNHA; PINTO, 2008, p. 65. 79 32 4. SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE Há muito se busca uma sociedade igualitária e justa a todos, mas nem sempre a igualdade pode ser justa. Até que ponto é necessário manter essa igualdade e se ela é sempre benéfica, este capítulo aborda as questões constitucionais da lei Maria da Penha, em seu aspecto isonômico devido ao tratamento diferenciado em favor das mulheres. 4.1 O Princípio da igualdade Desde os primórdios o homem tem se atormentado com o problema das desigualdades inerentes ao seu ser e à estrutura social em que está inserido. Daí surgiu a noção de igualdade que os doutrinadores comumente denominam de igualdade substancial. Entende-se por esta a equiparação de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres. Essa igualdade, contudo, a despeito da carga humanitária e idealista que carrega, até hoje não se realizou em qualquer sociedade humana. São muitos os fatores que obstaculizam a sua efetivação, desde a natureza física do homem, ora débil, ora forte, até a diversidade da estrutura psicológica humana, ora voltada para a dominação, ora voltada para a submissão, sem mencionar as próprias estruturas políticas e sociais, que no mais das vezes tendem a consolidar e até mesmo a exacerbar essas distinções, em vez de atenuá-las.83 No campo político-ideológico, a manifestação mais acendrada deste tipo de igualdade foi traduzida no ideal comunista. Na trajetória das democracias ocidentais, o princípio da igualdade material não é de todo desconhecido. Ele se insere nas Constituições sob a forma de normas programáticas, tendentes a planificar desequiparações muito acentuadas na fruição dos bens, quer materiais, quer imateriais. Assim é que, com freqüência, encontramos hoje regras jurídicas voltadas a desfazer o desnivelamento intenso ocorrido em alguns momentos históricos entre o capital e o trabalho. No Brasil a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, vedando qualquer tipo de diferenciação ou discriminação arbitrária, ou seja, 83 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27. Ed. São Paulo: Saraiva 2001. p.177. 33 todos são iguais perante a lei, em consonância com os critérios do ordenamento jurídico. Esse princípio é trazido diversas vezes em inúmeros dispositivos constitucionais, realçando a importância de buscar a igualdade entre seres humanos no nosso país.84 Deste tema trata Mello (2001, p. 9): O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição 85 assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas. Já no capítulo dos direitos individuais, a igualdade é salientada no caput do art. 5º da Constituição Federal, como um dos direitos individuais básicos, e logo após em seu primeiro inciso equipara homens e mulheres em direitos e obrigações. “A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação da igualdade perante o juiz: da norma inscrita no art. 5º, caput, da Constituição, brota o princípio da igualdade processual. As partes e os procuradores devem merecer tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.86 A igualdade consiste em tratar igualmente os iguais, com os mesmos direitos e obrigações, e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Tratar igualmente os desiguais seria aumentar a desigualdade já existente. Nem todo tratamento desigual é inconstitucional, somente se este tratamento desigual aumentar a desigualdade existente.87 Para Marcelo Novelino(2008, p. 292): O princípio da igualdade tem por fim impedir distinções, discriminações e privilégios arbitrários, preconceituosos, odiosos ou injustificáveis. A expressão “sem distinção de qualquer natureza” não impede a lei de estabelecer distinções: “o papel da lei não é outro senão o de implantar diferenciações”. Ademais, a análise da violação ao princípio isonômico não deve recair sobre traço de diferenciação escolhido pela lei, o qual pode ser qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações. O que se deve analisar é se o elemento discriminador, cuja adoção exige uma justificativa racional, está em harmonia com um fim constitucionalmente consagrado, devendo o critério utilizado na diferenciação ser objetivo, 88 razoável e proporcional. 84 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 66. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª.Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2010, p. 9. 86 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria geral do processo. 20. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.353 p.53 87 CÉSAR, Rodrigo; PINHO, Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. Sinopses Jurídicas,10ª Ed. Vol. 17, São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 123 e 124. 88 a NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2 Ed. São Paulo, Editora Método, 2008, p.292. 85 34 O princípio da isonomia proíbe que o essencialmente igual seja tratado desigualmente e o essencialmente desigual de maneira igual. A grande dificuldade reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade89. Quanto aos tratamentos normativos diferenciados, estes são constitucionais quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado. Nesse sentido ensina Mello: Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico 90 construído em função da desigualdade afirmada. Analisaremos no próximo tópico, específicas hipóteses válidas para um tratamento desigual, no entanto, sem contrariar o princípio da isonomia. 