AVANÇOS OU RETROCESSOS? CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO OPERADA PELA LEI MARIA DA PENHA EM CEILÂNDIA/DF André Luiz Pereira de Oliveira1 Resumo: O trabalho propõe uma análise, a partir das experiências de atendimentos a mulheres em situação de violência em Ceilândia-DF, acerca da efetividade das inovações promovidas pela Lei Maria da Penha referentes à criminalização das condutas de violência baseada nas diferenças de gênero, em contraposição ao regime até então vigente das infrações de menor potencial ofensivo que foi instituído pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95). Busca-se analisar a problemática a partir das contribuições da teoria jurídico-feminista bem como das recentes conclusões trazidas pelo relatório final de Comissão Parlamentar Mista de Violência Doméstica. Conclui-se que, muito embora a Lei Maria da Penha tenha buscado afastar a incidência dos institutos despenalizadores instituídos pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, estes mecanismos continuam a ser utilizados pelos Juizados de Violência Doméstica em Ceilândia/DF em prejuízo dos direitos humanos e fundamentais das mulheres em situação de violência. Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Tratamento penal da violência doméstica. Efetivação da Lei Maria da Penha. Introdução A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006), em seu artigo 41, expressamente afastou o caráter de menor potencial ofensivo das condutas referentes à violência doméstica e familiar baseada em diferenças de gênero. Este comando deve ser interpretado de forma sistemática com os demais dispositivos desta lei, e tem por vistas dar maior efetividade à proteção dos direitos humanos das mulheres consistente2, segundo Mendes (2012, p. 236) a uma vida sem violência de gênero. A partir dos atendimentos a mulheres em Ceilândia bem como das conclusões obtidas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da violência doméstica, há indícios de que este caráter de menor potencial ofensivo ainda permeia o tratamento conferido pelo sistema de justiça a estas condutas. A abordagem do problema acima identificado tem como premissa, sob a perspectiva jurídico-feminista, a evolução do quadro legislativo no que tange à criminalização da violência doméstica no Brasil. A hipótese do presente artigo é de que, a partir da análise de casos atendidos 1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília. E-mail para contato: [email protected]. 2 De acordo com Moraes (1998, p. 39), “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são expressões que possuem dimensões cada vez mais inter-relacionadas, sendo que, em síntese, têm por “finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais”. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X no Projeto de Extensão Maria da Penha: Atenção e Proteção, da UnB, em Ceilândia-DF3, bem como utilizando as conclusões trazidas pelo Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito 4 relativa à violência doméstica, há ainda uma dificuldade do sistema de justiça em compreender este problema sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais das mulheres. Considerando a hipótese acima delineada, estas dificuldades são expressas na resistência do Poder Judiciário em afastar o caráter de menor potencial ofensivo que tradicionalmente caracterizou estas condutas em virtude da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). No Brasil, embora a violência doméstica baseada em diferenças de gênero já tenha sido identificada desde a década de 805 (Santos, Izumino, 2005, p. 2), a Lei n. 9.099/95 deu maior visibilidade a este problema com a instituição dos Juizados Especiais Criminais. Da invisibilidade ao sistema de justiça, muitas destas condutas passaram a ser tratadas como “infrações de menor potencial ofensivo”, tendo em vista a pena privativa de liberdade cominada pelo Código Penal de 1940 ser menor ou igual a dois anos (art. 61 da lei dos juizados, com redação dada pela lei 11.313/06). A teoria jurídico-feminista acumula críticas a esta opção legislativa, sendo que os principais eixos desta polêmica podem ser resumidos nos seguintes pontos: “classificação da violência como crime de menor potencial ofensivo, o pequeno número de ocorrências que chegam a uma decisão judicial e o tipo de decisão que tem sido ofertada” (Izumino, 2004, p. 9). Com a condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2001, e, sobretudo, a partir de 2006, com a edição da Lei Maria da Penha, a violência de gênero passou a ser tratada, na ordem jurídica interna, como uma questão de direitos humanos e fundamentais, em consonância com os já existentes tratados e acordos internacionais nesta temática dos quais o Brasil é signatário6. Assim o sendo, a opção legal foi pelo expresso afastamento da Lei 3 Trata-se de Projeto de Extensão e Ação Contínua vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília cujo objetivo tem sido, desde 2008, prestar atendimento jurídico e psicológico (em parceria com o Departamento de Psicologia da UnB) a mulheres em situação de violência doméstica e familiar. 