4.2 Hipóteses válidas de tratamento diferenciado Conforme exposto anteriormente, a Constituição Federal trata em seu art.5º, I, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Apenas com leitura deste dispositivo, entende-se como inaceitável a utilização de qualquer discriminação com relação ao sexo com o propósito de desnivelar o relacionamento entre ambos os sexos, porém, é aceitável um tratamento diferenciado quando a finalidade tiver pretensão em atenuar os desníveis. É permitido que a legislação infraconstitucional atue em matéria que tenha a pretensão de atuar desníveis com relação ao sexo.91 Nota-se a existência de duas hipóteses válidas de tratamento diferenciado, por não ofender o princípio constitucional da igualdade. No primeiro caso, a própria Carta Magna estabelece tratamento desigual, como por exemplo, nos casos de aposentadoria com menor idade e menor tempo de contribuição previdenciária para as mulheres. Já na segunda hipótese, para que haja possibilidade de tratamento desigual, deve haver a existência de um pressuposto lógico e racional que justifique a 89 ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 10ª. Ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2006, p. 131. 90 MELLO, 2010, p. 38. 91 MORAES, 2004, p. 66. 35 desigualdade efetuada, desde que esteja em consonância com os valores tutelados pela Constituição Federal. 92 A igualdade nem sempre suprime a diferença, o que se deve é reconhecer as diferenças e respeitá-las. Em termos de proteção ao trabalho, a Constituição Federal no inciso XX do art. 7.º, novamente comanda tratamento diverso entre o homem e a mulher. Vale ressaltar que somente valem as discriminações feitas pela própria Constituição e sempre em favor das mulheres, como nos casos citados.93 Em verdade, nada impede que a lei ordinária disponha a cerca de tratamento diferenciado entre homens e mulheres, desde que respeitados os princípios norteadores da Constituição. A legitimidade da legislação infraconstitucional, para diferenciar o tratamento entre as pessoas, com o fito de nivelar as relações jurídicas, advém da própria Constituição. A lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e 94 o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada Contudo deve se averiguar a necessidade da criação de determinada categoria diferenciada para que se torne menos desigual, neste contexto entende-se que a lei deva ser o “instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos.” Todos os abrangidos pela lei hão de receber um tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes. O princípio de igualdade material, no âmbito de elaboração das espécies normativas, orienta os parlamentares no sentido de que a lei, por eles elaborada, deve distinguir as pessoas quando necessária à obtenção da justiça. Concluindo, Mello (2010, p.39) cita que: “[...] não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa a isonomia. Também não é suficiente o poder-se arguir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza a desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesse prestigiados na ordenação máxima. Fora daí ocorrerá 95 incompatibilidade com o preceito igualitário.” 92 CÉSAR, 2010, p. 123 e 124. CAPEZ, Fernando; CHIMENTI, Ricardo Cunha; ELIAS, Marcio Fernando; SANTOS; Marisa Ferreira dos; Curso de Direito Constitucional, 3ª. Ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2006, p.64. 94 MELLO, 2010, p. 39. 95 Ibid, p.43. 93 36 Nota-se a necessidade da norma atender os seus interesses, cuidando para que não haja a criação de mecanismos que possam ofender os princípios da Carta Magna. 4.3 Da constitucionalidade da lei O principal argumento desfavorável à Lei Maria da Penha, é a de que ela seria inconstitucional por suposto confronto ao princípio da isonomia, na medida em que estabelece tratamento diferenciado entre homens e mulheres alvo de violência doméstica, no sentido de que o sexo da pessoa é o que decide se o crime será julgado pelo rigor da lei ou então na modalidade de menor potencial ofensivo da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Argumenta-se que a Constituição teria vedado peremptoriamente o tratamento desigual entre homens e mulheres por força de seu artigo 5o, I, que estatui que homens e mulheres são iguais perante a lei.96 Tal argumento leva em conta somente o aspecto formal da isonomia, ignorando o conteúdo jurídico material do princípio. O caráter meramente formal da igualdade provou-se historicamente insuficiente, na medida em que deu ao legislador o poder de definir arbitrariamente o conteúdo dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais praticamente se confundiam com o princípio da legalidade, na medida em que somente existiam se a lei infraconstitucional definisse seus contornos. Confiava-se cegamente no Parlamento, não se vendo motivo para dele desconfiar em hipótese nenhuma já que eleito democraticamente para representar os interesses do povo. 97 Todavia, a existência de regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo, que existiram em Estados de Direito que consagravam a idéia de igualdade meramente formal, fez a humanidade perceber que o legislador também pode ser inimigo dos direitos humanos, donde se retomou o aspecto material da isonomia, extraído da célebre frase de Aristóteles segundo a qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Não se trata de um direito penal de gênero e sim de efetivo direito que protege a vítima. Também nela não se edifica direito penal do inimigo, uma vez que o sujeito ativo, no caso, etiquetou-se como agressor, e o fez por si próprio, no curso da 96 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso a de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p.29 97 a SARLET, Ingo Wolfgang. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, 6 Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p.32. 37 história, dos fatos e das leis; além disso, cumpre ponderar que não houve criação de tipos penais novos. Assim, está constitucionalmente afastada qualquer hipótese de aplicabilidade da legislação anterior, não mais existindo, de acordo com o método da interpretação conforme a Constituição, atribuição alguma, nessa matéria, ao Juizado Especial Criminal para essas infrações como se fossem de menor potencial ofensivo. 4.4 Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19 A Ação Declaratória de Constitucionalidade é uma das espécies de controle de constitucionalidade. Para Moraes “Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou ato normativo com a constituição”. 98 Trazida pela ECn°3/93 e modificada posteriormente pela Emenda n° 45/04. A ADC é proposta, com o intuito de declarar a constitucionalidade de uma norma infraconstitucional. E dessa maneira dar maior segurança jurídica sobre a validade das leis quanto à aplicação nas relações jurídicas. 99 Conforme Alexandre de Moraes (2004, p.600) ensina: “Neste ponto, situa-se a finalidade precípua da Ação Declaratória de Constitucionalidade: transformar a presunção relativa de constitucionalidade em presunção absoluta, em virtude de seus efeitos vinculantes”.100 O artigo 102, inciso I, a, da Constituição Federal preceitua que compete ao Supremo Tribunal Federal, órgão guardião da Constituição, a competência originária para apreciar e julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Segundo estabelece o artigo 103 da Constituição Federal, são legítimos para a propositura da referida ação, as pessoas relacionadas nos seus respectivos incisos, entre elas, o Presidente da República. Silva relata que no processamento desta ação não será necessária a intervenção do Advogado-geral da União, como ocorre com a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, pois o Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido. 101 98 MORAES, 2004, p. 600. a SILVA, Roberto B. Dias da. Manual de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora Manole, 2007. p.53. 100 Ibid, p. 658. 101 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.59 99 38 A peça que deu início a ADC n° 19, foi oferecida em dezembro de 2007, pelo Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União. Este atua na presente causa nos termos do art. 131 da Constituição Federal, ou seja, não como defensor da lei em si, mas como assessor jurídico do Poder Executivo. Em seu texto, foi analisada a validade de alguns artigos da Lei Maria da Penha com o objetivo de declarar harmônicos com a Constituição. Inicialmente o art. 1° e o principio da isonomia (art.5°, CF), o segundo foi o art. 33 e a competência atribuída os Estados para fixar a organização judiciária (art. 125, parágrafo 1° e art.96, II, “d”, CF) e por fim o art. 41 e a competência conferida aos juizados especiais para processar e julgar os crimes de menor potencial ofensivo. A petição da Ação Declaratória nº. 19 argumenta a necessidade de uma Lei especial para regulamentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, uma vez que elas são notoriamente mais atingidas do que os homens. Afirmou ainda que a Lei Maria da Penha é um instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, confere, portanto, efetividade à Constituição Federal, pois esta inspira-se em princípios éticos e compensatórios. 102 Como acima citado, algumas inconstitucionalidades apontadas contra a Lei Maria da Penha, não têm a intenção de afastá-la do mundo jurídico, mas sim, discutirem questões eminentemente processuais. Alega-se que seria inconstitucional a lei federal definir a organização judiciária, ao determinar a criação de juizados específicos para a proteção da mulher, tendo em vista que isso seria de competência exclusivamente estadual. Contudo, compete à União legislar sobre Direito Processual (art. 22, inc. I da CF/88), razão pela qual a Lei Maria da Penha, elaborada pela União, pode dispor sobre normas de Direito Processual. Ademais, em atenção ao próprio princípio federativo, cumpre à União fixar as diretrizes gerais e aos Estados, os locais, onde a determinação da criação de Juizados específicos para a violência doméstica implica em diretriz geral passível de complementação pelos Estados segundo as peculiaridades regionais, consoante com o entendimento segue transcritas palavras proferidas na ADC nº. 19: A alegação é improcedente, visto que compete privativamente à União legislar sobre Direito Processual (CF, art. 22, I), de forma a conferir 102 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19 (petição inicial). Requerente: Presidente da República. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 21 de dezembro de 2007. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584650>. Acesso em: 1. Jun. 2010 39 tratamento uniforme a tais questões, em especial as que extrapolam os interesses regionais dos Estados, como é o combate internacional à violência doméstica ou familiar contra a mulher. Dessa forma, em virtude dos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, não se pode deixar o regramento da matéria ao alvedrio das ordens locais, visto que a violação aos direitos das mulheres pode implicar responsabilidade, no âmbito internacional, do país. No entanto, caberá ao Estado o detalhamento das peculiaridades locais, a exemplo do número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, desde que observe as diretrizes gerais fixadas pela União. Com efeito, a Lei 11.240/2006 não trata do detalhamento típico da organização judiciária do Estado mas apenas regula matéria processual pertinente à necessária especialização do Juízo, bem assim determina a acumulação das competências cível e criminal em Vara Criminal até a criação dos Juizados, de forma a conferir celeridade à solução das questões sabidamente interdependentes e urgentes, como é o combate à violência 103 doméstica, que, geralmente, envolve aspectos penais e cíveis. No mesmo sentido expõe Maria Berenice Dias (2005, p.45): Porém, não há inconstitucionalidade no fato de lei federal definir competência. Ao assim proceder, não transborda seus limites. Nem é a primeira vez que o legislador assim age. Situação semelhante já ocorreu quando foi afastada a incidência da Lei dos Juizados Especiais no âmbito dos crimes militares. Também a Lei 9;278/1996, ao regulamentar a união estável, definiu a competência do juízo da Vara de Família. A par de ter determinado a criação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFMs, enquanto não forem eles instalados, foi atribuída às Varas Criminais competência para julgar as causas cíveis e criminais. Com isso, subtraiu-se a competência dos Juizados Especiais, ao ser expressamente afastada a