4 A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito foi instaurada em 2011 com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência. 5 Para Izumino (2004, p. 2), “dizer que foi a partir dos anos 80 que se passou a falar em violência contra a mulher no Brasil, não significa que ela não existisse antes. Sua prática faz parte da história da sociedade brasileira e estudos históricos que abordaram a família e as relações familiares a partir do final do século XVII apontam a presença de abusos físicos contra as mulheres nas relações conjugais. 6 Os principais tratados referentes a esta temática - Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) – são datadas das décadas de 80 e 90 do século passado. Somente após mais de uma década que tais institutos foram de fato incorporados na ordem jurídica interna tendo em vista a promulgação de Lei Maria da Penha. 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X 9.099/95, e, assim, dos institutos penais despenalizadores que marcam a sistemática de funcionamento dos Juizados Especiais Criminais. A partir da experiência dos casos atendidos em Ceilândia/DF, nota-se uma resistência do sistema de justiça em aplicar tais inovações trazidas pelo novo diploma normativo. Estas conclusões são confirmadas, em nível nacional, pelo Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito relativa à violência doméstica. Assim o fazendo, é possível então identificar uma perda no reconhecimento do direito humano e fundamental das mulheres a uma vida sem violência baseada nas diferenças de gênero. A conclusão é de que ainda são necessários (muitos) esforços para a real efetivação da Lei Maria da Penha, com vistas a oferecer à sociedade uma adequada resposta a este histórico problema que marcou, dentre outras estatísticas, 41% (quarenta e um por cento) dos homicídios de mulheres no Brasil em 2010 (Waiselfiz, 2012, p. 10). A violência doméstica enquanto infração de menor potencial ofensivo sob a perspectiva jurídico feminista A literatura jurídico-feminista sobre violência doméstica contra as mulheres no Brasil tem suas origens no início da década de 80, sendo que, naquela época, de acordo com Santos, Izumino (2005, p.1) “um dos principais objetivos do movimento [feminista] é dar visibilidade à violência contra as mulheres e combate-la mediante intervenções sociais, psicológicas e jurídicas”. Ainda nas discussões que antecederam à elaboração do novo Texto Constitucional, esta questão já fazia parte da pauta de reivindicações dos movimentos de mulheres e feministas, havendo referência ao problema no art. 226, § 8º da Constituição Federal de 1988, ao dispor que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações7”. Por outro lado, o ordenamento jurídico brasileiro infraconstitucional tratou do problema sob uma perspectiva reducionista. Até a edição da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), estas condutas eram punidas criminalmente sob o âmbito do Código Penal que, muito embora tenha sido reformado em 1984, traz a previsão em específica dos crimes baseando-se na realidade de 1940, ano em que foi editado. 7 Para Mendes (2012, p. 239), “nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal de 1988 compete ao Estado assegurar a assistência à família mediante mecanismos que coíbam a violência no âmbito de suas relações. E a Lei 11.340/06 é a norma que reconhece a violência doméstica e familiar contra a mulher como impeditiva ao exercício efetivo, dentre outros, dos direitos à vida, à segurança, ao acesso à justiça, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Prevendo, a partir deste reconhecimento, a criação de medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, assim como a instalação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”. 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X A lei 9.099/95 nasce de um movimento de auto-reforma do Poder Judiciário, com objetivo principal “ampliar o acesso da população à justiça mediante a aplicação de princípios como a celeridade, a economia processual, a informalização da justiça e a aplicação de penas alternativas às restrições de liberdade” (Izumino, 2004, p. 6). A partir de então, são condutas de menor potencial ofensiva aquelas para as quais o Código Penal comina pena de reclusão inferior a 2 (dois) anos, sendo que, segundo Izumino (2004, p.6) “embora a Lei n. 9.099/95 não seja uma legislação específica para a violência contra a mulher, sua definição legal acabou por abranger a quase totalidade das ocorrências que eram registadas das DDMs [delegacia de defesa