aplicação da Lei 9.099/95 (art. 41). Como foi excluída a incidência do juízo especial, a definição da competência deixa de ser da esfera de organização privativa do Poder Judiciário (CF, 125, §1o). Desse modo, não há como questionar a constitucionalidade da alteração 104 levada a efeito, atentando ao vínculo afetivo dos envolvidos. Por outro lado, também não há inconstitucionalidade no afastamento dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995 no que tange à violência doméstica. É incoerente dizer que a União, cujo tem a competência para legislar sobre Direito Penal e Processual (art. 22, I, CF/88) não poderia criar penas diversas para situações diversas, visto que investida de competência constitucional para tanto, não havendo, ademais, qualquer proibição para que fixe diversos definidores de menor potencial ofensivo, segundo os conceitos de regra e exceção. Segundo a ADC nº. 19: 103 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19 (petição inicial). Requerente: Presidente da República. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 21 de dezembro de 2007. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2584650>. Acesso em: 1. Jun. 2010 104 a DIAS, Maria Berenice. MANUAL DO DIREITO DAS FAMÍLIAS, 1 Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005. p.45. 40 No ponto, inexiste inconstitucionalidade, uma vez que o Poder Constituinte não pré-selecionou o critério a ser valorado para definição de crimes de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais, ao contrário, cometeu ao legislador infraconstitucional a tarefa de concretizar o comando normativo (mediação legislativa).Assim, cabe ao legislador infraconstitucional, observado o princípio da razoabilidade, selecionar um ou mais critérios para definição do que se considera ‘menor potencial 105 ofensivo’. Consoante Maria Berenice Dias traz ainda: (...) A exclusão destas benesses levada a efeito pela Lei Maria da Penha quanto aos delitos domésticos não afeta sua higidez. Como explica Marcelo Lessa Bastos, existe uma regra e a exceção: são infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais, sujeitas aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, todas as infrações penais cuja pena máxima cominada não exceda a dois anos, exceto aquelas que, independente da pena cominada, decorram de violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41, combinado 106 com os arts. 5.o e 7.o da Lei 11.340/2006. O afastamento dos mecanismos despenalizadores da Lei 9.099/1995 do âmbito da violência doméstica justifica-se pelo fato de que os mesmos se provaram ineficazes para combater a violência doméstica. Nesse sentido, aponta Marcelo Lessa Bastos (2007, p.56): Veio, então, a lei em comento – a Lei ‘Maria da Penha’ – cuja origem, não se tem dúvidas em afirmar isto, está no fracasso dos Juizados Especiais Criminais, no fiasco que se tornou a operação dos institutos da Lei 9.099/1995, não por culpa do Legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça, que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tãosomente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais 107 Criminais. Em resumo, a Lei Maria da Penha se afigura constitucional também sobre os aspectos abordados neste capítulo. Contudo, ainda que se considere equivocado o entendimento, haveria tais inconstitucionalidades, mesmo inexistentes, contudo as mesmas não têm o condão de expurgar a Lei Maria da Penha do mundo jurídico, seu reconhecimento levaria, tão-somente, ao julgamento das ações de violência doméstica contra a mulher nas varas criminais comuns. 105 BRASIL, loc. cit. DIAS, 2005, p.46. 107 BASTOS, Marcelo Lessa (Violência doméstica e familiar contra a mulher, p. 2), apud DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à a violência doméstica contra a mulher, 1 Edição, 2007, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 56. 106 41 Ação Declaratória nº 19 também foi intentada com pedido de liminar. Ocorre que, segundo relatório proferido pelo Ministro Marco Aurélio, ora relator, no dia 21 de dezembro de 2007, foi negado a sua concessão. Conforme expõem Moraes (2004, p.662), baseando-se em posicionamento do STF: Uma vez concedida a liminar em ação declaratória de constitucionalidade, não haverá mais possibilidade do afastamento, por inconstitucionalidade, da incidência da lei ou ato normativo federal por parte dos demais órgãos do Poder Judiciária e Executivo, que deverão submeter-se ao integral cumprimento da norma analisada liminarmente pelo Supremo Tribunal 108 Federal, em face dos seus efeitos vinculantes. Desse modo, enquanto não for decidida definitivamente a Ação Declaratória n°19 pelo Pretório Excelso, a Lei Maria da Penha poderá ter sua aplicação afastada pelos juízes ou Tribunais que a julgarem inconstitucional. É por esse motivo que se observa a necessidade da referida Ação ser julgada com mais celeridade. Enquanto isso vigora, no plano jurídico atual, quanto à aplicação da nova Lei, certa insegurança jurídica.109 É incontestável a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, tendo em vista que o aspecto material da isonomia justifica o tratamento diferenciado às mulheres em razão da histórica violência que têm elas sofrido no âmbito doméstico, violência esta que não tem existido, ao menos em igual proporção, em face dos homens em geral, além de constituir um importante fim estatal a especial proteção à mulher no que tange à violência doméstica do que a proteção conferida ao homem nesse ponto, mediante a censura estatal ao menosprezo à mulher pelo simples fato de ser do sexo feminino, ante a função educativa do Direito em geral, donde também do Direito Penal, sendo que mesmo à luz da teoria do Direito Penal Mínimo justifica-se a Lei Maria da Penha na medida em que se trata de tema da mais alta relevância, que precisa ser punido criminalmente pelo Estado ante a enormidade de casos de violência doméstica contra a mulher por puro machismo de seus companheiros.110 Ainda que se considere afrontada a isonomia, o que é um equívoco, é de se notar que se trata de inconstitucionalidade por omissão parcial, donde jamais poderá a Lei Maria da Penha ser expurgada do mundo jurídico em virtude de as mulheres fazerem jus à proteção por ela estabelecida, sendo inconteste que em casos tais de 108 MORAES, 2004, p. 662. ANDRADE; NETO, loc. cit. 110 a SILVA, Roberto B. Dias da. Manual de Direito Constitucional, 1 Edição, São Paulo: Editora Manole, 2007. p.175. 