das mulheres] 8”. Além da desconsideração da potencialidade lesiva, o tratamento legal sob a sistemática dos Juizados Especiais Criminais foi alvo de crítica pelas feministas por não ter sido incorporada o viés de diferenças de gênero que é ínsito à violência doméstica (Campos, 2003, p. 165). Ao contrário de uma briga de trânsito (exemplo típico de infração de menor de potencial ofensivo que é tratado nos Juizados Especiais Criminais), estas condutas revelam que as diferenças entre homens e mulheres, muito além de meramente biológicas, revelam que as relações sociais no âmbito da família são de caráter político e envolvem desiguais relações de poder entre seus membros que passaram a ser questionadas pela categoria de gênero. (Scott, 1990). O tratamento da violência doméstica pela Lei n. 9.099/95 trouxe como consequências, essencialmente, o descrédito à gravidade deste problema, a desconsideração quanto à importância da palavra da mulher, além do expressivo arquivamento dos processos em decorrência renúncia do direito da vítima de representar criminalmente e, portanto, sem dar-lhe uma solução satisfatória (Campos, 2003, p. 165). Para esta autora, dada a maior ênfase na necessidade do emprego de instrumentos jurídicos e processuais que visem imprimir maior celeridade ao sistema de justiça, “a preocupação maior reside em diminuir, a cada dia, o número crescente de processos nos juizados”. Além do conservadorismo do Poder Judiciário (Piovesan, 2010)9, acrescenta-se ainda que frequentemente a mulher ocupa uma posição de vítima durante o processo e, ainda, a opção do 8 Segundo Campos et al (2006, p. 412), “criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como paradigma o comportamento individual violento masculino (Caio contra Tício), a Lei 9.099/95 acabou por recepcionar não a ação violenta e esporádica de Tício contra Caio, mas a violência cotidiana, permanente e habitual de Caio contra Maria, de Tício contra Joana. Assim, os crimes de ameaças e de lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritariamente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70% do volume processual dos Juizados” 9 Na mesma linha, Barsted (2011, p. 35) entende que “o Poder Judiciário, especialmente, ainda não incorporou plenamente as concepções e os princípios norteadores do direito internacional dos direitos humanos, daí a resistência de alguns juízes de interpretarem a Lei Maria da Penha como parte do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, recepcionado pela Constituição de 1988. Além disso, ao contrario do Poder Legislativo e do Poder Executivo, as instituições da justice, incluindo o Judiciário, ainda não se democratizaram suficientemente para promover uma interlocução com os movimentos sociais”. 4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X órgão julgador pela realização de transações penais que, essencialmente, se resumem ao pagamento de multas ou de cestas básicas (Izumino, 2005, p. 8)10. Assim, esta leitura simplificada do problema de violência doméstica sob a ótica da Lei n. 9.099/95 desconsidera as vítimas reais pois “na linha metafísica da dogmática tradicional, nega-se a concretude do problema: mulheres que há anos convivem com maridos/companheiros violentos” (Campos, 2006, p. 414). Assim, sob o marco teórico jurídico-feminista, a Lei n. 9.099/95 não tutelou de forma suficiente e integral o bem jurídico das mulheres consistente a uma vida sem violência doméstica. Ao menos no plano teórico-legislativo, as premissas do tratamento a estas condutas foram substancialmente alteradas com a edição de Lei Maria da Penha, a qual adotou a perspectiva feminista de que a “violência, especialmente a violência nas relações interpessoais, é um dos principais mecanismos para forçar as mulheres a posições subordinadas na sociedade face à permanência contra elas de padrões discriminatórios nos espaços público e privado”. (Barsted, 2011, p. 16-17). A edição da Lei Maria da Penha e o novo tratamento penal das condutas de violência doméstica e familiar A elaboração da Lei Maria da Penha é fruto da adoção de mecanismos internacionais de direitos humanos que especificamente tratam desta temática, em especial, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1994)11. Na condenação do estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (da Organização dos Estados Americanos) foi reconhecida a insuficiência dos mecanismos internos até então existentes de abordar esta temática sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais das mulheres12. 10 No mesmo sentido, Campos (2003, p. 166) afirma: “a conciliação há de ser vista dentro da lógica operacional da Lei e do novo procedimento inaugurado. Essa lógica tem sido a lógica da diminuição pura e simples dos processos em tramitação (perspectiva da diversion), sem uma real preocupação com a resolução satisfatória para a vítima. Esse procedimento rotineiro tem banalizado a violência contra a mulher e desconstituído todo o simbolismo de gravidade que o delito adquire ao chegar ao Judiciário”. 11 Estes tratados internacionais foram expressamente mencionados na ementa desta lei, que assim dispõe: “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (...)”. 12 Um dos fatores que levaram à edição da Lei Maria da Penha foi a condenação do Estado brasileiro perante a Organização dos Estados Americanos por negligência e omissão em relação à violência doméstica. De acordo com o item 56 da referida decisão “(...) a Comissão considera que não só é violada a obrigação de processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas degradantes. Essa falta de efetividade judicial geral e discriminatória cria o ambiente propício à violência doméstica, não havendo evidência socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado como representante da sociedade, para punir esses atos.” Disponível em http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 30 de abril de 2013. 5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X No campo do direito penal, a Lei Maria da Penha, porquanto aproximada da realidade concreta destas mulheres, trouxe um tratamento diferenciado a tais condutas. Ao invés de criar novos tipos penais específicos, limitou a agravar as penas do crime de lesão corporal, além do estabelecimento de uma nova majorante constante no art. 129, parágrafo 6o do Código Penal, sendo ainda prevista uma nova agravante genérica (art. 61, II, f, do CP) às infrações cometidas quando há envolvimento afetivo entre agressor e vítima (Barsted, 2011, p. 16-17). No campo do direito processual, mais numerosas foram as alterações operadas, das quais se destacam o afastamento da lei n. 9.099/95, e, ainda, a instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, órgãos jurisdicionais com competência mista (cível e criminal) para a solução integral dos conflitos de violência doméstica e familiar pelo sistema de justiça. Estas mudanças foram objeto de divergência entre as feministas que integraram o Consórcio de ONGs que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha. Por um lado, com base em posicionamentos da criminologia (especialmente na sua vertente crítica), argumentou-se que o direito penal, dado o seu fracasso, não é a instância dogmática mais viável para o tratamento destas condutas, uma vez que, na prática, representaria a perpetuação dos estereótipos tradicionalmente. Por outro, a proteção penal de tais condutas atentatórias aos direitos humanos e fundamentais das mulheres em situação de violência doméstica poderia significar uma resposta simbólica ao ditado de que “em briga de marido e mulher, se pode meter a colher”. Além do mais, dada a sua real gravidade, segundo Campos et al (2006), “a violência doméstica, por se tratar de comportamento reiterado e cotidiano, carrega consigo grau de comprometimento emocional (medo paralisante, p. ex.) que impede as mulheres de romper a situação violenta e de evitar outros delitos simultaneamente cometidos (estupro, cárcere privado, entre outros)”. Em 24.3.2011, o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus n. 106.212, por unanimidade, assentou a constitucionalidade do afastamento da Lei n. 9.099/1995 aos processos referentes a crimes de violência doméstica contra a mulher13. Ainda, no julgamento da ADI 4.424/DF (ocorrido em 9.2.2012), assentou que, referente aos crimes de lesão corporal (em específico) em contexto de violência doméstica e familiar tutelada pela lei Maria da Penha, a ação penal passou a ser pública e incondicionada, retirando a possibilidade de desistência por parte da mulher.14 Na linha dos argumentos adotados enquanto razão de decidir pelo STF, a opção foi por 13 Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 25 de junho de 2013. Cumpre fazer uma advertência de que nem todos os delitos relacionados à violência de gênero são de ação penal pública incondicionada. A decisão do Supremo Tribunal Federal diz respeito tão somente ao tipo penal de lesão corporal, não abrangendo os demais tipos penais, tais como, por exemplo, ameaça, injúria, calunia que são recorrentes na prática dos atendimentos às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. 