109 42 inconstitucionalidade por omissão o grupo beneficiado pela lei não pode perder tal benefício em virtude de ser merecedor do mesmo como o são as mulheres. Como já mencionado compete à União legislar sobre Direito Processual (art. 22, inc. I da CF/88), razão pela qual a Lei Maria da Penha, elaborada pela União, pode dispor sobre normas de Direito Processual, sendo que, em atenção ao próprio princípio federativo, cumpre à União fixar as diretrizes gerais e aos Estados, as locais, donde a determinação da criação de Juizados específicos para a violência doméstica implica em diretriz geral passível de complementação pelos Estados segundo as peculiaridades regionais, donde inexiste inconstitucionalidade nas normas gerais sobre Direito Processual existentes na Lei Maria da Penha. 43 5 CONCLUSÃO A Lei 11.340/2006 surgiu após uma longa história de luta e sofrimento de muitas mulheres, que durante décadas batalharam para terem seus direitos, assim como extinguir a discriminação de gênero e consequentemente a diminuição da violência doméstica, algo lamentavelmente existente em nossa sociedade. A Lei Maria da Penha trouxe inúmeros privilégios às mulheres vítimas de violência doméstica, bem como tratou de assuntos específicos jamais tratados anteriormente em nossa legislação, dando maior segurança e amparo jurídico. Porém tal lei trouxe consigo inúmeras polêmicas em torno de sua constitucionalidade, principalmente por tratar de forma diferenciada homens e mulheres. A principal argumentação desfavorável à constitucionalidade da Lei, é a de que haveria suposto confronto ao princípio da isonomia, na medida em que estabelece tratamento diferenciado entre homens e mulheres alvo de violência doméstica, no sentido de que o sexo da pessoa é o que decide se o crime será julgado pelo rigor da lei. Diante dessa polêmica gerada em torno de sua constitucionalidade, o Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União, entrou com Ação Declaratória de Constitucionalidade para por fim a essa questão devido à real necessidade de existência uma Lei especial para regulamentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, uma vez que elas são notoriamente mais atingidas do que os homens. Cumpre ressaltar que a nossa Carta Magna, trouxe em seu texto os direitos e garantias de cada um, e tentou da melhor maneira possível tirar os desníveis sociais existentes, porém nem sempre é possível obter a isonomia em todas as relações jurídicas, assim é imprescindível quando necessário adequar proporcionalmente a desigualdade existente à norma, como é o caso da Lei 11.340/2006. Portanto, entende-se que a legislação infraconstitucional possa dar um tratamento diferenciado quando a finalidade tiver pretensão em atenuar os desníveis, sem ofender o princípio da isonomia, assim como em diversos dispositivos que tratam de maneira diferenciada pessoas da sociedade. Trata diferenciadamente, por exemplo, o limite de idade para aposentadoria com menor idade e menor tempo de contribuição previdenciária para as mulheres, exemplos estabelecidos na Carta Magna. 44 Desse modo, fica clara a necessidade da norma se adequar caso a caso, é de suma importância haver possibilidade de tratamento diferenciado em determinados casos, porque realmente há diferenças existentes de fato. No tema estudado, as mulheres são as principais vítimas, não restando dúvida da necessidade de um maior amparo legal no âmbito da violência doméstica, que apesar de diferenciar a aplicação apenas pelo gênero, é indiscutivelmente constitucional. Não resta dúvida sobre a legalidade da lei, havia suposto afronto à constituição uma vez que levava em conta somente o aspecto formal da isonomia, ignorando o conteúdo jurídico material do princípio. O caráter meramente formal da igualdade provou-se historicamente insuficiente, na medida em que deu ao legislador o poder de definir arbitrariamente o conteúdo dos direitos fundamentais. 45 REFERÊNCIAS ANDRADE, Maísa Sá de; NETO, Manoel Valente Figueiredo. Considerações sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha (Lei N° 11.340/2006). Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5219>. Acesso em: 30 abr. 2010. ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 10ª. Ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2006. BASTOS, Marcelo Lessa (Violência doméstica e familiar contra a mulher, p. 2), apud DIAS, Maria Berenice. 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THOMAS apud BARSTED, Leila Linhares. A violência contra as mulheres no Brasil e a convenção de belém do pará dez anos depois. Disponível em: <http://www.mulheresnobrasil.org.br/pdf/PMB_Cap8.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2010. 48 ANEXOS 49 ANEXO A – Projeto Lei nº 4.559/2004 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta: TÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Art. 1° - Esta Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal e dos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, e estabelece as medidas para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência. Art. 2° - Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3° - É dever da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público, em especial, assegurar à mulher condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, desenvolvendo ações que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-la de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 4° - Na interpretação desta Lei serão considerados os fins sociais a que ela se destina e a condição peculiar da mulher em situação de violência doméstica e familiar. 