14 6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X privilegiar a autonomia da mulher, e, ainda, garantir uma efetiva resposta do sistema de justiça às demandas ali propostas. Os posicionamentos acima indicados tiveram grande repercussão no cotidiano dos atendimentos às mulheres em situação de violência doméstica. Isso porque tem o potencial de efetivamente afastar tanto o caráter de menor potencial ofensivo destas condutas, quanto a aplicação das medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95. Além disso, embora restrito ao crime de lesão corporal, considerar a ação penal pública e incondicionada nestes casos afastou a possibilidade de retratação da representação, prática que até então era estimulada pelo sistema de justiça de forma análoga ao incentivo que era conferido às transações penais na sistemática antiga da Lei 9.099/95. Não obstante, nos atendimentos realizados em Ceilândia, ainda é prática comum a designação, de ofício, de audiência de justificação (prevista no art. 16 da lei Maria da Penha) às mulheres com medidas protetivas com o intuito de “verificar” se a mulher está de fato interessada no prosseguimento da ação penal. Conforme se verá no item a seguir, estes avanços podem ser comprometidos, pois tais comportamentos do Poder Judiciário revelam que o sistema de justiça ainda não abandonou as velhas práticas que foram reconhecidas pela teoria jurídico feminista como prejudiciais à efetividade do tratamento deste problema que foi trazida pela lei 11.340/06. A (falta de) efetivação da Lei Maria da Penha a partir da experiência nos atendimentos de violência doméstica em Ceilândia/DF A experiência nos atendimentos a mulheres em situação de violência de gênero revela que, conforme indicado por Piovesan (2010), mesmo com a edição da Lei Maria da Penha há sete anos, o problema da violência doméstica baseada em diferenças de gênero ainda não tem sido enfrentado efetivamente nem pelo ente publico nem pela sociedade no Brasil sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais das mulheres. Esta também é a conclusão alcançada pelo Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito relativa à violência doméstica15. Dentre outras conclusões, a CPMI (2013, p. 1037) expediu uma recomendação ao Supremo Tribunal Federal para que tome “conhecimento quanto à existência, em alguns estados, da aplicação da suspensão condicional do processo em crimes de violência doméstica contra a mulher, em desobediência à decisão proferida por aquela Corte no dia 9 fevereiro de 2012”. Ou seja, foi identificada a tendência de que ainda está presente, no Brasil, o tratamento da violência doméstica 15 Cópia impressa do relatório pode ser encontrada <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=130748&tp=1>. Acesso em 6.7.2013 em 7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X enquanto infração de menor potencial ofensivo, muito embora todas as inovações que foram trazidas pela Lei Maria da Penha sob a necessidade de proteção dos direitos humanos e fundamentais das mulheres. Esta tendência é também observada nos casos que foram atendidos pelo Projeto de Extensão “Maria da Penha, Atenção e Proteção”, em Ceilândia/DF16. De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (2013, p. 61), no Distrito Federal foram criados 10 (dez) Juizados com competência exclusiva em violência contra a mulher, sendo que, em Ceilândia, há dois destes Juizados17. Os principais tipos penais que são denunciados são: ameaça, vias de fato e lesão corporal tanto na modalidade leve quanto na grave18. Os atendimentos as mulheres em situação de violência, bem como o acompanhamento do relato delas em relação à atuação do sistema de justiça revela que, muito embora afastada a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais, ainda assim não houve uma mudança das práticas preconizada pela Lei Maria da Penha. Para exemplificar, trazemos à baila dois casos que foram atendidos que foram atendidos em 2012 os quais refletem as dificuldades acima identificadas19. No caso 1, Pedro foi casado com Tereza durante quinze anos, com quem teve três filhos ainda menores de idade. Durante todo o período do casamento, sempre houve prática de violência doméstica, sendo o estopim que levou Tereza a denunciá-lo foi a sua conduta de, com uma faca, atentar contra sua integridade física, tendo desistido do seu intento somente por força da intervenção dos vizinhos. No boletim de ocorrência, a conduta foi registada como ameaça20, sendo que, na audiência do art. 16 da Lei Maria da Penha – designada de ofício - a sugestão da autoridade judicante foi que ambos frequentassem dez sessões promovidas pelo serviço de psicologia do fórum 16 De acordo com o relatório (2013, p. 54), “além disso, a CPMI também constatou que a decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou constitucional a Lei Maria da Penha e afastou os institutos despenalizantes previstos na Lei 0.9099/1995, tais como a conciliação, a transação penal e a suspensão condicional do processo não vêm sendo cumprida adequadamente. Em Alagoas, no Distrito Federal, em Goiás, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, a CPMI verificou a aplicação da suspensão condicional do processo, em desconformidade ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Embora a CPMI tenha visitado apenas os juizados das capitais, foi informada que o mesmo acontece em várias comarcas do interior do país”. 