50 TÍTULO II DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 5° - Para os efeitos desta Lei, configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada na relação de gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, ocorrida: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como relações pessoais afetivas; III - em qualquer outra relação pessoal de afeto na qual o acusado compartilhe, tenha compartilhado ou não o mesmo domicílio ou residência da ofendida. Parágrafo único. Consideram-se relações de gênero as relações desiguais e assimétricas de valor e poder atribuídas às pessoas segundo o sexo. Art. 6° - A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. CAPÍTULO II DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Art. 7° - São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras previstas em lei: 51 I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade corporal ou a saúde da mulher; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da auto-estima, que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher, vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou, por qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força, assim como ações que forcem a mulher a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, ao impedimento ao uso de qualquer método contraceptivo, ou ações que a forcem ao matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição, mediante coação, chantagem, suborno, manipulação ou qualquer outro meio que limite ou anule seu arbítrio; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta ilegítima que configure perda, retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da mulher e os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria à honra ou à reputação da mulher. TÍTULO III DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CAPÍTULO I DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO 52 Art. 8° - A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tendo como diretrizes: I - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habitação; II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, concernentes às causas, conseqüências e freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação dos resultados das medidas adotadas; III - a observância, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar; IV - a implementação de centros de atendimento multidisciplinar para as pessoas envolvidas em situação de violência doméstica e familiar, visando agilizar e garantir o atendimento integral às mulheres; V - a implementação de atendimento policial especializado às mulheres; VI - a realização de campanhas educativas, voltadas à prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher e à difusão desta lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VII - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para a promoção de parcerias entre si ou com entidades não-governamentais, objetivando a implementação de programas voltados à erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como a capacitação permanente dos integrantes dos órgãos referidos no inciso I deste artigo. 53 VIII - a capacitação permanentemente dos integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Polícia Civil, bem assim dos profissionais da saúde, da educação, da assistência social, dentre outros; IX - a promoção de programas educacionais formais e não-formais que disseminem valores éticos, do irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos das mulheres. X - privilegiar nos currículos escolares, em todos os níveis, de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e à violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO II DA ASSISTÊNCIA SOCIAL À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Art. 9° A assistência social às mulheres em situação de violência doméstica e familiar deverá ser prestada de forma articulada, emergencial ou não, conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, dentre outras normas pertinentes. CAPÍTULO III DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL Art. 10. Nas hipóteses de violência familiar ou doméstica praticadas ou na iminência de serem praticadas contra mulheres deverá ser imediatamente notificada a autoridade ou o agente policial para que possa comparecer ao local. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput na hipótese de descumprimento de medida cautelar aplicada pelo juízo. Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência a autoridade ou o agente policial buscará adotar as seguintes providências: 54 I - providenciar transporte para a ofendida até o hospital, o posto de saúde ou o Instituto Médico Legal; II - providenciar transporte da ofendida e seus dependentes em risco de vida para local seguro ou abrigo; III - assegurar a possibilidade da ofendida retirar seus pertences pessoais do local da ocorrência ou do domicílio familiar; IV - comunicar à ofendida o horário e o local de comparecimento à delegacia, caso não seja possível o seu atendimento imediato; V - informar à ofendida dos direitos a ela conferidos nesta Lei e dos serviços públicos e privados disponíveis; e VI - garantir proteção policial, quando necessário. Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro do fato, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, além daqueles já previstos no Código de Processo Penal e na Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995: I - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; II - ouvir a ofendida; III - ouvir o indiciado e as testemunhas; IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito e requisitar os exames periciais necessários; V - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do fato e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuam para a apreciação do seu temperamento e caráter; 55 VI - ordenar a identificação do indiciado e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; VII - remeter à autoridade judiciária o expediente lavrado. § 1° O previsto no inciso IV deste artigo implicará no encaminhamento prioritário da ofendida, quando necessário à preservação das provas. TÍTULO IV DOS PROCEDIMENTOS CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 13. Ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de Processo Penal e Civil e a Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que não conflitarem com o procedimento estabelecido nesta Lei. CAPÍTULO II DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR Art. 14. A equipe de atendimento multidisciplinar deverá ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e da saúde. Art. 15. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito à autoridade judiciária, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, assegurada a livre manifestação do ponto de vista 56 técnico. Art. 16. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, poderá ser determinada pela autoridade judiciária a manifestação de profissional especializado em determinada área, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar. Art. 17. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar. CAPÍTULO III DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Art. 18. Caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, o Ministério Público poderá intervir nas causas cíveis e criminais em que não for parte. Art. 19. É facultado ao Ministério Público, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário: I - requisitar a força policial e a colaboração dos serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, dentre outros; II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência, de que trata esta Lei, e adotar de imediato as medidas administrativas ou judiciais no tocante a quaisquer irregularidades constatadas. CAPÍTULO IV DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA Art. 20. Em todos os atos processuais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado ou Defensor Público. Art. 21. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos 57 termos da lei, mediante um atendimento específico e humanizado no Juízo competente, nas Delegacias de Polícia e núcleos de atendimento das Defensorias Públicas. CAPÍTULO V DAS MEDIDAS CAUTELARES Art. 22. As medidas cautelares serão concedidas pelo juiz, por representação da autoridade policial, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, da ofendida ou de quem tenha qualidade para representá-la. § 1° As medidas cautelares poderão ser concedidas independentemente de audiência das partes. § 2° O requerimento da ofendida, que poderá ser feito oralmente, independe da presença de advogado. § 3° As medidas cautelares serão aplicadas, isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. Art. 23. Poderá o juiz, a requerimento das partes ou do Ministério Público, conceder novas cautelares ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, seus familiares e seu patrimônio. Art. 24. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. 58 Art. 25. A ofendida deverá ser intimada dos atos processuais relativos ao acusado, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. CAPÍTULO VI DAS MEDIDAS CAUTELARES EM RELAÇÃO AO ACUSADO Art. 26. Constatada a ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao acusado, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas cautelares, dentre outras previstas em lei: I - suspensão ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, podendo encaminhar o acusado a programa de acompanhamento psicossocial, onde houver, ou a tratamento similar; III - proibição de determinadas condutas, dentre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e de suas testemunhas; b) utilização de qualquer meio de comunicação para contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas; IV - proibição de freqüentar lugares que o juiz entenda conveniente para preservar a integridade física e mental da ofendida; V - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, sujeita à avaliação do acusado por equipe de atendimento multidisciplinar, ou serviço similar; e VI - prestação de alimentos provisionais. 59 § 1° As medidas referidas no caput não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem. § 2° Na hipótese do inciso I, sendo o acusado policial ou integrante das Forças Armadas, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição, a suspensão ou a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do acusado, responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de desobediência, nos termos do artigo 330 do Código Penal. § 3° Para garantir a efetividade das medidas cautelares, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. CAPÍTULO VII DAS MEDIDAS CAUTELARES DE PROTEÇÃO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Art. 27. Poderá o juiz, quando necessário: I - encaminhar a mulher em situação de violência e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção e aos serviços de atenção integral à saúde das mulheres; II - determinar a recondução da mulher e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após o afastamento do acusado; e III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo de seus direitos relativos a bens, à guarda dos filhos e aos alimentos. Art. 28. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal e daqueles de propriedade particular da mulher, poderão ser determinadas liminarmente pelo juiz competente as seguintes medidas, dentre outras previstas em lei: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo acusado à ofendida; 60 II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, condicionada excepcionalmente a decisão judicial contrária; III - revogação das procurações conferidas pela mulher ao acusado; e IV - indenização por perdas e danos dos gastos decorrentes dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previsto nos incisos II e III deste artigo. CAPÍTULO VIII DO PROCEDIMENTO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS Seção I Disposições Gerais Art. 29. Ao processo, julgamento e execução dos crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais em que esteja caracterizada violência doméstica e familiar contra a mulher, aplica-se lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que não conflitar com o estabelecido nesta Lei. Art. 30. Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher a ação penal será pública condicionada à representação. Seção II Da Audiência de Apresentação Art. 31. Ao receber o expediente lavrado pela autoridade policial, imputando prática de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, deverá o juiz de imediato designar audiência de apresentação. 61 § 1° É vedado proceder à intimação ou à notificação da pessoa autora da agressão por intermédio da ofendida. § 2° À audiência de apresentação, presente o Ministério Público, deverão comparecer a ofendida e o acusado, acompanhados por seus respectivos advogados. § 3° Comparecendo a ofendida desacompanhada de advogado, ser-lhe-á garantida a assistência judiciária gratuita, nos termos da lei. Art. 32. A mediação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, será conduzida por juiz ou mediador. § 1° O mediador, devidamente habilitado em curso superior, deverá ter capacitação em violência doméstica e familiar contra a mulher. § 2° Sob pena de responsabilidade, nos termos da lei, em hipótese alguma a mulher ofendida de violência doméstica e familiar poderá ser forçada, direta ou indiretamente, à conciliação. § 3° Não havendo mediação, será dada à ofendida a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo. § 4° O não oferecimento da representação na audiência não implica na decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei. § 5° Nos casos de violência doméstica e familiar, o prazo decadencial somente passa a correr da data da audiência de apresentação para a qual estiver pessoalmente intimada a ofendida, devendo tal advertência constar expressamente do mandado de intimação. § 6°A retratação ou a renúncia da representação somente serão consideradas válidas após ratificação em audiência. 62 Art. 33. Exercido o direito de representação, o juiz colherá o depoimento pessoal da ofendida, separadamente, e em seguida o do acusado, admitida a acareação. Art. 34. O juiz encaminhará o caso à equipe de atendimento multidisciplinar ou aos núcleos de atendimento similares, podendo, ainda, determinar a realização dos exames periciais que julgar necessários. Seção III Da Audiência de Instrução e Julgamento Art. 35. Havendo representação e não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos, a ser especificada na proposta. § 1° Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o acusado condenado, pela prática de crime, a pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o acusado beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, se necessária e suficiente a adoção da medida; IV - o descumprimento, pelo acusado, das medidas cautelares que lhe tenham sido aplicadas. § 2° Ao propor a transação penal, o Ministério Público considerará os subsídios apresentados pela Equipe de Atendimento Multidisciplinar e os antecedentes do acusado. § 3° Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, será esta submetida à apreciação do juiz. 63 Art. 36. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, das penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa. Art. 37. Não sendo possível a transação penal, o Ministério Público oferecerá de imediato a denúncia oral, prosseguindo-se em audiência de instrução e julgamento, devendo constar do mandado de citação do autor do fato tal advertência, bem como a necessidade de arrolar testemunhas cinco dias antes da audiência, caso pretenda ouvi-las. TÍTULO V DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 38. A União, no Distrito Federal e Territórios e os Estados poderão criar Varas e Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, cabendo ao Poder Judiciário dispor sobre sua estrutura. Parágrafo único. Enquanto não estruturadas as Varas e os Juizados mencionados no caput, os crimes relativos à violência doméstica e familiar contra as mulheres continuarão a ser julgados nas Varas Cíveis e Criminais e nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com observância do previsto nesta Lei e na legislação processual pertinente. Art. 39. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, poderão criar centros de reabilitação para os acusados e de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a serem previstos na legislação local. Art. 40. Compete à União, ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios estabelecidos nesta Lei. Art. 41. A defesa dos interesses e direitos previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente com a ofendida, pelo Ministério Público ou por associação de 64 defesa da mulher, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da Lei Civil. Art. 42. Serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais as estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 43. Os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, previstos nesta Lei, ainda que não tenham sido julgados, constarão de cadastro específico, de conhecimento reservado da autoridade judiciária e do Ministério Público. § 1° Caberá às Varas e aos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar a elaboração do cadastro referido no caput. § 2° Enquanto não estruturados as Varas e os Juizados Especiais previstos no art. 38, o cadastro de violência doméstica será elaborado nas Varas Criminais e Juizados Especiais Criminais. Art. 44. Serão estabelecidas dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei. Art. 45. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios por ela adotados. Art. 46. O art. 313 do Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) passa a vigorar acrescido do seguinte inciso: “IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja a pena aplicada.” (NR) Art. 47. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 16 de novembro de 2004.