17 A instalação destes Juizados ocorreu em 2012, sendo que, antes disso, os conflitos envolvendo a aplicação da Lei Maria da Penha eram solucionados nos Juizados Especiais Criminais da localidade, embora formalmente não se aplicando os institutos jurídicos da Lei n. 9.099/95. 18 Informações disponíveis em http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2013/marco/no-dia-internacionalda-mulher-tjdf-reafirma-compromisso-de-dar-efetividade-a-lei-maria-da-penha. Acesso em 14.jun.2013. 19 Por questões éticas e de sigilo que envolvem estes processos, os nomes foram alterados para impossibilitar a identificação real das partes envolvidas. 20 O crime de ameaça foi tipificado no art. 147 do Código Penal, que assim dispõe: “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. A pena cominada é de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. 8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X local. Neste período, o processo foi suspenso, e, com o relatório dos atendimentos, posteriormente o feito foi arquivado sem nenhuma audiência prévia. No caso 2, Antônio manteve união estável com Luzia durante três anos, sendo que, do relacionamento, nasceu uma criança que à época do atendimento estava com cinco meses. Após ela ter decidido que começaria a trabalhar, as desavenças começaram a ser tornar mais sérias até que, em uma noite, eles se desentenderam e Antônio jogou cadeira e móveis em cima dela, causando uma cicatriz no rosto. Ela, por sua vez, imediatamente jogou um copo em direção a Antônio, que desviou do objeto. A conduta foi capturada como vias de fato21, sendo que, em audiência, novamente a sugestão da autoridade judicante foi que ambos frequentassem a sessões promovidas pelo serviço de psicologia do Fórum local. Neste período, o processo foi suspenso, e, com o relatório dos atendimentos, posteriormente o feito foi arquivado constando a informação de que teria havido acordo entre as partes para o encerramento do processo, sem nenhuma audiência prévia. A análise destes casos revela a presença de algumas das já mencionadas características identificadas tanto pelo relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (2013) quanto por Campos (2003) e por Izumino (2005) como sendo prejudiciais aos direitos humanos fundamentais das mulheres. Embora em todos eles tenha havido procedimento no Juizado de Violência Doméstica e Familiar, o procedimento adotado em muito se assemelha ao tratamento que era conferido até então pelos Juizados Especiais Criminais sob a égide da Lei n. 9.099/95. Em primeiro lugar, a tipificação dos crimes enquanto de menor potencial ofensivo. Embora tenha havido lesão à integridade física das mulheres, bem jurídico tutelado pelo o que dispõe o art. 129, com a causa de aumento de pena por ter sido praticado em contexto de violência doméstica e familiar (pena de detenção de três meses a três anos) do Código Penal, as condutas foram capituladas enquanto tipos penais que expressam condutas de menor gravidade. Além disso, não foi levado em consideração a circunstância de que o contexto de violência doméstica é permanente nestes casos, sendo o fato levado à autoridade judiciária apenas o estopim deste contexto atentatórios aos direitos humanos e fundamentais a uma vida livre de violência. Esta constatação revela que ainda existe uma propensão em considerar tais condutas como de menor potencial ofensivo, muito embora a vedação do art. 41 da Lei Maria da Penha. 21 No ordenamento jurídico brasileiro, vias de fato não é um crime e sim uma contravenção penal capitulada no art. 21 da Lei n. 9.099/95 para a qual foi cominada a sanção de “prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato não constitui crime”. 9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X A prática de enviar os envolvidos para sessões a serem realizadas pelo serviço de psicologia do fórum revela que, às avessas, estaria havendo uma suspensão condicional do processo. Nos casos analisados, não houve decisão de mérito quanto à efetiva ocorrência ou não da conduta investigada pois as partes foram estimuladas a aceitar frequentar as reuniões sem que esta iniciativa tenha sido partido delas. Além de estas soluções seguirem cláusulas padronizadas sob a forma de acordo, e, ainda, não levarem em conta as especificidades do caso em concreto, é de ressaltar que a própria Lei Maria da Penha obsta expressamente sejam firmados acordos entre o agressor e a mulher em situação de violência, sendo tal medida motivada pela constatação de desigualdade entre as partes. Estas medidas foram tomadas pela autoridade com o desiderato de se promover o arquivamento dos processos mesmo antes de inaugurada a fase processual com o oferecimento de eventual denúncia ou queixa por parte da mulher. A principal interessada no desfecho do processo (pois, foi quem sofreu a violação do bem jurídico por meio das condutas dos agressores) não teve a oportunidade de manifestar se, de fato, desejaria a continuidade da persecução penal pelo ente estatal. Além disso, não se tem certeza acerca da efetividade social do comparecimento às sessões mencionadas, visto que não é possível afirmar que houve ou não a mudança de práticas sociais a partir de então. Assim, a análise destes casos revela que muitos dos problemas identificados pelo Relatório da Comissão Parlamentar Mista de investigação referente à violência doméstica são também notados em Ceilândia-DF. Ainda está presente a tendência do sistema de justiça de se considerar a violência doméstica como de menor potencial ofensivo, mesmo após as críticas das feministas, os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e a entrada em vigor da Lei Maria da Penha. A prática de acordos judiciais e a adoção de medidas que em muito se assemelham com os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 são exemplos desta tendência que em muito prejudica os direitos humanos e fundamentais das mulheres consistentes a uma vida sem violência baseada nas diferenças de gênero. Conclusões A promulgação da Lei Maria da Penha trouxe para o debate público a questão da violência de gênero não mais como uma questão invisibilizada pela entidade familiar, mas como uma demanda social que deve ser efetivamente enfrentada pelo Estado enquanto questão de direitos humanos e fundamentais que assistem às mulheres. 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X Como uma das inovações da referida Lei n. 11.340/06, foi expressamente afastado o tratamento de menor potencial ofensivo a estas condutas, que anteriormente era conferido pela lei n. 9.099/95. Esta mudança legislativa é vista como positiva sob o marco jurídico-feminista, uma vez que realça a real gravidade destas condutas para as mulheres e ainda propõe um tratamento jurídico que seja efetivo para estas demandas apresentadas ao sistema de justiça estatal. No entanto, a experiência no atendimento às mulheres em Ceilândia, bem como o Relatório apresentado como conclusão da CPMI de violência doméstica evidenciam que, não obstante estas alterações no nível legislativo, há ainda um caminho a percorrer na efetivação destes novos institutos. Seja a favor ou contra ao tratamento penal da violência doméstica, há um consenso acerca da necessidade de o estado brasileiro não se mostrar negligente a esta problemática, como já o foi em virtude da condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, as conclusões da CPMI bem como as impressões obtidas por meio dos atendimentos as mulheres em Ceilândia/DF são convergentes acerca da necessidade de que ainda é preciso percorrer um longo caminho tendente a mudança das práticas do sistema de justiça. É preciso conscientizar não só a sociedade mas também as autoridades jurisdicionais de que a violência doméstica, por envolver questões de direitos humanos e fundamentais das mulheres a uma vida sem violência, não é de menor potencial ofensivo e como tal não deve ser encarado. Referências BARSTED, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida da advocacy feminista. In. CAMPOS, Carmem Heim de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. CAMPOS, Carmen Hein de. Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 1, Junho, 2003. CAMPOS, Carmen Hein de. CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2), maio-agosto/2006. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha. Brasília, CNJ, 2013. IZUMINO, Wania Pasinato. 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Considerations of gender violence criminalization operated by Maria da Penha Law Abstract: The paper proposes an analysis, from the experiences of assisted women in situations of domestic violence in Ceilândia-DF, on the effectiveness of the innovations introduced by Maria da Penha Law concerning the criminalization of the conduct of violence based on gender differences, as opposed to arrangements then in force which was established by the Special Criminal Courts Law (Law 9.099/95). Seeks to analyze the problem from the contributions of legal and feminist theory as well as recent findings brought by the final report of the Joint Parliamentary Committee of Domestic Violence. We conclude that, although the Maria da Penha Law fetched away the incidence of institutes established by the Special Criminal Courts Act, these mechanisms continue to be used by the Courts of Domestic Violence in Ceilândia / DF at the expense of human rights and fundamental women in situations of violence. Keywords: Maria da Penha Law. Domestic and family violence against women. Treatment of criminal domestic violence. Effectiveness of the Maria da Penha Law. 12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X